Introdução
O direito à educação no Brasil é reconhecido como um direito fundamental social e detém de número expressivo de dispositivos legais (Arts. 205 a 214) em relação aos demais direitos sociais. Nesse contexto, ao se tomar a educação enquanto mediação na relação entre sociedade e democracia, chama a atenção entre os dispositivos constitucionais do direito à educação, a gestão democrática do ensino público, na forma da lei, artigo 206 (BRASIL, 1988).
Tal princípio, aliado a um projeto democrático assumido pelo Estado brasileiro desde os anos de 1980, traz para a cena os sujeitos integrantes da vida política em processo de correlação de forças sociais que se movimentam na disputa por um projeto educacional. As políticas públicas educacionais se forjam e se materializam no bojo das disputas por projetos distintos de sociedade, cujas contradições se fazem presentes, como é próprio da dinâmica social capitalista.
Deve-se, portanto, investigar in loco as resistências e enfrentamentos vivenciados em âmbito local no que diz respeito aos planos de educação e sua proposta de lei sobre a gestão democrática, visto o disposto no Art. 9º da Lei 13.005 de 24 de junho de 2014 que aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE) para o decênio (BRASIL, 2014).
Diante disso, o presente texto tem por objetivo analisar a regulamentação da Gestão Democrática da educação pública nos municípios da região Cone-Sul de Mato Grosso do Sul no contexto dos Planos Municipais de Educação, quais sejam: Eldorado, Iguatemi, Itaquirai, Japorã, Juti, Mundo Novo e Naviraí.
No tocante à metodologia, trata-se de uma pesquisa qualitativa, cuja materialização envolveu a pesquisa bibliográfica e documental e realização de entrevistas3, com Secretários Municipais de Educação e Presidentes dos Sindicato Municipal dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul dos referidos municípios.
A fim de cumprir o disposto no artigo 8º do PNE (2014-2024), estados, Distrito Federal e os municípios deveriam elaborar ou adequar seus respectivos planos de educação em consonância com o PNE, no prazo de um ano após sua aprovação (BRASIL, 2014). Para Fernandes e Gouveia (2017) o fato dos entes subnacionais terem que aprovar seus planos decenais já faz parte da materialização do próprio PNE (2014-2024).
Além de dispor que os entes federados deveriam elaborar seus respectivos planos decenais de educação o PNE (2014-2024) estabelece, dentre outras coisas, que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão aprovar leis específicas disciplinando a gestão democrática da educação pública nos respectivos âmbitos de atuação, no prazo de 2 (dois) anos contado da publicação desta Lei, adequando, quando for o caso, a legislação local já adotada com essa finalidade (Art. 9º BRASIL, 2014).
Como se observa, o PNE (2014-2024) reafirma a necessidade de se observar o princípio da gestão democrática e regulamentá-la, conforme já evidenciado no Art. 206 da CRFB/1988, Art. 3º e 14 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Além de elencar em seu Art. 2º que a promoção do princípio da gestão democrática da educação pública é uma diretriz, o PNE (2014-2024) destina a Meta 19 com vistas a aprofundar o tema.
A regulamentação da gestão democrática da educação em municípios do cone-sul do estado de Mato Grosso do Sul
O Brasil (PINTO, 2014) e o estado de Mato Grosso do Sul (MS, 2018) é constituído, predominante, por pequenos municípios, aí situados àqueles até 50 mil habitantes. Os dados indicam que a soma dos municípios com até 20 mil habitantes corresponde a 70,36% dos municípios brasileiros. Essas informações acerca dos tamanhos dos municípios são relevantes uma vez que afetam sua estrutura, receita e, consequentemente, o desenvolvimento de suas atividades visto atrelarem-se às receitas federais
Além disso, a situação se mostra crítica nos municípios com até 50 mil habitantes (89% do total e 36% da população), nos quais os gastos com educação, cultura, saúde e saneamento já respondem por 54% da sua receita bruta (e cerca de 70% da sua receita líquida de impostos). (PINTO, 2014).
No contexto do estado de Mato Grosso do Sul, os municípios com mais de 50 mil habitantes representam menos de 10% da totalidade. Nos municípios lócus da pesquisa, o número total de habitantes está entre 10 a 20 mil habitantes, conforme tabela a seguir:
Município | Ano de instalação | População estimada (2018) |
---|---|---|
Eldorado | 1976 | 12.305 pessoas |
Iguatemi | 1963 | 15.977 pessoas |
Itaquirai | 1980 | 20.905 pessoas |
Japorã | 1993 | 8.976 pessoas |
Juti | 1989 | 6.638 pessoas |
Mundo Novo | 1976 | 18.256 pessoas |
Naviraí | 1963 | 54.051 pessoas |
Fonte: Elaboração própria com base em IBGE-Cidade (2019).
