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Eccos Revista Científica

Print version ISSN 1517-1949On-line version ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.61 São Paulo Apr./June 2022  Epub Feb 09, 2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n61.21843 

Dossiê 61 - Cidades Educadoras

DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DOCENTE VIA MAPAS NARRATIVOS NO CONTEXTO DA CIDADE EDUCADORA

TEACHER PROFESSIONAL DEVELOPMENT VIA NARRATIVE MAPS IN THE CONTEXT OF THE EDUCATING CITY

DESARROLLO PROFESIONAL DOCENTE A TRAVÉS DE MAPAS NARRATIVOS EN EL CONTEXTO DE LA CIUDAD EDUCADORA

Márcia Tostes Costa da Silva, Doutora em Educação, Arte e História da Cultura1 
http://orcid.org/0000-0003-1120-049X

Maria da Graça Nicoletti Mizukami, Doutora em Ciências Humanas2 
http://orcid.org/0000-0002-4258-1056

Maria de Fátima Ramos de Andrade, Doutora em Comunicação e Semiótica3 
http://orcid.org/0000-0003-4945-8752

1Doutora em Educação, Arte e História da Cultura, Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM, São Paulo - SP

2Doutora em Ciências Humanas, Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM, São Paulo - SP

3Doutora em Comunicação e Semiótica, Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM, São Paulo - SP


Resumo

O presente estudo insere-se no âmbito das pesquisas que abordam o desenvolvimento profissional docente, tendo como um dos seus eixos a formação permanente gestada e alimentada em contextos da cidade educadora. Trata-se de um recorte de uma pesquisa maior intitulada - Lidando com novos espaços: crianças e adolescentes na apropriação do complexo arquitetônico do CEU Butantã (São Paulo), realizada no período de 2019-2020, pelos componentes do Grupo de Estudos e Pesquisa em Pedagogia Social (GEPESP) juntamente com as professoras do Centro Educacional Unificado Professora Elizabeth Gaspar Tunala (CEU-Butantã). Neste artigo objetivamos investigar como as professoras imersas no contexto da cidade educadora utilizavam-se da metodologia dos mapas narrativos para conhecer suas crianças e para potencializar o seu trabalho pedagógico. O referencial teórico pautou-se principalmente nos estudos e pesquisas de Paulo Freire, Moacir Gadotti, Oliveira-Formosinho e Wiliam Corsaro. Constatou-se que o fato de o CEU Butantã definir-se como cenário da cidade educadora, com os primados de compartilhamento, com a apropriação da escola por sua comunidade, com a valorização do humano, com as trocas de saberes entre as pessoas que habitam esse espaço, com o incentivo à pesquisa, à descoberta e ao aprendizado, reunia as condições favoráveis para fecundar e florescer metodologias assertivas, em especial, os mapas narrativos, tão importantes para a formação de seus professores.

Palavras-chave CEU Butantã; cidade educadora; desenvolvimento profissional docente; mapas narrativos.

Abstract

The present study is part of the scope of research that addresses the professional development of teachers, having as one of its axes the permanent training gestational and fed in contexts of the educational city. This is a part of a larger research entitled - Dealing with new spaces: children and adolescents in the appropriation of the architectural complex of CEU Butantã (São Paulo), carried out in the period 2019-2020, by the components of the Group of Studies and Research in Social Pedagogy (GEPESP) together with the teachers of the Unified Educational Center Professor Elizabeth Gaspar Tunala (CEU-Butantã). In this article we aimed to investigate how teachers immersed in the context of the educating city used the methodology of narrative maps to know their children and to enhance their pedagogical work. The theoretical framework was mainly based on the studies and researchof Paulo Freire, Moacir Gadotti, Oliveira-Formosinho and Wiliam Corsaro. It was found that the fact that the CEU Butantã defined itself as the scenario of the educating city, with the primacy of sharing, with the appropriation of the school by its community, with the valorization of the human, with the exchanges of knowledge between the people who inhabit this space, with the incentive to research, discovery and learning, gathered the favorable conditions to fertilize and flourish assertive methodologies, in particular, narrative maps, so important for the training of their teachers.

Keywords: CEU Butantã; educational city; teacher professional development; narrative maps.

Resumen

El presente estudio forma parte del ámbito de investigación que aborda el desarrollo profesional de los docentes, teniendo como uno de sus ejes la formación permanente gestacional y alimentada en contextos de la ciudad educativa. Esta es una parte de una investigación más amplia titulada - Tratar los nuevos espacios: niños y adolescentes en la apropiación del complejo arquitectónico del CEU Butantã (São Paulo), realizada en el período 2019-2020, por los componentes del Grupo de Estudios e Investigación en Pedagogía Social (GEPESP) junto con los profesores del Centro Educativo Unificado Profesor Elizabeth Gaspar Tunala (CEU-Butantã). En este artículo nos propusimos investigar cómo los docentes inmersos en el contexto de la ciudad educadora utilizaron la metodología de los mapas narrativos para conocer a sus hijos y potenciar su labor pedagógica. El marco teórico se basó principalmente en los estudios e investigaciones de Paulo Freire, Moacir Gadotti, Oliveira-Formosinho y Wiliam Corsaro. Se encontró que el hecho de que el CEU Butantã se definiera como el escenario de la ciudad educadora, con la primacía del compartir, con la apropiación de la escuela por su comunidad, con la valorización de lo humano, con los intercambios de conocimiento entre las personas que habitan este espacio, con el incentivo a la investigación, el descubrimiento y el aprendizaje, reunió las condiciones favorables para fertilizar y florecer metodologías asertivas, en particular, los mapas narrativos, tan importantes para la formación de sus profesores.

Palabras clave: CEU Butantã; ciudad educativa; desarrollo profesional docente; mapas narrativos.

