INTRODUÇÃO
A educação especial na perspectiva da educação inclusiva (BRASIL, 2008) é uma modalidade de ensino que transpõe e perpassa todos os níveis, etapas e modalidades, realiza o atendimento educacional especializado, disponibiliza os recursos e serviços e orienta quanto a sua utilização no processo de ensino e aprendizagem. Direciona, ainda, suas ações para o atendimento as especificidades desses alunos no processo educacional e, no âmbito de uma atuação mais ampla na escola, orienta a organização de redes de apoio, a formação continuada, a identificação de recursos, serviços e o desenvolvimento de práticas colaborativas (BRASIL, 2010).
A política nacional de educação especial, na perspectiva da educação inclusiva (BRASIL, 2008), tem como objetivo o acesso, a participação e a aprendizagem dos alunos, alvo da educação especial: pessoas com deficiências, com transtornos globais do desenvolvimento (TGDs) ou com altas habilidades/superdotação têm sido previstas em todas as modalidades educacionais. As escolas especiais gradativamente foram reduzidas e os alunos passaram a frequentar o ensino regular tendo como suporte e apoio o serviço de educação especial, que transversaliza todas as modalidades de ensino, da educação infantil ao ensino superior. Determina-se, assim, que os sistemas de ensino garantam o acesso de todos ao ensino regular e a continuidade dos estudos aos níveis superiores de ensino; promove acessibilidade arquitetônica, transportes, mobiliários, comunicação e informação e o oferecimento do Atendimento Educacional Especializado (AEE), entre outros.
A lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência, Lei n. 13.146 (BRASIL, 2015) destaca a importância de assegurar um sistema de educação inclusivo em todos os níveis de aprendizado, visando alcançar o máximo de desenvolvimento possível, garantindo, assim, condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena. Nesse sentido, sabe-se da necessidade de discussões sobre metodologias de ensino-aprendizagem que possam ser diversas e inovadoras, propiciando mais recursos pedagógicos para que a inclusão possa, de fato ocorrer, potencializando o sujeito aprendiz, sem dicotomias entre alunos com e sem fragilidades.
Igualmente, destacam-se aqui as práticas avaliativas que possuem um importante papel, pois elas permitem que possa haver avanços e reflexões críticas sobre as formas de ensinar e aprender. De fato, identificar o potencial dos alunos para a aprendizagem é um aspecto diretamente relacionado ao processo educacional inclusivo. A educação inclusiva é proposta justamente a partir da ideia de que todos têm capacidade de desenvolvimento e aprendizagem, não apenas os estudantes com deficiência, mas também tantos outros que apresentam dificuldades não biológicas e não diagnosticadas, assim como os grupos mais vulneráveis que geralmente são excluídos pela desigualdade social e, consequentemente, educacional.
Sabe-se que avaliar é um processo complexo que envolve concepções, ideologias e valores diversos. Marinho-Araújo e Rabelo (2015) consideram que neste processo há muitos aspectos envolvidos: quem avalia, quem ou o que é avaliado, em que contexto e quais os processos constitutivos individuais e coletivos que se relacionam socio-historicamente com a avaliação. Para os autores, pela sua complexidade, a avaliação na educação deve ser entendida como um processo amplo, com desdobramentos coletivos e institucionais, um processo com características educativas, pedagógicas e psicológicas, a partir do momento em que se considera questões intersubjetiva, sujeitos históricos, constituídos em tempos e espaços específicos (MARINHO-ARAÚJO, RABELO, 2015).
Sobre esse tema, Victor (2015) enfatiza que há uma falta de parâmetros para a avaliação da aprendizagem na educação infantil, tanto com relação ao professor de sala regular quanto do professor do AEE (Atendimento Educacional Especial) e ressalta a necessidade de que haja mais estudos voltados para novos modelos de avaliação.
Nunes e Mazini (2020) também realizaram um estudo com o objetivo de identificar, a partir de relatos dos professores, as concepções favoráveis e desfavoráveis em relação à avaliação do aluno com deficiência intelectual na escola. Os autores concluíram que a questão da avaliação tem sido um grande problema já que há posições dicotômicas: de um lado o aluno deve fazer uma avaliação no nível dele de adaptação curricular e do outro deve fazer uma avaliação no nível da turma, a qual ele não consegue realizar. Outro ponto levantado pelos autores foi de que as concepções dos professores em relação a avaliação são constituídas a partir das vivências dos sistemas educacionais dos próprios professores. Ou seja, não há uma reflexão teórica sobre o assunto. Além disso, os sistemas educacionais evidenciam um discurso que é antagônico: ora a avaliação deve ser igual aos demais alunos do sistema, ora deve ser diferente. Com isso, não se tem um parâmetro reflexivo para determinar a avaliação e fica a dúvida de aprovar ou reprovar o aluno com deficiência, já que o processo de avaliação é falho.
