A literatura disponível ajuda-nos a reconhecer que, observando a trajetória de Virgínia Bicudo, é possível pensar não apenas na história da sociologia brasileira, da qual ela fez parte com sua dissertação sobre relações raciais no Brasil, mas, também, na historiografia da psicanálise brasileira, na qual ela teve participação ativa no período de sua institucionalização (Bicudo, 2010; Abrão, 2010; Gomes, 2013). A despeito da importância reconhecida nessas áreas, a produção, o nome, o rosto e a própria negritude de Virgínia Bicudo desapareceram, e, por isso, evocamos a música “A mulher do fim do mundo” (Fróes e Coutinho, 2015), que fala sobre uma mulher preta que, na avenida, em meio à hipocrisia do carnaval (ao mesmo tempo, evento feliz e violento), exige o seu direito de cantar, marcando esse espaço com a sua opinião.
A linha de análise que Collins (1999; 2016) utiliza para explicar o que é uma outsider within é parecida com a análise que Frantz Fanon faz do termo “condenado”, e que Nelson Maldonado-Torres retoma para explicitar o potencial transformador de si e da sociedade, que a assunção de um lugar de agência por parte desses sujeitos possibilita (Fanon, 1968; Maldonado-Torres, 2019). Quando escreveu sobre a significação sociológica da outsider within, Patricia Hill Collins endereçou o texto às mulheres negras. Ressaltou, utilizando a metáfora de Nancy White que diz que mulheres negras sabem que não são livres, enquanto as mulheres brancas apenas pensam que são, a ideia de que não há uma opressão que seja menos nociva, e que se mover dos estereótipos de tratamento de mulheres negras2 para o das mulheres brancas não é o ideal (Collins, 2016). A outsider within nasce de uma metáfora em que Collins (2019b) se referia às mulheres negras que trabalhavam em casas de famílias brancas e, por isso, conviviam, ao mesmo tempo, com a realidade da periferia e dos guetos negros e a realidade dos ambientes privilegiados da sociedade, ocupados por famílias brancas. É desse lugar fronteiriço que elas constroem, então, subsídios para instruir e estabelecer parâmetros de convivência e transformação social para as suas comunidades (Collins, 2019b).
Para Collins (2016), é necessário que as mulheres negras, pela autoavaliação, criem um discurso sobre sua experiência com base em dois pontos: a autodefinição, que consiste em cada uma reconhecer como se liga às imagens de controle construídas pelos sistemas de poder; e a autoavaliação, em que elas questionam o próprio conteúdo dessas imagens, por exemplo, a ideia de matriarca ou, como tratamos aqui, a ideia de outsider within - a mulher preta que participa de espaços brancos e privilegiados, mas num grau de invisibilidade que remete à desumanização.
Fruto e criadora da díade branco/preto que representa um antagonismo conceitual, a oposição entre colonizador e colonizado, para Fanon (1968), pode ser utilizada pelo “condenado”, como ele denomina os colonizados, para produzir a sua libertação, e essa é a perspectiva preconizada por Collins (2016; 2019b), ao citar a produção intelectual de mulheres negras como oposição aos sistemas de opressão interseccional.
Para tal empreendimento, a condenada deve ter consciência do lugar subalternizado que ocupa e, a partir daí, conforme a ideia de Maldonado-Torres, desprezar a objetividade imposta pelo colonialismo, assumindo o lugar de construção singular que a marginalidade proporciona (Fanon, 1968; Maldonado-Torres, 2019). Maldonado-Torre (2019) cita inclusive o papel da arte e da dança, instrumentos que, como a criatividade citada por Collins (2016), devem ser apropriados, porque daí advém o lugar de criador, ou de ativista, aquele que se autodefine e autoavalia.
Por meio de uma revisão de literatura baseada na produção de Bicudo no campo das relações raciais3 (Santos, 2021), identificamos que a recepção da produção da autora no Brasil está presente na crítica recente sobre espaços de poder nas ciências sociais, na psicologia e na psicanálise. Para tanto, são levados em conta tanto os aportes de Bicudo quanto a sua trajetória para construir uma crítica contra-hegemônica, antirracista e não sexista em relação a essas disciplinas (Gomes, 2013; Braga, 2015; Costa, 2017; Cruz, 2018; Jesus, Silva e Nascimento, 2020; Silva, 2020).
Nosso objetivo é trazer a biografia de Virgínia Bicudo “em contexto”, utilizando, além dos aspectos relativos à sua biografia e trajetória, o panorama em que ela estava situada: o lugar de uma outsider within. Para fazer esta análise, tomamos a referida categoria de Patrícia Hill Collins (2016), que designa um lugar de estranheza, que se aproxima da expressão “estrangeira de dentro”, referindo-se à marginalização da experiência das mulheres negras que participavam da vida das famílias brancas americanas. Virgínia Bicudo encarnou essa estranheza e coloriu a sua trajetória de preto, deixando na avenida da nossa academia um marco, um horizonte para a luta contra o epistemicídio e a invisibilização das mulheres negras nos espaços brasileiros ligados à produção e disseminação de conhecimento.
