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Revista Educação Especial (Online)

On-line version ISSN 1984-686X

Rev. Educ. Espec. vol.36  Santa Maria  2023  Epub Apr 24, 2024

https://doi.org/10.5902/1984686x74540 

Artigo Demanda Contínua

Sexualidade: Ações e Representações a partir do Movimento de Autogestão e Autodefensoria da APAE

Sexuality: Actions and Representations from APAE's Self-determination and Self-advocacy Movement

Sexualidad: Acciones y Representaciones desde el Movimiento de Autogestión y Autodefensa de la APAE

Patricia Monteiro Lima Chagas1 
http://orcid.org/0000-0001-9812-9547

Annie Gomes Redig2 
http://orcid.org/0000-0003-3610-5333

Renan Borges Cavalcanti Moreira3 
http://orcid.org/0000-0001-9946-4670

1Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. tricimonteiro@yahoo.com.br

2Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. annieredig@yahoo.com.br

3Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. renan.moreira.uerj@gmail.com


RESUMO

O presente artigo tem por finalidade realizar uma revisão integrativa dos estudos divulgados pelo movimento de Autogestão e Autodefensoria da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) Brasil, relacionados à sexualidade, identificando o tema nos diferentes registros divulgados ao longo dos anos. Foram encontradas revistas, projetos, cartilhas e documentos norteadores que abordam a temática. A questão que norteou o estudo foi compreender as discussões sobre sexualidade diante do movimento de autogestão e autodefensoria, que poderão servir à (re)construção do pensamento crítico e ao desenvolvimento de políticas, protocolos, recursos, programas e procedimentos que contribuam com a discussão e entendimento da sexualidade. A partir do levantamento de cinco categorias temáticas, foi possível identificar discussões sobre sexualidade, sexo, gênero e relação sexual, segurança, abuso, vida afetiva, namoro e casamento, direitos sexuais, masturbação e preconceito. Os estudos destacam a importância de trazer ao centro dos debates as percepções da sociedade e famílias, a educação em sexualidade e o direito da pessoa com deficiência de se expressar e vivenciar sua sexualidade, em um processo de desenvolvimento contínuo, por toda vida.

Palavras-chave: APAE; Autogestão; Autodefensoria; Sexualidade

ABSTRACT

The purpose of this article is to carry out an integrative review of studies published by the Self-determination and Self-advocacy Movement of the Association of parents and friends of people with disabilities(APAE) Brazil, related to sexuality, identifying the theme in the different records released over the years. Magazines, projects, booklets and guiding documents that address the themes were found. The question that guided the study was to understand the discussions about sexuality in the face of the self-determination and self-advocacy movement, which may serve the (re)construction of critical thinking and the development of policies, protocols, resources, programs and procedures that contribute to the discussion and understanding of sexuality. From the survey of five thematic categories, it was possible to identify discussions about sexuality, sex, gender and sexual relationship, safety, abuse, affective life, dating and marriage, sexual rights, masturbation and prejudice. The studies highlight the importance of bringing to the center of debates the perceptions of society and families, sexuality education and the right of people with disabilities to express themselves and experience their sexuality, in a continuous process throughout their lives.

Keywords: APAE; Self-determination; Self-advocacy; Sexuality

RESUMEN

El objetivo de este artículo es realizar una revisión integradora de los estudios publicados por el Movimiento de Autogestión y Autodefensa de la Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) Brasil, relacionados con la sexualidad, identificando el tema en los diferentes registros lanzado a lo largo de los años. Se encontraron revistas, proyectos, folletos y documentos orientadores que abordan los temas. La pregunta que guió el estudio fue comprender las discusiones sobre la sexualidad frente al movimiento de autogestión, que pueden servir para la (re)construcción del pensamiento crítico y el desarrollo de políticas, protocolos, recursos, programas y procedimientos que contribuyan a la discusión y comprensión de la sexualidad. A partir del levantamiento de cinco categorías temáticas, fue posible identificar discusiones sobre sexualidad, sexo, género y relación sexual, seguridad, abuso, vida afectiva, noviazgo y matrimonio, derechos sexuales, masturbación y prejuicio. Los estudios destacan la importancia de llevar al centro de los debates las percepciones de la sociedad y las familias, la educación sexual y el derecho de las personas con discapacidad a expresarse y vivir su sexualidad, en un proceso continuo a lo largo de su vida.

Palabras clave: APAE; Autogestión; Autodefensa; Sexualidad

Introdução

O presente artigo tem por finalidade realizar uma revisão integrativa dos estudos divulgados pelo movimento de Autogestão e Autodefensoria da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) do Brasil, relacionados à sexualidade, identificando o tema nos diferentes registros divulgados ao longo dos anos nos materiais encontrados em seu site1.

Tal abordagem permite uma síntese do conhecimento construído sobre sexualidade, demonstrando, de alguma maneira, as bases de discussão do assunto que a todo tempo poderão servir à (re)construção do pensamento crítico e ao desenvolvimento de políticas, protocolos, recursos, programas e procedimentos que podem contribuir com a discussão e entendimento da temática. Partindo do pressuposto de que o tema sexualidade ainda é envolto em muitos tabus, principalmente por errôneas ideias que o ligam a perversão e imoralidade, agravado quando se trata da sexualidade da pessoa com deficiência intelectual, pensar a educação em sexualidade torna-se um compromisso para com o desenvolvimento social, cultural e político, atrelado a vida e a saúde integral, na perspectiva da autogestão e autodefensoria.

De acordo com Braga, Vinícius e Carvalhais (2011), autogestão é um conceito relacionado à pessoa com deficiência intelectual e múltipla quando expõe o desenvolvimento do ser e do fazer, em um processo contínuo por toda vida. É na família que se iniciam ensinamentos de hábitos e valores, bem como o estímulo à interação física e social dos sujeitos com o ambiente em que vivem, proporcionando conhecimento de si e do mundo. A autogestão “antecede e caminha junto com a autodefesa e significa se posicionar como representante de um grupo que têm direitos e deveres, numa ação política e de cidadania”. (BRAGA; VINÍCIUS; CARVALHAIS, 2011, p. 12).

