Introdução
O período de fundação da capital brasileira foi marcado por grandes realizações. Brasília ganha materialidade com a aprovação, em setembro de 1956, da Lei nº 2.874, que determinava a mudança da capital federal e a criação da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap). O plano de governo do presidente Juscelino Kubitschek (JK), com base na ideologia nacional-desenvolvimentista, intencionava a modernização da sociedade e dos meios de produção do País, que conduzia a objetivos agrupados em torno de setores como os de energia, transporte, indústria, educação e alimentação.
Brasília representava a meta síntese de sua plataforma política, visando à integração nacional por meio da interiorização do País. A exata localização do novo Distrito Federal (DF) já havia sido definida desde 1894, no Relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central (Sautchuk, 2014), comandada pelo astrônomo de origem belga Luiz Cruls, cientista que inspirou JK a construir a capital da esperança. A epopeia de sua construção teve características de renovação na face política nacional, mediante os projetos urbanístico e arquitetônico, que refletiram na educação planejada para a cidade nascente.
As décadas de 1950 e 1960 constituíram um período de intensa movimentação entre intelectuais e organizações sociais em defesa da escola pública. Havia um clima de favorecimento à iniciativa privada, por meio de subvenções e financiamentos públicos destinados à construção e à reforma de equipamentos, resultante de um conluio dos proprietários de escolas privadas laicas e dos mentores das escolas mantidas por iniciativa do clero católico.
Em contraposição, os debates realizados no processo de formulação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 4.024/61, sob a liderança de consagrados educadores como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Florestan Fernandes, alcançaram ampla repercussão na imprensa, logrando apoio de parlamentares contrários ao movimento privatista na educação. Nessa ocasião, os intelectuais defensores da escola pública, que estavam à frente da Campanha de Defesa da Escola Pública, lançaram o manifesto “Mais uma vez convocados” (1959), a favor da universalização da educação de caráter público, laico e gratuito. Tais iniciativas tiveram acolhida simpática e contribuíram para conscientizar a sociedade brasileira sobre a relevância da educação pública como fator nuclear na construção de valores democráticos e direitos coletivos.
Não obstante, o debate parlamentar em torno do projeto da LDB de 1961, segundo Fernandes (1962, p. 132), revelou “o apego a uma mentalidade que desdenha da educação popular, teme a democratização do ensino e se opõe à expansão da rede de escolas públicas”. A lei aprovada pelo Congresso Nacional, em 1961, não correspondeu ao que os defensores da escola pública almejavam. A avaliação de Teixeira (1962) reafirmava a prevalência do desinteresse público pela educação e o fortalecimento da iniciativa privada. Analisada, porém, sob outro ângulo, o ilustre educador considerou que a legislação recém-promulgada representava uma meia vitória, na medida em que, pela primeira vez, uma lei federal teria a incumbência de regular a ação dos estados, dos municípios, da União e da iniciativa particular no campo da Educação.
No período em que a lei de ensino começava a ser implementada em âmbito nacional, o sistema educacional do Distrito Federal se constituía, sob bases do ideário escolanovista, por meio das mãos e mentes de um grupo seleto de professores concursados, com vistas a estabelecer educação pública de alta qualidade na nova capital. Nesse contexto, as ideias inovadoras de fundamentação pragmatista, nos moldes de John Dewey, eram defendidas para democratizar a educação e renovar os modelos pedagógicos tradicionais.
Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, a convite do governo federal, cuidavam de planejar o sistema de educação - do fundamental ao superior -, que serviria de modelo para todo o País, visando à sua adequação ao estado democrático moderno. Segundo Teixeira (1997), a educação pressupunha a universalização para todos os brasileiros, independentemente de classe social, raça, sexo e religião, que somente se viabilizaria por meio da escola pública, gratuita e laica. Na visão dele, a escola pública de ensino comum é a maior das criações humanas, a máquina para produzir a democracia. Tratava-se de garantir o direito à educação e iguais oportunidades a todos.