Partindo do olhar estrangeiro que, segundo bell hooks4 (1984), proporciona uma leitura única dos fenômenos em que os indivíduos estão envolvidos, essa mulher negra, que foi também uma das primeiras mulheres negras com formação superior entre nós e, posteriormente, uma das primeiras docentes do ensino universitário, construiu os seus estudos sobre atitudes raciais, segundo Janaína Gomes (2008). Embora o trabalho de Bicudo não se confunda com o ativismo intelectual de Collins (2019b), mais ligado ao trabalho engajado para a transformação da comunidade, ele pode ser entendido como a construção original de uma teoria social crítica sobre relações raciais no Brasil.5
Para uma melhor compreensão dessa abordagem, este trabalho, de natureza histórica, foi dividido em três partes. A primeira seção tem como objetivo traçar alguns aspectos significativos da vida de Virgínia Leone Bicudo, conectados à localização contextual da história que aqui tratamos, e é intitulada “Virgínia de vários nomes”. A segunda parte, intitulada “Virgínia de vários lugares”, engloba a sua trajetória nas ciências sociais com os estudos sobre relações raciais e a invisibilização subsequente da sua produção.
A terceira parte, sob o título “Mudança de olhar: do social para o singular”, versa sobre a mudança de concepção empreendida por Virgínia Bicudo na abordagem psi, por meio do seu engajamento na psicanálise. Por fim, o tópico “Corpos que cantam histórias sobre a ‘recusa em morrer’”, discorre sobre as pistas da construção de uma teoria social crítica oriunda das formulações de intelectuais negras, ainda invisibilizada no circuito acadêmico, mas que nos apresenta um aprofundamento conceitual das temáticas relativas à interseccionalidade de raça, gênero e classe.
VIRGÍNIA DE VÁRIOS NOMES
Em 21 de novembro de 1910, nasce, na cidade de São Paulo, Virgínia Leone Bicudo. É, pela avó paterna, Virgínia Júlio - uma mulher escravizada, que teve dois filhos de pai desconhecido, dos quais apenas um, Teófilo, sobreviveu -, que nós começamos a remontar as trilhas de Virgínia, que consistiram em desaparecimentos e resgates e também em nomeações significativas.
“Virgínia”, a primeira nomeação que essa autora recebeu, foi uma homenagem à avó paterna, Virgínia Júlio, que desaparecera no interior de São Paulo (Maio, 2010; Gomes, 2013). Junto com ela, assim como aconteceu com outras pessoas escravizadas no Brasil, desapareceu a maior parte da história da ascendência de Teófilo Bicudo, pai de Virgínia (Gomes, 2013). Segundo Miranda e Silva (2019), a colonização invisibilizou as narrativas de agências de pessoas negras escravizadas, de maneira que essas histórias, quando são contadas, nunca o são em primeira pessoa, mas apenas com base em documentos de compra e venda, de alforria, relatos de viagem, entre outros documentos de tutela, como autuações criminais, conforme ressalta Sá (2010).
O “Leone”, primeiro sobrenome dessa intelectual, mostra a herança da família da sua mãe, Giovanna Leone, imigrante italiana que chegara para trabalhar na fazenda dos Bicudo (Gomes, 2013). Isso se dá no pós-abolição, quando a política de branqueamento era uma estratégia de Estado para a consolidação da nação brasileira, tendo sido fomentadas as iniciativas de imigração de trabalhadoras e trabalhadores europeus (Hofbauer, 2011). Tal política concorreu, segundo Florestan Fernandes (2008), para a “europeização demográfica”6 da cidade de São Paulo, que chegou a alcançar, em 1897, a proporção de dois italianos para cada brasileiro residente.
Havia, às vésperas da abolição, grande preocupação dos políticos, da elite e da vanguarda intelectual brasileira com a suposta degeneração apregoada pelas teorias raciais clássicas (Hofbauer, 2011). Assim, a tese do branqueamento consistiu em fomentar a predominância do elemento branco nos casamentos interraciais, a fim de “branquear” a raça, até atingir o status “superior”, estratégia que foi levada adiante por meio das políticas de imigração do fim do século XIX e início do século XX (Hofbauer, 2011).
Mesmo o casamento dos pais de Bicudo merece atenção, pois era um evento esporádico, que ocorria em determinado contexto, naquele momento (Fernandes, 2008). Os casamentos interraciais formais,7 no caso paulista, davam-se principalmente entre negros e brancos de classes populares e não eram rechaçados,8 visto que, na concepção paulista tradicional dessa época, eram uniões “entre iguais” em relação à estatura moral e intelectual: o branco pobre, visto como “atrasado”, e o negro (Fernandes, 2008). Ao fim e ao cabo, os relacionamentos interraciais entre negros e brancos pobres ainda serviam aos interesses de branqueamento da população, ou seja, atender à expectativa da futura diminuição ou erradicação da raça negra constituiria por si só uma elevação de cunho moral (Fernandes, 2008).
Por fim, o sobrenome Bicudo não representava a ascendência do pai, Teófilo, mas o apadrinhamento do coronel Bento Bicudo, dono da fazenda onde Virgínia Júlio havia sido escravizada e onde o pai de Virgínia continuou trabalhando, após o desaparecimento da mãe de Teófilo. Ao requerer o uso do sobrenome do compadrio, Teófilo sinalizava que ele pretendia se mover nessa estrutura social utilizando os processos de validação da sociedade paulistana, e foi assim que, em 5 de março de 1915, Teófilo Júlio passou a assinar também Bicudo (Gomes, 2013). Para Gomes (2013), o sobrenome de Virgínia é uma síntese do Brasil do início do século XX, pois ele representa, de uma ponta a outra, os espaços do legado colonial: o lugar do escravizado, representado pelo nome da avó, do imigrante, por meio do sobrenome italiano, e do senhor das terras, legado pelo sobrenome quatrocentão.
