Introdução
O presente trabalho tem por objectivo investigar as contribuições da filosofia marxista para a área da educação, em especial aos estudos ligados ao tema da interdisciplinaridade. Como indagação-base para o desenvolvimento da presente investigação, o artigo busca analisar: Quais são as contribuições que a teoria marxista pode trazer para a discussão sobre o tema da interdisciplinaridade?
Como caminho metodológico de investigação, recorro a uma pesquisa bibliográfica da obra marxista (Marx, 1996, 2004, 2008, 2011a, 2011b; Marx & Engels, 1978, 1992, 2007) e de pensadores que buscam alternativas para se superar a lógica disciplinar (Deleuze & Guattari, 1995; Nicolescu, 2000; Morin, 2003; Santos, 2008; Fazenda, 2002, 2008, 2009).
Outrossim, trago como fonte de pesquisa a obra de outros autores ligados à crítica marxista ao ensino (Costa, 2012; Frigotto, 2008; Mueller, Bianchetti, & Jantsch, 2008; Tonet, 2009, 2013). Esses autores, apesar de não terem opiniões uníssonas, comungam a confiança de que o marxismo é fundamental para a compreensão da problemática educativa atual, bem como para a sua superação.
Para Pizzani, Silva, Bello e Hayashi (2012), essa natureza de pesquisa é feito a partir do levantamento de referências já publicadas e analisadas, incluindo aquelas disponibilizadas por meios escritos e/ou eletrônicos, como livros e artigos científicos. Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009, p. 5) descrevem esse estilo de investigação como “[...] uma modalidade de estudo e análise de documentos de domínio científico tais como livros, periódicos, enciclopédias, ensaios críticos, dicionários e artigos científicos”.
Na presente pesquisa bibliográfica, destaco que vários autores, dos mais diversos campos, concordam que as especializações do pensamento e as disciplinas escolares são uma herança teórico-epistemológica da perspetiva cartesiana (Deleuze & Guattari, 1995; Morin, 2003; Fazenda, 2008, 2009). Entretanto, ainda são escassas as pesquisas que tratam do tema a partir de uma base teórica marxista (Frigotto, 2008; Tonet, 2009; Costa, 2012). Compreendemos que nosso ponto de vista, apresentado no presente artigo, pode contribuir para ampliar a já existente discussão a respeito do assunto.
Para os pensadores supra indicados, o pensamento disciplinar fragmenta a realidade do mundo nas mais distintas áreas do conhecimento específico, sem, contudo, relacionar suas partes ao todo.
No que diz respeito à educação formal, o legado desse pensamento se relaciona diretamente com o formato do currículo escolar, o qual está recheado de disciplinas. Cada uma dessas últimas funciona de maneira autônoma, com saberes/fazeres próprios e com pouca (ou nenhuma) conexão entre elas.
Entretanto, para não cometer a negligência de traçar uma visão deveras linear a respeito do assunto, acredito que é preciso haver uma análise mais acurada do contexto e do tempo histórico que levaram ao surgimento das proposições que buscam superar as limitações do pensar/fazer disciplinar, com destaque para a interdisciplinaridade.
Historicamente os estudos sobre a interdisciplinaridade surgiram no continente europeu, principalmente na França e Itália, em meio à década de 1960, quando os movimentos estudantis tinham como sua principal reivindicação uma nova ideia de universidade (Fazenda, 2002, 2009). Desde a década de 1970, a necessidade de desfragmentação dos currículos escolares está sendo amplamente considerada na literatura acadêmica.
No Brasil, sob o ponto de vista das políticas públicas e da legislação educativa, no final da década de 1990 os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) aguçaram tal perspetiva, tanto nos seus fundamentos teórico-metodológicos para todas as disciplinas como ao indicar os temas transversais1 (Brasil, 1999). Esses últimos funcionam como assuntos integradores dos conteúdos a serem tratados nas diversas disciplinas do currículo escolar.