Introdução

Este artigo analisa uma fração da formação docente pela via da construção dos mapas narrativos em cenários forjados pela cidade educadora. É um fragmento da pesquisa maior - Lidando com novos espaços: crianças e adolescentes na apropriação do complexo arquitetônico do CEU Butantã (São Paulo), realizada no período de 2019-2020, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em seu programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura em parceria com as Universidades Siegen e Alanus, ambas da Alemanha.

O objetivo deste artigo é entender como as professoras imersas no contexto da cidade educadora utilizavam-se da metodologia dos mapas narrativos para conhecer suas crianças e potencializar o seu trabalho pedagógico.

Os encontros com as professoras no Centro Educacional Unificado (CEU Butantã) constituíram-se uma formação de mão dupla: por um lado, aos pesquisadores foi franqueada a oportunidade de conhecer o professor na escola, enquanto sujeito real e completo, constituído de crenças, de valores, de uma história de vida, de um tipo específico de formação para a docência.

Por outro, a pesquisa outorgou às professoras pelo próprio exercício de criar um mapa narrativo, a compreensão de se conhecerem e se reconhecerem como pessoas que habitam um espaço encharcado de potencialidades educativas, afetando-o e sendo afetadas por ele. Também pelo contato com a metodologia dos mapas narrativos, as professoras perceberam-na como uma proposta de trabalho potente para ser utilizada em sua prática diária, ajudando-as a conhecer melhor as suas crianças: como elas constroem as suas aprendizagens apoiadas em suas vivências como seres históricos-sociais, como interagem com os espaços do CEU, seus afetos e desafetos por este local e tantas outras coisas, de acordo com a intencionalidade docente.

A formação de professores, neste estudo concebe-se como o desenvolvimento profissional numa perspectiva ecológica. Assim, inicialmente, expõe-se o referencial teórico para que haja uma compreensão de onde nossos pés estão fincados; logo após, são apresentados alguns relatos das docentes, para legitimar a teoria; na sequência, as considerações finais.

Os CEUs como instrumento da cidade educadora

Gadotti (2006, p. 134) conceitua o termo cidade educadora como “é a cidade, como espaço de cultura, educando a escola e todos que circulam em seus espaços, e a escola, como palco do espetáculo da vida, educando a cidade numa troca de saberes e de competências”.

A terminologia cidade educadora ganhou sustentáculo no início da década de 1990, em Barcelona, Espanha, por ocasião do primeiro Congresso Internacional das Cidades Educadoras, que aprovou uma carta de princípios essenciais para caracterizar uma cidade que educa. No Brasil, algumas cidades filiaram-se à Associação Internacional de Cidades Educadoras, com o programa dos Centros Educacionais Unificados (CEUs), dentre elas: Belo Horizonte (MG), Caxias do Sul (RS), Cuiabá (MT), Pilar (PB), Porto Alegre (RS), Piracicaba (SP), Alvorada (RS), Campo Novo do Parecis (MT) e São Paulo (SP).

Para Freire (2001) a cidade toma para si o ser educadora pela própria essência dos seus habitantes por serem concebidos como inacabados e programados para aprender, é habitando os bairros, os centros, o comércio, o teatro, a escola, os rios, os vales, as praças, que homens, mulheres, crianças, jovens e idosos impregnam a cidade com seus gostos, seus estilos, suas escolhas e suas produções, fixando marcas que denotam um tempo histórico e uma certa cultura.

Na cidade educadora o educar acontece em um movimento de reciprocidade, pois à medida que seus habitantes vão se humanizando, humanizam a cidade, o educar-se dar-se-á pelo fazer, agir, estar na e com a cidade, neste processo, pessoas e cidade são modificadas.

Gadotti (2006) adverte que para uma cidade caracterizar-se como educadora ela precisa ir além das suas funções prescritas - econômica, social, política e prestação de serviços, necessita caminhar para a formação da cidadania dos seus habitantes, isso significa potencializar o protagonismo de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, a fim de que exerçam os seus deveres e tenham garantidos os seus direitos como cidadãos. Isto porque:

enquanto educadora, a Cidade é também educanda. Muito de sua tarefa educativa implica a nossa posição política e, obviamente, a maneira como exerçamos o poder na Cidade e o sonho ou a utopia de que embebamos a política, a serviço de que e de quem a fazemos (FREIRE, 2001, p.13).

Nesse contexto, a cidade de São Paulo, inseriu-se no conceito de cidade educadora com os CEUs, almejado na gestão da prefeita Erundina e implementado na gestão da prefeita Marta Suplicy no período de 2001-2004.

Todos os espaços dos CEUs, enquanto complexo educacional, foram pensados com a finalidade de corresponder aos primados da cidade educadora e com o compromisso da rede de proteção social (PADILHA; SILVA, 2004).

A criação dos CEUs trouxe à existência um projeto popular que continha em seu bojo a educação cidadã, referência a um tipo de escola, no qual a sua população participa e se apropria de tudo o que nela ocorre como um processo natural e vital para ambos e, à medida que as pessoas se envolvem com a vida escolar, apropriam-se da cidade ao qual fazem parte (GADOTTI, 2006).

Uma das vias percorridas para implementar a educação cidadã foi a inserção de uma proposta intersetorial que envolveria os diversos setores: meio ambiente, educação, emprego e renda, participação popular, desenvolvimento local, saúde, cultura, esporte e lazer, porque “os CEUs inspiram-se na concepção de equipamento urbano agregador da comunidade, com uma visão de educação que transcende a sala de aula e o espaço escolar” (PADILHA; SILVA, 2004, p. 15).

Sendo os CEUs constituídos como centros de experimentação educacional e de investigação, suas atividades buscavam o desenvolvimento da comunidade, assim tornou-se imperativo em sua implantação um estudo criterioso de mapeamento da realidade local, com o intuito de conhecer as realidades socioculturais, econômicas, geográficas e históricas.