O pensamento feminista negro traz algumas possibilidades para refletirmos sobre a trajetória de Virgínia Bicudo, por exemplo, o fato de que as mulheres tendem a marcar a sua produção acadêmica com uma busca por voz, por falar e ouvir (Belenky et al., 1986). Bicudo iniciou a sua trajetória acadêmica intencionando falar do seu sofrimento e entender a sua gênese, para depois, pela escuta de si, apropriar-se desse sofrimento e, portanto, da sua história, a fim de escrevê-la. Essa escrita inclui o uso da inventividade que uma mulher negra precisa utilizar para sobreviver em um meio hostil à sua presença (Gomes, 2013). Segundo o pensamento feminista negro, a escrita de si e a experiência das mulheres negras, as outsiders within, ao serem utilizadas como critério de credibilidade, proporcionam o reconhecimento daquelas subjetividades que não dizem respeito ao padrão estabelecido pelo homem branco, como as experiências das mulheres negras e brancas, dos homens negros, dos LGBTTQIA+, reconhecidos como outsiders por Hill Collins (2016, 2019a).
Maria M. Stewart, a primeira mulher afro-americana a proferir, no século XIX, discursos políticos e distribuir textos autorais, incentivou as mulheres negras a criarem seus próprios caminhos de autoconfiança e independência (Collins, 2019b). Essa construção passa, como aconteceu com as autoras do feminismo negro americano, pela produção de uma teoria social crítica de mulheres negras, seja das intelectuais negras que tiveram uma produção vultosa no passado, mas que desaparecem na história, seja daquelas que, na contemporaneidade, procedem com o resgate do legado dessas precursoras, como é o caso de Gomes (2013), escrevendo sobre “os segredos de Virgínia”.
Seguindo a linha de Alice Walker, de que parte do compromisso dos artistas e das pessoas que transitam pelo meio acadêmico é o de reunir e habilitar ideias e realizações das pessoas oprimidas nesse meio, a saber, as outsiders within e os outsiders:9 aqueles que não aceitam tacitamente a adequação, a conformidade, e interpelam as teorias preestabelecidas sempre com a questão: “De que sujeito você está falando?”, ou mesmo “De que mulher você fala?” (Collins, 2019a). Uma resposta possível para barrar a invisibilidade a que essas mulheres estão expostas no mundo inteiro é, ao nos depararmos com a invisibilidade da sua produção intelectual, passarmos do choque inicial a um trabalho, em primeiro lugar, arqueológico, a fim de resgatar essas vozes e, depois, de escrita e inscrição, ainda que tardias, da notoriedade de mulheres negras no cânone acadêmico.
É importante sublinhar que este texto não trata de continuar o resgate da trajetória já muito bem documentada de Virgínia Bicudo (Abrão, 2010; Gomes, 2013), mas de uma leitura dessa trajetória com base no conceito de outsider within e das vias de análise e encontros sugeridos por outras intelectuais negras que produziram narrativas sobre si. No percurso entre as ciências sociais, a psicologia e a psicanálise, Virgínia informa-nos sobre o contexto onde intelectuais negras transitaram e, também, sobre as possibilidades de intervir na realidade das forasteiras de ontem e de hoje.
Vamos começar a percorrer, junto com Virgínia, esses três lugares, o lugar da avó desconhecida e da sua história não escrita, o lugar de estranheza da imigração e o lugar almejado, o fim dessa cadeia: o lugar muito bem documentado e sem nenhum resquício de estranheza, representado pela figura do insider10 (Gomes, 2013; Collins, 2016). Para Collins (2016), insiders são aqueles que, tendo a visão de mundo representativa de um grupo hegemônico, servem-se do sistema de poder para produzir verdades/teorias validadas como objetivas e apropriadas para a sociologia em geral, a saber, o lugar comum do homem branco visto como padrão na construção do conhecimento sociológico (Gomes, 2013; Collins, 2016).
VIRGÍNIA DE VÁRIOS LUGARES
Se pudéssemos definir a trajetória de Bicudo em apenas um significante, o que não é possível pela sua complexidade, poderíamos dizer que sua história e produção intelectual ligada à práxis esteve atrelada ao “movimento” (Santos, 2021). Segundo Abrão (2010), Bicudo, seguindo recomendações do pai, transitou pelos espaços “onde havia trabalho”, assim começou sua trajetória na educação, como educadora sanitária e visitadora psiquiátrica. Depois, Bicudo seguiu para as ciências sociais, na tentativa de compreender a motivação para o seu próprio sofrimento com a segregação racial (Abrão, 2010; Gomes, 2013).
Em 1920, aos 11 anos, na primeira aparição do seu nome nos jornais, Virgínia Bicudo foi aprovada numa seleção para a Escola Complementar Anexa do Grupo Escolar do Braz, onde finalizou os cursos primário e médio em 1921. Habilitou-se para o magistério em 1930, e trabalhou por muitos anos em órgãos municipais e estaduais, provendo inclusive o sustento da família, pela qual ficou responsável após a morte do pai, em 1933 (Tepperman e Knopf, 2011; Gomes, 2013).
Por orientação do pai, decidiu ingressar no curso de educadores sanitários do Instituto de Higiene de São Paulo, concluído em 1932 (Maio, 2010). Segundo Maio (2010), o momento do curso era contíguo ao aumento da profissionalização das mulheres das classes médias urbanas, acarretado pelas políticas educacionais do período de 1920 a 1940, ligadas à higiene mental e à educação sanitária. Com a escolha de matricular-se na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP/USP), em 1936, Virgínia ingressou na carreira acadêmica (Maio, 2010).
