Introdução
É consenso entre os especialistas que os anos de 1990 foram marcados pela implantação, em diferentes países ocidentais, de reformas nos sistemas de ensino. As políticas em desenvolvimento, a partir de então, atuam num processo de remanejar os poderes centrais para outras instâncias regionais e locais, permitindo maior autonomia política, financeira e administrativa. O princípio mobilizador é o de que seria preciso conferir maior poder para os que estão próximos dos cidadãos e de suas necessidades (LOBO, 1990).
Contudo, essa autonomia e descentralização não quer dizer que os governos renunciaram à prerrogativa de continuar definindo os rumos dos sistemas de ensino. A relação entre autonomia local e controle dos sistemas adquire novos contornos. Neste contexto, as definições curriculares pelos poderes regionais e locais, por meio de suas equipes profissionais, produzem abordagens particulares, amparadas em diretrizes definidas pelo poder público ao qual se subordina.
Neste artigo, objetivamos analisar a arte enquanto disciplina escolar que ocupa um lugar feito de prescrições que intencionam regular a sua prática. A pergunta norteadora é: Como se combinam as diferentes diretrizes que regulam a disciplina de arte: linguagem teatro no currículo formal do município de Maringá?
O recorte temporal se faz a partir da publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), lei 9.394 de 1996, momento em que se regulamenta a obrigatoriedade da disciplina de arte na educação básica, e finaliza com a publicação da Lei 13.278/2016 que inclui as artes visuais, a dança, o teatro e a música nos currículos dos diversos níveis da educação básica enquanto linguagens obrigatórias.
As fontes de investigação foram os seguintes documentos oficiais: LDBEN; Parâmetros curriculares nacionais: arte (PCNs/Arte); Diretrizes curriculares da educação básica: arte, do Paraná; Ensino fundamental de nove anos: orientações pedagógicas para os anos iniciais, do Paraná; Currículo para a educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, do município de Maringá; e a Lei 13.278/2016. Além destes, foram analisados os seguintes documentos internacionais: Roteiro para a educação artística: desenvolver as capacidades criativas para o século XXI (UNESCO) e o Relatório de Lupwishi Mbuyamba - sessão de encerramento da conferência mundial sobre educação artística: desenvolver as capacidades criativas para o século XXI.
Para análise dos documentos, utilizamos conceitos propostos por Certeau (1998), especialmente no que se refere ao lugar e à estratégia, compreendendo normativas legais e parâmetros curriculares, enquanto elementos de organização e de prescrições elaboradas para serem seguidas e/ou se configurarem enquanto elementos norteadores das práticas.
Como metodologia de pesquisa, optamos pela análise de conteúdo proposto por Laurence Bardin (2016), especificamente, no que se refere à análise das relações das coocorrências nos documentos analisados.
Buscamos conceituar os elementos que envolvem a composição do currículo formal de arte, procurando analisar o que fundamenta a valorização do seu ensino na escola a partir dos anos de 1990. As diretrizes e orientações curriculares para a disciplina de arte foram analisadas no jogo de forças das práticas sociais, como estratégias que procuram definir o fazer escolar, num contexto em que a descentralização e a autonomia se tornaram princípios da gestão pública do ensino.
Fazer e pensar o currículo
Discutir o currículo de artes exige uma inserção no campo das discussões curriculares. No Brasil, o debate sobre currículo ganhou maior densidade no final do século XX, sendo analisadas, além dos conteúdos, as dimensões simbólicas e de valores nele presentes. Berticelli (2005, p. 165) destaca que:
Latíssimo sensu, currículo diz respeito a saberes, conteúdos, competências, símbolos, valores. A normatividade maior ou menor, a maior ou menor prescritividade é que determinam os vários sentidos de currículo e seus vários conceitos (grifos do autor).