À Universidade de Brasília caberia promover a cultura nacional na linha de uma progressiva emancipação. Para cumprir esse objetivo, impunha-se dar ênfase à pesquisa científica e à formação de cientistas e técnicos capazes de investigar os problemas brasileiros, com o propósito de dar-lhes soluções adequadas e originais. A criação da Universidade de Brasília somente foi aprovada no final do mandato do presidente Jânio Quadros e institucionalizada no governo João Goulart, por meio da Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961, que criou a Fundação Universidade de Brasília e designou para reitor e vice-reitor, respectivamente, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira.
A construção da nova capital atraiu a vinda de milhares de trabalhadores oriundos de todas as partes do País, a maioria com baixa escolaridade e elevada taxa de analfabetismo. Segundo dados da Codeplan (2013), os imigrantes convergiam à Brasília de forma cada vez mais intensa e o Censo de 1960 constatou que eles já ultrapassavam a casa dos 134 mil residentes de forma que, em relação à contagem de 1959, a taxa de crescimento desse contingente foi de 5,35% ao mês. Na sua totalidade os imigrantes passaram a representar 95,8% em relação aos residentes que totalizavam 140.164 pessoas. A cidade representava uma promessa de vida socialmente mais digna e democrática. Conforme o Relatório do Plano Piloto de Brasília, a nova capital caracterizar-se-ia como uma
[…] cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, um foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do País. (GDF, 1991, p. 20).
Alinhada à concepção arquitetônica, a proposta de Anísio Teixeira para a nova capital foi concebida à luz de uma perspectiva social, visando promover educação integral, destinada a todas as crianças e os jovens, indistintamente. O “Plano de Construções Escolares de Brasília”, da lavra desse educador, sinaliza para um novo tipo de escola, com funções ampliadas para desenvolver o processo educativo por meio de atividades de trabalho, estudo, recreação e arte. Assim, os sonhos entrelaçados de Lúcio Costa e Anísio Teixeira, cada um ao seu modo, traduziam a expectativa de uma nova sociedade brasileira, distante do subdesenvolvimento e da imensa estratificação social que o País vivia na época (Garcia; Gabrieli, 2018).
Considerando os nobres propósitos que embalaram a fundação da nova capital, a pesquisa que dá origem ao presente artigo parte do questionamento sobre as iniciativas então adotadas no Distrito Federal para atender às demandas por educação dos jovens e adultos que migraram para trabalhar na construção da cidade.
O desenvolvimento do estudo teve como diretriz metodológica a análise de documentos históricos identificados no decorrer do processo de investigação. Segundo Alberti (2014), a noção histórica de documento foi rompida com a ampliação do enfoque positivista, em que a busca pela neutralidade e veracidade dos fatos era levada aos trabalhos com documentos escritos que
[…] os pesquisadores acreditavam ‘falar por si mesmos’, ou seja, autoexplicativos; por esse motivo, as outras formas de fontes não escritas eram tidas por não suficientemente neutras - como relatos orais das sociedades ágrafas - e eram totalmente descartadas da pesquisa (Alberti, 2014apudLima; Pereira, 2018, p. 113).
Debruçando-se sobre os documentos, as pesquisadoras elaboraram análises orientadas pela concepção crítica do método historiográfico.
Ressalte-se, ainda, a história cultural, cujos fundamentos e método também forneceram aporte metodológico conceitual, uma vez que seus princípios permitem interpretar a realidade do passado por meio de suas representações, na tentativa de chegar às formas discursivas e imagéticas pelas quais os homens expressam a si próprios e ao mundo (Halbwachs, 2006). A essa metodologia se soma a dinâmica tecnológica como meio de acesso a documentos disponibilizados em conteúdos imagéticos e de formatos diversos.
Em consonância com os achados da pesquisa, este artigo objetiva analisar a experiência de alfabetização freiriana, realizada nos primórdios de Brasília, e refletir sobre o papel desempenhado por Paulo Freire no desenvolvimento desse projeto de caráter emancipador, bruscamente interrompido pelo golpe militar que assolou o País, em 1964.