Mais recentemente, a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2016) também traz em sua proposta a interdisciplinaridade como um dos pontos importantes para o currículo escolar brasileiro. No documento consta que as áreas de conhecimento e os eixos de formação “[...] não podem ser concebidos de forma isolada, mas se intersectam na formação dos/das estudantes, conferem uma perspetiva interdisciplinar à elaboração dos currículos pelos diferentes sistemas educacionais” (Brasil, 2016, p. 179).
Diante desse contexto histórico, se por um lado se reconhece que existe um aspecto progressista nas correntes visões sobre a interdisciplinaridade, por outro deve-se desenvolver um olhar mais atento ao desenvolvimento do tema não-disciplinar dentro do campo do ensino. Apesar da indiscutível boa intenção dos seus idealizadores, minha meta na presente pesquisa é analisar as limitações dessas propostas.
Dito isso, explicito que o presente texto foi desmembrado em três partes que se interconectam, para facilitar a exposição que se segue. Inicio com uma explanação sobre as perspectivas que buscam avançar em saberes/práticas que superem as fronteiras disciplinares, como destaque para as ideias em torno da inter, multi e a transdisciplinaridade. Em seguida, discorro sobre a origem da fragmentação disciplinar, trazendo à tona seu arrolamento com as forças produtivas. Por fim, no terceiro ponto, trago para o diálogo a categoria da totalidade marxista, defendendo a posição de que essa é a única ideia capaz de superar a fragmentação.
Para além das fronteiras disciplinares - inter, multi e transdisciplinaridade
Conforme vimos acima, como forma de superar a perspetiva educativa disciplinar, existem várias proposições para avançar contra as barreiras impostas pela compartimentalização dos saberes (Deleuze & Guattari, 1995; Morin, 2003; Fazenda, 2002, 2008, 2009; Tonet, 2009, 2013). Apesar de não haver unanimidade entre esses pensadores, podemos indicar alguns pontos de convergência no que diz respeito ao ensino disciplinar.
Independentemente da proposta defendida - seja ela a inter, multi ou transdisciplinaridade -, os autores são enfáticos ao partirem de uma crítica às limitações do ensino disciplinar. A fragmentação do conhecimento, característica maior da disciplinaridade, é vista como um empecilho para se compreender o mundo em sua plenitude. A divisão do saber em partes específicas e a falta de conexão entre essas partes são encaradas como limitações do atual modelo de ensino.
Ao mesmo tempo, visualiza-se também a importância que o espectro particularizado do mundo é capaz de nos oferecer, como o desenvolvimento do conhecimento dos campos de estudo (cada vez mais especializados). Graças a esses saberes desenvolveu-se, por exemplo, o avanço nas áreas da saúde, energética, espacial, etc.
Atualmente, comunga-se da ideia de que a compreensão da dinâmica do mundo e dos fenômenos que nos cercam passa fundamentalmente pelo conhecimento disciplinar, uma vez que os saberes gerados pelas pesquisas disciplinares podem ser reconstruídos pelo conhecimento interdisciplinar.
Buscando incentivar uma visão educativa mais ampla, um ensino que tente superar as barreiras impostas pelas disciplinas, a perspetiva interdisciplinar vem ganhando espaço no campo pedagógico ao longo dos últimos anos. Destacamos, todavia, que o termo interdisciplinaridade é polissêmico, podendo significar vários aspectos. Por exemplo, pode indicar pura e simplesmente que
[...] diferentes disciplinas são colocadas em volta de uma mesma mesa, como diferentes nações se posicionam na ONU, sem fazerem nada além de afirmar, cada qual, seus próprios direitos nacionais e suas próprias soberanias em relação às invasões do vizinho. Mas interdisciplinaridade pode significar também troca e cooperação, o que faz com que a interdisciplinaridade possa vir a ser alguma coisa orgânica (Morin, 2002, p. 115).
De acordo com Nicolescu (2000), podemos distinguir três graus de interdisciplinaridade: um grau de aplicação, um epistemológico e outro de geração de novas disciplinas. O primeiro pode ser exemplificado pelos métodos usados da física nuclear e transferidos para a medicina, os quais levaram ao surgimento de novos tratamentos para o câncer. No segundo, temos, por exemplo, a transferência de métodos da lógica formal para o campo do direito, que produz análises interessantes na epistemologia do direito. Por fim, o terceiro pode ser visualizado com a transferência dos métodos da matemática para o campo da física, gerando a física-matemática, como na Teoria do Caos.