Para Freitas et al (2021), há uma escassez de pesquisas sobre avaliação educacional das pessoas que são público-alvo da educação especial. Os autores, após realizarem uma revisão de literatura de 2006 a 2020, a partir de vinte e seis artigos, identificaram que as avaliações não contemplam o âmbito escolar, apenas o aspecto instrumental. Ou seja, a avaliação está longe de ser adequada, de considerar o contexto intencional e sistemático, de forma processual, formativa e mediadora. O fato é que, como está sendo realizada, a avaliação apresenta-se relacionada a um paradigma classificador e meritocrático. Desta forma, as avaliações são vistas de forma classificatória, tal qual um exame que não traz benefícios para o processo de ensino aprendizagem, tendo, apenas, como finalidade, aprovar ou reprovar e, nesse sentido, não identifica potencialidades nos alunos (SILVA, NUNES, 2020).
A partir desses pressupostos, vê-se a importância de se refletir sobre a avaliação no contexto da educação inclusiva, aprofundando conceitos e propostas. Desta forma, o objetivo deste artigo é realizar uma discussão sobre avaliação dinâmica, de base vygotskyana, como possibilidade de prática para a educação especial na perspectiva da educação inclusiva.
AVALIAÇÃO DINÂMICA: UM BREVE PANORAMA
Vygotsky tem sido chamado o pai da avaliação dinâmica. As obras do autor são marcadas pela crítica aos modelos avaliativos feitos a partir de tarefas descontextualizadas e estandartizadas, como nomeação, cópia, memorização de sequência de números, dentre outros. A avaliação dinâmica é baseada nos estudos vygotskyanos (VYGOTSKY, 1962/2003) e nos seus conceitos de zona de desenvolvimento proximal (FIGUEIRA, 2017), interação social, mediação e desenvolvimento cognitivo (PETERSEN et al, 2020).
Lembramos aqui que Vygotsky (1962/2003) faz uma diferença entre Zona de Desenvolvimento Real (doravante ZDR) e Zona de Desenvolvimento Proximal (doravante ZDP). ZDR é o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados. A ZDP, por sua vez, define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente.
A zona de desenvolvimento proximal, ou ZDP, é um dos conceitos mais conhecidos e associados à perspectiva de Vygotsky, sendo uma forma de conceptualização da relação entre a aprendizagem e o desenvolvimento. Vygotsky opta pela palavra zona dada a sua conceção de desenvolvimento, enquanto um contínuo de comportamentos ou graus de maturação. Vygotsky descreve esta zona como a "[...] distância entre o nível de desenvolvimento real, determinado pela resolução de problemas, de forma independente e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da resolução de problemas sob a orientação de adultos ou de colaboração com pares mais capazes" (VYGOTSKY, 1978, p. 86). Ao descrever a zona como proximal (a seguir, próxima, perto de), significa que a zona está limitada por esses comportamentos que se irão desenvolver num futuro próximo. Proximal não se refere a todos os possíveis comportamentos que emergem eventualmente, mas àqueles mais próximos de emergir a qualquer momento: "[...] O que a criança pode fazer hoje com ajuda, será capaz de fazer sozinha amanhã" (VYGOTSKY, 1987, p. 211).
Nesse contexto, temos ainda os conceitos de realização autônoma e realização assistida. Para Vygotsky, o desenvolvimento manifesta‑se a dois níveis, que estabelecem os limites da ZDP: o nível mais baixo, em que o desempenho (performance) da criança é independente, ou seja, a criança sabe e pode fazer sozinha, de forma autónoma. E o nível superior, ou seja, o nível máximo que a criança pode atingir com ajuda, considerado nível de performance assistida, ou com ajuda. Podem existir, contudo, entre estes níveis extremos, graus de performance parcialmente assistida como na figura abaixo (FIGUEIRA, CRÓ, LOPES, 2014, p. 88).
Pensar a avaliação nesse contexto é rever princípios tradicionais que estão cristalizados nas avaliações estáticas e aprimorar a busca pela avaliação das condições e possibilidades efetivas dos sujeitos. Vale ressaltar ainda que, muito embora tenha discutido mediação para a avaliação, Vygotsky nunca chegou a elaborar uma avaliação dinâmica propriamente dita. Nem, tampouco, denominou-a de dinâmica. O termo avaliação dinâmica se popularizou, no início do século passado, inicialmente em Israel pelo pesquisador e educador especial Feuerstein, em oposição a outras formas de avaliação que ele chamou de estáticas, baseadas nos fundamentos vygotskyanos de Zona de Desenvolvimento Proximal, interação e mediação (LIDZ, 1995).