De iniciativas isoladas à experiência de alfabetização de Paulo Freire
Quanto ao período da construção das avenidas e dos palácios da nova capital (1957-1960), existem informações sobre ações isoladas e voluntárias de educação de adultos. Depoimento prestado pelo Dr. Ernesto Silva (Duarte, 1982), então diretor da Novacap, revela que a Comissão de Administração do Sistema de Educação de Brasília (Caseb) considerava fundamental garantir a educação integral às crianças e aos adolescentes na faixa etária do ensino regular, pois se acreditava que, em longo prazo, o analfabetismo desapareceria. Nessa ótica, a apreensão com a clientela adulta não escolarizada deveria se centrar em programas especiais de educação de jovens e adultos, incluindo ou não a alfabetização, de acordo com as necessidades apontadas pelo grupo interessado.
Segundo depoimento da professora pioneira no Distrito Federal, Ana Maria Villaboim, à época existiam cursos noturnos, muitos dos quais mantidos pelas construtoras, junto aos acampamentos das obras, que ofereciam aos adultos trabalhadores cursos preparatórios para os Exames Madureza (Villaboim, 1990). Essa modalidade esteve presente no cenário educacional da nova capital, nos anos iniciais da década de 1960.
Pesquisa recente apresenta dados inéditos sobre a história da educação de jovens e adultos do Distrito Federal (Oliveira, 2022), identificando a existência de diferentes atores e concepções de alfabetização nos primórdios de Brasília. As iniciativas partiam de estudantes, professores e religiosos, assim como de instituições governamentais, visando atender trabalhadores da construção civil e funcionários públicos sem escolarização. Fontes localizadas pela referida autora revelam que, no decorrer de 1961 a 1964, a maioria das turmas de alfabetização de adultos e de qualificação de adolescentes foi criada por meio de convênios celebrados entre a Prefeitura do Distrito Federal e o Ministério da Educação (MEC).
A capital vivia dias atribulados. Findo o governo Juscelino Kubitschek e o breve período de Jânio Quadros na presidência, havia incertezas sobre os rumos políticos que rondavam o destino do País. Com a renúncia de Jânio, em 25 de agosto de 1961, deflagrou-se uma crise política durante a qual se deu a posse do vice-presidente João Goulart (Jango), em 7 de setembro de 1961. Jango tinha como plataforma política a implantação de reformas de base que propunham mudanças estruturais no País, com a finalidade de integrar social, educacional e politicamente a população.
No âmbito da educação popular, a criação do Programa Nacional de Alfabetização (PNA), por meio do Decreto nº 53.465, de 21 de janeiro de 1964, configurou-se como uma tentativa do Ministério da Educação e Cultura de coordenar os movimentos de educação de base e/ou alfabetização de adultos e adolescentes, que se vinham multiplicando em todo o País desde 1961 (Cunha, [2009]).
Segundo o artigo 4º do referido decreto, a Comissão do Programa Nacional de Alfabetização, que o implantaria, deveria convocar a cooperação e utilizar os serviços de agremiações estudantis e profissionais, associações esportivas, sociedades de bairros, municipalidades, entidades religiosas, organizações governamentais, civis e militares, associações patronais, empresas privadas, órgãos de difusão, do magistério e de todos os setores mobilizáveis.
O Programa pretendia instalar, em 1964, 60.870 círculos de cultura, a fim de alfabetizar 1.834.200 adultos, atendendo a 8,9% da população analfabeta, da faixa de 15 a 45 anos, que, em setembro de 1963, era de 20.442 milhões de pessoas. Esses círculos seriam implantados em quatro etapas sucessivas, cada uma com a duração de três meses, em todas as unidades da Federação que não conseguiram respaldo no Congresso Nacional (Cunha, [2009]). Tornava-se premente arregimentar forças populares pela implantação das reformas.