Desta maneira, o currículo sempre é para alguém, construído por alguém, determinados conteúdos são ocultados e outros, privilegiados. O currículo tal como o conhecemos possui uma história recente, embora o termo seja utilizado desde a antiguidade (BERTICELLI, 2005). No tempo presente, compreende-se que
O currículo e seus componentes constituem um conjunto articulado e normatizado de saberes, regidos por uma determinada ordem, estabelecida em uma arena em que estão em luta representações, narrativas, significados sobre as coisas e seres do mundo. (COSTA, 2005, p. 41)
Assim, as escolhas que definem conteúdos e procedimentos curriculares estão amparadas em representações e, portando, variam de acordo com os valores que as fundamentam. No contexto do início do século XXI, em que políticas de descentralização da gestão educacional foram implantadas, os profissionais da educação que atuam no âmbito de secretarias de Estados e Municípios produzem abordagens locais, com base nas normativas nacionais que estabelecem diretrizes amplas. Os currículos, no âmbito municipal, contam com abordagens mais precisas e localmente apropriadas, definidas por pares que pertencem ao contexto local. Essas definições requerem conhecimento e um relativo grau de negociação em conjunto. Estamos procurando afirmar que o que se constitui em norma curricular, que irá padronizar a conduta dos profissionais de um lugar, é resultado de uma tensão entre um Estado que descentralizou suas definições, mas continua como maestro da orquestra, e de profissionais com um certo grau de especialização, mas fundamentalmente com desejos de abordagem e visões que sua formação e experiência lhes proporcionou.
Os elementos envolvidos em torno do currículo se complexificam quando se debate as noções de currículo formal, o que se define nos programas oficiais, e o currículo real, ou seja, aquele que é desenvolvido, pelo professor, no interior das salas de aula. Sobre este aspecto, Goodson (2007, p. 242) discorre que
O currículo como prescrição sustenta místicas importantes sobre estado, escolarização e sociedade. Mais especificamente, ele sustenta a mística de que a especialização e o controle são inerentes ao governo central, às burocracias educacionais e à comunidade universitária. Desde que ninguém desvele essa mística, os mundos da ‘prescrição retórica’ e da ‘escolarização como prática’ podem coexistir. Ambas as partes podem beneficiar-se dessa coexistência pacífica.
A visão de total domínio do poder governamental de regulação educacional, que prescreve normas e estabelece controle das unidades educacionais, precisa ser recolocada. O currículo desenvolvido na prática com os alunos na escola não é exatamente o prescrito, evidenciando o poder de seus executores (GOODSON, 2007). Neste artigo, o que se analisa é o processo de construção do currículo formal, as diferentes instâncias do poder regulador que estão em disputa e dependem dos valores e representações dos sujeitos que estão no jogo e que são responsáveis pela sua elaboração.
Discutindo sobre a aproximação entre os estudos culturais e os estudos sobre o currículo no Brasil do final do século XX, Costa, Wortmann e Bonin (2016, p. 514) afirmam que as teorias sobre ele se movem em um terreno pantanoso, tendo em vista que “[...] o currículo passa a ser visto como um território contestado”, exatamente pelas escolhas realizadas, sendo permeado por “tensões e controvérsias” no processo de suas definições.
O lugar do ensino de arte e a formação de sujeitos para o século XXI
Discussões e recomendações pela valorização da educação em Arte em suas respectivas linguagens são identificadas em Organizações Internacionais (OIs), como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que realizou diversas conferências ao redor do mundo para discussão e promoção da educação artística no século XXI. A conferência organizada em nove de março de 2006, em Lisboa, Portugal, destaca o reconhecimento de que “[...] a Educação Artística pode frequentemente ser um estimulante instrumento para enriquecer os processos de ensino e aprendizagem e tornar essa aprendizagem mais acessível e mais eficaz” (MBUYAMBA, 2007, p. 3).
Argumentos construídos em torno das possibilidades de desenvolvimento que a Arte propiciaria ao indivíduo são encontrados, também, no texto do currículo formal das escolas municipais de Maringá.