O movimento de autodefensoria engloba, portanto, uma série de estratégicas a fim de que a pessoa com deficiência intelectual e múltipla conquiste respeito, cidadania, defesa de direitos e deveres que em muito se distanciam de ideais assistencialistas e infantilizantes, uma vez que é voltado aos jovens e adultos (BRAGA; VINÍCIUS; CARVALHAIS, 2011). Esse movimento tem norteado a proposta filosófica e pedagógica da APAE, e aprofundar estudos sobre o tema pode permitir que a inclusão se efetive como reconhecimento do outro. Um necessário vir a ser ao se considerar a pessoa público da APAE, sua família, a escola e a sociedade como um todo.

Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE)

De acordo com o Portal APAE2, a Federação Nacional das APAES ou APAE Brasil, é a maior rede no país de apoio às pessoas com deficiência intelectual ou deficiência múltipla. Tem por missão, promover e articular ações de defesa de direitos das pessoas com deficiência e representar o movimento perante os organismos nacionais e internacionais para a melhoria da qualidade dos serviços prestados pelas APAES, na perspectiva da inclusão social de seus usuários. E por visão, busca ser sempre excelência e referência no país no apoio, defesa de direitos e prestação de serviços das pessoas com deficiência intelectual ou deficiência múltipla.

Estudos como de Rafante (2011; 2016); Bezerra (2017); Rafante; Silva; Caiado (2019), foram utilizados para análise da contextualização histórica acerca de como surgiu a APAE. Esse movimento nasceu em 1954, no Rio de Janeiro, a partir de influências nacionais e internacionais. No Brasil, desde 1932, a Sociedade Pestalozzi do Brasil, fundada por Helena Antipoff3,já “atuava no atendimento médico, psicológico e pedagógico das pessoas com deficiência, na formação de profissionais e na mobilização da sociedade” (p. 4), produzindo boletins informativos (1951 a 1955) e atuando na organização de seminários sobre a “Infância Excepcional, articulando pessoas de todas as partes do país” (p. 4). A atividade contou, desde o início, com a implementação da assistência social para os pais, priorizandoem reuniões atendimento às famílias econscientização da comunidade. Esse movimento acaba por contribuir para a criação de uma associação de pais.

Importante destacar que o termo “excepcional” era aceito à época e interpretado, segundo o Estatuto da APAE (1954), como maneira de incluir crianças, adolescentes e pessoas de maior idade, que se desviassem acentuadamente para cima ou para baixo da norma do seu grupo em relação a uma ou várias características mentais, físicas ou sociais, ou qualquer combinação destas, de forma a criar um problema especial com referência a sua educação, desenvolvimento e ajustamento ao meio social. Porém, essa nomenclatura não éutilizada, tão pouco aceita atualmente4, pois desde o Decreto 6949/09 (BRASIL, 2009), o termo para se referir ao público da Educação Especial é “pessoa com deficiência”.

Conforme explicita Rafante (2011), a partir da década de 40, países da América Latina, incluindo o Brasil, sofrem influência no cenário internacional de representantes norte-americanos, visando cooperação técnico-científica e alinhamento ideológico no modelo de dominação capitalista (BEZERRA, 2017), para a criação de associações. Rafante, Silva e Caiado (2019) destacam que em 1954, chegam ao Rio de Janeiro sócios fundadores da NationalAssociation for RetardedChildren (NARC), acompanhados por George Bemis, para atuar como conselheiro da administração pública, com sua esposa Beatrice Bemise sua filhaCaroline, ainda criança e com Síndrome de Down. Em busca por soluções que minimizassem a rejeição, discriminação e preconceito “o casal se envolveu nas questões relacionadas ao “excepcional” brasileiro” (RAFANTE; SILVA; CAIADO, 2019, p. 5).

Outras famílias se somaram a essa mobilização, bem como profissionais que entendiam a luta das famílias como legítima e puderam empreender estudos e pesquisas, levantando informações em entidades com estes fins em outros países, trocando experiências com pessoas que também sofriam com poucas políticas públicas que trouxessem benefícios para o público com deficiência.

O movimento de pais, somando esforços a fim de divulgar os avanços na educação dos “excepcionais”, deinfluenciar a legislação e obter financiamento, começa a ganhar forças.

Em outubro, de1954, George Bemis, em evento organizado pela Associação Brasileira de Educação (ABE), Sociedade Pestalozzi do Brasil (SPB) e Associação Brasileira de Ajuda ao Menor (ABAM), proferiu a palestra O papel da associação de pais na assistência à infância excepcional, em que indicou falar do lugar de quem organizou uma associação, enquanto pai de criança “excepcional” e não como profissional especializado. Além de articular e socializar as ações dos pais, destacou que o papel dessas associações era promover campanhas nacionais e articular os poderes públicos para que direcionassem maior assistência aos “excepcionais” (Maior Assistência, 1954). (RAFANTE; SILVA; CAIADO, 2019, p. 5).

Além disso,

Em artigo publicado no Boletim da SPB, em agosto de 1954, Beatrice Bemis apresentou a campanha que resultou na criação da NARC, com o intuito de “encorajar pais e educadores na organização de algo semelhante aqui no Brasil”.Inicialmente, destacou que há mais de meio século, se evidenciava que “mesmo crianças seriamente deficientes, podem se tornar adultos aproveitáveis, através de cuidados especiais, exercícios e educação, segundo as suas necessidades”. Em seguida, lamentou que essas possibilidades ficavam restritas aos educadores especializados, deixando de favorecer a maioria das crianças “excepcionais”. Para ela, essa situação poderia se modificar com a organização do movimento de pais, similares àqueles desenvolvidos nos Estados Unidos. (RAFANTE; SILVA; CAIADO, 2019, p. 5).