Havia uma efervescência de ações em todo o País. Ao lado das ligas camponesas e dos sindicatos rurais, que lutavam pela reforma agrária, a mobilização em favor da educação popular tornava-se visível, nesse período, por meio de campanhas e experiências educativas e de alfabetização de adultos, promovidas por universidades e outras instituições representativas de diferentes setores da sociedade. Entre as iniciativas de educação popular mais expressivas das décadas de 1950 e 1960, cabe mencionar: Movimento de Cultura Popular - MCP (Recife, maio de 1960); Campanha “De pé no chão também se aprende a ler” (Natal, fevereiro de 1961); Movimento de Educação de Base - MEB (março de 1961); Campanha de Educação Popular da Paraíba - Ceplar (João Pessoa, janeiro de 1962); Experiência de Alfabetização de Adultos pelo Sistema Paulo Freire, em Angicos, no Rio Grande do Norte (janeiro de 1963).
Para Saviani (2007), a expressão mais acabada da orientação seguida por esses movimentos é dada pela concepção de Paulo Freire. O termo “educação popular”, até então associado à instrução elementar, assume outra significação, que emerge da preocupação com a participação política das massas, mediante a conscientização da realidade brasileira. Assim concebida, a educação passa a ser identificada como “uma educação do povo, pelo povo e para o povo” (Saviani, 2007, p. 315).
Paulo Freire teve papel de destaque como um dos mais ativos participantes do Movimento de Cultura Popular (MCP), de Recife, criado pelo prefeito Miguel Arraes, em maio de 1960. Professor e coordenador do Serviço de Extensão Cultural da Universidade Federal de Recife, o educador promoveu atividades de alfabetização de adultos com um método considerado revolucionário, que aplicou inicialmente na Paraíba, em 1961, e após no Recife, em 1962. Nessa ocasião, foi convidado pelo governador Aluízio Alves, por intermédio do secretário de educação, Francisco Calazans Fernandes, para aplicar seu método em Angicos, Rio Grande do Norte, terra natal do governador.
Assumindo o desafio, Paulo Freire desenvolveu, em 1963, a experiência de alfabetização de adultos em Angicos, onde adotou a metodologia pela qual ensinou 380 trabalhadores a ler e escrever em apenas 40 horas. Após Angicos, a aplicação do método de alfabetização seria testada na nova capital do País, conforme demonstra o “Dossiê Paulo Freire”, parte integrante do acervo do Museu da Educação do Distrito Federal, constituído por uma coleção iconográfica e documentos textuais sobre a trajetória do educador, em Brasília, na década de 1960.
A experiência exitosa desse método de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte, motivou o Ministério da Educação a convidar Paulo Freire para assumir a coordenação do Programa Nacional de Alfabetização (PNA), uma das prioridades do governo João Goulart. Vale lembrar que a alfabetização de adultos implicava o aumento do número de eleitores, questão muito sensível da política brasileira daquele período, diante do impedimento legal do voto de analfabetos, o que somente veio a mudar com a Constituição de 1988.
O Programa Nacional de Alfabetização foi criado por meio do Decreto nº 53.465, de 21 de janeiro de 1964, assinado por João Goulart, presidente da República, e Júlio Furquim Sambaqui, ministro da Educação. No entanto, antes mesmo de criado o PNA, Paulo de Tarso, então ministro de Educação, instituiu, com o seu gabinete, a Comissão Nacional de Cultura Popular, com o objetivo de “implantar em âmbito nacional novos sistemas educacionais de cunho eminentemente popular, de modo a abranger áreas não atingidas pelos benefícios da educação” (Brasil. MEC, 1963b), designando Paulo Freire para presidi-la. Dias depois, foi criada a Comissão Regional de Cultura Popular do Distrito Federal, com o propósito de desenvolver e avaliar a experiência de alfabetização em Brasília pelo método Paulo Freire, com vistas à sua adoção em nível nacional.