O projeto educacional dos CEUs não era rígido e estático, mas correspondia ao modelo de programa que se faz em processo, isto porque à medida que a vida lá ia acontecendo, ocorria uma atualização das experiências e contexto, priorizando a partilha e o trabalho com as diferenças.

Os CEUs, enquanto contextos da cidade educadora, propõem-se em atender os preceitos da Constituição Federal de 1988 em seu artigo 205, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), no art. 1º, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 4º, que impõe sobre a família, a sociedade e o Estado o dever de garantir a educação de crianças e adolescentes, certificando-lhes primeiramente os direitos à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Os CEUS, na sua maioria, possuem quadra poliesportiva, teatro, playground, piscinas, biblioteca, telecentro, espaços para oficinas, ateliês e reuniões, todos acessíveis à comunidade durante a semana, inclusive nos finais de semana, com oferta de programação diversificada a todas as idades. Encontram-se também disponíveis à comunidade os equipamentos de lazer, de tecnologia e os de práticas esportivas.

Neste estudo, o foco é o Centro Educacional Unificado Professora Elizabeth Gaspar Tunala (CEU Butantã) situado à Avenida Engenheiro Heitor Eiras Garcia, 1700. Ele dispõe de uma extensão de 19.078 m2, sendo que 13.246 m2 é sua área construída e apresenta a seguinte estrutura: o bloco maior, com forma de grelha ortogonal, reúne as salas de aulas, refeitório, biblioteca, informática, laboratório de panificação, área para exposição e área social; o menor volume, o disco elevado do solo, é o berçário; e o terceiro volume, um paralelepípedo de cinco pisos, reúne o teatro, a quadra coberta e a sala de música. E ainda dispõe de parque, pista de skate, piscinas com tamanhos adequados às crianças e aos adultos, quadras esportivas, sala de ginástica, dança e multiuso, estúdio de música, ateliês de arte e de costura, uma sala do clube de xadrez, um parque externo, uma padaria escola, além do Teatro Carlos Zara (com 450 lugares), da Biblioteca Jornalista Roberto Marinho e do Telecentro (um espaço público multiuso) e SP Cine.

O restante do espaço comporta área verde com muita terra, bosque, minas d’água, córregos, lagos e hortas. É das caminhadas indo e vindo desses lugares, que professores e crianças constroem suas narrativas, vivências e aprendizagens.

Compõe-se das seguintes unidades educacionais: CEI CEU Butantã, EMEI CEU Butantã, EJA (Educação de Jovens e Adultos), EMEF CEU Butantã, ETEC de São Paulo (atualmente com os cursos de Administração e Recursos Humanos, sendo que cada um dispõe de trinta vagas no período noturno).

O desenvolvimento profissional docente numa perspectiva de mudança ecológica

O desenvolvimento profissional é definido por Oliveira-Formosinho (2009, p. 226) como:

[...] um processo contínuo de melhoria das práticas docentes, centrado no professor, ou num grupo de professores em interacção, incluindo momentos formais e não formais, com a preocupação de promover mudanças educativas em benefício dos alunos1, das famílias e das comunidades.

Com essa compreensão, a autora estende os benefícios do desenvolvimento profissional para outras instâncias, principalmente às crianças. Outro ponto relevante nessa conceituação é que Oliveira-Formosinho (2009) dá centralidade aos professores, enquanto atores, no aprendizado e nas mudanças que se efetuarão.

Para a autora, a relação íntima entre desenvolvimento profissional dos professores centrado na escola e o desenvolvimento da escola é indiscutível, assim como para Marcelo García (1999), porque se trata de “[...] uma formação que faz do estabelecimento de ensino o lugar onde emergem as atividades de formação dos profissionais, com o fim de identificar problemas, construir soluções e definir projetos” (BARROSO, 2003, p. 74).

Oliveira-Formosinho (2009) defende o desenvolvimento profissional docente como uma possível forma de definir e garantir uma formação docente com boa qualidade. Ao fazê-lo, compreende o desenvolvimento profissional enquanto processo, porque leva em consideração todo o percurso da vida do professor antes e durante o tempo de sala de aula, bem como as relações constituídas em sua vida.

Assim, coloca o desenvolvimento profissional docente dentro de uma proposta de formação como uma mudança ecológica. A expressão mudança ecológica foi inspirada na definição do conceito de ambiente ecológico proposto por Bronfenbrenner (1996, p. 5) que o define “[...] como uma série de estruturas encaixadas, uma dentro da outra, como um conjunto de bonecas russas [...] se estende muito além da situação imediata afetando diretamente a pessoa em desenvolvimento [...]”.

Para este teórico, o ambiente ecológico não é um “mero contexto imediato” - no qual as pessoas estão se desenvolvendo, mas é um conjunto de “estruturas concêntricas” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009, p. 258): o microssistema, o mesossistema, o exossistema e o macrossistema.

O microssistema é entendido como o local onde os indivíduos estabelecem relações diretas e altamente significativas - como a casa, a escola, a sala de aula. Nesse local a pessoa participa de diferentes atividades, funções e relações (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009).

O mesossistema compõe-se das inter-relações entre os microssistemas. Deste modo, pode ser interpretado como um sistema de microssistemas. No caso da sala de aula, pode ser um supervisor que realiza orientações, uma instituição que mantenha uma formação e outras atividades grupais... (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009).

O exossistema relaciona-se a contextos em que o indivíduo não apresenta uma participação direta, são eles: Delegacias de Ensino, Secretarias de Educação, setores administrativos, instituições de formação, a rede viária e o sistema público de transporte da região, que leva o professor, de casa ao trabalho, são campos que podem afetar ou serem afetados pelas ações desenvolvidas nos micros e nos mesossistemas (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009).

Oliveira-Formosinho (2009), apoiada nos estudos de Bairrão (1995) defende que o macrossistema não se define como um local determinado, mas por crenças, valores, hábitos, formas de agir, estilos de vida... “que caracterizam uma determinada sociedade e são veiculados pelas outras estruturas do ambiente ecológico, isto é, pelos micros, meso e exossistemas” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009, p. 259). Como exemplo pode-se pensar nas concepções de criança, infância, práticas de educação familiar...