O conhecimento da arte abre perspectivas para que o educando tenha uma compreensão do mundo na qual a dimensão poética esteja presente: a arte ensina que é possível transformar continuamente a existência, que é preciso mudar referências a cada momento, ser flexível. Isso quer dizer que criar e conhecer são indissociáveis e a flexibilidade é condição fundamental para aprender. (MARINGÁ, 2012, p. 158, grifos nossos)
O documento faz referência ao papel das Artes no currículo e, ao fazê-lo, associa as a um saber que ensina que a mudança de referência é constante, sendo a criação e a flexibilidade associadas ao processo de conhecer. É importante observar como esses valores se ligam a uma visão de educação própria àquela desejada para a formação de sujeitos frente aos desafios do século XXI, como observamos no documento da UNESCO, o qual destaca:
As sociedades do século XXI necessitam de um cada vez maior número de trabalhadores criativos, flexíveis, adaptáveis e inovadores, e os sistemas educativos têm de evoluir de acordo com as novas necessidades. A Educação Artística permite dotar os educandos destas capacidades, habilitando-os a exprimir-se, avaliar criticamente o mundo que os rodeia e participar ativamente nos vários aspectos da existência humana. (UNESCO, 2006, p. 7, grifos nossos)
Criatividade, flexibilidade, adaptabilidade e inovação são princípios educativos explícitos no documento. Para além do sujeito criativo e flexível para o mercado de trabalho e para as empresas criativas das economias de nosso milênio, o caráter aberto e flexível que a arte poderia criar vincula-se à formação cidadã, com valores éticos e responsáveis. Antes de se formar o trabalhador, formam-se sujeitos.
Eça (2010), ao discorrer sobre as prioridades para a educação artística para o início do século XXI, prescreve um esboço de alguns dos porquês do lugar e da presença conquistada pela Arte no século XX. Além de traçar possibilidades dialógicas para pensar qual a necessidade desta disciplina para a formação de sujeitos para o início do século XXI.
Ao longo dos últimos cento e vinte anos podemos encontrar muitas justificações para a presença das artes na escola. Por exemplo, porque se considera que as destrezas, os critérios e o gosto veiculado pelas artes contribuem para o desenvolvimento do país; pelo fato de que a arte tem um papel reconhecido pela história, porque as indústrias criativas podem ter um peso econômico relevante no PIB, porque através da arte é possível acompanhar os países mais desenvolvidos. Porque a educação artística contribui para a educação moral das crianças, através do cultivo da sua vida espiritual e emocional; porque as crianças devem poder projetar os seus sentimentos e as suas emoções e o seu mundo interior através da arte. (EÇA, 2010, p. 136)
Os argumentos em torno da defesa da presença das artes na escola se articulam aos contextos históricos e representam necessidades sociais, bem como concepções de educação e de arte. No final do século XX, a comunidade europeia “[...] aponta para a promoção da criatividade e da inovação através da educação e da formação” (EÇA, 2010, p. 128). A autora complementa afirmando que, no espaço Ibero-americano, os discursos ministeriais acompanham a tendência mundial de valorização da inovação e do conhecimento.
No contexto desse final de século, sociedades experimentam transformações vertiginosas, provocadas “[...] pelo desenvolvimento científico e técnico, pela mundialização, globalização e pela sociedade da informação e comunicação” (ESCOLA, p. 343, 2005). Essas mudanças têm imposto a necessidade de formação de um outro tipo de sujeito, pensada como promotora da criatividade e da inovação. E é no desenvolvimento desses atributos que o ensino de arte passa a ser também defendido.
A análise da semântica do termo inovação aponta que, no final de século XX, ele pode ser utilizado denotando três sentidos: “[...] como ‘diferença’, porque inaugura uma novidade; como ‘criatividade’, porque combina ou recompõe ideias ou coisas de uma nova maneira; e como ‘originalidade’, por iniciar uma prática inédita” (ROSSI, p. 06, 2021). A criatividade diz respeito à capacidade dos sujeitos de criarem ou adaptarem conhecimentos a situações particulares, produzindo uma novidade e ou uma originalidade. A natureza da arte possui essa essência criativa de criar ou adaptar ideias, contextos, produções a situações novas. Desenvolver essa capacidade nos estudantes é o que se espera, também, do ensino da arte no âmbito da escola.