A Região Cone-sul do MS é constituída por sete municípios banhados pela Bacia do Rio Paraná e grande parte do seu território está localizada às margens do Rio Paraná, cujas exceções são os municípios de Japorã que faz divisa com a República do Paraguai, Iguatemi, que faz divisa com a Região Sul-fronteira e o município de Juti, que se localiza na parte baixa da Região da Grande Dourados no Centro-Sul do Estado de MS. Possui a maioria dos seus municípios limítrofes com o rio Paraná, com características físicas parecidas.
Os municípios circunscritos a região Cone-Sul de MS foram instalados pós anos de 1960. Embora se reconheça as singularidades existentes na criação e desenvolvimento histórico-cultural desses espaços, faz-se importante mencionar, ainda que de modo breve, o contexto e algumas condições político sociais comuns a esses municípios localizados no extremo sul de MS.
A constituição dos municípios da região Cone-Sul de MS – sobretudo os aspectos relacionados ao papel/espaço ocupado na economia e política sul-mato-grossense- não deve desconsiderar o próprio processo de formação4 do estado de Mato Grosso do Sul, cujo período histórico atual, em sua complexidade, reconhece a região enquanto produtora de commodities com vistas ao mercado externo.
Diante disso, as análises concernentes à gestão democrática da educação pública exigem uma reflexão acerca dos encontros e distanciamentos correlatos ao exercício da autonomia municipal no contexto dos planos decenais de educação. Tendo em vista a multiplicidade de atores e realidades presentes no contexto dos municípios da região Cone-Sul do estado de MS, analisa-se a regulamentação da gestão democrática quanto à forma, conteúdo e processo, nos seguintes termos:
a) Forma: consideração dos títulos, capítulos e artigos que constituem a lei, constituindo-se em um nível preliminar de análise com vistas a perceber os distanciamentos e aproximações das leis que aprovaram os planos municipais nos respectivos municípios.
b) Conteúdo: verificar o conteúdo propriamente das leis. Leitura minuciosa de todo o conjunto legal a fim de estabelecer categoriais, com base na forma que o documento se apresenta, em especial à meta específica sobre gestão democrática – meta 19.
c) Processo: consiste na análise das entrevistas realizadas com vistas a perceber os enfrentamentos no tocante à elaboração do PME de modo geral e, em especial, da meta e estratégia sobre a gestão democrática em si.
A gestão democrática nos municípios do Cone Sul do estado de Mato Grosso do Sul – estratégias e práticas
No município de Eldorado, as estratégias elencadas no bojo da meta 19 versam sobre autonomia das unidades escolares, transparência das informações em geral e capacitação profissional com vistas à constituição de órgãos colegiados no município e as atividades correlatas. O envolvimento da comunidade escolar também figura nas estratégias, embora se note poucas indicações objetivas de implementação das ações e de regulamentação da gestão democrática no município. Além disso, chama a atenção o fato de que as estratégias não versam sobre a composição do grupo gestor da educação do município, no que se refere a forma de provimento ao cargo de secretário municipal de educação e de diretor escolar.
A meta sobre gestão democrática ela não teve essa gestão democrática. Nunca teve gestão democrática nas escolas municipais de Eldorado. Lá, o prefeito sempre indicou, entendeu? [...] Ou seja, tudo por indicação política, onde o diretor é apresentado porque é mais íntimo do secretário, do prefeito ou porque trabalhou na campanha do prefeito ou secretário. (SME, 2019).
A realidade exposta pelo representante do sindicato não difere da experiência de outros municípios brasileiros, cuja composição dos cargos relaciona-se com as barganhas e/ou troca de interesses e favores. Ao dispor na meta 19 do seu Plano que asseguraria as condições necessárias para efetivar a gestão democrática da educação, o município de Eldorado compromete-se legalmente e socialmente a viabilizar no contexto educacional do município o exercício da democracia, por meio de critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico para tanto.