Uma fala que nos captura é aquela em que Virgínia relata a escolha de seguir para a ELSP. Ela diz que foi para lá pois era lugar de operário e, sabendo da natureza dos estudos das ciências sociais daquela instituição, que se debruçava sobretudo em estudos sobre o negro e sobre atitudes raciais, ela buscava uma elaboração do sofrimento por conta do preconceito de cor que ela própria sofrera desde tenra idade (Bicudo, 2010; Maio, 2010; Gomes, 2013). Na ELSP, Virgínia, uma das primeiras mulheres negras do país a obter um diploma de graduação e a única mulher a se formar numa diminuta turma de oito alunos, concluiu o bacharelado em 1938 (Gomes, 2008; Maio, 2010).
Depois de obter seu título nas ciências sociais, Virgínia conheceu Durval Marcondes,11 um encontro que lhe proporcionou, por meio da sua entrada na psicanálise, outro lugar onde se engajaria na análise e discussão de questões que a inquietavam, por exemplo, de onde viria a sua dor pelo preconceito sofrido (Maio, 2010; Moretzsohn, 2011; Gomes, 2013). Marcondes criou, em 1938, o Serviço de Higiene Mental Escolar (SHME) da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, onde Virgínia se tornou visitadora psiquiátrica, com a função de prevenir e tratar problemas psíquicos infantis (Maio, 2010).
No início da década de 1940, Virgínia Bicudo começou a lecionar, junto com Durval Marcondes, as disciplinas Higiene Mental e Psicanálise na ELSP (Maio, 2010). Em 1942, ela iniciou seu mestrado, sob a orientação de Donald Pierson,12 empenhando-se no estudo das atitudes, um construto situado entre a sociologia e a psicologia social, que focalizava as tensões raciais (Maio, 2010). Os resultados do seu trabalho vão ao encontro dos achados de Oracy Nogueira (2007), seu colega na ELSP e nos estudos sobre atitudes: existiria, apartado do preconceito de raça e do preconceito de classe, uma terceira categoria, o preconceito de cor, que privilegiaria as marcas raciais na manutenção da discriminação, diferentemente da experiência americana da one drop rule ou lei da “uma gota de sangue”, adotada nos Estados Unidos, em que apenas a ascendência negra definiria a identidade racial do indivíduo (Maio, 2010).
No início da sua pesquisa sobre a produção sociológica de Virgínia Bicudo, Gomes relatou o incômodo por não conhecer uma mulher que, longe de ser alguém comum, era uma mulher negra que havia ascendido dentro da academia em pleno século XX (Gomes, 2013). O incômodo e o trabalho arqueológico de Janaína Gomes (2013), ao buscar o porquê dessa intelectual, como outras intelectuais negras, estar invisibilizada em meio à produção sociológica brasileira e mesmo norte-americana, mostra o papel importante desenvolvido por mulheres negras na construção das ciências sociais: o de subverter o status quo sociológico (Collins, 2016). Pelo estranhamento dessas mulheres a respeito de questões singulares para elas, novos problemas surgem nas teorias sociológicas, como é possível perceber pelos pontos de divergência entre o trabalho de Virgínia e outros produzidos à época.
Indo de encontro a Donald Pierson, seu orientador, que havia escrito em Brancos e Negros na Bahia: um estudo de contato racial que a ascensão social esmaecia o conflito racial, e intuindo que, ao menos em São Paulo, a ascensão social de pessoas negras não amenizava o conflito racial, Bicudo escreveu sua dissertação de mestrado. Tal iniciativa inaugurou o pensamento, posteriormente comprovado no Projeto UNESCO, de que havia sim um conflito racial e que ele pouco ou nada respondia à classe, como foi sacramentado por Oracy Nogueira em Preconceito de cor e de marca (Pierson, 1971; Bicudo, 2010).
Segundo Bicudo, a ascensão social força a aquisição de uma maior consciência de cor, ou seja, o racismo torna-se mais palpável quanto mais os ambientes se tornam majoritariamente brancos (Bicudo, 2010). A compreensão inovadora que Bicudo apresentava na época vai ao encontro da afirmação de Collins (2016) de que o discurso sociológico foi enriquecido com os pontos de vista trazidos por mulheres negras, que desafiariam o insiderism, responsável por colocar a subjetividade de homens brancos no centro da produção do conhecimento, e que é um dos sintomas do racismo estrutural.
Segundo Gomes (2013), o desconhecimento sobre a existência de Virgínia Bicudo, na formação em ciências sociais, deve-se ao fato de que é comum pensar o surgimento da disciplina como ligado ao público masculino e, sobretudo, ao público masculino branco. Ao observarmos existências que rasuram essa ordem, como Guerreiro Ramos13 e Édison Carneiro,14 ainda que representem um deslocamento do discurso da branquitude, continuam a representar a prevalência masculina no campo (Gomes, 2013). Apesar de mais conhecidos que Bicudo, esses dois homens negros e baianos não têm o devido reconhecimento das suas contribuições, o que nos dá pistas da desigualdade racializada do campo epistêmico brasileiro.