A inovação não é uma questão de modismo, mas se vincula a uma necessidade. Ela não diz respeito a “[...] decretar a morte da tradição e da história” (PONCE e SAUL, 2012, p. 7), e nem que ela melhora o tempo todo o mundo. O nazismo e a bomba atômica, por exemplo, foram inovações em sua época. Tudo irá depender dos valores em jogo e daquilo que é validado ou não pelo coletivo (ROSSI, 2021).
Neste sentido, compreendemos que o lugar da arte na escola é uma instância de múltiplas sensibilidades e ressignificações que cria e adapta produções aos modos de ver, fazer e de expressar das sociedades, revelando suas características inovadoras e criativas, como o
conhecimento estético que amplia a sensibilidade de quem conhece, isto é, estimula os sujeitos a produzirem um pensamento sensível e desenvolve seus sentidos orgânicos, condição fundamental para responder às circunstâncias e exigências da vida cotidiana. (PONCE e SAUL, 2012, p. 12)
Assim, criatividade e tradição são elementos fundantes da arte e das disciplinas artísticas. Sua essência é uma e outra coisa ao mesmo tempo. A Arte mantém a tradição e se constrói a partir dela, ao mesmo tempo em que é contestadora e transgressora dos diversos limites que se venham propor a captá-la, carregando a marca da ruptura e da mudança.
Da mesma maneira que, enquanto elemento da cultura escolar, a disciplina de Arte, ao mesmo tempo em que se alinha às formas escolares, feitas de normas que as estruturam, também se faz de rupturas com o estabelecido, impressas pelos sujeitos no momento de seu desenvolvimento em sala com os alunos. Isso ocorre porque entre o proposto e o executado existe um hiato, feito de modificações e bricolagens (CERTEAU, 1998), tal como as noções discutidas por Goodson (2007) de currículo formal, feito pelos programas oficiais, e de currículo real, o realizado em sala pelo professor. Vale destacar que o objeto em discussão nesse artigo é o currículo formal.
A disciplina de Arte, no currículo formal, possui um lugar próprio, feito de conteúdo, metodologias, procedimentos avaliativos, elementos curriculares e maneiras de fazer próprios das disciplinas escolares, constituídos historicamente. Como disciplina, a Arte pertence à cultura escolar, feita de “[...] normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (JULIÁ, 2001, p. 1). A escola possui uma forma particular de sistematizar o ensino e a aprendizagem para torná-los mais sistemáticos e mais efetivos do que na vida cotidiana. É para isso que serve a escola. Vincent, Lahire e Thin (2001) consideram que a forma escolar se organiza a partir de elementos estruturantes, como, por exemplo, o espaço e o tempo escolares, assim como, pela maneira como ela se constituiu e se apresenta nos mais diferentes contextos, com suas dificuldades conflitos e lutas. Analisar a disciplina de Arte envolve situá-la nesse lugar próprio, a escola e o currículo formal. Estes lugares ‘próprios’ são constituídos em contextos sócio-históricos diversos, relacionados, por exemplo, a interesses mais amplos de um ideal de nação, como também se relacionam às especificidades de cada escola e região.
Inicialmente, entre espaço e lugar, coloco uma distinção que delimitará um campo. Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí se acha, portanto, excluída a possibilidade, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do ‘próprio’: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar ‘próprio’ e distinto que define. (CERTEAU, 1998, p. 201, grifos do autor)
Constituindo-se enquanto elemento estratégico, ou seja, que busca estruturar, ordenar, planejar, de forma racional, o terreno das práticas sociais, o currículo formal da disciplina de Arte prescreve um lugar próprio para o Teatro na cultura escolar. Embora passível de análises, críticas e discussões, ele deseja realizar os enquadramentos desse conhecimento a esse lugar chamado currículo escolar.
Diretrizes formais para o currículo da arte: linguagem teatro
A LDB de 1996 em seu artigo 26, parágrafo 2º, estabelece que: “O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação básica” (BRASIL, 1996, n.p.), e, complementa em seu parágrafo 6º, a partir da alteração realizada pela Lei 13.278 de 2016, que: “As artes visuais, a dança, a música e o teatro são as linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o § 2º deste artigo” (BRASIL, 1996, n.p). Assim, apesar de a Arte ser uma disciplina obrigatória desde 1996, e dos PCNs de arte, desde 1997, especificarem e orientarem o trabalho com as quatro linguagens artísticas, será a partir de 2016, que se explicitará, na lei, a obrigatoriedade do componente curricular Teatro e das demais linguagens da Arte.