Compreende-se, então, a relevância da abordagem ecológica no desenvolvimento profissional docente, porque sejam os contextos próximos ou distantes do professor, esses contextos influenciam sua aprendizagem e o desenvolvimento da sua prática em sala de aula.

Goodson (2013) contribui com as ideias do desenvolvimento profissional na linha ecológica, ao atribuir uma enorme importância aos contextos de vida pessoal dos professores, considerando-os como andaimes. Acrescenta que “as experiências de vida e o ambiente sociocultural são obviamente ingredientes-chave da pessoa que somos, do nosso sentido do eu” (GOODSON, 2013, p.71). Para este autor, adotar o modelo ecológico equivale a conceber o desenvolvimento do professor dentro de uma rede de interações entre professor-pessoa e os contextos ao qual ele pertence (GOODSON, 2013).

Adotar o desenvolvimento profissional docente na vertente ecológica significa também atentar para a singularidade do professor em suas formações, pois é necessário pensá-lo como uma pessoa completa, constituída de crenças, de uma história de vida e de concepções, elementos estes que, além de não se descolarem dele, ao entrar na sua sala, poderão influenciar e determinar o seu estilo de prática. Isto porque o professor:

[...] sente e responde às circunstâncias, não direta e linearmente, como processador neutral de informação ou agente racional e simplificado, mas, antes, como estrutura global em que um nível (o da ação, por exemplo) é mediado pela totalidade da pessoa (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009, p. 232).

A formação na perspectiva ecológica permite conceber os professores como “pessoas que se formam nos seus diversos contextos vivenciais, ao longo da vida” (SARMENTO, 2009, p. 326) e ainda como “uma fonte criadora de conhecimento e habilidades necessárias para a instrução [...]” (BALL; COHEN, 1999, p. 6).

Outro ponto essencial nessa perspectiva de formação é a oportunidade de valorar as experiências trazidas pelos professores e o significado que eles atribuem a elas como base para a sua profissão (SARMENTO, 2009).

Sarmento (2009) aponta que é nas interações com as crianças e as comunidades que os professores constroem as aprendizagens essenciais para o exercício da docência.

Importante salientar que este estudo trabalha com o conceito de criança referendado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Infantil, como:

sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, 2010, p. 12).

E ainda conforme Sarmento (2005, p. 373):

[...] crianças são competentes e têm capacidade de formularem interpretações da sociedade, dos outros e de si próprios, da natureza, dos pensamentos e dos sentimentos, de o fazerem de modo distinto e de o usarem para lidar com tudo o que as rodeia.

Corsaro (2002) contribui com a ideia de criança enquanto ser social, ao propor que “[...] as crianças começam a vida como seres sociais inseridos numa rede social já definida e, através do desenvolvimento da comunicação e linguagem em interação com outros constroem os seus mundos sociais” (CORSARO, 2002, p. 114).

O espaço no CEU Butantã na educação infantil é compreendido como gerador da experiência (FORTUNATI, 2009), porque o professor, com o seu olhar voltado à criança, embasado por uma prática alimentada por saberes e conhecimentos e com intencionalidade educativa (BONDIOLI; MANTOVANI, 1998), planeja, organiza e disponibiliza materiais, oportuniza o surgimento de vivências por meio de interações lúdicas, construção de tempos e espaços que oportunizem provocações ao surgimento da imaginação e desafiem o raciocínio das crianças “dando asas à curiosidade, proporcionando espanto, descoberta, maravilhamento e todas as formas de expressão nas mais diferentes intensidades” (FINCO, 2015, p. 234).

E, como último conceito defendido neste texto, o de vivência (em russo perejivanie), criado por Vigotski e apresentado por Vinha e Welcman (2010) como:

a vivência é uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado - a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa - e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personalidade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência (VINHA; WELCMAN, 2010, p. 4).

Para esses autores, orientados pela teoria de Vigotski, a vivência detém os elementos que poderão definir o desenvolvimento psicológico e o da personalidade consciente da criança. Para Vigotski, a vivência não diz respeito a uma particularidade do indivíduo ou ao ambiente social ao qual pertence, mas ao elo entre ambos, constituindo uma unidade (PRESTES, 2010).

Uma vez apresentadas as bases teóricas deste estudo, passamos à metodologia de pesquisa por mapas narrativos e as experiências das professoras, enquanto construíam seus mapas.

Construindo o caminho metodológico

Trabalhar o desenvolvimento profissional das professoras do CEU Butantã numa pesquisa de abordagem qualitativa sob a ótica da metodologia dos mapas narrativos permitiu enxergar as professoras não como objetos a serem investigados, mas como pessoas. Isto garantiu-lhes que suas vozes fossem ouvidas “[...] alta e [...] articuladamente” (GOODSON, 2013, p. 67).

Dubar (1991) defende que, quando os professores contam suas histórias, eles revelam como movem os seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias e o fazem com o intuito de irem moldando a sua identidade, conectados com os contextos aos quais pertencem.

Os mapas narrativos “Narrative Landkarten” (LOPES, 2014, p. 320), por serem uma metodologia que visa desvendar os espaços pessoais, e o sentido que as pessoas atribuem a eles, proporcionaram a esta pesquisa, trazer para o centro da formação docente as histórias narradas e vivenciadas pelas professoras.

Neste estudo seguem a orientação da linha metodológica do Centro de Siegen para a Pesquisa da Infância, da Juventude e Biográfica - Siegener Zentrum für Kindheits- JugendundBiografieforschung / SiZe na Alemanha (LOPES, 2014).