Essa desigualdade epistêmica é, também, assim como as opressões presentes na sociedade, de maneira geral, intersectada pela história de cada pessoa, ou seja, a produção intelectual não é levada em conta por si só. A esse respeito, e em relação à “produção corporificada do conhecimento” (Santo e Diniz, 2018, p. 80), Gomes (2013, p. 43) traz uma sentença: “[...] essa era a trama que se apresentava nas ciências sociais: até mesmo negros e pobres, mas homens, até mesmo mulheres ainda que somente brancas”.
MUDANÇA DE OLHAR: DO SOCIAL PARA O SINGULAR
Bicudo, depois do trabalho seminal nas ciências sociais, dedicou-se à institucionalização da psicanálise e ao desenvolvimento da teoria, sobretudo na linha kleiniana, aproximando-a do contexto brasileiro (Abrão, 2014). Em 1944, foi uma das fundadoras do Grupo Psicanalítico de São Paulo, precursor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), principal centro de formação desses profissionais àquela época (Maio, 2010).
A década de 1950 para Virgínia foi marcada pela pujança na sua produção e disseminação da psicanálise, dedicando-se ao estudo e à aproximação da psicanálise à realidade brasileira (Bicudo, 1994; Maio, 2010). Em 1954, Bicudo foi publicamente acusada de charlatanismo por exercer ilegalmente a medicina durante o I Congresso Latino-Americano de Saúde Mental (Maio, 2010; Gomes, 2013). Esse episódio tem a ver com a própria tradição da psicanálise, que, até então, era praticada apenas por médicos no Brasil, e que começou a ser transmitida a pessoas não médicas por meio de Durval Marcondes15 (Maio, 2010).
Embora não seja possível atribuir uma motivação intersectada com fatores de raça, classe e gênero para o episódio das acusações de charlatanismo, nomeações e estigmatizações remetentes a imagens de controle raciais e sexistas não são raras nas trajetórias das outsiders within, sobretudo das mulheres negras que se encontram em espaços de poder. Por exemplo, foram consideradas igualmente como charlatãs, Anita Hill e Lani Guinier, juristas negras norte-americanas que foram expostas a diversos registros racistas e sexistas de nomeação16 (Watson, 2008).
Após esse episódio violento, que definiu como traumático, Bicudo partiu para a Inglaterra, a fim de se especializar em psicanálise, e, por sua habilidade em travar boas relações profissionais, firmou amizade com Melanie Klein e Wilfred Bion durante sua estadia em Londres entre 1955 e 1959 (Abrão, 2010). Ao retornar, Virgínia foi pioneira no desenvolvimento das ideias kleinianas em São Paulo e no ensino da psicanálise de crianças no Brasil, introduzindo essa especialidade na SBPSP (Maio, 2010; Gomes, 2013).
Seus escritos e esforços se concentraram mais nas técnicas psicanalíticas a partir dos anos 1950, e, embora ainda adotasse uma concepção biopsicossocial da psicanálise, a partir desse período, a questão racial esteve menos presente na produção psicanalítica de Bicudo que nas ciências sociais. A própria negritude foi um tema que Bicudo se apropriou e elaborou apenas na velhice (Moretzsohn, 2011; Dunker, 2018). Na psicanálise, ela, que intuía que seu sofrimento tinha uma base social, conseguiu, finalmente, por meio da construção de um caminho singular, a elaboração dessas questões.
Segundo Christian Dunker (2018), a tese defendida por Virgínia Bicudo no seu mestrado, e que ela própria sentira na pele com o sentimento de inadequação aos lugares por onde transitava, mostra que, na verdade, a ascensão social alcançada pelas pessoas negras, principalmente pelos esforços na educação, fortaleceria o sentimento de estranheza quando o sofrimento pelo preconceito de cor não era devidamente elaborado (Bicudo, 2010). Daí a afirmação de Virgínia Bicudo de que a ascensão social traria mais consciência de cor e, portanto, mais sofrimento (Bicudo, 2010; Dunker, 2018).
Na década de 1960, ela fundou o Grupo Psicanalítico de Brasília, que viria a se tornar a Sociedade Brasileira de Psicanálise, alcançando, então, o ponto alto da sua carreira como psicanalista e da sua ascensão social. A partir de 1970, ela começou a dividir o trabalho entre São Paulo e Brasília e, em 1980, retomou, parcialmente, a vida paulistana. Em 1993, por carta, Virgínia deixou o trabalho em Brasília e proclamou que era chegada a hora da aposentadoria, que só chegou em 2000. Três anos depois de se afastar do trabalho clínico, em 2003, Virgínia morreu, deixando as recomendações para a família do que fazer com o seu corpo, que, segundo ela, não deveria ocupar espaço em cemitérios, mas retornar à terra pois “somos da natureza”17 (Moretzsohn, 2013, p. 227).
Mover-se de um lugar de objetificação e da espera por reconhecimento do outro, que se coloca como uma norma, para um lugar de potência, que desafia as imagens de controle criadas e validadas pelo meio científico: essa é a proposta de Hill Collins com a outsider within, uma mulher que resolve seguir o fio da sua intuição para construir o conhecimento sociológico, tal como Virgínia fez ao insistir na necessidade da investigação da realidade paulistana acerca das tensões raciais (Bicudo, 2010; Collins, 2016). Talvez essa atitude esteja ligada à “necessidade de coerência” que Gomes (2013, p. 27) cita ao discorrer sobre a investigação exaustiva acerca da pertença racial daquela Virgínia Bicudo que aparecera na sua dissertação como uma das primeiras mulheres negras a concluírem um curso superior no país, e depois reaparece como retrato no portal da Sociedade Brasileira de Psicanálise (Gomes, 2008; 2013).