Os PCNs de Arte norteiam as definições dos conteúdos trabalhados na disciplina de Arte no país, tanto no âmbito dos estados como dos municípios. Em seu texto, o documento expressa a longa trajetória de sua elaboração, produzido no contexto das discussões pedagógicas do tempo presente. A política de flexibilização curricular, colocada em cena desde os anos de 1990, pode ser identificada na proposta de adaptação do conteúdo curricular à realidade de cada região do Brasil, tendo os sistemas estaduais e municipais autonomia na definição de suas diretrizes, embora elas possam estar mais ou menos alinhadas aos parâmetros curriculares.
Como mencionado anteriormente, os Parâmetros contemplam as quatro linguagens da Arte: Artes Visuais, Dança, Música e Teatro e, em sua estrutura, apresentam os objetivos, os conteúdos, os critérios de avaliação, as orientações didáticas e as bibliografias das quatro séries da primeira etapa do ensino fundamental, atualmente organizado em cinco anos1. Um dos objetivos gerais da disciplina de Arte para o ensino fundamental é que os alunos, ao final da etapa, sejam capazes de “[...] interagir com materiais, instrumentos e procedimentos variados em Artes (Artes Visuais, Dança, Música, Teatro), experimentando-os e conhecendo-os de modo a utilizá-los nos trabalhos pessoais” (Brasil, 1997, p. 39).
O documento ressalta a importância de as várias formas de arte serem desenvolvidas e aprofundadas pelos estudantes. Embora objetivemos a análise específica do currículo para o Teatro, a disciplina de Arte possui uma característica multidisciplinar, considerando os aspectos integrados da Arte e o diálogo obrigatório entre as diferentes linguagens. Na seção específica do Teatro, há uma contextualização histórica e as características gerais da linguagem, no que se refere à expressão e comunicação. Argumenta-se sobre a importância que ela desempenha na educação, uma vez que essa linguagem desenvolveria maior domínio do corpo, tornando-o expressivo, verbal, com maior capacidade de resposta, de organização e domínio do tempo. A linguagem do Teatro é entendida como expressão e comunicação, como produção coletiva e como produto cultural e de apreciação estética.
No âmbito do Estado do Paraná, as “Diretrizes curriculares da educação básica: Arte” apresentam um discurso que intenciona “[...] uma reorientação na política curricular com o objetivo de construir uma sociedade justa, onde as oportunidades sejam iguais para todos” (PARANÁ, 2008, p. 14). Nos agradecimentos, são destacados os professores da rede estadual de ensino do Paraná que, desde 2003, contribuíram para a feitura do documento, destacando que “[...] nossa expectativa é que estas diretrizes fundamentem o trabalho pedagógico e contribuam de maneira decisiva para o fortalecimento da Educação pública estadual do Paraná” (PARANÁ, 2008, p. 9).
O documento paranaense “Ensino fundamental de nove anos: orientações pedagógicas para os anos iniciais”, de 2010, trata da implantação do ensino de nove anos e expressa as intenções e a necessidade de diretrizes que o orientem. O documento intenciona que “[...] essas Orientações Pedagógicas sirvam de apoio a todos os que assumem a responsabilidade de reorganizar a educação pública do Paraná” (PARANÁ, 2010, p. 5).
Essas Orientações Curriculares constituem um documento elaborado para fornecer a todas as escolas públicas paranaenses responsáveis pelos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, independentemente da rede a que estão vinculadas, orientações pedagógicas e direcionamentos teórico-metodológicos ao trabalho dos professores que atuam nessa etapa de ensino. (PARANÁ, 2010, p. 6)
Observa-se que os documentos que tratam da orientação pedagógica e das diretrizes curriculares do Paraná intencionam direcionar e fundamentar o fazer pedagógico das escolas paranaenses. O Município de Maringá, sem um sistema próprio de educação, está vinculado à Secretaria de Educação do Estado do Paraná (SEED-PR), cabendo à Secretaria Municipal de Educação de Maringá (SEDUC) elaborar a política educacional do Município de Maringá e de seus distritos de Iguatemi e de Floriano.