Para Beatrice, diferentemente dos Estados Unidos onde os pais se organizavam por tipo de deficiência, no Brasil, ao se considerar o trabalho pioneiro e relevante de Helena Antipoff, poderia se criar uma organização única que reunisse pais e amigos dos “excepcionais”, os representando e encaminhando as questões de seus interesses. (RAFANTE; SILVA; CAIADO, 2019). Porém, “esse ideal não se concretizou e as APAES se colocaram como o lugar da deficiência intelectual e múltipla” (p. 7),espalhando-se pelo Brasil.

A APAE configura-se, portanto, desde seu surgimento, como uma organização social cujo objetivo principal é promover atenção integral ao seu público-alvo, definido em seu estatuto, abrangendo, preferencialmente, pessoas em situação de deficiência com impedimentos de natureza intelectual e múltipla e pessoas com Transtorno do Espectro Autista associados aos impedimentos intelectuais. (CARVALHO et al, 2020). Na atualidade, esta rede destaca-se por seu pioneirismo e capilaridade, estando presente em mais de 2.200 municípios em todo o território nacional, com 25 Federações Estaduais, com mais de 700.000 usuários. É o maior movimento social do Brasil e do mundo na sua área de atuação.

Assim, a APAE, através de seus movimentos e programas, tem ao longo dos anos buscado levantar discussões sobre a pessoa com deficiência e sua família, ao abordar temas como autogestão e autodefensoria, vida adulta, independência, autonomia, defesa de direitos, em uma perspectiva de abertura ao diálogo e saberes construídos nas relações e influências mútuas entre os envolvidos. Apenas no encontro, conhecendo necessidades, dificuldades e aspirações, que se definem estratégias para incentivar o exercício da autonomia e independência. Em relação ao protagonismo da pessoa público das ações da APAE nos movimentos de Autogestão e Autodefensoria, destaca-se que o movimento tem muito a avançar.

Os movimentos de Autogestão e Autodefensoria têm início, de acordo com Glat (2004), em 1986, durante o IX Congresso Mundial da Liga Internacional de Associações para Pessoas com Deficiência Mental5 (ILSMH) que ocorreu no Rio de Janeiro, com apoio da Federação Nacional das APAES, e no qual a autora teve ativa participação. Nesta ocasião, o chamado Congresso Paralelo, contou com a participação de mais de 150 pessoas com deficiência intelectual, representando 15 países e falando mais de seis idiomas diferentes.

Assim, para Glat (2004) em 1986, há o grande marco no Brasil no que se refere aos movimentos por autogestão e autodefensoria, uma vez que as vozes das pessoas com deficiência intelectual começam a ganhar escuta. Importante refletir sobre o início desta mudança de perspectiva no decorrer destes 36 anos, uma vez que na atualidade ainda existem muitas pessoas com deficiência intelectual negligenciadas em suas habilidades, competências, aflições, dificuldades, encarcerados em seus lugares de falas em diferentes âmbitos da vida, inclusive familiar. Os limites impostos servem a incompreensão das angústias, medos, incertezas e desconhecimentos observados nas fragilidades de famílias, profissionais e dos próprios sujeitos deste estudo, imbricados em processos culturais que interferem nos processos de humanização.

AAPAE é pioneira em nosso país na apresentação do movimento político-filosófico por autogestão e autodefensoria. Pensar que cada pessoa com deficiência intelectual teria a legitimidade de expressar e defender seus próprios direitos, revelando seus desejos, necessidades, dificuldades em um cenário no qual a própria noção de que “indivíduos com deficiência mental possam falar por si e tomar suas próprias decisões nem sequer faz parte do universo conceitual da maioria das pessoas”. (GLAT, 2004, p.2).

Em alguma ordem tal cenário se mantém. Urge o tempo por se mudar a lente, garantindo a estes sujeitos o direito a palavra dita e sentida, a expor seus desejos, necessidades, vitórias e derrotas, de maneira que novas e possíveis perspectivas sirvam para informar e formar a todos, podendo representar novo paradigma no que se refere a maneira de atuar frente a alunos e/ou pacientes com deficiência intelectual, em diferentes fases de suas vidas.

Método

Para a elaboração deste estudo, utilizamos como metodologia a revisão integrativa que “proporciona a síntese do conhecimento e a incorporação da aplicabilidade de resultados de estudos significativos na prática” (SOUZA; SILVA; CARVALHO, 2010, p.102). Trata-se de um estudo realizado por meio de levantamento bibliográfico e baseado na experiência vivenciada pelos autores. A opção pela revisão integrativa se afirma no entendimento de que entre os meios de revisão mais utilizados, é a que permite reunir conhecimentos sobre um determinado assunto, incluindo estudos experimentais ou não e, combinando dados da literatura teórica e empírica, a fim de se buscar entender determinado fenômeno particular da realidade.

Desta forma, a questão que norteia o estudo é identificar se o tema sexualidade é abordado no movimento de autodefensores da APAE e de que maneira. Para tanto, deu-se a busca na base de dados da Rede APAE Brasil. O levantamento dos estudos sobre sexualidade e os movimentos de autogestão eautodefensoria da APAE, efetivou-se a partir de busca de materiais e publicações no site da APAE, desde os anos 2000, tendo em vista o aprofundamento das discussões neste período sobre o movimento de autodefensoria. Foram encontrados registros sobre os descritores: autogestão, autodefensoria e sexualidade em revistas, projetos, cartilhas e documentos norteadores. O critério definido para inclusão foi que o estudo sobre autogestão e autodefensoria abordasse o tema sexualidade.

De maneira descritiva se deu a análise e síntese dos dados, favorecendo a observação, narrativa, descrição e classificação do conhecimento produzido em relação à temática sexualidade, destacando unidades de significado para levantamento de categorias temáticas. Pontua-se, então, que o impacto da utilização da revisão integrativa se dá não somente pelo desenvolvimento de políticas, protocolos e procedimentos, mas também no pensamento crítico que a prática diária necessita.