Dunker (2018) também desenha esse processo ao dizer que Virgínia passou do lugar de alguém desvalida e hipossuficiente que implora esse lugar de fala para o lugar de alguém que, encontrando finalmente onde sua fala se arrola, consegue apropriar-se do lugar de escuta da sua própria experiência. Por essa escuta, a demanda por reconhecimento, que havia multiplicado o peso das experiências de nomeação pelas quais Virgínia transitou, encontra alento, o alento de ter encontrado um lugar seguro onde poderia se reconciliar com a sua própria negrura, chegando, na velhice, a utilizar símbolos como um turbante, que não aparecia nas suas fotos da juventude, quando ainda buscava a gênese do seu sofrimento.
Tal desfecho nos mostra que foi possível para Virgínia Bicudo se apropriar do significado da sua imagem perante o espelho, uma imagem que a ela pertence e que se pode dar o contorno e a forma que quiser (D’agord et al., 2013). Neusa Santos Souza (1983) nos traz essa compreensão quando crava que se tornar negro é criar um discurso sobre si, alcançando a possibilidade de se nomear perante o outro.
CORPOS QUE CANTAM HISTÓRIAS SOBRE A “RECUSA EM MORRER”
Epistemicídio é a chave para pensar sobre o porquê de um samba triste ser a “avenida” sobre a qual estendemos esta história: Sueli Carneiro (2005) utiliza o termo epistemicídio para designar a construção da indigência cultural. Essa indigência pode ser resumida por meio da ideia de “negro errante”, que é, segundo Kabengele Munanga, um dispositivo que impõe a visão de uma negritude sem passado, com uma história que começa com o processo colonial e que não tem futuro, porque esse futuro não é escrito ou sequer planejado (Carneiro, 2005; Munanga, 2018). Para Carneiro (2005), além da interdição do acesso à educação, esse sistema de inferiorização inclui a deslegitimação da condição de sujeitos capazes de produzir conhecimento.
Assim, o percurso das intelectuais negras para a construção de conceitos fidedignos à realidade que elas próprias experimentam começa por um trabalho importante de reunião de dados no campo, incluindo as vozes de mulheres negras, perfazendo um mosaico de discursos que interseccionam raça, classe e gênero nessa composição. Por isso, é possível pensar nas intelectuais negras como corpos que contam (e que cantam histórias) sobre a sua insistência em estar e se manterem vivas, assim como a sua comunidade (Zinn, 2012; Collins, 2016).
Vida é pra ser experimentada (Lorde, 2019), pois a vida é uma situação em que são conjugados o aqui agora, o contexto e o antes: a ancestralidade, o lugar de potência e de surgimento de atitudes duradouras e de conhecimento verdadeiro. “Quando olhamos a vida ao modo europeu como apenas um problema a ser resolvido, confiamos exclusivamente em nossas ideias para nos libertar, pois elas, segundo nos disseram os patriarcas brancos, são o que temos de valioso.” (Lorde, 2019, p. 46). A poesia, então, segundo Lorde (2019, p. 48), faria, na vida mulheres, uma “clareagem” nas possibilidades, “ela cria o tipo de luz sob a qual baseamos nossas esperanças e nossos sonhos de sobrevivência e mudança, primeiro como linguagem, depois como ideia, e então como ação mais tangível”.
Essa transgressão foi abraçada por mulheres negras por meio da sua produção acadêmica, e é com base nisso que podemos reler a trajetória de Virgínia Bicudo, observando que, pela técnica, muitas mulheres negras se debruçaram sobre a realidade social, utilizando aparatos de dentro e de fora para proceder a essas leituras do mundo. Podemos citar como exemplo a experiência de Patricia Hill Collins, que a fez cunhar o conceito de outsider within, que nasceu de uma lacuna conceitual na sociologia praticada até os anos 1980-1990 a respeito de captar as singularidades das experiências das mulheres negras. Com anos de trabalho não documentado na comunidade, em escolas públicas, Collins desenvolveu uma sociologia que, segundo ela, não tinha nome e que, ao mesmo tempo, era muito consistente em suas práticas e resultados (Collins, 2007).
Para a autora, a própria definição da sociologia como ciência leva ao desaparecimento das mulheres negras nessa disciplina, e sua epistemologia, ancorada em metodologias desconstrutivas, propõe o desligamento de mecanismos binários de identificação das ciências sociais que colocam a mulher negra em uma posição de subalternidade em relação ao homem branco, ao qual, por sua vez, seriam destinados estereótipos de objetividade, racionalidade e produtor de conhecimento científico (Collins, 2000). Tal apreensão embaciada da realidade compreenderia também a forma de analisar fenômenos relacionados à raça, à classe e ao gênero, tratando-os como mero recortes de pesquisa, e não sendo intercruzados para uma leitura complexa dos acontecimentos, o que fomentou o nascimento da interseccionalidade como espaço conceitual (Collins, 2000).
Poder se afastar do contexto da sociologia estadunidense proporcionou a possibilidade de poder respirar, defender a singularidade do seu eu em relação às práticas hegemônicas da disciplina (Collins, 2007). As mulheres negras anteciparam a agenda pós-modernista em algumas décadas, reivindicando a marginalidade, exigindo o descentramento do poder por meio do lugar de fala, como fez Sojourner Truth (2014) no seu discurso “E eu, não sou uma mulher?”.