Para Lopes (2012) trata-se:

de um procedimento que utiliza recursos visuais, mais especificamente representações cartográficas que são combinadas com narrativas biográficas, revelando os espaços vivenciados a partir do presente por crianças e espaços de infância existentes nas memórias e lembranças dos adultos. Buscando relacionar espaço geográfico com o tempo histórico (com todas as suas formas, atributos e categorias), essa metodologia reconhece os sujeitos na interface dessas dimensões, onde se encontram a história pessoal, subjetiva e ao mesmo tempo coletiva. Os mapas narrativos permitem compreender as temporalidades e espacialidades formadoras do humano e formadas pelo humano, enquanto, simultaneamente, desvelam características singulares de nossas experiências no mundo, permitindo que esse mundo se expresse a partir dos sujeitos. Essa forma de fazer pesquisa está referenciada na tradição fenomenológica (Shültz e Luckmann, 1975) e suas contribuições para a compreensão do humano e seu “mundo da vida cotidiana”, onde estariam presentes os espaços próximos” por nós ocupados e que nos ocupam, de nossos “entornos” sociais (LOPES, 2012, p. 163-164).

Orientadas por esta perspectiva, após um estudo e um diálogo para a apreensão do significado dos mapas narrativos, as professoras foram convidadas a construir um, em duas camadas. Na primeira, foi solicitado que elas pensassem em um espaço do CEU Butantã, a partir das relações afetivas (tanto negativas, quanto positivas) que estabeleciam com ele. Já na segunda camada, as professoras foram provocadas a pensar este mesmo espaço desenhado, a partir do ponto de vista das crianças de sua sala de referência e também das suas vivências com elas neste espaço.

Durante a construção das camadas do mapa narrativo, foi curioso realizar a leitura corporal, gestual e das narrativas das professoras. Na primeira construção, enquanto pensavam e desenhavam, a partir da sua relação com o espaço, seus corpos pareciam rígidos e em suas faces havia uma expressão de seriedade e introspecção. Esta proposta fora realizada pelas professoras em silêncio absoluto e numa imersão total na criação.

Muito interessante que mesmo as professoras tendo disponível material para colorir os desenhos, algumas optaram por deixá-los em lápis grafite.

Na criação da segunda camada, as professoras demonstraram uma certa leveza em seus corpos; surgiram alguns sorrisos e algumas paradas para a contemplação do desenho. Encerrada a etapa da construção do mapa narrativo, foi oportunizado que falassem a respeito da experiência com a elaboração dos seus mapas.

Havia brilho em seus olhares; acrescentaram que a realização da proposta foi muito significante e que quando olharam o mapa, nesta segunda camada com o olhar da criança, ele ganhou vida e os espaços ressignificaram-se. Isto porque, segundo a professora Angelita “o olhar da criança sobre o espaço é diferente do modo como o adulto olha: a criança olha o espaço sem pressa” (fala extraída do diário de campo dos pesquisadores em março de 2020).

A coleta de dados da produção dos mapas narrativos das professoras foi realizada por meio de observação atenta, anotações dos pesquisadores em diário de campo e fotografias das produções. Os mapas narrativos foram criados em dois encontros, um para cada camada.

É importante salientar que, na formação realizada no CEU Butantã pelos pesquisadores, participaram nove pessoas: a coordenadora pedagógica da Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI), a bibliotecária e mais sete professoras. Entre essas, somente as cinco professoras apresentadas abaixo realizaram a construção completa do mapa narrativo.

Nos encontros de formação, os pesquisadores dialogavam com as professoras, ouviam suas experiências e trocavam conhecimentos. Durante o momento da construção dos mapas narrativos, os pesquisadores não interferiram no processo de criação; somente apresentaram o tema para a construção de ambas as camadas e observaram atentamente a elaboração.

Na sequência deste texto, são apresentados os mapas narrativos, explicados nas vozes das professoras.

As vozes pulsantes das professoras ao construírem seus mapas narrativos no contexto da cidade educadora

A construção do mapa narrativo por meio dos encontros de formação com as professoras dentro da perspectiva da mudança ecológica (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009) no contexto da cidade educadora, permitiu-lhes o confronto consigo mesmas, trazidos em suas produções e vozes - o conceito de criança competente, sujeito de direitos, ator social, sujeito da história, inacabado e incompleto (FREIRE, 2001), Educação, a relação estabelecida com os espaços com os quais elas e as crianças tinham afinidade, também as relações com as crianças e com as outras professoras, bem como o surgimento dos projetos. Essas crenças, os confrontos, as reflexões sobre a prática docente e o sentido de ser professor são explicitados a seguir, partindo da exposição dos mapas narrativos.

Mapa narrativo 1

Fonte: Acervo do Grupo de Estudos e Pesquisa em Pedagogia Social (GEPESP).

Figura 1 Mapa Narrativo da professora Angelita - realizado em março de 2020 

meu nome é Angelita sou professora do grupinho do infantil II, trabalho com crianças de 5 anos. Fazendo o desenho hoje, veio uma questão que já vem me trazendo uma série de reflexões, a questão de que se fala, observa e imagina a criança potente, como ela ocupa esses espaços, como ela está inserida dentro destes territórios, como estabelece relações dentro destes territórios, não só em vínculos afetivos com seus amigos, mas também em ampliação destes conhecimentos, com o outro e com ela mesma. Dentro destes ambientes como ela vai ampliando este olhar e puxando outras questões, o que ela quer aprender (Professora Angelita, extraído do diário de campo dos pesquisadores, março de 2020).

Ao se referir ao projeto formigueiro realizado com as crianças e demarcado no seu mapa narrativo, a professora Angelita aponta:

quando a gente começou esse projeto foi muito interessante, porque eu tinha uma perspectiva de observar o comportamento de grupos e para mim, iria cair para outro caminho e então eu parei e comecei a perguntar para elas - O que é isto que você está vendo? O que é que vocês querem saber? O que é que vocês querem aprender? O que interessa ouvir? O que é que vocês querem olhar? [...] E aí foi caindo para um caminho interessantíssimo de chamar o colega que nem é da sala dele, pegar na mão e investigar o caminho onde as formigas vão e chegar no formigueiro. E olhar e entender o que tem fora e dentro dele. E descobrir outros pontos de interesse de brincadeiras, brincadeiras que de fato para as crianças são interessantes (Professora Angelita, extraído do diário de campo dos pesquisadores, março de 2020).