O termo sexualidade foi encontrado em revistas, projetos, cartilhas e documentos norteadores divulgados no site da APAE, que tratam os temas autogestão e autodefensoria. Os projetos Sinergia (FENAPAES, 2009) e Águia, organizado por Braga et al (2011) trazem menções à sexualidade. O Manual Nacional de Autogestão, Autodefensoria e Família, organizado por Bernardi;Glat; Pilger; Neto (2015) faz duas referências ao tema. Na Coletânea de Cartas dos Autodefensores: Nossa limitação é apenas uma parte de nós (FENAPAES, 2016), há uma menção ao tema sexualidade. Na Revista APAE Ciência, em formato eletrônico, com publicações do volume 1 (2015), ao volume 16 (2021), foi encontrado um artigo sobre sexualidade, no ano de 2017, volume 7, n. 1 (SILVA, 2017). O documento norteador Autogestão, Autodefensoria e Família (PARREIRA, 2017), menciona oito vezes a palavra sexualidade. A Cartilha Eu tenho Direitos (FENAPAES, 2021) faz uma menção a palavra sexualidade. A Revista Autodefensoria, de 2021, em seu volume 1, não menciona a palavra sexualidade e, portanto, não foi incluída neste estudo.

As informações copiladas nos documentos em formato eletrônico são um grande avanço, por tornar o processo de pesquisa mais democrático e sujeito a frequente atualizações. O percurso histórico de publicações acerca da temática sexualidade pode, inclusive, favorecer o entendimento das políticas públicas a respeito do tema sexualidade e pessoa com deficiência intelectual ao longo do tempo.

Resultados e Discussões

Sendo assim, a partir da leitura e releitura dos textos selecionados, surgiram cinco categorias de análise, algumas divididas em subcategorias, conforme a tabela 1.

Tabela 1 Categorias Temáticas 

Categoria Subcategoria Definição
1. Sexualidade, Sexo e Relação Sexual 1.1 Conhecimentos sobre Sexualidade, Sexo, Gênero e os aspectos biológico, psíquico e cultural 1.2 Masturbação Mencionam forma de compreender a sexualidade para além da atividade sexual; sexo biológico e gênero; comportamentos em locais públicos ou na intimidade/ privacidade; toque.
2.0 Sexualidade e Segurança Revelam fatores ligados à segurança pessoal e formas de violência que podem ocorrer configurando diferentes tipos de relações abusivas.
3.0 Relações interpessoais: vida afetiva, namoro e casamento 3.1 Família e namoro/casamento apoiado 3.2 Preconceito 3.3 Concepção, gravidez, sexo seguro e contracepção Expõem as relações familiares diante do namoro e/ou casamento; preocupações relacionadas aos sentimentos que surgem no namoro; situações de preconceito e relações interpessoais; preocupações e crenças sobre contracepção, infecções sexualmente transmissíveis, concepção, gravidez, orientação dada (ou não) pela família.
4.0 Direitos Sexuais e Cidadania Discorrem sobre os direitos sexuais e a pessoa com deficiência intelectual e múltipla.
5.0 Educação em Sexualidade Relatam atitudes e informações recebidas, ou que deveriam ser oferecidas, na área da sexualidade.

Fonte: Elaborada pelos autores

A categoria 1, Sexualidade, Sexo e Relação Sexual se destaca em diferentes momentos pelos autodefensores, famílias e profissionais. O tema sexualidade é mencionado no Manual de Autogestão (BERNARDI et al, 2015), em dois momentos, ao tratar a fase da adolescência e ao sugerir o tema sexualidade a ser discutido em programas sobre autogestão e autodefensoria.

Seguem algumas sugestões de temas a serem trabalhados no programa: a) direitos e garantias individuais; b) debates de temas atuais locais, nacionais e internacionais; c) relacionamento familiar; d) amizades e relacionamentos afetivos; e) sexualidade; f) autocuidado e higiene; g) questões éticas/moral; h) desenvolvimento da pessoa nas diferentes fases da vida; i) inclusão escolar; j) inclusão no mercado de trabalho. (BERNARDI et al, 2015, p. 33).

Neste mesmo documento, em outro momento, o tema sexualidade é abordado em relação à fase da adolescência.

Na fase da adolescência, as pessoas com deficiência intelectual e múltipla, assim como qualquer adolescente, tendem a desafiar figuras de autoridade, a se autoafirmarem através da rebeldia e oposição, têm muita energia e disposição e curiosidade acerca da afetividade e sexualidade.Projeto Afetividade 1: Propiciar às pessoas com deficiência intelectual e múltipla conteúdos relacionados às formas de relacionamento humano, diferença de gêneros, transformações no corpo, métodos contraceptivos, doenças sexualmente transmissíveis, dentre outras. (BERNARDI et al, 2015, p.28).

Assim, conversar sobre sexualidade é falar de relações humanas, fator fundamental para a segurança emocional, especialmente de adolescentes e jovens na promoção de relacionamentos socioculturais, comportamentais e éticos do exercício da sexualidade.

Segundo o Projeto Sinergia (FENAPAES, 2009), em 2007, durante a Consulta Global sobre Saúde Sexual e Reprodutiva e Pessoa com Deficiência, promovida pelo Fundo de População das Nações Unidas (FNUAP), divulgou-se o discurso dos autodefensores da APAE. Um dado que chamou atenção sobre atividade sexual, foi o entendimento do quão diferente pode ser essa vivência ao considerar se a pessoa tem alguma experiência prévia, positiva ou negativa e se conversa sobre o assunto em casa.

Quando já se tem experiência: “Acho importante ter um relacionamento. É importante beijar, sentir o outro, mas tudo com amor e com responsabilidade”; “É importante casar, beijar, ter filhos. Eu já namorei e curti muito”; “Tem que ter o apoio da família, em especial da mãe”. Quando a experiência traz sofrimentos: “Os conflitos pela separação causam frustrações e muita tristeza!”; “Já namorei, mas não quero mais”; “Uma vez me apaixonei por uma moça ‘normal’ e quando ela descobriu se afastou de mim e eu tive uma desilusão amorosa muito grande!”. Quando o assunto é discutido: “A mãe de um colega diz que fala com o seu filho para se proteger. Deixa ele sair com a namorada. Ele sai de noite e tem alguém para levar e para buscar. Ela faz palestra sobre sexualidade”. (FENAPAES, 2009, p. 44).