Segundo o Currículo maringaense de 2012, a trajetória de sua elaboração se deu a partir de reuniões preparatórias com a equipe pedagógica da SEDUC, os representantes das unidades escolares, das instituições de Ensino Superior, do Núcleo Regional do Ensino de Maringá e do Conselho Municipal de Educação. Também houve a indicação de delegados representando os funcionários de todas as unidades escolares, além da realização do “Fórum da Rede Municipal de Maringá: Proposta Curricular da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental”, com sugestões aprovadas e que culminaram com sua incorporação no currículo maringaense (MARINGÁ, 2012, p. 6).
Com relação ao ensino de Arte, o Município de Maringá adequou o seu currículo antes das exigências prescritas pela Lei Federal nº 13.278 de 2016, que incluiu Artes Visuais, Dança, Teatro e Música nos currículos dos diversos níveis da educação básica. Assim, observa-se que a SEDUC se alinhou, desde 2012, às orientações dos Parâmetros curriculares nacionais: arte, de 1997.
Diante dos documentos reguladores e do contexto das políticas de gestão descentralizada em curso, a questão a ser analisada é em que medida é exercida a autonomia local na proposição de seus currículos de Arte.
Autonomia e regulamentação: um estado de tensão no currículo da arte
As diretrizes e orientações curriculares dos diferentes entes federados são compreendidos, no jogo de forças das práticas sociais, como estratégias, tendo em vista que intencionam definir as práticas escolares. Tal como teorizado por Certeau (1998), no campo das estratégias, situa-se toda ação intencional que busca estruturar, padronizar, ordenar, planejar, de forma racional, o terreno das práticas sociais. É no terreno estratégico que situamos as normativas de prescrição curriculares, e é esse lugar que intencionamos analisar.
A partir dos anos de 1990, a prática de feitura do currículo escolar se constrói num contexto de descentralização e de valorização dos princípios democráticos da gestão pública. A LDB de 1996 e os Parâmetros Curriculares trouxeram o princípio de autonomia administrativa e pedagógica e a educação brasileira sofreu um processo de descentralização das ações do Estado, em que o poder decisório de questões, como o de utilização de recursos financeiros, a formação de professores e as definições curriculares se deslocaram para as instâncias locais. Contudo, essa autonomia e descentralização não significou que os governos desistiram de continuar definindo os rumos dos sistemas de ensino. A relação entre autonomia local e controle dos sistemas ganha contornos específicos nesse contexto.
Analisar os elementos textuais que compõem os discursos dos documentos reguladores da educação pode desvendar alguns paradoxos dessa relação. A questão é pensar em que medida a norma é formulada de maneira mais ou menos flexível, mais ou menos determinante, com definições que permitam mais ou menos autonomia dos indivíduos submetidos a ela. Para essa análise, optamos por identificar os verbos utilizados na escrita desses documentos, compreendendo-os como elementos que buscam definir, delimitar ou expandir as ações dos sujeitos. Definiu-se analisar os três verbos mais utilizados na legislação. Para organização do dado, os verbos foram agrupados por radical e apresentados no infinito, como, por exemplo, agrupou-se em ‘dever’, os verbos ‘deverá’, ‘deve-se’ e ‘devem’. Eles ainda foram classificados por significado, os que denotam obrigatoriedade (dever) e os que denotam possibilidade (poder, possibilitar). Os dados serão apresentados a seguir.
Na esfera do governo federal, no documento Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte2, que visa regular, dentre outros, as secretarias estaduais e municipais de educação, observamos que entre os três verbos com maior presença, 14 ocorrências foram identificadas para o verbo ‘dever’, e 22 ocorrências para os verbos ‘poder’ e ‘possibilitar’. Observemos o Quadro 1:
DOCUMENTO VERBOS | Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte | |
---|---|---|
Dever | 14 | 38,9% |
Poder/Possibilitar | 22 | 61,1% |
TOTAL | 36 | 100,0% |
Fonte: Brasil, 1997. Elaborada pelos autores
Em porcentagens, a predominância de ocorrências de verbos que denotam possibilidade representa 61,1%. O verbo ‘dever’, que denota obrigatoriedade, representa 38,9 %.