Embora o texto aprovado afirme o compromisso em regulamentar a gestão democrática no município, o Secretário de Educação deixa evidente sua percepção acerca da desnecessidade de regulamento próprio:
Eu acredito que como está estabelecida hoje está funcionando. Eu acho que não há necessidade de mexer de imediato. E até mesmo por pessoas, você conseguir direcionar pessoas qualificadas porque nós estamos buscamos pessoas qualificadas para ocupar a gestão da escola, enfim, em todos os outros cargos. No passado o sindicato até bateu em cima da gestão, na gestão anterior eles bateram muito em cima pra eleição pra diretor, mas fica bem claro que é critério do prefeito definir isso (SME ELDORADO, 2019).
Diferentemente, ao passo que o Secretário Municipal de Educação percebe a regulamentação da gestão apenas à forma de provimento do diretor escolar e não vislumbra a necessidade imediata de alterar a sua forma, têm-se as percepções do Sindicato Municipal que se articulam de modo mais particular ao disposto no Plano Municipal de Educação do município, conforme segue:
A regulamentação da gestão democrática ela é essencial. Quem deve escolher seus diretores é a comunidade escolar, são os professores, os alunos, os pais dos alunos, os servidores em geral, a comunidade interna da escola e também os pais que fazem parte da parte externa. Essa regulamentação tem que vir agora de imediato, talvez aconteça isso nos próximos anos, mas eu acho complicado, uma vez que o prefeito muito menos quer fazer concurso público, porque quer manter o cabresto no pessoal, nos professores, para poder votar para ele [...](SME ELDORADO, 2019)
No bojo da Secretaria Municipal de Educação de Eldorado resta evidente que as atividades concernentes à forma de composição do grupo de diretores escolares vinculam-se, em contexto atual, exclusivamente à critério do chefe do Poder Executivo Municipal. Tal posicionamento encontra resistência no âmbito das considerações do Sindicato, na medida que em a indicação ao cargo de diretor de escola apresenta-se, de certo modo, a manutenção do poder local, instrumentalizado por meio das barganhas políticas.
O município de Iguatemi elenca diversos instrumentos importantes no tocante à gestão democrática da educação pública, dentre os quais está a constituição de conselhos e fóruns de educação, além do estímulo à participação da comunidade local no contexto escolar. Em diversas estratégias o município reafirma os compromissos de estímulo à autonomia pedagógica, administrativa e financeira das unidades escolares, além de prever mecanismos para acompanhamento do PME, formação dos conselheiros, dentre outras ações que visam o envolvimento social na discussão e proposição das políticas educacionais do município.
No bojo das estratégias destinadas à meta 19, têm-se já no início do rol, o compromisso de regulamentar a gestão democrática no município, por meio de legislação específica. Acerca disso, a Secretária Municipal de Educação de Iguatemi dispôs que:
[...] o município sempre teve a promessa de fazer eleição para os diretores. Sempre vinha esse compromisso com os professores, com a classe da educação sempre teve esse compromisso de eleição direta. [...] E ano passado que a gente elaborou a lei e daí ano passado foi a primeira eleição direta para diretores [...] alguns municípios questionaram: isso tem legalidade? Isso é legal? Isso não é? Pode ser feito? Tem que ser por indicação? Qual o caminho mais correto? [...] Mas, o que eu percebo na eleição direta que teve ano passado é que teve mais envolvimento dos pais [...] Então, esse envolvimento e o compromisso que o diretor tem a partir daí com os pais, porque ele foi eleito também pelos pais, eu acredito que tem uma cobrança maior em cima do diretores com isso eu acho que a comunidade acaba ganhando (SME IGUATEMI, 2019).
Da leitura do trecho acima, extrai-se à informação que o município criou legislação específica destinada à regulamentar a forma de acesso ao cargo de diretor das unidades escolares do município. No entanto, há que se destacar que a referida ação, embora represente um importante avanço no tocante à materialização da autonomia local, não abrange por si só, a complexidade dos demais instrumentos atinentes à gestão democrática da educação pública.
A eleição para diretor escolar no município de Iguatemi foi regulamentada pela Lei Municipal nº 2.144 publicada em 05 de novembro de 2018 que “Dispõe sobre o processo eleitoral para escolha de diretores nas unidades escolares da rede municipal de ensino e dá outras providências”.
A organização eleitoral, nos termos do art. 1º dispõe que a direção das unidades escolares da Rede Municipal de Ensino será exercida por diretores e vice-diretores, no prazo de três anos, escolhidos em eleição direta com a participação da comunidade escolar (profissionais da educação (efetivos e convocados) – peso 2; pais e alunos – peso 1), observadas as disposições dos art. 126 a 129 da Lei Complementar nº 018/ 2005 (Estatuto dos Servidores da Educação) e art. 9º da Lei nº 1.845/2015 (Plano Municipal de Educação).