Fazenda (2002, 2008, 2009) mostra que, grosso modo, temos três formas básicas de perceber a interdisciplinaridade voltada à docência: como ordenação científica; como ordenação social; como saber ser. A primeira trata do processo de construção dos saberes interdisciplinares, tendo como base os conhecimentos científicos das atividades de formação de professores. Por outro lado, a forma de ordenação social tenta descobrir o desenvolvimento dos conhecimentos científicos de caráter interdisciplinar, considerando que os aludidos estão ligados às necessidades sociais, econômicas e políticas. Por sua vez, a forma de ‘saber ser’ da interdisciplinaridade, a qual visa “[...] explicita-se na inclusão da experiência docente em seu sentido, intencionalidade e funcionalidade diferenciando o contexto cientifico do profissional e do prático” (Fazenda, 2008, p. 19).
Coligada às ideias de interdisciplinaridade, outros dois pensamentos que buscam uma saída para a fragmentação do saber são a multi e a transdisciplinaridade. A primeira pode ser entendida como uma associação de disciplinas, coligadas devido a um objeto que lhes sejam comuns. Já a transdisciplinaridade é tida normalmente como esquemas cognitivos “[...] que podem atravessar as disciplinas, às vezes com tal virulência, que as deixam em transe” (Morin, 2002, p. 115).
A transdisciplinaridade, do mesmo modo que a interdisciplinaridade, também é um termo polissêmico, cuja definição parece variar na literatura (Nicolescu, 2000; Morin, 2002, 2003; Santos, 2008).
Edgar Morin (2002, p. 135) observa que essa temática não é uma exclusividade do momento histórico atual, pois o “[...] desenvolvimento da ciência ocidental desde o século 17 não foi apenas disciplinar, mas também um desenvolvimento transdisciplinar”. No entanto, nesse primeiro momento, a transdisciplinaridade ocorria no sentido cooperativo entre alguns campos da ciência, como a matemática e a física. Isso acabou levando à hegemonia do paradigma moderno: neutralidade, matematização dos fenômenos, separação entre sujeito e seu objeto, racionalização.
O autor destaca que é necessário pensar numa nova transdisciplinaridade, num paradigma que permita distinguir, separar, opor e dividir relativamente as áreas científicas, mas que possa fazê-las interagirem sem operar através da redução e da fragmentação. Na ótica moriniana, aturar na transdisciplinaridade não significa destruir completamente as disciplinas, pois a existência delas é justificável, desde que mantenham um campo de visão que reconheça e conceba a existência das ligações e das solidariedades (Morin, 2003).
Nicolescu (2000, p. 12) discorre que “[...] a transdisciplinaridade se interessa pela dinâmica gerada pela ação de vários níveis de realidade ao mesmo tempo”. A compreensão de tal dinâmica passa fundamentalmente pelo conhecimento disciplinar, uma vez que os saberes gerados pela pesquisa disciplinar, com suas especialidades, podem ser reconstruidos pelo conhecimento transdisciplinar. Desse modo, as pesquisas disciplinares e transdisciplinares não podem ser vistas como antagonistas, e sim encaradas como complementares.
Outro pensador que discute o tema é Santos (2008). Para ele, a transdisciplinaridade significa transgredir a lógica da não contradição, articulando os contrários: sujeito e objeto, subjetividade e objetividade, matéria e consciência, simplicidade e complexidade, unidade e diversidade. O prefixo “trans” indica o saber que está entre as disciplinas, através delas e além de qualquer disciplina, ao mesmo tempo.
Apesar da defesa árdua feita por seus apoiadores e da busca por avanço que essas propostas inter, multi e transdisciplinares portam consigo, esse tema carece de uma reflexão materialista e histórica. A discussão das relações do tema com as forças produtivas de nossa sociedade é pouco enfatizada, muitas vezes até omitida, pelos autores ligados aos temas da não disciplinaridade.