No âmbito estadual, analisamos os documentos Ensino Fundamental de Nove Anos: Orientações Pedagógicas de 20103, e Diretrizes Curriculares da Educação Básica: Arte. Neles, como se observa no Quadro 2, identificamos que, entre os três verbos com maior presença, 76 ocorrências foram identificadas para o verbo ‘dever’, e 52 ocorrências para os verbos ‘poder’ e ‘possibilitar’. Vejamos,
DOCUMENTOS VERBOS | Diretrizes Curriculares da Educação Básica: Arte | Ensino Fundamental de Nove Anos: Orientações Pedagógicas Para os Anos Iniciais |
Total de Ocorrências | % | ||
---|---|---|---|---|---|---|
Dever | 56 | 57,7% | 20 | 64,5% | 76 | 59,4% |
Poder/Possibilitar | 41 | 42,3% | 11 | 5,5% | 52 | 40,6% |
Total de ocorrências | 97 | 100,0% | 31 | 100,0% | 128 | 100,0% |
Fonte: PARANÁ, 2008; 2010. Elaborada pelos autores
Em porcentagens, a predominância de ocorrências de verbos que denotam possibilidade (poder, possibilitar) representa 40,6%, enquanto o verbo ‘dever’, que denota obrigatoriedade, representa 59,4 %, divergindo significativamente das diretrizes definidas pelo documento emanado da esfera federal.
No âmbito do município, no Currículo da Educação Básica Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental4, que se destina à regulação do fazer do professor, foram identificadas 15 ocorrências do verbo ‘dever’, denotando obrigatoriedade de cumprimento, como, por exemplo: “No processo pedagógico, o professor de Arte deve aprofundar o conhecimento dos elementos formais da sua área de habilitação e estabelecer articulação com as outras áreas por intermédio dos conteúdos estruturantes” (MARINGÁ, 2012, p. 157, grifo nosso). Identificamos e agrupamos em ‘poder’ e ‘possibilitar’ o total de 5 ocorrências com verbos que denotam possibilidade, escolha. Observemos o Quadro 3 abaixo:
DOCUMENTO VERBOS | Currículo da Educação Básica Infantil e Anos Iniciais
do Ensino Fundamental |
|
---|---|---|
Dever | 15 | 75,0% |
Poder/Possibilitar | 05 | 25,0% |
TOTAL | 20 | 100,0% |
Fonte: MARINGÁ, 2012. Elaborada pelos autores
Observa-se que ocorre a predominância do uso do verbo dever, num percentual de 75%, em relação ao uso dos verbos poder e possibilitar, com percentual de 25%. Os dados revelam que, no âmbito municipal, o currículo possui mais elementos de obrigatoriedade do que de possibilidade ou de escolha.
O comparativo de ocorrências de verbos entre os documentos reguladores dos três entes federados revela uma discrepância nas suas intenções reguladoras, que podem ser observadas no Quadro 4. Vejamos:
ENTES VERBOS | Brasil | Estado do Paraná | Município de Maringá | |||
---|---|---|---|---|---|---|
QTDE | % | QTDE | % | QTDE | % | |
Dever | 14 | 38,9% | 76 | 59,4% | 15 | 75,0% |
Poder/Possibilitar | 22 | 61,1% | 52 | 40,6% | 05 | 25,0% |
Total de ocorrências | 36 | 100,0% | 128 | 100,0% | 20 | 100,0% |
Fonte: BRASIL, 1997; PARANÁ, 2008; 2010; MARINGÁ, 2012. Elaborada pelos autores
Nos documentos estaduais e no municipal há maior ocorrência de verbos de obrigatoriedade, o que revela uma intenção maior de definir as ações dos sujeitos que a eles se subordinam. No documento federal, as orientações discursivas com verbos que denotam possibilidade de escolha predominam em relação aos que denotam obrigatoriedade. O que poderia indicar, pelo menos no que se refere ao texto do documento, maior abertura para iniciativas e práticas de secretarias de educação ou de outros órgãos educacionais.