A divulgação científica e psicanalítica que Virgínia Bicudo fazia era um descentramento de poder. Embora comprometida com a difusão da psicanálise kleiniana, e fiel aos escritos de Freud, a autora advogava que, ainda que a realidade social adentre o setting analítico junto com o paciente e também com o analista, o analista tinha de se esforçar por manter os aspectos da realidade fora da sua técnica (Bicudo, 2019). Se, durante o período em que produziu na psicanálise, ela tentara afastar sua negridade da técnica (Bicudo, 2019), aqui, junto aos legados de outras mulheres negras, a resgatamos para demonstrar que não apenas a sua obra, pioneira na perspectiva de análise de relações raciais no Brasil, mas a sua invisibilidade deixou marcas no território acadêmico brasileiro.
Compreendemos o espaço acadêmico de produção do conhecimento como um carnaval, na acepção trazida por Roberto DaMatta, quando ele fala que o carnaval é confluência e conflito e que ele existe com base em artefatos legados de várias culturas que estão ali, na avenida, em disputa (DaMatta, 1997). Nessa “avenida”, mulheres negras e grupos subalternizados falam sempre das margens do poder, assim, desde que essas vozes começaram a ser escutadas, elas fizeram isso por meio de um descentramento do poder.
Alguns exemplos dessa perspectiva são os trabalhos de Gomes (2013) e Santos (2021), que se propuseram a criticar a “produção do esquecimento” do pensamento de mulheres negras, partindo da trajetória de Bicudo. Na nova leitura das contribuições de Bicudo para a construção de uma teoria social crítica, alguns trabalhos encontrados sugerem duas novas abordagens para os aportes dessa intelectual (Santos, 2021): Escrita sobre trajetórias invisibilizadas de mulheres negras, focalizando os pontos de invisibilização do pensamento de mulheres negras (Gomes, 2013; Braga, 2015; Cruz, 2018), e as Reflexões decoloniais, que se debruçam sobre os pontos de agência e agenciamentos decoloniais passíveis de serem construídos ressaltando a negrura de uma intelectual (Costa, 2017; Jesus, Silva e Nascimento, 2020; Silva, 2020).
A abertura radical promovida por teóricas negras é, então, um espaço de sobrevivência, segundo bell hooks (1990). E as metodologias que fazem caminho rumo à desconstrução podem ser apropriadas por grupos oprimidos não para descobrir e justificar, como foi feito na literatura científica clássica, mas para derrogar noções de subjetividade, de tradição e de autoridade, colocando um dado além da subjetividade do homem branco para definir a humanidade: expor as singularidades das mulheres negras (Collins, 2000). Segundo Lélia Gonzalez (2016), a mulher negra brasileira, ainda no período da escravidão, teve uma atuação importante tanto no lugar de articuladora de insurreições quanto na formulação do imaginário das suas crianças e das crianças das famílias dos senhores de engenho, por meio das estórias contadas, deixando o legado, pela fala, da africanização da cultura brasileira.
As opressões de raça, classe e gênero, então, não podem ser vistas como recortes da realidade, mas como fundamentos da interseccionalidade, que Collins utilizou para cunhar o conceito de forasteira de dentro, que designa indivíduos que não são apenas marginais, mas são também indivíduos em trânsito entre realidades e espaços de poder desiguais (Collins, 1999; 2000). A forasteira de dentro está na borda de espaços ocupados por grupos de poder desigual e pode ser oriunda de várias configurações e intersecções entre raça, classe e gênero. É do lugar de mulher negra, descendente de um casamento inter-racial que ascendeu socialmente e que acessava espaços privilegiados de desenvolvimento da técnica psicanalítica e sociológica que Virgínia Bicudo falava.
Indo de encontro à lógica cartesiana do “penso... existo”, a mulher negra tem compreendido que sua liberdade está na possibilidade de sentir e guiar-se por sua experiência, porque apenas a razão não vai libertá-la, pois a razão, da forma como tem sido entendida, não contempla suas experiências. A mudança requer, então, transgressão, que os blocos das mulheres negras estejam na rua, articulando, na poesia que inaugura a linguagem, novas maneiras de sentir, novas ideias, “[...] enquanto sofremos os velhos medos de ficarmos em silêncio, impotentes e sozinhas, enquanto experimentamos novas possibilidades e potências” (Lorde, 2019, p.49).
É possível perceber que, mesmo nesse lugar, compartilhando espaços de poder na academia e na psicanálise brasileiras, o legado de Virgínia Bicudo desapareceu, embora ela tenha adotado posturas conservadoras em relação à política (Gomes, 2018). A razão não vai salvar ninguém, tampouco o silêncio (Lorde, 2019). No fim das contas, toda mulher negra que escreve ou reivindica a trajetória de outras mulheres negras está se recusando a morrer, se recusando a deixar de ser símbolo, significante, para cair num lugar do puro desvio, antagonismo à norma.
CANTANDO ATÉ O FIM
No embalo do samba triste interpretado por Elza Soares e que conduziu a escrita deste artigo, dedicamo-nos, enfim, a sintetizar a trajetória de Virgínia Bicudo, uma mulher que foi pioneira naquilo que seria a teoria social crítica produzida por mulheres negras brasileiras, inaugurada por ela no estudo das atitudes raciais, que se dispuseram a pensar as especificidades da experiência do negro brasileiro e que passaram por processos de invisibilização em relação às suas produções. Com este texto, pretendemos reafirmar a importância e a necessidade de reflexões e produções capazes de expressar pontos de vistas contra-hegemônicos sobre temas pertinentes à realidade brasileira não só como forma de promover a diversidade, mas como expressão de resistência aos processos de silenciamento que caracterizam a academia como instância de legitimação de conhecimentos.