Acredito que é necessário esse tipo de compreensão do tema, pelo fato de perceber que a historicidade dos fatos sociais consiste essencialmente na exploração da multiplicidade de determinações que os produzem (Marx, 1996, 2004, 2008, 2011b). Assim sendo, a interdisciplinaridade e suas variantes devem ser estudadas com foco em uma práxis transformadora.
Buscando referendar seu materialismo histórico e dialético, defendendo que o movimento da história produz as relações sociais, Marx e Engels (2007, p. 444) lançam mão das seguintes palavras:
O conteúdo propriamente dito de todos os sistemas que marcaram época corresponde às necessidades do tempo em que surgiram. Na base de cada um deles está todo o desenvolvimento pregresso de uma nação, a conformação histórica das relações de classe com suas consequências políticas, morais, filosóficas e demais.
Marx busca na filosofia dialética a sua visão materialista e histórica como forma de se contrapor ao pensamento mecanicista e super especializado. Nesse sentido, para o método dialético marxista a transformação da sociedade é o problema central dessa perspetiva epistemológica, o qual trata de desenvolver a essência prática da teoria a partir da relação que constitui com sua matéria.
O próprio Marx é explícito ao adotar essa perspetiva revolucionária da ciência como método filosófico e investigativo. É na práxis que o homem deve transformar o mundo objetivo: “[...] o conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, base real sobre a qual se ergue um edifício (Uberbau) jurídico e político [...]”2 (Marx & Engels, 1978, p. 137).
Assim sendo, denotamos que o processo de ação e (re)construção educativa dos saberes, como parte da superstrutura social, são relacionados à estrutura material (Marx & Engels, 1978, 1992, 2007). Dessa forma, ao estudar um determinado assunto escolar, isto significa que tenhamos que abandonar as múltiplas determinações que o constituem, pois assim não perdemos o tecido da totalidade de que ele é parte indissociável. E é por esse motivo que apresento, a seguir, uma visão marxista sobre o tema e suas relações com as formas produtivas.
Forças produtivas, a origem da fragmentação do ser e interdisciplinaridade
Tendo como base a rede epistemológica, axiológica e gnoseológica da obra marxista, pode-se destacar que existe uma afinidade entre o desenvolvimento das forças produtivas e a ampliação da demanda social/acadêmica por uma formação de trabalhadores de caráter menos fragmentada (multi, trans ou interdisciplinar).
Seguindo esses fundamentos, é relevante destacar que a visão de interdisciplinaridade se restringe ao sentido cognitivo da formação humana, haja vista que no atual sistema de produção sociometabólico do capitalismo não há espaço para o desenvolvimento do ser humano em sua plenitude. A mão invisível do mercado lança sobre os homens e as mulheres uma nova necessidade para a conservação da acumulação de riquezas nas mãos de poucos e para a autovalorização do valor: a formação multiespecializada. Seria esse o motivo de se ampliar a demanda por uma educação mais complexa, interdisciplinar, não fragmentada?
Alguns autores, como Costa (2012), Frigotto (2008), Mészáros (2008), Mueller et al. (2008), além de Tonet (2009, 2013), com os quais concordo, começaram a discutir uma resposta para essa questão e acreditam que existe uma relação entre as demandas do mercado capitalista e a educação.
Essa visão é explicitada por Mueller et al. (2008) ao advertirem que existe uma relação dialética e tensional entre mercado e educação escolar, como é o caso das instituições de ensino que sucumbem à determinada axiologia e teleologia, cujos horizontes convergem para o pragmatismo utilitarista, decorridos da visão e da prática do mercado capitalista.
O pensamento hegemônico atual é o da integração e flexibilidade. Nessa visão dominante, são feitas exigências à escola no sentido de que os egressos tenham uma visão interdisciplinar e cooperativa, e que sejam capazes de cumprir individualmente afazeres que antes eram conferidos a múltiplos especialistas. Com isso, os detentores do capital podem produzir mais gastando menos, à custa do trabalho humano de seus empregados, transformados em lucro (Mueller et al., 2008).