A constatação das precárias condições de vida dos trabalhadores pioneiros de Brasília, em grande parte analfabetos, levou Paulo Freire a assumir a mobilização em torno da implantação de seu método na capital, enquanto ainda vigia o Decreto nº 51.470, de 22 de maio de 1962, que tratava do regime especial de mobilização nacional contra o analfabetismo. Nessa oportunidade, o educador decidiu mudar-se com a família para Brasília, onde iniciou a formação de coordenadores de círculos de cultura, na capital e em Goiânia (Haddad, 2019).
Ao reportar-se à experiência de alfabetização no Distrito Federal, Paulo Freire rememora:
O trabalho final naqueles idos de 60 era um trabalho lindo, essas cidades-satélites ficaram mais ou menos salpicadas de círculos de cultura. Nós instalamos trezentos círculos de cultura entre as cidades satélites que eram extensões de Brasília, trezentos! Quer dizer, nós tivemos um êxito extraordinário com os primeiros resultados que se foram verificando. (Freire, 1996 apudADUnB, 2003, p. 6).
A importância da experiência de alfabetização em Brasília, de acordo com Barbosa et al. (1980), deveu-se a dois fatores: (a) por se tratar da capital política e administrativa do País; (b) porque a nova capital, segundo seus idealizadores, “deveria ser elemento catalisador da economia regional, fulcro do desenvolvimento nacional e centro de irradiação político-social”. Poder-se-ia ainda acrescentar, como componente de relevância, o fato de essa experiência constituir embrião do Programa Nacional de Alfabetização, que visava estender a metodologia freiriana a todas as regiões do País. O “Dossiê Paulo Freire” retrata os principais encontros ministeriais ocorridos naquele período.
A Figura 1 traz a imagem da reunião do Conselho Nacional de Cultura, com a presença do ministro Paulo de Tarso, em 29 de agosto de 1963.
A Figura 2 retrata o encontro ministerial realizado em 1º de novembro de 1963, na gestão do ministro Júlio Sambaqui, que reunia diretores do Ministério da Educação para tratar de assuntos relativos à erradicação do analfabetismo. Entre os participantes, observa-se a presença de Frei Mateus, reitor pro-tempore da Universidade de Brasília.
Uma terceira imagem (Figura 3) registra o encontro de autoridades para a assinatura do decreto presidencial de implantação nacional do sistema Paulo Freire, em 25 de novembro de 1963, com a presença do gestor pioneiro do Distrito Federal, Armando Hildebrand.
As imagens que registram reuniões ministeriais mostram que, entre os presentes, encontram-se opositores do presidente João Goulart, que não somente testemunharam a tomada das decisões e a assinatura do decreto de instituição do Programa Nacional de Alfabetização, mas também participaram do processo que culminou com a derrubada do governo.
Círculos de cultura - Brasília, 1963-1964
Enquanto se processavam as negociações ministeriais relacionadas à implantação do PNA, na capital federal já se iniciava a experiência de alfabetização de trabalhadores que participaram da construção da cidade. No artigo “A revolução dos analfabetos”, Leão Filho (1963) relata que, sob a égide da Comissão Nacional de Cultura Popular, o sistema Paulo Freire colocou em funcionamento 95 círculos de cultura nas cidades-satélites de Sobradinho, Taguatinga e Gama, além daqueles criados para o atendimento a servidores da Novacap e da Prefeitura do Plano Piloto.
A experiência de Brasília foi projetada para ocorrer em duas fases: a primeira, prevista para realizar-se no segundo semestre de 1963, e a segunda, no primeiro semestre de 1964. A intenção de duplicar o período de aplicação do método de Paulo Freire e, consequentemente, de criar círculos de cultura, tinha em vista alcançar o objetivo estabelecido de “alfabetizar, politizar e conscientizar 28.000 analfabetos dentro de um ano” (Brasil. MEC, 1963a). Consoante o plano de trabalho da Comissão Regional de Cultura Popular de Brasília, subscrito pelo seu presidente, Marcílio Augusto Velloso, pretendia-se a total erradicação do analfabetismo na região.