Os requisitos para participar do pleito estão dispostos no art. 1º, §1º e dispõe que os candidatos deverão ocupar cargo efetivo da carreira do magistério da Prefeitura Municipal de Iguatemi, possuir formação em nível superior em licenciatura e comprovar três anos de efetivo exercício na educação, além de estar lotado e em exercício como docente na unidade escolar em que concorrerá ao cargo, sendo vedada à participação de professores convocados.
As atividades referentes à eleição serão conduzidas por Comissão Eleitoral Escolar, integrada por três profissionais da educação que terão como atribuição todas as atividades atinentes ao processo. Nos termos do parágrafo único do art. 17, o processo de gestão democrática ocorrerá de modo gradativo, sendo incialmente realizado nas escolas urbanas e posteriormente nas rurais.
Além das eleições para diretor das unidades escolares da rede municipal de ensino, o trecho supracitado da SME de Iguatemi retoma a discussão acerca da legalidade do provimento ao cargo de diretor por via da consulta à comunidade. Nota-se que mesmo com dúvidas no tocante a viabilidade e respaldo legal de tal ato no município de Iguatemi, a SME atendeu às exigências constantes no plano e realizou a primeira eleição direta do município.
Aliada à complexidade das eleições diretas para diretor escolar e legalidade da consulta à comunidade, têm-se a temática do envolvimento dos pais na rotina da escola e os reflexos de tal aproximação no âmbito da gestão educacional do município. O exercício do voto pela comunidade local reafirma ao gestor escolar a necessidade de que a condução dos trabalhos atenda, de modo efetivo, aos anseios da comunidade em que se situa à unidade escolar.
Por certo, a confiança e cobrança no âmbito da escola reverbera para o contexto da SME que se vê compromissada a atender tais anseios, críticas e sugestões dos gestores e dos que ele representa. Nesse contexto, “quando você é eleito deve explicações, e você não pode jogar a culpa em outra pessoa porque você foi escolhido pra representar” (SME IGUATEMI, 2019).
Eu acho que isso que foi o ganho da educação. É uma maneira mais difícil de trabalhar, mais intensa, mas é a maneira que eu, pessoalmente, prefiro. E dá também uma segurança para o diretor, porque são três anos e ele não fica com aquele receio de ano que vem se mudar a secretaria, se mudar o prefeito eu mudo [...]. Então, eles estão se virando mais por conta (SME IGUATEMI, 2019).
As intermitências institucionais comumente presentes na rotina das secretarias municipais de educação podem ser minimizadas na medida em que há continuidade nos trabalhos, independente de quem ocupa os altos cargos do executivo. A duração decenal do PME contribui sobremaneira para que as ações em curso nos municípios não estejam à mercê das disputas eleitorais, cujos propósitos maiores não são, na maioria das vezes, o interesse coletivo.
Tal reflexão atrela-se à rotina escolar na medida em que um diretor eleito pela comunidade pode continuar exercendo suas funções sem temer mudanças pontuais e esporádicas, a depender de quem ocupa o cargo de secretário de educação do município. Não se trata de um instrumento ingênuo sem viabilidade prática na busca pela autonomia local. Ao contrário, reafirma-se como um importante instrumento social de exercício da autonomia na medida em que envolve à comunidade e profissionais na educação no que se refere à condução do espaço educativo.
Embora as eleições para diretores das unidades escolares municipais sejam um importante passo no tocante as ações em curso no município, pode-se observar que no contexto do PME de Iguatemi (2014-2024) a regulamentação à que se refere a meta 19 destinou-se exclusivamente à forma de provimento ao cargo, na medida em que não contemplou demais instrumentos necessários para o exercício da autonomia e, por certo, da regulamentação da gestão democrática no município.
No município de Itaquiraí, as estratégias destinadas à meta 19 no PME direcionam-se à várias dimensões historicamente refletidas no tocante à democratização da educação, tais como a implementação de eleição direta para diretores escolares, associações, conselhos e colegiados destacando a necessidade de constituição e viabilização para funcionamento. Importante destacar os anseios dos legisladores em relação a implantação de tais ações do ponto de vista das relações escolares (autonomia pedagógica e financeira, elaboração da proposta pedagógica, etc.) como também em âmbito da gestão educacional, comprometendo-se a criar o Conselho Municipal de Educação a fim de possibilitar ao município constituir-se enquanto um Sistema Municipal de Ensino.