O insider, plenamente integrado aos grupos hegemônicos, embora comprometido a ocupar o local de poder de ditar o que seria uma visão global de mundo, tem apenas uma visão parcial, “de dentro para fora”, ou seja, de dentro das classes mais abastadas, da percepção branca de racialidade etc., em direção a outros grupos. A outsider, por sua vez, ocupando uma posição estrangeira às posições hegemônicas, tem seu acesso a lugares de poder barrados, podendo observar apenas, a maior parte das vezes, “de fora para dentro”, ou seja, de uma posição de marginalidade em relação a lugares privilegiados da sociedade.
Ao adentrar ambientes brancos, em um momento onde isso era algo raro, como no pós-abolição, a mulher negra encarna um papel: o de outsider within, valendo-se, então, do seu olhar prismático, “de dentro para fora” e “de fora para dentro” (Santo e Diniz, 2018), para agir em direção a mudanças em sua comunidade. Virgínia Leone Bicudo pode ser considerada uma outsider within justamente por ter produzido conhecimento com base nesse olhar.
A intelectual abordada neste texto foi apresentada, então, como uma mulher do fim do mundo, que tem uma trajetória parecida com a de outras mulheres negras na academia, pois, em meio a nomeações de um Outro representado pela “multidão que avança como vendaval”, é jogada na avenida; porém, não se furta de atravessar o percurso, deixando ali, contudo, marcas de uma visão singular que baliza a construção da sua técnica. A importância de Virgínia Bicudo no terreno da produção acadêmica brasileira tem momentos distintos.
O primeiro, quando contribuiu para a sociologia da infância no Brasil por meio do seu ofício de visitadora psiquiátrica e educadora sanitária, no período do Estado Novo e do movimento higienista brasileiro, em que se começava, pela obra de Arthur Ramos, a pensar sobre a incidência das questões sociais e do contexto na manutenção da saúde psíquica dos indivíduos (Maio, 2010; Gomes, 2013).
Em um segundo momento, inaugurou um pensamento que viria a ser posteriormente confirmado nos estudos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) dos anos de 1950, contrariando não apenas a tese de democracia racial de Gilberto Freyre, mas também a ideia de que a ascensão social faria com que conflitos raciais fossem menos percebidos. Assim, defendeu em sua dissertação que, na realidade, esses conflitos se tornam mais perceptíveis às pessoas negras que ascendem socialmente (Bicudo, 2010).
O terceiro momento é quando ela direcionou sua sensibilidade para as questões sociais, como a ideologia, o racismo, entre outras, para estudar a cura para o sofrimento causado pelo preconceito racial no campo subjetivo, uma visão que ela entra em contato por meio da psicanálise. Aqui, ao mesmo tempo que desenvolveu a sua técnica, reconciliou-se com os símbolos de sua própria negritude e se apropriou da sua imagem em um deslocamento de posição subjetiva. Desse modo, deixou de solicitar autorização para falar sobre o seu sofrimento, como tentou na faculdade de ciências sociais e na psicanálise, e passou a escutar e analisar a sua própria trajetória, reconhecendo as singularidades desse percurso.
Só é possível intersectar as opressões às quais as pessoas estão expostas, sejam opressões de raça, gênero ou classe, seguindo a trilha das representantes que se recusaram a calar. E, por sua vez, a trilha dessas mulheres pode ser utilizada para apontar legados privilegiados e invisibilizados bem como um dos motivos principais para evidenciá-los ou não: a questão racial. A racialização e a intersecção entre o racismo e outras opressões oriundas da ordem social marcam os indivíduos, legando privilégios a uma parcela e mantendo em posição marginal aqueles que apresentam uma diferença radical, conformando um jogo de barganhas entre outsiders e insiders.
Inscrever sua experiência singular, marcando os lugares por onde transitou, foi o que Virgínia Bicudo fez durante a sua vida ao se contrapor à linha de pesquisa dominante da década de 1940, e também nas escolhas profissionais que implicaram desafiar o papel de feminilidade da mulher do início do século XX, uma mulher que deveria estar encerrada no arquétipo domesticidade. Como essa ideia de feminilidade não alcança as mulheres negras, como Collins resgata ao citar a imagem de controle de Sapphire, a mulher afro-americana brava, e Sojourner Truth (2014) ressalta ao questionar modelos de feminilidade dos quais as mulheres negras não eram consideradas, Virgínia fez um uso criativo da marginalidade e do lugar de estrangeira de dentro para construir um caminho autônomo, porém muitas vezes solitário em meio a homens brancos.
Assim, é possível traçar um paralelo entre o conceito de outsider within de Patrícia Hill Collins e a trajetória de Virgínia Bicudo, traduzida neste texto como uma mulher do fim do mundo que, como outras intelectuais negras, a despeito de nomeações que as queiram colocar como não pertencentes à academia brasileira, deixaram suas marcas, marcas de vivências singulares, entremeadas pelas experiências interseccionais de cada uma. Essas experiências, ao serem retomadas por outras outsiders within, e mesmo os outsiders que se situam à margem da produção intelectual das principais correntes do circuito acadêmico, podem, com base na análise das imagens de controle às quais as mulheres negras estão circunscritas, rasurar o discurso dominante.