Com base nos dados levantados, foram contratados e capacitados coordenadores e supervisores para atuarem nos círculos de cultura (Brasil. MEC, 1963a). As equipes de trabalho participaram do processo de recrutamento dos analfabetos, por meio de alto-falantes instalados em veículos que percorriam as cidades-satélites, transmitindo as mensagens: “Povo analfabeto é povo escravo. Matricule-se no círculo de cultura mais próximo e aprenda a ler e a escrever!” (Barbosa et al., 1980, p. 77).
Para a execução do método de alfabetização, Paulo Freire idealizou os círculos de cultura no lugar de salas de aula, nos quais atuariam os coordenadores, que, ao invés de aulas discursivas, conduziriam debates sobre os temas propostos e exercitariam o diálogo com os participantes do grupo. Conforme define o seu idealizador, trata-se de um “método ativo, dialogal, crítico e criticizador” (Freire, 1974, p. 93), que se coaduna com a sua proposta de uma educação emancipadora. Os princípios e as práticas educacionais opõem-se aos da educação bancária, que Freire conceituou com uma metáfora, em que os estudantes são vistos como mentes vazias, nas quais os conteúdos de ensino são depositados e o professor é o depositante (Neder; Moraes, 2017).
Os primeiros círculos de cultura na capital brasileira foram instalados em pequenas igrejas, galpões ou escolas; muitos funcionavam à luz de lampiões e com mobiliário improvisado com recursos da própria comunidade. A descrição do funcionamento deles por Leão Filho (1963, p. 77) revela simplicidade:
O aparelhamento das salas é o mais sumário. Alguns bancos rústicos de madeira, um projetor de strip-film, o quadro-tela e as fichas-roteiro. Em cada sala, com o mesmo coordenador, dois círculos por noite, de hora e meia cada um. Aos sábados reúnem-se os supervisores para fazer sua autocrítica e procurar solução para os diversos problemas de cada setor. Na sua maioria, os supervisores de Brasília são estudantes, professores primários e funcionários públicos. Os coordenadores, quase todos são operários, nem todos possuindo o curso primário completo, mas que, não obstante, após o treinamento, revelaram plena aptidão para o novo mister, além da vantagem de residirem nos locais onde estão os círculos.
O método freiriano de alfabetização desenvolvia-se em cinco etapas: (1) levantamento do universo vocabular dos grupos com que se ia trabalhar; (2) seleção das palavras geradoras do universo vocabular pesquisado; (3) problematização de situações existenciais do grupo, voltadas para análise das questões pessoais, regionais e nacionais; (4) elaboração de fichas-roteiros; (5) confecção de fichas com as famílias silábicas das palavras geradoras.
O processo pedagógico proposto por Paulo Freire partia do pressuposto de que toda pessoa, alfabetizada ou não, trazia conhecimentos próprios, originados nas diferentes relações travadas durante a vida. Esses conhecimentos e os interesses manifestados pelos aprendizes constituíam a matéria-prima para o aprendizado da escrita e levariam à descoberta do universo vocabular dos alfabetizandos.
A pesquisa do universo vocabular foi realizada em locais onde poderia haver pessoas analfabetas, como canteiros de obras, Hospital Distrital, rodoviária, acampamentos, entre outros. Após o levantamento de temas de interesse dos aprendizes, chegava a hora de escolher as palavras que seriam utilizadas no trabalho de alfabetização. Para serem usadas nos círculos de cultura, deveriam ser fonte de motivação, porque lembravam situações da realidade e da própria vida dos alfabetizandos.
Na seleção das palavras geradoras, além de forte entrosamento com a realidade social, política e cultural, deveria ainda ser observada a riqueza fonética, tendo em vista que as dificuldades eram colocadas numa sequência gradativa. Assim, a palavra deveria estar relacionada com situações muito significativas para os estudantes analfabetos e possibilitar a combinação de diferentes famílias silábicas.