Os conceitos sexo e sexualidade podem ser compreendidos como coisas distintas. Em Maia (2010) há destaque aos conceitos sexo e sexualidade, onde sexo é diferença entre homem e mulher, hereditário, biológico, refletindo sobre o uso do termo como fazer sexo, com relações físicas para o prazer sexual. No senso comum sexo é relação sexual, orgasmo, órgãos genitais. E a sexualidade é um termo que surgiu também no século XIX, alargando o conceito de sexo biológico, pois incorpora a reflexão e o discurso sobre o sentido e a intencionalidade de sexo restrito à genitália.

Para a análise da subcategoria 1.1, Conhecimentos sobre Sexualidade, Sexo, Gênero e os aspectos biológico, psíquico e cultural, a compreensão da sexualidade para além da vinculação com manifestações biológicas é demarcada psíquica e socioculturalmente.

No capítulo dois do documento norteador Autogestão, Autodefensoria e Família (PARREIRA, 2017), há contundente explicação sobre o sexo biológico e aspectos que envolvem concepção, puberdade e atração sexual (pelo sexo oposto ou por pessoa do mesmo sexo).

Todo ser humano possui um sexo biológico. O sexo feminino, na perspectiva biológica, possui óvulos e o sexo masculino possui espermatozóides. É o encontro de um espermatozóide com um óvulo que dá origem à fecundação e o nascimento do embrião que se tornará um bebê que se for homem terá um sexo masculino, pois se desenvolveu o pênis, os sacos escrotais e os testículos e se for mulher terá se desenvolvido a vulva, a vagina e o clitóris. (PARREIRA, 2017, p. 44).

Ainda na subcategoria 1.1, a discussão sobre gênero proposta pelo autor supracitado em um documento norteador especialmente voltado às famílias, parece-nos trazer à tona um assunto polêmico, que costuma nem aparecer em rodas de conversa sobre o tema sexualidade. Spizzirri; Pereira; Abdo (2014) afirmam que a partir da década de 1980, o termo gênero, ao invés de sexo, começa a ser empregado pelos movimentos feministas, a fim de afirmar que as diferenças entre o corpo do homem e da mulher não se fundamentavam no sexo biológico, mas sim em fatores sociais e culturais.

Ao dirigir o foco para o caráter “fundamentalmente social”, não há, contudo, a pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja, não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas. (LOURO, 1997, p. 19).

Butler (1990) inicia discussão sobre relações binárias, gênero/sexo, homem/mulher,sujeito/outro, questionando identidades como sendo fixas e afirmando que o gênero se confronta com diversas modalidades de identidades, não estando relacionado à orientação sexual e tampouco a outros aspectos da sexualidade. Mais recentemente, o DSM-5 (2013) amplia a visão sobre gênero e sexo, onde sexo refere-se tanto a masculino quanto a feminino, relacionado aos aspectos biológicos e de reprodução; gênero é utilizado para designar o papel social, menino ou menina, homem ou mulher e na maioria das pessoas relacionado ao sexo de nascimento.

O desenvolvimento individual do gênero sofre influências biopsicossociais e os indivíduos se perceberão conforme se reconhecem, sendo muitos os atravessamentos que existem na sexualidade humana. Estudos sobre identidade de gênero e pessoas com deficiência intelectual são escassos, especialmente ao considerarmos enfoques para além dos biomédicos, alguns estudos têm sido propostos pela Anis6 - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e poderão auxiliar na ampliação do tema na atualidade.

Não é uma polêmica que anda sozinha quando estudamos sexualidade e pessoa com deficiência intelectual. Não é incomum terem negados conhecimentos sobre o próprio corpo e suas mudanças, sobre viver a sexualidade, fazer escolhas, dar e receber afeto, tocar o próprio corpo, entre outras amarras que permeiam a vida dessas pessoas.

Na subcategoria 1.2, Masturbação, emerge um tema ainda tabu. Aparece em Braga et al (2011), na fala de familiares: “Preocupação com a masturbação do meu filho” (p. 15); “Sou contra masturbação tenho medo do meu filho se machucar”(p. 15). Existe, inclusive, uma inabilidade no uso do termo masturbação, como se fosse algo muito maléfico, desconfortante. A orientação sobre a masturbação é fundamental e deve considerar a preservação da intimidade, da privacidade, o cuidado com o corpo e explicação sobre atitudes e atos permitidos em local público e em local privado.

Neste entendimento, é muito importante que família e escola estejam atentas diante de um jovem ou adulto com deficiência intelectual que recorre inapropriadamente, seja em público ou recorrentemente, à masturbação. Isto pode indicar poucas oportunidades de socialização e de obtenção de prazer. E ainda, a falta de espaço com privacidade, como se a manifestação do desejo sexual fosse inexistente e proibida. (LEME; CRUZ, 2008, p. 33).

Na categoria 2, Sexualidade e Segurança, o tema abuso sexual merece ser destacado, especialmente quando não há nos documentos encontrados na revisão, dados que reflitam a triste realidade vigente.

De acordo com Cerqueira (2021), a violência contra mulheres com deficiênciaintelectual aumentou, sendo 56,9 notificações a cada 10 mil pessoas e, esses números estão associados, em alguns casos, com a violência sexual. Tema que foi destacado por um familiar durante grupo de discussão no Projeto Águia (BRAGA,2011), quando perguntou: “Como resguardá-lo do abuso sexual?” (p. 15), gerando a recomendação “A família, junto com a APAE, deve orientar as pessoas com deficiência para evitar abusos sexuais” (p. 19). Porém, não há referências na recomendação que indiquem o que pode ser feito caso o abuso esteja acontecendo ou já tenha acontecido.