O espaço como gerador de experiências (FORTUNATI, 2009) na perspectiva da criança como seres inacabados e programados para aprender (FREIRE, 2001) é um laboratório de pesquisa:

o morro, o bosque de repente se tornou mais potente do que de fato os brinquedos do parque. Porque para elas é encantador, é interessante demais, mas o bosque se tornou maior, maior de relação, maior de exploração, maior de afetividade. Eles olharam uma árvore e o meu grupo falou assim: É a árvore do amor! Eu falei por quê? Porque lá tinha as larvas da joaninha. Porque foi lá que eles descobriram os percevejos e aí veio outro movimento, onde as árvores passaram a ser outro ponto de foco - o desafio de alguns riscarem coisas, eram um enorme desafio, mas em conjunto. Um foi ensinando ao outro, a estratégia de como subir e ultrapassar esse desafio [...] foi espetacular, realizador (Professora Angelita, extraído do diário de campo dos pesquisadores, março de 2020).

A criação do mapa narrativo como uma possibilidade de o professor retomar suas vivências (VINHA; WELCMAN, 2010), a relação com o espaço, com as crianças, não só de um modo afetivo, mas também como uma oportunidade de rever e valorizar suas práticas

e eu olhando o morro (referindo-se ao desenho do mapa narrativo) se tornou um grande escorregador, as folhas, onde fizemos uma vivência de compostagem, o que era desapercebido passou a se tornar um campo de pesquisa e as marias fedidas, aqui começaram a se tornar um objeto de interesse. Então tudo o que era daquele universo era grande, era explorador, investigativo e era algo natural que acontecia, os diálogos e as conversas iam se ampliando a partir disto.

Então para mim hoje foi um bum, de olhando o meu do primeiro momento, tentando imaginar o espaço, veio sim o bosque, mas eu trouxe os elementos do parque tentando entender o que era lá fora que era de interesse deles, mas hoje olhando a perspectiva do que era de interesse delas, foram vindo as coisas que era de interesse para se criar pesquisa - o berçário de borboleta, berçário de joaninha e, o outro de outra sala que trazia uma novidade, porque nós éramos o grupo do inseto. Os meus alunos2 de outro município da turma da manhã (a professora se referindo a amplitude alcançada pelo projeto formigueiro, tanto em fronteiras, além do CEU Butantã, quanto em conhecimentos) trouxeram besouros para as minhas crianças, porque estávamos estudando. As famílias da escola se envolveram trazendo coisas que agregavam ao projeto (Professora Angelita, extraído do diário de campo dos pesquisadores, março de 2020).

O mapa narrativo como uma oportunidade de o professor reafirmar suas crenças e valores numa perspectiva ecológica (BRONFENBRENNER, 1996; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009):

projeto é um movimento em que agrega o interno, ocupa espaço, território e multiplicam-se saberes e agrega. Eu acho que foi um caminhar muito gostoso nesse sentido (Professora Angelita, extraído do diário de campo dos pesquisadores, março de 2020).

Mapa Narrativo 2

Fonte: Acervo do Grupo de Estudos e Pesquisa em Pedagogia Social (GEPESP).

Figura 2 Mapa Narrativo da professora Sandra - realizado em março de 2020 

O mapa narrativo como elemento potencial para que o professor traga à superfície os seus sentimentos e pensamentos:

meu nome é Sandra, sou professora do 5E e trabalho com as crianças de 4 anos. O primeiro Mapa vocês solicitaram: o que o espaço significava para mim. E hoje é o que este espaço representa para as crianças, segundo o meu ponto de vista. Eu desenhei o bosque, o vento com uma cachoeira, só que a cachoeira na verdade, não seria uma cachoeira, porque não tem cachoeira aqui na escola, então eu fiz uma torneira lá em cima, acima das árvores. Porque eu não coloquei a torneira embaixo, que é o lugar certo, perto da horta e eu a coloquei lá em cima? E é assim, sempre nós colocamos os personagens e eles estão sempre acompanhados, nenhum deles estão sozinhos. O personagem que está sozinho, é só porque ele está embaixo do chuveiro. Na verdade, o que eu representei aqui, foi pensando em mim, no meu bem-estar, no que a escola representa para mim nesse momento. No de hoje, eu fiz uma representação das crianças, do que eu imagino que as crianças sentem, mas eu não posso garantir que é de fato isso que elas sentem, então, não deixa de ser as nossas impressões. Tudo é de fato as nossas impressões, nunca é de fato o que pode acontecer. Porque a criança pode estar interagindo, ela pode estar sendo protagonista, mas, você não tem como saber de fato o que está passando por dentro da cabeça dela, o que de fato a escola representa para ela. Baseado nas suas experiências, você vai fazer de tudo para garantir à criança um bem-estar (Professora Sandra, extraído do diário de campo dos pesquisadores, março de 2020).

Mapa Narrativo 3

Fonte: Acervo do Grupo de Estudos e Pesquisa em Pedagogia Social (GEPESP).

Figura 3 Mapa Narrativo da professora Andreia - realizado em março de 2020 

este espaço que as crianças tanto gostam não se restringe apenas ao brincar. Através dele são feitas descobertas e surgem curiosidades que posteriormente se transformarão em projetos pedagógicos. O espaço externo do CEU Butantã e sua imensa área verde nos proporciona um verdadeiro campo de pesquisa (Transcrição do que está escrito no Mapa Narrativo da professora Andreia).