Vê-se, portanto, maior ocorrência de orientações com denotações de obrigatoriedade no documento do currículo de Maringá, o que poderia indicar, pelo menos no que se refere ao texto do documento, maior rigor para iniciativas e práticas das escolas, dos(as) professores(as) e dos(as) estudantes, contrastando com o que se observa em relação aos PCNs/Arte.
É importante destacar que todos os documentos aqui analisados fazem parte do corpo estruturante do fazer do ensino de Arte, ou seja, são a base sob a qual estão orientadas e edificadas as práticas escolares. Destacamos, com essas análises, a maior ou menor rigidez de controle e/ou determinação em termos prescritivos por parte dos documentos para a disciplina de Arte: linguagem Teatro.
Conclusões
O objetivo deste artigo foi analisar a disciplina de Arte, linguagem Teatro, como pertencente à cultura escolar e, portanto, feita de intenções e prescrições que intencionam regular a sua prática. A pergunta que guiou a escrita foi: Como se combinam as diferentes diretrizes que regulam a disciplina de Arte: linguagem Teatro no currículo formal do município de Maringá?
A compreensão da disciplina requer pensá-la no interior do currículo escolar, enquanto elemento estratégico que orienta as práticas escolares. O currículo se define por escolhas, que estabelecem conteúdos e procedimentos amparados em representações e, portando, variam de acordo com os valores que as fundamentam. As dimensões simbólicas e de valores nele presentes o torna um campo de tensões e articulações entre os sujeitos que o constroem.
Em nossa análise, identificamos que, em documentos que orientam o currículo, nos argumentos que justificam sua importância no contexto de formação para o século XXI, ela vem associada ao ensinar o princípio da mudança de referência constante, sendo a criatividade e a flexibilidade entendidas como condutas que a arte favorece o desenvolvimento.
Por outro lado, embora os discursos educacionais do final do século XX sejam marcados pela intenção de transferência de poder às instâncias regionais e locais, por estarem mais próximas do sujeito e de suas necessidades, o caráter normativo e estruturante do currículo, próprios da cultura escolar, revelam que os poderes públicos não desistiram de regular e definir as práticas escolares, embora haja elementos de flexibilização que permitem definições mais alinhadas com as práticas locais. No entanto, nos documentos curriculares prescritivos, a escolha de temas, linguagens, discursos e conteúdos pode estar mais ou menos aberta a escolhas, mais ou menos determinada pela prescrição de obrigatoriedade de seu cumprimento.
A relação entre autonomia e regulação identificadas nos documentos analisados permite afirmar que existe diferença na intenção de controle da ação dos sujeitos que recebem a prescrição curricular para a disciplina de Arte: linguagem Teatro, pelo menos no que se refere ao texto dos documentos analisados. As instâncias estaduais e municipais intencionam um maior controle das ações de seus receptores, tendo em vista a predominância de verbos que denotam a obrigatoriedade de cumprimento do prescrito. Essa prescrição de obrigatoriedade ainda é maior no âmbito municipal, o que pode indicar que as escolas, os(as) professores(as) e os(as) estudantes teriam pouca abertura para iniciativas de autonomia e definição curriculares. A maior flexibilização se localiza na norma federal que transfere para os poderes públicos estaduais e municipais, para suas secretarias e órgãos da estrutura da administração educacional, maior autonomia de definição de seus currículos.
Finalizamos, destacando que todos os documentos analisados fazem parte do corpo estruturante do fazer do ensino de Arte: linguagem Teatro e que definem o currículo formal prescrito. Uma nova pesquisa que identifique quais são os elementos de obrigatoriedade e os elementos de escolha do currículo pode ampliar a compreensão das intenções regulatórias em torno da disciplina. Da mesma maneira, novas investigações que contraponham o currículo formal e o currículo real, aquele que acontece no interior das salas de aulas, podem revelar o espaço de transgressão e de construção dos(as) professores(as) e dos(as) estudantes diante do prescrito.