Indo ao encontro dessa visão, seguindo essa linha de pensamento crítico, Costa (2012, p. 25) aponta para a necessidade de se buscar compreender a interdisciplinaridade na formação sócio-histórica do conhecimento, a qual “[...] é fundada no caráter dialético da realidade social que é, una e diversa e na natureza intersubjetiva de sua apreensão”. Essa perspetiva é ignorada pelos defensores do pensamento interdisciplinar (visão não dialética da educação).
Acompanhando a discussão, Ivo Tonet (2009, 2013) aponta algumas limitações das atuais perspetivas não dialéticas sobre o tema da interdisciplinaridade. O pensador inicia sua crítica alegando que algumas visões pedagógicas abordam a interdisciplinaridade como um fenômeno que brotou isoladamente da sociedade, isto é, ponderam o tema como se ele fosse puramente um resultado natural do processo social.
Tonet aponta ainda limitação do ponto de vista não marxista sobre a interdisciplinaridade, admoestando que transporta as correntes de uma educação não crítica, capaz de levar homens e mulheres a ficarem acorrentados em um ensino meramente técnico. Segundo o autor, isso pode acontecer porque “[...] não percebe, ou não aceita a relação de dependência ontológica do conhecimento em relação às condições materiais” (Tonet, 2009, p. 3), por mais que se faça referência ao processo histórico que levou à fragmentação do saber.
Desta feita, o ser acorrentado nessa visão finda por atribuir ao saber uma autonomia que ele de fato não tem, abordando o tema como um processo que se dá no interior do próprio saber, excluindo, assim, seus aspetos sociais e políticos. Não obstante, as visões hegemônicas sobre o tema têm como fundamento a autonomia do saber, mas não tomam “[...] como ponto de partida uma crítica do próprio processo material de fragmentação. Sua teorização se limita a buscar superar a fragmentação pelas vias epistêmica, pedagógica ou comportamental” (Tonet, 2009, p. 4).
Críticas não dialéticas à fragmentação esquecem que essa característica advém da gênese histórica de nossa atual sociedade de classes, em especial, da divisão do trabalho. A esse respeito, Marx (2004, p. 149) destaca: “A divisão do trabalho é a expressão nacional-econômica da sociabilidade (Gesellschaftlichkeit) do trabalho no interior do estranhamento”.
Parafraseando Marx (1996)3, o educador progressista, escravizado no atual modelo de sociedade, não deve exagerar a seus próprios olhos sua ação interdisciplinar como o resultado final de suas lutas diárias. Aquele que busca uma relação não dialética entre as disciplinas e que não defende uma sociedade comunista não pode esquecer que luta contra os efeitos da super especialização do ser humano e de seus sabres, mas não contra as causas desses efeitos. A interdisciplinaridade funciona como um paliativo, no entanto não como a cura dessa enfermidade.
Outrossim, mais uma fragilidade das propostas não dialéticas é sua ênfase na individualidade, isto é, no ser singular. Tal perspetiva acaba por esvair-se do processo histórico atual, da experiência histórica, da desigualdade social, dos meios de produção, e, sobretudo, da práxis política. Sobre esse aspeto, a pluralidade epistemológica e a interdisciplinaridade não mudam o mundo sozinhos. Acredito que a transformação ocorrerá quando seus atores/autores se apossarem desses saberes para se contraporem às desigualdades socioambientais.
Seguindo a linha de crítica marxista, trago para a discussão a ideia posta por Marx e Engels em A ideologia alemã (2007), ao admoestarem que os pensadores idealistas (não dialéticos) se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras. Contudo, eles esquecem que o ponto mais importante é transformar o mundo em que vivemos. Dito com as palavras dos fundadores do materialismo dialético e histórico:
A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. Na prática tem o homem de provar a verdade [...] (Marx & Engels, 2007, p. 537).