A professora Andreia trabalha com a turminha do 6G, com crianças de cinco anos. Na transcrição acima (retirada do mapa narrativo), ressalta a assertiva de Lopes (2012, p. 163-164) que “os mapas narrativos permitem compreender as temporalidades e espacialidades formadoras do humano e formadas pelo humano, enquanto, simultaneamente, desvelam características singulares de nossas experiências no mundo”.

fazendo a minha percepção e do que eu acho que é importante para a criança, eu coloquei um único espaço, mas não coloquei pessoas. Depois quando foi falado que na segunda camada deveria ser o que é importante e significativo para a criança, aí me veio colocar as crianças e aquilo que elas observam. Porque para mim, quando entrei na educação infantil há seis anos atrás, isso aqui era um parque, apenas um parque e um espaço do brincar. Só que depois que comecei a atuar na educação infantil, eu percebi que não é só um parque, mas um campo de pesquisa. Aqui é onde tem as descobertas das crianças, elas têm um olhar aguçado para as coisas, que eu não tinha como professora e então eu passei a observar muito mais depois das intervenções e da compreensão das fases das crianças. E aqui eu lembrei do sapo (apontando para o seu mapa narrativo) depois que você fez aquela saída (referindo a professora Sandra), vocês tinham um planejamento e com o aparecimento do sapo, tudo mudou, o foco das crianças foi outro, o interesse deles pelo animal. Elas queriam saber, obter informações, foi uma descoberta e é isso que mais me encanta na educação infantil, é o olhar que as crianças têm, nós não temos a percepção dos detalhes e elas estão me ajudando a ampliar o meu horizonte (Professora Andreia, extraído do diário de campo dos pesquisadores, março de 2020).

Mapa Narrativo 4

Fonte: Acervo do Grupo de Estudos e Pesquisa em Pedagogia Social (GEPESP).

Figura 4 Mapa Narrativo da professora Rosely - realizado em março de 2020 

A professora Rosely trabalha com a turminha do 6H, com crianças de cinco anos. Pela explicação do seu mapa narrativo, torna-se possível concebê-lo como uma metodologia potente para compreender a visão da criança sobre o espaço ocupado por elas e que as ocupam (LOPES, 2012).

aqui eu pensei nestes espaços que eu já tinha feito e como as crianças se aproveitam deles. Aqui onde eu tinha colocado só o bosque, na verdade uma visão embaixo dessas árvores, lá para trás tem o lago e as crianças adoram lá por causa das garças, das carpas. Tem os papiros, essa vegetação que elas adoram, brincam bastante aqui. Um dia, nós estávamos andando com as crianças e tinha duas ou três garças, uma em cima do prédio da gestão e elas ficaram superencantadas, fizeram uma festa. As crianças utilizam o prédio da gestão para fazer as atividades físicas, como judô, aulas de música e balé. E aqui neste espaço do refeitório, eu pensei que elas aproveitam, o que elas mais gostam neste prédio é a motoca e as brincadeiras, por isso tem essa amarelinha aqui e na outra parte do bosque eu coloquei a horta, porque nós visitamos muito a horta com as crianças [...] as mandioquinhas que nós colhemos. Tivemos várias experiências na horta (Professora Rosely, extraído do diário de campo dos pesquisadores, março de 2020).

Mapa Narrativo 5

Fonte: Acervo do Grupo de Estudos e Pesquisa em Pedagogia Social (GEPESP).

Figura 5 Mapa Narrativo da professora Daniela - realizado em março de 2020 

A professora Daniela trabalha com a turminha do 6F, com crianças de cinco anos. No seu mapa narrativo, a professora o apresenta como uma possibilidade para enxergar como as crianças o “presentificam” (LOPES, 2018), suas preferências, a liberdade de escolher, de ir e vir e também o movimento e a vida que o espaço ganha quando as crianças são inseridas.

na primeira página eu desenhei o parque do Tarzan onde tem duas casinhas, um brinquedão, que é o escorrega, um banco e uns círculos no chão. Na segunda lâmina sob a visão da criança, eu desenhei as crianças brincando. No círculo amarelo, as crianças brincando de pato e ganso, brincando de correr, alguns brincando no banco, entrando e saindo da casinha, brincando no escorrega propriamente dito, a menina esperando a outra terminar de escorregar, enquanto outros subiam e brincavam na corda, na ponte. Duas crianças brincando de pega-pega, a outra conversando, a menina que tinha acabado de sair para beber água. Então você dá movimento ao parque, ele estava vazio na minha visão e eu coloquei algumas crianças brincando e dei movimento para o lugar, movimento e população (Professora Daniela, extraído do diário de campo dos pesquisadores, março de 2020).

O trabalho com os mapas narrativos no contexto do CEU, enquanto cidade educadora (GADOTTI, 2006) oportunizou às professoras que trouxessem para o centro das suas falas, das suas reflexões, das suas preocupações, os elementos importantes que atravessam a docência de cada uma delas.

O primeiro elemento resulta na capacidade de as professoras enxergarem as crianças em sua individualidade, como pessoas inteiras e totalmente conectadas com o espaço. Isso faziam ao perceber cada uma delas no meio do todo, evidenciando uma observação atenta, que percebe as preferências e as particularidades das crianças no espaço, tão importante no exercício da docência. Nessa vertente, as professoras referendam a criança ser social de Corsaro (2002) que chega à educação infantil como pessoa com uma história circunscrita que deve ser considerada como fonte de conhecimento para, a partir dela, construir novos conhecimentos.

Ao mesmo tempo em que as professoras referendam a criança como ser potente e social, elas também afirmam que ela ocupa o espaço da escola e da educação infantil inserindo-se nele, impregnando-o com suas marcas da infância, conforme aponta Lopes (2014, p. 333):

as crianças vivenciam o espaço como processo e não como palco, local de passagem ou superfície ocupada; o espaço não é concebido como métrico, como extensão, mas como intensidade; noções como “lá” e “cá”; “perto”, “longe” e outras nem sempre coincidem com os recortes espaciais tradicionais dos adultos [...].