As pessoas com deficiência são mais facilmente vítimas de violência sexual do que aquelas que não vivem com deficiências. O poder abusivo de cuidadores, a falta de punição para os agressores e o silêncio nas instituições, são situações que podem aumentar ou agravar a ocorrência de estupro ou de outras formas de violência. (MAIA; RIBEIRO, 2010, p. 165).

Para a Organização Mundial de Saúde a violência sexual é,

Qualquer ato sexual, tentativa de obter um ato sexual, comentários inapropriados ou avanços de natureza sexual, além do tráfico sexual, realizados sem consentimento ou usando de coerção, sendo realizada por qualquer pessoa, independentemente de sua relação com a vítima, em qualquer situação, incluindo, mas não se limitando, a casa e ao trabalho. (OMS, 2002, p. 149).

Sexualidade e segurança são temas que precisam ser tratados nas diferentes etapas da vida das pessoas com deficiência intelectual e múltipla, uma vez que os dados e as vivências demonstram quanto precisamos avançar no combate a violência sexual e abuso desses sujeitos, com suas vulnerabilidades.

Na categoria 3, Relações interpessoais: vida afetiva, namoro e casamento, com suas subcategorias, 3.1 Família e namoro/casamento apoiado; 3.2 Preconceito e 3.3 Concepção, gravidez, sexo seguro e contracepção, estão no estudo de Silva (2017), ao considerar que é uma dificuldade enfrentada por famílias (e profissionais) falar sobre assuntos que envolvem sexualidade, como sexo, namoro, gravidez, configurando um grande tabu.

Em seu estudo, dos 12 pais participantes, três se manifestaram contra a ideia de se abordar o assunto sexualidade no âmbito escolar, ainda que afirmem não abordar o assunto em casa ou por negar a expressão sexual e o desejo sexual dos filhos: “Nunca demonstrou interesse sobre esse assunto” (SILVA, 2017, p. 54); “Que eu percebesse, não”. (p. 54); “Nunca notamos nenhuma demonstração” (p. 54) ou por considerar que tratar o assunto sexualidade pode despertar interesse por sexo. Para 58% dos familiares participantes, talvez o interesse não fosse despertado na ausência de conhecimento sobre o assunto. Para um familiar tratar o assunto em casa ou nas escolas não é uma boa ideia: “Sim desperta, pois o que não é visto, não é lembrado” (p. 55).

No Projeto Sinergia (FENAPAES,2009), há relato de um autodefensor, que no movimento apaeano é aquele que busca falar por si e defender seus direitos e vontades, no qual é possível observar o quanto as relações interpessoais e afetividade, ampliam a ideia de sexualidade para muito além da atividade sexual. “Eu já fiz muitos cursos sobre sexualidade e cheguei em casa com um diploma. Estou formado em sexualidade, mas tenho carência, falta afetividade”. (FENAPAES, 2009, p.43).

A sexualidade é ampla, pois envolve a experimentação de sensações do corpo e da mente, muitas vezes não experimentadas, como o toque, o carinho, o olhar, entre outros fatores que gerem prazer. Em fragmentos de falas no Projeto Sinergia (FENAPAES, 2009), um autodefensor reflete sobre o que chamou de vida sexual.

Eu prefiro relacionamento sincero e com respeito. Para a vida sexual é preciso ter muita noção, pensar antes de tudo. A relação sexual de pessoas com necessidades especiais não é muito aconselhável porque às vezes elas não conseguem controlar suas emoções e acabam acontecendo coisas indesejáveis. (FENAPAES, 2009, p. 44).

Essas falas refletem o que Figueiró (2009) chama de ignorância sobre a existência e possibilidade da afetividade-sexualidade de jovens e adultos com deficiência intelectual, incidindo em maneiras equivocadas de se abordar a situação, seja negando, com frases como: ele é um anjo, uma criança, não pensa nessas coisas; ou dissimulando: ainda é muito cedo para você pensar sobre isso ou, controlando: não posso deixar que essas vontades venham, pois ele não sabe o que fazer; falas recorrentes em nossas escutas. Sob esses argumentos a afetividade-sexualidade é muitas vezes reprimida, os comportamentos que manifestam aspectos da sexualidade são vistos como incompatíveis e não se ensina sobre manifestação social dos seus desejos e vivências afetivas e sexuais. Para Glat (1992),

A sexualidade é parte integrante, constitucional e formativa de todo ser humano. Assim, somos obrigados - a não ser que adotemos abertamente a atitude de que pessoas com deficiência mental são qualitativamente diferentes dos outros seres humanos - a aceitar que elas têm os mesmos desejos e o mesmo direito de vivenciar plenamente sua sexualidade como todos nós. E mais ainda, a entender que a repressão sexual, no deficiente mental como em qualquer outra pessoa, é um dos maiores fatores de desajuste psicológico, social e até mesmo físico. (GLAT, 1992, p.72).

Algo comum a todos os registros encontrados é a participação ativa das famílias nos debates sobre namoro e casamento, subcategoria 3.1. De modo geral os documentos enfatizam o papel da família como fundamental para o desenvolvimento biopsicossocial da pessoa com deficiência intelectual e múltipla. No debate sobre vida afetiva e relações sexuais no Projeto Sinergia (FENAPAES, 2009), há um destaque em haver “uma tendência dos pais ignorarem o tema da afetividade pelas dificuldades que sentem em trabalhar com ele” (p. 45), uma vez que em relação à pessoa com deficiência intelectual e múltipla “as diferenças de como lidam com a própria afetividade estão relacionadas ao grau do comprometimento que possuem, às variações de idade, gênero e da forma como as famílias lidam com a questão” (p. 45).

A subcategoria 3.2, Preconceito, emerge no Projeto Sinergia (FENAPAES, 2009), em narrativas sobre relacionamentos:

Quando a resistência está na família: Minha família aceita meu namoro, mas a família dela não quer me ver nem de longe. Meu pai diz que eu mal posso comigo quanto mais com uma namorada! Têm muita dificuldade para gente ser compreendido em relação ao desejo de namorar. Namoro há quatro anos escondido porque meus pais adotivos não deixam. (FENAPAES, 2009, p.44).