Embora o conteúdo das estratégias constantes na meta 19 indiquem anseios pela materialização de relações mais democráticas no contexto educativo de Itaquiraí, é importante destacar algumas considerações acerca do processo concernente a elaboração da meta, na medida em que sinaliza contradições, sobretudo em relação ao CME conforme segue:
[...] em Itaquirai o que eu vejo é que se instituir o Conselho Municipal de Educação hoje é instituir na verdade um comitê politiqueiro porque o intuito deles não é a educação e sim a política. Então, por isso tem perpassado aí prefeitos e prefeitos e estão deixando quieto, não só eu enquanto gestora, mas o prefeito e eu participei de outras gestões no passado que também preferiram deixar em stand bye por conta dessa preocupação – eles não estão preocupados, principalmente alguns professores, que sempre querem participar desses segmentos, não para educação de qualidade, mas sim pra pegar no pé do prefeito, pra quebrar com a vida de tal diretor (SME ITAQUIRAÍ, 2019).
A busca pela autonomia municipal requer consciência dos sujeitos envolvidos sobre a existência de conflitos e disputas por projetos distintos de sociedade e, como é próprio das relações sociais participativas, reafirma-se como um exercício necessário a fim de minimizar as dicotomias em torno da política e educação. Embora se tenha consciência acerca das possibilidades advindas da/com a constituição de um CME, as lideranças do executivo municipal de Itaquiraí adiam tal exercício de autonomia, temendo conflitos e, sobretudo às formas de materialização de tais interesses na dinâmica educacional do município.
No bojo das contradições inerentes ao processo de constituição de um Sistema Municipal de Educação, há que se considerar outros condicionantes detidos, de modo mais particular, nas relações escolares. Os sujeitos que participaram da elaboração das estratégias supracitadas, reafirmaram o desejo de que a comunidade escolar participe das ações educativas, sejam elas atinentes à questões administrativas, pedagógicas e financeiras como também das relacionadas à elaboração, acompanhamento e avaliação da proposta pedagógica das escolas.
Ao longo das estratégias da meta 19, nota-se o anseio de que a comunidade itaquiraiense participe da escolha dos seus dirigentes das unidades escolares, por meio de consulta pública, aliada à avaliação de conhecimentos gerais e específicos no tocante à educação. Sobre as discussões ocorridas quando da elaboração da meta 19 do PME de Itaquiraí, faz-se necessário considerar que:
[...] teve alguns pontos que foram bem divergentes como por exemplo a eleição para diretor que foi uma das metas mais cobradas [...] o prefeito desde que entrou ele não fez eleição para diretor ainda. Nós estamos aí com uma briga com o sindicato, o sindicato quer que tenha, ele fala que dentro da Constituição Federal a indicação de diretor é do prefeito e não de eleição direta. Então, é uma meta que não está sendo cumprida a gestão democrática dos diretores das unidades por conta desse episódio que o prefeito não é a favor de eleição para diretor [...] (SME ITAQUIRAÍ, grifo nosso, 2019).
Recorrentemente, as justificativas acerca da legalidade das eleições para o cargo de diretor escolar figuram no contexto acadêmico, político e judicial brasileiro visto a complexidade do assunto e por envolver, de modo muito evidente, os conflitos e interesses subjacentes à condução do espaço escolar propriamente dito e da dinâmica social.
Semelhante aos demais municípios da região, o município de Japorã, elaborou seu plano decenal de educação dispondo sobre as intencionalidades para a educação do município, elencadas no rol das 20 metas e respectivas estratégias. A comissão organizadora do processo envolveu segmentos, predominantemente vinculados ao Poder Executivo Municipal.
As estratégias destinadas à gestão democrática no âmbito de Japorã direcionam-se aos instrumentos viabilizadores, tais como constituição de conselhos e correlatos, formação dos conselheiros, estímulo à participação da comunidade e regulamentação da gestão. Chama a atenção a ausência de estratégias específicas destinadas à gestão democrática no contexto das relações dos povos indígenas, uma vez que Japorã apresenta um número expressivo de aldeias. Desse modo, não se pode desconsiderar as especificidades no tocante à dinâmica do processo educativo no âmbito e escolar e de gestão desse grupo social presente no município.