Para o materialismo histórico e dialético, a luta de ideias é muito importante para orientar as ações concretas dos homens, acima de tudo para se fazer a revolução. Para o pensamento marxista, o mundo das ideias, exclusivamente, como proposto por alguns dos adeptos das teorias da interdisciplinaridade, não pode ser a base para a mudança radical da sociedade. Não se pode considerar que o atual estado da sociedade, de modo algum, “[...] tão só como se fossem fantasmagorias ‘ideais’, como simples ‘exteriorizações da autoconsciência’, e querer destruir a alienação ‘material’ apenas mediante uma ação ‘espiritualista interior’” (Marx & Engels, 2011a, p. 99, grifo dos autores).
Usando o argumento marxista, pode-se reivindicar que sem ideias revolucionárias não há ações revolucionárias; entretanto, sem ações revolucionárias, as ideias revolucionárias não têm qualquer eficácia. Dessa forma, para que as ideias revolucionárias possam se materializar em ações transformadoras é imperativo que elas espelhem adequadamente as necessidades e possibilidades de cada espaço/tempo histórico.
Dito isso, penso ser fundamental encarar o tema da não disciplinaridade em sua perspetiva histórica. Sobre o princípio da historicidade, Marx (2008) mostra que ele é a chave para compreender o contexto material da sociedade.
A sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais desenvolvida, mais diferenciada. As categorias que exprimem suas condições, a compreensão de sua própria organização a tornam apta para abarcar a organização e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva arrastando, enquanto que tudo o que fora antes apenas indicado se desenvolveu, tomando toda sua significação etc. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior, não pode, ao contrário, ser compreendida senão quando se conhece a forma superior. A economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc., porém, não conforme o método dos economistas, que fazem desaparecer todas as diferenças históricas e veem a forma burguesa em todas as formas de sociedade (Marx, 2008, p. 264).
Assim sendo, acredito que é necessário ter uma visão mais crítica sobre o papel da interdisciplinaridade na escola. É preciso indagar se iremos formar um trabalhador conectado, flexível, interdisciplinar, meramente porque esta é a demanda que a mão invisível do mercado destina às instituições de ensino.
Seguindo essa linha de pensamento marxista, a seguir irei expor a categoria totalidade, a privilegiada que é capaz de suplantar a divisão do ser e do conhecimento.
Totalidade - única perspetiva capaz de superar a fragmentação
Abraçando a crítica marxista, trago ao diálogo as ideias do ponto discutido anteriormente. A falta de abordar uma relação entre o conhecimento disciplinar e a produção material torna as propostas das visões não dialéticas sobre o tema não disciplinar (multi, trans e interdisciplinar) deveras limitadas.
Ademais, elas rescindam a dependência ontológica do conhecer em relação ao ser. Tido de outra forma, por mais que façam menção ao processo histórico que induziu à fragmentação do conhecimento, tais propostas não abrangem o arrolamento de dependência ontológica do saber em relação às condições materiais da existência humana. Portanto, terminam por atribuir ao conhecimento “[...] uma autonomia que ele de fato não tem, tratando, assim, a fragmentação do saber como um processo que se dá no interior do próprio saber” (Tonet, 2013, p. 729).
A atual tentativa de superar o pensamento e as práticas disciplinares, apesar do avanço em direção a uma visão de mundo mais ampla e menos estilhaçada, exclui os condicionantes materiais vinculados à necessidade atual do sistema de produção capitalista.
Mesmo que alguns autores considerem que o tema político-educativo da não fragmentação do real e da superação da limitação disciplinar tenha ganhado força após a segunda metade do século XX (Fazenda, 2002, 2008, 2009), acredito em Frigotto (2008) quando revela que já havia em Marx e Engels uma preocupação em criticar a fragmentação do mundo.
Ressalto que, apesar de não terem escrito uma obra voltada exclusivamente para a educação, Marx e Engels possuem uma vasta publicação que se relaciona à temática. Inclusive, um compêndio desses escritos está disponível na coletânea Textos sobre educação e ensino (Marx & Engels, 1992, 2011b).
Tomando como base a vida concreta dos proletários e o estudo sobre a economia política, já encontrávamos na obra dos pais do materialismo histórico e dialético uma preocupação, ainda que embrionária, em superar a lógica disciplinar. No marxismo, o real é visto como totalidade, isto é, emprega a crença de que o todo é mais que a soma das partes isoladas, resgatando a relação dialética entre todo e partes.