Elencada com base no cotidiano da cidade tomada por canteiros de obras e grande número de operários, a lista de palavras geradoras para Brasília constituiu-se por 14 palavras, cujos fonemas e sílabas se adequaram à sequência de aprendizagem esperada: tijolo, voto, feira, máquina, chão, barraco, açougue, trabalho, Sobradinho, passagem, pobreza, Planalto, eixo, Brasília (Curso..., [1963]). As palavras geradoras selecionadas serviam de referência para criar ocasiões que permitissem o debate sobre problemas vivenciados pelo grupo.
A apresentação do contexto relativo à palavra geradora se dava com a projeção da foto do tema gerador, por exemplo, tijolo, o que produzia um diálogo entre o coordenador e os participantes do grupo em torno da realidade ligada ao objeto representado pela palavra. Como elucida Barreto (1998, p. 118), os comentários traziam o assunto para a situação e a experiência dos alfabetizandos: “preço alto do tijolo, do material de construção; a vida de pedreiro; a marmita que a mulher do pedreiro faz de madrugada; a construtora onde muitos querem conseguir trabalho porque trata melhor seus empregados; a fabricação doméstica de tijolos”. Segundo a autora, havia preocupação com a preparação de roteiros para o alfabetizador, com indicação de possíveis subtemas ligados às palavras geradoras e sugestões para a sua análise. Esses roteiros contribuíam para a qualidade das discussões, principalmente quando o alfabetizador era iniciante.
Na aplicação do método em Brasília, foi utilizado um conjunto de slides produzido pelo MEC/Comissão Nacional de Cultura Popular e editado pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), em 1963. Os desenhos foram adaptados à realidade local e incorporaram a revisão feita após a experiência de Angicos (Terra, 2004 apudFávero, 2012).
O trabalho educativo realizado com a utilização desses slides, também nominados fichas de cultura, assentava-se na ideia de que os trabalhadores-estudantes eram cultos porque faziam cultura, eram capazes de aprender em diálogo com os seus educadores. Na condição de estudantes-trabalhadores, até então excluídos do processo educativo, a promoção de um processo dialógico era fundamental para conscientização do oprimido e sua libertação.
Nessa concepção, estava implícita a valorização da cultura do povo. Contrapondo- se à lógica de inferiorizar uns para garantir a dominação de outros, Freire (1974) afirmava que, enquanto no processo de dominação o sujeito conquista a outra pessoa e a transforma em “coisa”, no processo dialógico, a característica central é o fato de que uma pessoa não anula a outra.
A pedagogia freiriana não se resumia a processos metodológicos que conduzissem simplesmente à leitura e à escrita, dada a compreensão de que esses conhecimentos eram recursos necessários para fazer a leitura do mundo. Com essa finalidade, Paulo Freire propunha uma educação problematizadora, de caráter crítico-reflexivo, de desvelamento da realidade, que se desenvolvia por meio de diálogo, no decorrer do qual o aprendiz ia descobrindo o mecanismo da formação das palavras escritas.
Após o debate sobre a realidade sociológica dos estudantes-trabalhadores envolvendo as palavras geradoras, as atividades pedagógicas voltavam-se para a construção de fichas destinadas ao estudo das famílias fonéticas. Essas fichas formavam uma série na qual se via a palavra sozinha, a palavra separada em sílabas e as famílias fonéticas, uma a uma.
A ficha da descoberta era composta pelo conjunto das famílias silábicas, com base na palavra geradora, e permitia aos educandos a formação de palavras, era a descoberta do mecanismo da escrita. As palavras deveriam ser criação dos educandos, de modo espontâneo, para que expressassem significado para eles. A Figura 4 registra o momento significativo do trabalho pedagógico desenvolvido no Círculo de Cultura do Gama, cidade-satélite de Brasília.