No caso do município de Juti, os conteúdos dos dispositivos legais supracitados evidenciam o compromisso assumido no tocante a regulamentação da gestão democrática. Inicialmente, é importante registrar a referência que o texto faz no art. 10 à forma da lei nacional destinada a regulamentar a gestão democrática da educação pública. Há que se destacar os imperativos legais no tocante a esse assunto, uma vez que não há lei nacional que verse sobre o tema e, caso houvesse, Juti regulamentaria a temática no respectivo âmbito de atuação legal, observada as normas gerais emanadas da União.
O município apresenta o prazo de 2 (dois) anos para regulamentar a gestão democrática e, nos termos das disposições do PNE (2014-2024) e PEE-MS (2014-2024), alia tal regulamentação à critérios técnicos de mérito e desempenho e consulta à comunidade.
A compreensão acerca da gestão democrática no contexto das estratégias do PME de Juti abrange um direcionamento ao contexto escolar representada, sobretudo por meio das estratégias 19.1, 19.2, 19.3, que versam sobre o âmbito pedagógico das unidades escolares e a implantação/formação de conselhos escolares. Outro direcionamento diz respeito à autonomia das instituições, pois direciona-se a questões de recursos financeiros, prestação de contas e congêneres, nos termos das estratégias 19.4, 19.5, 19.6 e 19.7.
Nota-se que as prioridades elencadas nas estratégias concernentes à gestão democrática em de Juti direcionam-se, principalmente à mecanismos de maior autonomia financeira. O município em tela não constitui sistema próprio de ensino, não dispõe de Conselho Municipal de Educação e nos termos do seu PME, não elencaram a implantação de tais ações para a educação do município.
Embora a Lei Orgânica de Juti estabeleça em seu artigo 213 que o município criará o Conselho Municipal de Educação que terá entre outras incumbências, a de normatizar, orientar e acompanhar as atividades educativas vinculadas ao sistema municipal de ensino, nota-se a ausência de tais previsões no contexto do PME, notadamente nas disposições acerca da gestão democrática.
Há que se ressaltar também que as estratégias elencadas no referido município acerca da temática, não indicam possibilidades de práticas coletivas no contexto da gestão educacional, visto a inexistência de estratégias para tanto. Extrai-se, do texto legal mencionado, poucas indicações acerca das intencionalidades do município para com a regulamentação da gestão democrática da escola pública, reduzindo tal indicação a critérios técnicos e a consulta sem viabilizar, todavia, tais disposições.
A Lei Orgânica de Juti determina em seu artigo 118 que os Secretários Municipais ou diretores equivalentes, agentes políticos, e auxiliares do prefeito, serão escolhidos por ato discricionário. Desse modo, o Secretário Municipal de Educação, Cultura e Esportes do município e os referidos diretores das unidades escolares municipais compõem o grupo ocupacional de direção e assessoramento, cujo provimento se dá por comissão.
Nos termos do anexo II da Lei Complementar nº 023/2017 que versa sobre o Plano de Cargos e Carreiras dos servidores municipais de Juti, o requisito para ocupar tais cargos é possuir curso superior completo e/ou capacidade pública notória.
Não há legislação municipal específica destinada a regulamentar a vida funcional e demais assuntos concernentes aos profissionais da educação e, no contexto da meta 19, não se observa a operacionalização da consulta à comunidade e aos modos de aferição dos critérios técnicos de desempenho dos diretores escolares.
Em face dos dispositivos legais mencionados, nota-se um conflito de intencionalidades, na medida em que o texto da Lei Orgânica determina o acesso ao cargo por meio de ato discricionário do prefeito, enquanto as disposições do PME, embora sem indicações objetivas de como se daria, estabelece procedimentos de consulta e comprovação dos critérios técnicos e de mérito e desempenho.
Tais conflitos e demais intencionalidades subjacentes à elaboração das respectivas estratégias poderiam de certo modo, serem percebidas na análise do processo de elaboração do PME em Juti. Todavia, embora se tenha insistido no levantamento de maiores informações acerca do momento particular de construção por meio das entrevistas semiestruturadas, não se obteve resposta no tocante à concessão pelo responsável pela Secretaria de Educação no município. Em relação à percepção do representante sindical sobre isso, o município não possui sindicato local e os trabalhadores em educação estão filiados ao Sindicato do município de Caarapó, cuja entrevista não foi concedida.
No município de Mundo Novo, a primeira regulamentação atinente aos instrumentos viabilizadores da gestão democrática do ensino se deu pela Lei nº 393 de 1997, que dispôs sobre as normas para eleição direta dos diretores de escola regulamentando o artigo 101 da lei orgânica do município.