Considerando esses pontos, uma categoria fundamental para a dialética marxista é a totalidade. Para iniciar a explanação sobre esse princípio, trazemos as palavras utilizadas por Marx (2008, p. 258-259) em O método da economia política:
O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso. Aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, e não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida, e, portanto, também, o ponto de partida da intuição e da representação.
A totalidade, do ponto de vista marxista, é uma síntese das múltiplas formas que possui um objeto concreto, incluindo sua historicidade. Essa categoria pressupõe que o conhecimento das partes e do todo conjetura uma reciprocidade, pois o que confere representação tanto ao todo quanto às suas diversas partes que o constituem são determinações, isto é, inter-relações, que perpassam e completam a transversalidade do todo.
Assim, não pode haver conhecimento das partes sem o todo, como ocorre na perspetiva disciplinar/fragmentária, o que gera uma amputação traumática dos membros que o constituem, ocasionando a morte da totalidade. As partes só podem ser compreendidas se a análise investigativa/expositiva percorrer o caminho da transversalidade essencial do todo. Ao andar por esse caminho, é possível chegar às terras ensolaradas da totalidade, cujos raios de luz dissipam a escuridão da fragmentação.
A ideia de totalidade compreende a realidade em suas íntimas características e suas conexões internas, debaixo da aparência e da causalidade linear dos fenômenos. Essas ligações são necessárias para a dialética, já que essa última se dispõe em oposição ao positivismo, o qual considera a causalidade dos fenômenos de forma simplória, não chegando a atingir a apreensão dos processos totalizantes da realidade.
Tendo isso em mente, podem-se rebater as críticas feitas por alguns autores ao pensamento marxista, as quais indicam que este se limita à centralidade dada por Marx à categoria trabalho, à luta de classes e às relações das forças produtivas (Deleuze & Guattari, 1995; Morin, 2003). Isso é um equívoco, pois a totalidade é central no método dialético marxista, sendo que nele existe a indissociabilidade entre as múltiplas relações da vida social, exigindo que se situe o cultural e o político no modo de produção e suas inter-relações características, evitando análises atemporais e não históricas.
Trazendo a perspetiva de totalidade para a educação, e abstraindo essa teoria marxista para o ensino formal, fica claro que a categoria marxista de totalidade traz consigo uma proposta político-educativa de ir para além das disciplinas, como forma de superar a fragmentação, de construir as múltiplas determinações e de avançar rumo a uma nova forma de sociedade.
Recorro aos argumentos de Frigotto (2008, p. 45), ao apontar que a obra marxista permite trazer a discussão educativa para dentro do “[...] plano do movimento do real e não do movimento da razão (como determina o racionalismo e idealismo)”. Do ponto de vista da desigualdade que impera no globo, percebemos que a construção do saber e sua socialização (ou negação) para determinada classe não é apartada do conjunto de práticas que configuram os seres humanos num determinado tempo e espaço. Na verdade, é nelas que se encontra a sua efetiva materialidade histórica.
Daí porque também é imperativa a necessidade de refazer a totalidade perdida, através da reaproximação com o pensamento dos fundadores do materialismo histórico e dialético.
Comungando com a argumentação de Tonet (2009, 2013), penso que não existe possibilidade de superar a fragmentação do conhecimento produzido pelos seres humanos por um caminho meramente epistemológico e nem mesmo por um empenho comportamental-pedagógico.
Dito de maneira mais enfática: “[...] poderíamos afirmar que a crítica da interdisciplinaridade não é a crítica da interdisciplinaridade, mas a crítica do mundo que produz e necessita dessa forma de produção do saber” (Tonet, 2013, p. 730).
Adotando a posição do marxismo, acredito que é a totalidade - e não as abordagens multi, trans ou interdisciplinares - que deve ser encarada como fundamento de uma práxis político-pedagógica e contextualizada. Isso indica que ela não pode ser usada, como vemos em alguns casos, longe dos sujeitos históricos concretos, afastada da luta de classes (ou até mesmo negando-a), separada da estrutura capitalista, dos meios de produção, do mundo quotidiano, longe do trabalho e despolitizada.