As professoras e as crianças ao ocuparem a escola e seus espaços impregnando-os com suas marcas, gostos e estilos, enquanto se constituem como humanos e humanizam a cidade, referendam o que está posto no modo de educar na cidade educadora, ou seja, é pelo fazer, agir, estar na e com a cidade, neste processo, pessoas e cidade são modificadas (GADOTTI, 2006; FREIRE, 2001).

O segundo elemento surge dos projetos realizados pelas professoras por via de capturar o interesse, a curiosidade e a necessidade da criança, ou ainda, pelo olhar atento e uma escuta sensível (MALAGUZZI, 1999) da presença marcante das crianças nos espaços do CEU. A partir desses dois ingredientes essenciais, por um lado, uma criança competente, curiosa, criativa que proporciona pistas ao professor da sua potencialidade e, por outro, a presença de um bom professor, dotado de intencionalidade pedagógica embasada nos saberes da docência (BONDIOLI, MANTOVANI, 1998; BALL, COHEN, 1999), sensível e atento à criança a sua frente. Tem-se, assim, de modo harmônico, a chave para o sucesso, tanto no aprendizado e desenvolvimento da criança como do professor.

Temos de considerar também a real importância do espaço enquanto gerador de experiências (FORTUNATI, 2009), no qual se encontra a possibilidade do cruzamento dos diversos sentidos: o olfato, o tato, o paladar, a audição e a visão, para que o aprendizado e o desenvolvimento se efetuem. Isto porque:

na vivência do espaço as crianças não estão construindo outros espaços dentro do espaço, elas estão produzindo uma espacialidade não existente; constituem “setting”, “sítios espaciais” que envolvem seus fazeres nas rotinas cotidianas, essa situação foi muito evidenciada nas atividades do brincar [...] (LOPES, 2014, p. 333).

O terceiro elemento apreendido na análise dos mapas narrativos em contexto da cidade educadora, foi a importância que as professoras atribuem ao trabalho desenvolvido em parceria com suas colegas de sala de referência, ressaltando que, segundo elas mesmas, tal fato tornasse um encorajamento para a docência, frente às dificuldades do dia a dia. No compartilhamento dos projetos, que muitas vezes é iniciado em uma sala e passam a agregar outras.

E, por último, o trabalho com a metodologia dos mapas narrativos trouxe a possibilidade de as professoras serem ouvidas em alta voz e de modo articulado com suas vivências e como pessoas que são. Este fato reforça a perspectiva de Goodson (2013) da necessidade de os formadores prestarem atenção aos contextos de vida dos professores e valorizarem suas experiências tanto no âmbito da docência, quanto no pessoal (SARMENTO, 2009), de tal modo a enxergar respeitosamente os professores. Tal visão encontra-se fundamentada na linha de formação que vimos desenvolvendo neste texto defendida por Oliveira-Formosinho (2009): a do desenvolvimento profissional docente na vertente de mudança ecológica em contexto rico e instigante para a existência da troca, do compartilhamento de saberes, do trabalho com as diferenças, próprio dos princípios de uma cidade educadora.

Tal fato, somente foi possível porque essas professoras assumiram para si a “aventura responsável” (PADILHA: SILVA, 2004, p.28) de sonhar, ler e transformar o mundo, pautadas em uma Educação para a humanização, que respeita as diferenças, ativa, pulsante que comporta a novidade e a transformação.

Algumas considerações

Realizar a etapa da pesquisa, que consistia na formação do professor pela vertente do desenvolvimento profissional docente numa perspectiva da mudança ecológica em contexto da cidade educadora, permitiu aos pesquisadores olhar e acolher o professor como uma pessoa inteira, um profissional competente, que possui uma história de vida, detentor de voz e desejante de contar a sua história. Sujeito acometido por atravessamentos que influenciam sua atuação tanto pessoal quanto profissional. A perspectiva ecológica, neste sentido, alude às afetações que o docente sofre nesses atravessamentos, desde as interações mais próximas, até as mais distantes do seu convívio.

A construção dos mapas narrativos e o contá-los também se tornaram atravessamentos em suas vidas pelo fato de poderem narrar suas vivências como docentes e serem ouvidos. Este fato outorgou-lhes uma possibilidade da reflexão da ação e uma valorização enquanto profissionais da educação.

Constatou-se que o fato do CEU Butantã, definir-se como cenário da cidade educadora, com os primados de compartilhamento e apropriação da escola por sua comunidade, com a valorização do humano, com trocas de saberes entre as pessoas que habitam esse espaço, com o incentivo a pesquisa, a descoberta e o aprendizado, reunia as condições favoráveis para fecundar e florescer metodologias assertivas, como os mapas narrativos, para a formação em serviço dos seus professores.

E finalmente, para os pesquisadores, participar de uma pequena parcela do desenvolvimento profissional docente pela via dos mapas narrativos despertou-os para a necessidade de atentar para a maneira como as pessoas se exprimem, como narram suas histórias e ao significado que atribuem para os espaços que habitam.

1Na educação infantil não temos alunos e sim crianças conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais da educação infantil apontam em seu Art. 4º “As propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão considerar que a criança, centro do planejamento curricular [...]” (BRASIL, 2009, np.).

2A professora se refere a sua sala de aula no período da manhã com alunos do Fundamental I.

Agradecimentos

Este artigo é um subproduto do Projeto “Lidando com novos espaços: crianças e adolescentes na apropriação do complexo arquitetônico do CEU Butantã (São Paulo, Brasil)”, financiado pelo Mackpesquisa; é vinculado aos Grupos de Pesquisa em Pedagogia Social e de Estudos de História da Cultura, Sociedades e Mídias, do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em parceria com as Universidades de Singer e Alanus, da Alemanha, e a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Conta, também, com a colaboração de pesquisadores de outras Universidades nacionais e internacionais.

Referências

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