As pessoas com deficiência intelectual e múltipla ainda são alvo de muitos mitos e tabus em relação a sua sexualidade, com crenças que insistem em entendê-los como assexuados ou hipersexuados, dificultando a manifestação e vivência de seus desejos e emoções, das descobertas com o próprio corpo e com o do outro, das modificações que são inerentes a puberdade e adolescência, negligenciando o apoio e suportes que poderiam ser ofertados, especialmente por uma educação em sexualidade.

Leme e Cruz (2008) realizaram um estudo sobre percepção dos responsáveis de pessoas com deficiência intelectual indicando que o apoio ao namoro com limites é sempre o dado mais expressivo; há ainda menção de apoio ao namoro com liberdade e parcela significativa que não permitiria o namoro. Esses dados também se estendem a considerações acerca do casamento, muito poucas famílias relatam permitir com liberdade, mais da metade da população estudada diz autorizar com supervisão e há ainda os que não permitiriam.

Chagas (2017), ao perguntar aos jovens e adultos sobre papel da família e diálogo, identificaram que poucos conversam com as famílias e a maioria relata que alguns assuntos, como camisinha, por exemplo, são proibidos em casa. O diálogo é difícil ou inexistente e uma quantidade enorme de dúvidas fica sem respostas. É preciso destacar que algumas orientações específicas precisam ser dadas pela família e, portanto, esta também precisa ser incluída em programas que tratem o tema sexualidade.

Na subcategoria 3.3, concepção, gravidez, sexo seguro e contracepção, em relação a concepção, gravidez, sexo seguro e contracepção, Parreira (2017), no documento norteador Autogestão, Autodefensoria e Famílias, traz a importância da informação sobre sexo seguro, destacando que na atração sexual por pessoas do sexo oposto, com contato sexual, é possível acontecer a gravidez, que pode ser planejada ou não, implicando responsabilidades e obrigações.

Para as famílias que participaram das discussões no Projeto Sinergia, existe uma “falta de preparo dos profissionais (de saúde, de educação) para lidar com as questões de afetividade ou sexualidade de pessoas com deficiência intelectual e múltipla” (FENAPAES, 2009, p. 45). Em relação às escolas e famílias, Silva (2017), supõe ser urgente e necessário que sejam oferecidas práticas e propostas de orientação7 sexual nos currículos educacionais junto a esse segmento social. Em seu estudo, as opiniões em relação à oferta de uma educação em sexualidade divergem no sentido de que nem todos os pais entrevistados entendem ser um assunto pertinente a escola, ainda que não tenham abordado o tema com os filhos. Portanto, a questão que se coloca é que “alguns profissionais e pais não sabem como intervir a respeito da orientação sexual. Se lhes forem dadas formações poderiam sentir-se seguros e capazes para essa atuação”. (SILVA, 2017, p. 17).

A categoria 4 sobre direitos sexuais e cidadania é tratada em diferentes documentos. No Projeto Sinergia (FENAPAES, 2009), há destaque a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - Decreto Federal nº 6.949/09, Artigo 23, destacando que seja reconhecido o direito das pessoas com deficiência, em idade de contrair matrimônio, de casar-se e estabelecer família, com base no livre e pleno consentimento dos pretendentes e, ainda, que pessoas com deficiência, inclusive crianças, conservem sua fertilidade, em igualdade de condições com as demais pessoas, tendo acesso a informações adequadas à idade e a educação em matéria de reprodução e de planejamento familiar, bem como os meios necessários para exercer esses direitos.

Ainda no Projeto Sinergia (FENAPAES, 2009), há destaque ao 2º Fórum Nacional de Autodefensores que aconteceu em Bento Gonçalves em 2003, quando já a época se destacou em carta aberta a necessidade de respeito ao direito de sexualidade.

No Projeto Águia encontra-se a afirmação que uma das recomendações dos autodefensores é de que “as pessoas com deficiência querem ter o direito de namorar, casar e ter filhos” (BRAGA, 2011, p. 19). Na Cartilha Eu tenho Direitos (FENAPAES, 2021), a palavra sexualidade é mencionada em trecho que fala de curatela, pautado na Lei Brasileira de Inclusão - LBI, nº 13.146/15 (BRASIL, 2015), destacando que sempre “vale ressaltar que a definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto” (BRASIL, 2015, p. 8), conforme art. 85, § 1º, da LBI.

No movimento de autodefesa, a luta é por respeito e defesa aos direitos (e deveres) que implica em distanciar-se do assistencialismo e infantilização que historicamente marcam as vidas das pessoas jovens e adultas com deficiência intelectual e múltipla e, ainda dar-lhes voz e escuta, especialmente. A Coletânea de Cartas dos Autodefensores: Nossa limitação é apenas uma parte de nós, indica a necessidade de “respeitar nosso direito de sexualidade” (FENAPAES, 2016, p. 16). Bernardi,Neto ePilger(2017), no documento norteador Autogestão, Autodefensoria e Família, trazem como sugestão de temas e ações o planejamento familiar para as pessoas com deficiência.

O objetivo é criar momentos de discussões, capacitações e diálogos com as famílias de cunho natural e/ou extensa sobre o direito que a Pessoa com Deficiência tem de construir sua própria família (se com condições para isso), pois se entende que se uma pessoa com deficiência tem essa vontade e oportunidade, a sua família deverá se responsabilizarpor todas as situações existentes nesse processo: namoro, sexualidade, filhos e casamento. Não esquecendo é claro, de dar voz a pessoa com deficiência. (BERNARDI; NETO; PILGER, 2017, p. 59).