A legislação estabeleceu que a eleição para direção de escola será feita de forma direta, mediante votação secreta, com mandato de 02 anos, sendo garantida a participação dos pais, alunos, professores e funcionários administrativos no processo eleitoral no âmbito da unidade escolar.
Como requisito de acesso ao cargo era necessário ser licenciado, servidor efetivo no âmbito do magistério público municipal e possuir experiência na área educacional, por no mínimo 03 (três) anos de efetivo exercício. Em 2008, a Lei 712 alterou a redação dos artigos 2º e 3º da Lei 393 de 1997, e estabeleceu que a duração do mandato seria de 03 (três) anos, além de dispor sobre o instituto da reeleição, até então inexistente.
Um ano depois, em dezembro de 2009, a Lei nº 763 extinguiu a eleição direta para direção escolar da rede municipal de ensino, transformando-os em cargos comissionados, cujo Decreto Municipal nº 2.852 de 2007 que empossava a direção eleita em 2007 foi revogado. No contexto atual do PME de Mundo Novo, em relação ao cenário e a forma de composição dos dirigentes escolares, a Secretária Municipal aponta que:
Tem uma lei que fala que é um cargo comissionado. Não tem uma lei que fala de eleição. Até teve uma época que teve eleição, mas daí o pessoal do jurídico falou - como tem essa lei aqui que é um cargo comissionado, foi criado como cargo comissionado, pra poder ter eleição tem que fazer uma nova lei [...] Foi combinado com os professores que seria sempre um efetivo, mas indicado pela administração (SME MUNDO NOVO, 2019).
A meta 19, nesse contexto, retoma e evidencia o anseio do município para a implantação da eleição para direção das unidades escolares da rede municipal de ensino com a participação da comunidade escolar.
No caso do município de Naviraí, as estratégias destinadas à meta 19 relacionam-se ao fortalecimento de instrumentos de participação no município e indicam a constituição de outros, tais como o fórum municipal de educação. O estímulo à participação, bem como a viabilidade das atividades coletivas está presente em todo corpus, abrangendo aspectos de formação de conselheiros e a destinação de espaço físico adequado e correlatos com vistas à sua atuação.
A Rede Municipal de Ensino de Naviraí – REME, constituiu o Conselho Municipal de Educação, sob Lei nº 804 de 1996, como órgão consultivo, deliberativo, normativo e de assessoramento ao Poder Executivo com a finalidade de promover a política municipal de educação em consonância com as legislações federal e estadual. O Sistema Municipal de Ensino, por sua vez, foi instituído pela Lei nº 953 de 1999.
Ainda no contexto da década de 1990, Naviraí realizou eleições para diretores das Unidades Escolares e Conselho Escolar, normatização pelo Decreto nº. 043 de 1997, cujo pleito ocorreu em outubro de 1997 e neste mesmo ano, foram estabelecidas as atribuições do Conselho Escolar através da Resolução GEMED nº. 002/97. Com vistas a dar continuidade ao processo, o município prorrogou para três anos o mandato de diretores.
Em 2006 através da Resolução/GEMED nº 004 de 27/10/2006 as eleições diretas para diretores foram ampliadas para os centros integrados de educação infantil. Em 15 de dezembro de 2011, é aprovado o Estatuto dos Profissionais da Educação Básica do Município de Naviraí-MS, Lei Complementar nº 110, que estabelece no capítulo V, título VIII, art.97 que as eleições direta para diretores das unidades escolares ocorrerá a cada 03 (três) anos, cuja função de diretor será promovida por critérios técnicos de mérito, desempenho e participação da comunidade escolar através de eleição direta, regulamentada pela Gerência Municipal de Educação, Cultura e Esportes em legislação própria e nomeada através de ato do Poder Executivo.
Desde então, o município realiza periodicamente as eleições para diretores e conselhos escolares em todas as unidades escolares da Rede Municipal de Ensino. O Decreto nº 42 de 14 de maio de 2019 evidencia em seu art. 2º que a administração das unidades escolares será exercida por duas instâncias: Diretor e Conselho Escolar, cujo art. 4º dispõe que ambos integram a direção colegiada, instância máxima de decisão na Unidade Escolar
A composição da direção colegiada das unidades escolares da Rede Municipal de Ensino de Naviraí apresenta-se como importante instrumento de gestão democrática em âmbito local. Percebe-se que a dinâmica de constituição do grupo envolve segmentos escolares e lhes oportuniza a participação na dinâmica escolar, na medida em que se compartilha a gestão entre os representantes eleitos.