Os círculos de cultura de Brasília foram visitados tanto pelo ministro Paulo de Tarso como por Paulo Freire. Curiosamente, numa dessas visitas, ficou registrado o momento em que, após a discussão da palavra geradora “tijolo”, o alfabetizador chamou a atenção dos aprendizes para o estudo das famílias silábicas do “ti”, do “jo” e do “lo”. Rapidamente, um dos alfabetizandos, demonstrando já ter apreendido o mecanismo da leitura, juntou as sílabas e formou, numa linguagem bem popular, a frase: “tu já lê”, que na Língua Portuguesa seria “tu já lês”.
Paulo Freire viveu com intensidade esse momento e, após muitas décadas, ao retornar à Brasília, relembrou com emoção:
Há trinta e três anos eu morei no Hotel Nacional, durante algum tempo, trabalhando com companheiros de Brasília, companheiros de Recife, de São Paulo, instalando o que chamou depois Plano Nacional de Alfabetização. No quarto do hotel, hoje, eu me lembrava das noites em que voltava das cidades-satélites, onde vinha escutar e ver o desenvolvimento do processo de alfabetização, ou de educação popular, eu voltava e quase sempre era difícil dormir, pela emoção que me desgastava, em face das coisas que tinha visto nos debates. A frase que foi hoje citada nos dados biográficos, tu já lê, eu ainda tenho hoje a figura do homem moço, com seu filho no braço - a mulher estava doente - e ele ia para o círculo de cultura levando o bebê; eu me lembro ainda quando ele, depois de ver uma companheira criar uma frase, ele se levantou e disse cheio de vida, de força, de certeza, de esperança. Ele disse “tu já lê”! (Rêses; Vieira; Reis, 2012, p. 533).
A avaliação do método, prevista para ser sistematizada, não chegou a ser realizada. Novos acontecimentos alteraram os rumos do projeto.
Considerações finais
A experiência de Brasília, como um projeto-piloto de alfabetização de adultos, a ser disseminada para o restante do País, foi subitamente interrompida pelo golpe de Estado que instaurou a Ditadura Militar no Brasil, a partir de 31 de março de 1964. As atividades educativas e culturais realizadas no segundo semestre de 1963 e com expansão iniciada em março de 1964 foram tachadas de subversivas, o que resultou na extinção dos círculos de cultura da nova capital, assim como no impedimento antecipado de funcionarem os milhares de círculos previstos no Programa Nacional de Alfabetização.
O PNA teve sua instituição revogada pelo Decreto nº 53.886, de 14 de abril de 1964, apenas quatro meses após a sua criação, sob a justificativa de reestruturar as ações de eliminação do analfabetismo, sendo estabelecido que o material a ser empregado na alfabetização da população nacional deveria veicular ideias nitidamente democráticas e preservar as instituições e tradições do nosso povo. Acrescente-se, ainda, que o decreto determinava o recolhimento de todo o acervo utilizado para a execução do Programa Nacional de Alfabetização. Tais medidas são marcas indeléveis de um período de retrocesso e de intimidação no campo da educação popular e educação de adultos.
A perseguição a Paulo Freire veio a seguir. Preso por 70 dias, na cidade de Recife, foi submetido a interrogatório durante quatro dias, que teve continuidade no inquérito policial militar (IPM), posteriormente instaurado no Rio de Janeiro(Barreto, 1998).
As medidas repressivas da Ditadura Militar atingiram promotores e executores do projeto-piloto de alfabetização de Brasília. Como informam pesquisas realizadas no site Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional, muitos inquéritos policiais tiveram de ser respondidos por pessoas envolvidas na experiência, desde os que ocuparam cargos no MEC até os alfabetizadores que atuaram nos círculos de cultura(Oliveira, 2022).
Diante das circunstâncias, o educador se exilou em outros países nos quais continuou sua produção intelectual aprofundando conceitos. A negação do conhecimento de cultura aos alfabetizandos excluía do contexto social a participação destes na sociedade.