Pelo contrário! Sem esses aspectos não pode haver educação verdadeiramente emancipatória. Tentar tecer uma teia educativa sem ligar os fios que compõem esses pontos é costurar um tecido vazio de significado, uma teia de vácuo que tende a continuar propagando a atual sociedade desigual em que vivemos. Nesse sentido, compreendo que a filosofia marxista pode contribuir para a discussão desse tema. Isso fica claro quando reconhecemos que os processos educativos são dialeticamente constituídos nas e pelas relações sociais.
Assim, acreditamos que refletir uma forma de ensino que supere as disciplinas é compreender sua práxis, na ação pedagógica política e histórica. Trazendo os elementos da filosofia marxista, somente a concepção de ensino dialético e revolucionário traz uma visão capaz de modificar a nossa atual educação fragmentada, pois ela “[...] não separa em nenhum momento teoria (conhecimento) da prática (ação), do qual a teoria não deve ser tomada como um dogma irrefutável, mas deve orientar, servir de modelo para a ação” (Costa, 2012, p. 23).
Considerando a corrente de saber-ser da interdisciplinaridade (Fazenda, 2008), aquela relacionada à ação docente e à formação do ser interdisciplinar, acredito que o pensamento não disciplinar deve ser encarado como uma práxis que visa buscar a totalidade concreta dos fenômenos que circundam os atores/autores das instituições educativas. Ao encarar a historicidade dos fatos sociais humanos, abre-se espaço para a exploração da multiplicidade de determinações que os produzem. Sobretudo, a totalidade é que a categoria transformadora capaz de reformular os caminhos do ser e de seus saberes.
Assim sendo, denoto que o processo de (re)construção e transmissão educativa dos saberes, como parte da superestrutura social, são relacionados à estrutura material. Dessa forma, ao estudar um determinado assunto, isto significa que tenhamos que abandonar as múltiplas determinações que o constituem, pois assim não perdemos o tecido da totalidade de que ele é parte indissociável.
Essa é uma visão dialética e histórica, pois reconheço que no atual cenário dominado pelo capital, esse sistema de produção sociometabólico exige a fragmentação do saber como um instrumento necessário à sua reprodução. Por isso, enquanto o capital for a força dominante, a fragmentação do saber será também a forma dominante deste.
Tomando como base os fundamentos do marxismo, acastelo a ideia de que é somente através de “[...] uma forma de sociabilidade comunista que se pode superar o caráter fragmentado do saber, pois um saber unitário deve ter na categoria da totalidade a sua categoria fundamental” (Tonet, 2009, p.11).
Ora, a efetiva superação da cisão entre os diferentes campos do conhecimento passa, fundamentalmente, pela transformação radical do mundo que deu origem e que precisa dessa forma de produção do conhecimento. O pensamento marxista é capaz de contribuir para essa superação.
Considerações finais
Diante das reflexões levantadas no presente estudo, penso que a teoria marxista traz grande colaboração para compreender - do ponto de vista histórico, materialista e dialético - a atual a discussão em torno do tema da inter, multi e interdisciplinaridade.
Se por um lado considero que as obras dos fundadores do materialismo histórico e dialético são extremamente relevantes para a educação, por outro lado compreendo que carece nas obras dos referidos pensadores um foco mais pedagógico. Diante disso, acredito que é preciso ampliar as construções marxistas em torno de uma pedagogia crítica e radical.
Essa é uma visão dialética e histórica, pois reconheço que no atual cenário dominado pelo capital, esse sistema de produção sociometabólico exige a fragmentação do saber como um instrumento necessário à sua reprodução.
Tomando como base os fundamentos do marxismo, acastelo a ideia de que é somente através de uma forma de sociabilidade comunista que se pode superar o caráter despedaçado do conhecimento, pois um saber unitário deve ter na categoria da totalidade a sua categoria fundamental.