Sobre esse histórico de envolvimento local para definição dos dirigentes escolares, a representante do Sindicato Municipal dos Trabalhadores em Educação no município afirma
[...] Eu acho de extrema importância preservação dessa gestão porque o dia que parar de ter essa gestão democrática e virar indicação, vira muita política, e tudo que vira só política ela não releva as qualidades do funcionário, ela não coloca, investir na capacidade do funcionário, então perde o sentido da educação. Educação tem que ser uma coisa de valorização do funcionário, valorização do saber, da profissionalização do funcionário. E essa gestão democrática tem que sim permanecer e cada dia mais ficar efetiva. Ao meu ver, tem que continuar (SME NAVIRAÍ, 2019).
Em face das disposições acima, observa-se que o município de Naviraí regulamenta instrumentos da gestão democrática, em especial a forma de composição do grupo da gestão escolar, cuja legislação correlata refere-se às eleições diretas para diretores e conselho escolar das unidades escolares da rede municipal de ensino.
Tal prática ocorre antes mesmo da determinação legal do Plano Municipal de Educação do município (2014-2024) e, nos termos da meta 19, contempla à consulta a comunidade escolar, embora não apresente de modo objetivo quais os critérios técnicos com vistas a aferir o mérito e desempenho que se espera dos que almejam ocupar à direção das unidades escolares.
Considerações finais
Diante das reflexões realizadas a partir da literatura analisada e dados de pesquisa levantados concernentes a complexa relação em que se situa a gestão democrática nos municípios da região Cone-Sul de MS, nota-se que a regulamentação da gestão democrática no contexto dos Planos Municipais de Educação dos municípios da região Cone-Sul de MS, manifesta-se como instrumento jurídico-normativo e sócio-político em âmbito local.
Enquanto instrumento jurídico-normativo há o compromisso por parte dos referidos municípios em regulamentá-la, consubstanciada em leis que aprovaram os respectivos planos de educação para o decênio. Enquanto instrumento sócio-político, por sua vez, predomina, embora com ressalvas, os anseios do Poder Executivo Local, sobretudo no que concerne à forma de composição do quadro de diretores escolares, em detrimento do compromisso jurídico-legal assumido, no tocante às metas e estratégias destinadas à gestão democrática da educação.
A análise da gestão democrática da educação pública no contexto do monitoramento e da avaliação dos planos decenais de educação requer uma postura investigativa a fim de situar esse fenômeno no bojo complexo de relações sociais e institucionais em que a política educacional se forja e se materializa, nas disputas por projetos de sociedade e de educação. O percurso reflexivo, nos termos dos capítulos apresentados, permite, portanto, realizar algumas considerações em relação ao planejamento educacional em âmbito local sul-mato-grossense e sua relação com a gestão democrática da escola pública.
Os municípios circunscritos a região Cone-Sul de MS objeto de análise detém de elementos comuns, sobretudo no tocante a sua organização econômica e social. São municípios pequenos (extensão de terra e densidade demográfica) e desenvolvem, predominantemente, atividades econômicas ligadas à agricultura e pecuária, fortemente desenvolvidas no estado de MS em geral.
Tendo em vista as singularidades dos municípios da região Cone-Sul do MS, analisou-se a regulamentação da gestão democrática no contexto dos planos municipais de educação quanto à forma, conteúdo e processo. No que se refere a forma dos planos decenais de educação desses municípios, há congruência formal em todos eles. Capítulos, títulos e artigos que constituem o texto legal destinam-se a temáticas presentes no PNE (2014-2024) e PEE-MS (2014-2024) cujos distanciamentos referem-se em relação a prazos e percentuais.
No tocante ao conteúdo da meta 19 destinada a gestão democrática, as estratégias versam sobre autonomia das unidades escolares, transparência das informações em geral e capacitação profissional com vistas à constituição de órgãos colegiados no município e as atividades correlatas. O envolvimento da comunidade local também figura embora se note poucas indicações objetivas de implementação das ações e de regulamentação da gestão democrática nos municípios, sobretudo no âmbito das secretarias municipais de educação.
Quanto ao processo concernente à regulamentação da gestão democrática nos municípios, alguns argumentos/tensionamentos são comuns, sobretudo em relação à forma de provimento do diretor escolar e, dentre as formas, está o questionamento em torno da legalidade das eleições com participação da comunidade.