A categoria 5, Educação para sexualidade, emerge ao identificarmos que a responsabilidade das escolas, e da APAE, em seus movimentos de autogestão e autodefensoria, na proposição do tema sexualidade e pessoa com deficiência intelectual e múltipla não é pequena, sendo imprescindível a formação e informação adequada por parte dos professores, educadores, psicólogos, orientadores educacionais etc.

Tal iniciativa tende inclusive a criar junto às famílias um clima colaborativo, de confiança, motivação e interação, satisfatório para todos os envolvidos, favorecendo a integração família-escola, no intuito de se estabelecer referenciais necessários a serem trabalhados em casa, na escola e espaços pedagógicos, como parte do processo de formação e orientação às pessoas jovens e adultas com deficiência intelectual e múltipla, em seus processos de transições com marcadores biológicos, psicológicos e sociais que implicam maturação e maturidade.

Braga (2011), no Projeto Águia aborda discussões de grupo formado por profissionais diversos que compreendem ser papel da APAE ter o compromisso de orientar tanto a pessoa com deficiência, quanto a família acerca da sexualidade, “possibilitando a eles terem maior autonomia, porém essa é uma questão que deve ser tratada com maior ênfase e exclusividade pelas famílias” (BRAGA, 2011, p. 15). Para tanto, este mesmo documento indica a necessidade de as APAES criarem parcerias com profissionais especializados na área da sexualidade para atender às pessoas com deficiência e suas famílias.Por fim, é importante destacar que ainda que o tema sexualidade tenha sido abordado em diferentes anos e documentos encontrados no site da APAE ao mencionarem autogestão e autodefensoria, um dado não pode passar despercebido. Em julho de 2021, a Revista Autodefensoria, com 44 páginas, não faz menção a palavra sexualidade. Ao apresentar a edição o Sr. José Turozi, Presidente da APAE Brasil, afirma que:

A revista apresenta o histórico da Autodefensoria nessas duas últimas décadas. Reunimos documentos, fotos e depoimentos que demonstram os diversos avanços realizados ao longo desses anos pelos autodefensores e pela coordenadoria de Autogestão e Autodefensoria no sentido de incentivar e promover o protagonismo das pessoas com deficiência intelectual e múltipla. (FENAPAES, 2021, p. 5).

Considerações Finais

Os apontamentos abordados pelo movimento de autogestão e autodefensoria buscam, ao longo dos anos, tratar o tema sexualidade trazendo à tona impressões de pais, profissionais e pessoas com deficiência intelectual,múltipla e Transtorno do Espectro Autista associado a impedimentos intelectuais. As expressões se dão nas falas e nas atitudes, algumas de silêncio, das histórias de vida tantas vezes invisibilizadas, com corpos negados.

Todo processo de socialização acontece desde o nascimento, em um contínuo fazer educacional que se refere aos processos pedagógicos, sistemáticos, que precisam estar a serviço da erradicação de preconceitos e promover abertura as discussões sobre o que se sente, se espera, se deseja, de si e do outro. A educação em sexualidade traz contrapontos, falácias e posturas negativas que parte da sociedade mais conservadora e moralista construiu e, portanto, são inúmeras as barreiras a serem vencidas em relação à própria pessoa com deficiência intelectual e múltipla, seus familiares, profissionais da saúde e educação e demais agentes sociais.

O movimento de autogestão e autodefensoria, no que se refere à sexualidade, se liga às questões de segurança e, reiteramos, estão intimamente ligado à educação em sexualidade, uma vez que a inexistência de uma educação sexual, especialmente nas escolas, contribui drasticamente para a violência inicial ou permanente a que muitas pessoas com deficiência, principalmente intelectual e múltipla, podem ser submetidas. Inegável serem mais vulneráveis às situações de violência e saúde sexual, sendo de fato relevante a reflexão sobre comportamentos sexuais (in)adequados, limites quanto ao toque do outro, respeito à diversidade, prevenção a infecções sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada e abuso sexual.

Colocar luz sobre o movimento apaeano de autogestão e autodefensoria, implica considerarmos o lugar de fala dos seus usuários e adentrar aspectos culturais e históricos sobre o papel da escola, do currículo, das famílias, todos com crenças e valores enraizados em uma matriz patriarcal e preconceituosa. O caminho possível só se estabelecerá através do diálogo e efetivação de políticas públicas que envolvam aspectos da sexualidade, para que enfim se tornem prática social no cotidiano.

As discussões ao longo dos anos promovidas pelo movimento de autogestão e autodefensoria da APAE que abordam o tema sexualidade se afirmam como necessárias uma vez que as pessoas com deficiência intelectual,múltipla e Transtorno do Espectro Autista com impedimentos intelectuais continuarão a falar de sexualidade em seus fóruns, conversas informais, debates e outras oportunidades. Portanto, suprimir a palavra sexualidade de um documento norteador como na revista Autodefensoria (2021) não colabora para o fortalecimento do movimento de autogestão na atualidade. As contribuições apresentadas nos documentos consultados servem para a construção de novas diretrizes e entendimentos sobre a promoção ao diálogo e educação em sexualidade para o público assistido pela APAE.

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1 https://apaebrasil.org.br/

2https://apaebrasil.org.br/conteudo/quem-somos

3De acordo com Rafante (2011), Helena WladimirnaAntipoff nasceu na Rússia em 1892. Foi aluna e assistente de Claparède e participou da padronização dos testes de nível intelectual, realizada por Alfred Binet e Théodore Simon. Foi convidada pelo governo de Minas Gerais para atuar no contexto da Reforma Francisco Campos (1927). Chegou ao Brasil em 1929 e aqui permaneceu, atuando na área educacional, até 1974, ano do seu falecimento.

4Este estudo utilizará o termo “excepcional” entre aspas.

5O termo utilizado atualmente é pessoa com deficiência intelectual, porém na época do congresso o termo usado era deficiência mental.

6http://www.anis.org.br

7Termo utilizado pelo autor, porém destacamos que em nosso estudo optamos por educação em sexualidade.

Recebido: 14 de Março de 2023; Aceito: 04 de Julho de 2023; Publicado: 26 de Julho de 2023

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