Para Feuerstein, Feuerstein, Falik (2014, p. 148), como o ser humano é capaz de se modificar, ele não é previsível. Nesse sentido:
[...] qualquer tentativa de prever com antecedência o desenvolvimento de uma pessoa por meio de métodos psicométricos, que medem níveis manifestos de funcionamento e pretendem prever o futuro com base em uma avaliação feita sob condições estáticas (em determinados estágios da vida, por determinados meios restritos, em determinado momento e local, e assim por diante), contradiz a essência imprevisível do ser humano.
É importante destacar também que a denominação dinâmica implica mudança, considerando que avalia os processos cognitivos a partir de uma metodologia ativa que leva em conta o produto e o processo de aprendizagem do sujeito. Não é simplesmente um procedimento ou uma bateria de teste. É uma atitude de como pensar uma avaliação de outra forma. Nesse sentido, “[...] a avaliação dinâmica opõe-se à estática e desafia a grande indústria de exames cujo maior objetivo é classificar os seres humanos e colocá-los em gavetas das quais nunca mais sairão” (FEUERSTEIN, FEUERSTEIN, FALIK, 2014, p. 149)
Segundo Lidz (1995), o termo avaliação dinâmica é um guarda-chuva pois é heterogêneo e envolve vários tipos de avaliação que apresentam alguns pontos em comum:
sua natureza interativa e ativa, que visa promover a aprendizagem. Aqui, o papel do avaliador é bastante diferente do padrão estático, com tarefas padronizadas. Geralmente há atividades pré-teste e pós-teste e os efeitos das mudanças podem ser analisados;
foco no processo de aprendizagem e metacognitivo;
atenção ao tipo de informação apreendida na avaliação evidencia a responsividade do aprendiz e caminhos possíveis para intervenção.
Na interação, o avaliador tem a oportunidade de observar efeitos e processos realizados pelo avaliado para tentar resolver os problemas, o que permite o direcionamento para a intervenção de forma mais eficaz (FEUERSTEIN, FEUERSTEIN, FALIK, 2014; KHAGHANINEJAD, 2015). A avaliação dinâmica centra-se no processo e não no produto, propicia a mudança, avalia a performance depois da mediação, a estimativa da aprendizagem potencial, bem como respeita as diferenças histórico-culturais1 (KHAGHANINEJAD, 2015).
Para Figueira (2017), nesse tipo de avaliação, busca-se tanto estabelecer o nível de desempenho atual quanto o potencial, para atingir níveis superiores. No caso, a avaliação inclui possibilidades para a análise do processo da aprendizagem de forma interacional, contextualizada e ainda pode revelar processos que não são considerados na avaliação tradicional, centrada no produto (final). Assim, busca-se avaliar não apenas o nível de performance dos sujeitos, mas também de performance assistida, ou seja, o que ele realiza quando o meio lhe oferece ajuda (orientações, solicitações ou estratégias, materiais específicos). Essa ajuda não é padronizada, mas adequada a necessidade de cada sujeito. Esse tipo de avaliação considera a interação o ponto central de construção do conhecimento.
Figueira (2017) também ressalta que as interações, enquanto o sujeito está sendo analisado, são fontes de informação valiosas sobre os elementos da grande fotografia. Geralmente essas informações são negligenciadas na avaliação tradicional, mas dizem muito sobre o próprio sujeito e apontam caminhos para a intervenção, já que evidenciam como e o que o sujeito pensa, ou seja, suas características metas, enquanto concretiza e resolve os seus problemas. Nesse sentido, é possível medir a performance autônoma e a performance assistida ou com ajuda(s). A ênfase, nesse caso, é a descoberta do tipo de ajuda que funciona para a criança num determinado momento ou tarefa. Nesse caso, pode-se promover e ensaiar várias aproximações, para tentar perceber qual a que funciona melhor.
AVALIAÇÃO DINÂMICA NA EDUCAÇÃO ESPECIAL: O DESENCONTRO
Na literatura internacional, vários estudos recentes destacam a importância e confiabilidade da avaliação dinâmica para crianças que apresentem limitações linguístico-cognitivas (ELLEMAN, 2011; DERAKHSHAN, SHAKKI SARANI, 2020; FAHMI, PRATOLO, ZAHRUNI, 2020; GILANI, 2021, entre outros).
No Brasil, o número de pesquisas que utiliza avaliação dinâmica ainda é bastante restrito. Desta forma, buscou-se realizar uma pesquisa de revisão sistemática de literatura. A coleta de dados compreendeu a busca de artigos indexados nas bases de dados do portal de periódicos Capes e do Scielo. Os descritores utilizados inicialmente foram avaliação dinâmica e Vygotsky, avaliação dinâmica e educação especial, contudo, o número de artigos foi de apenas sete no total, sendo que apenas dois tinham relação com o objeto de estudo. Logo, para a busca ficar mais abrangente, foram utilizados descritores mais amplos: avaliação dinâmica e educação. Não foi colocado ano como filtro.
No Scielo foram encontrados 96 artigos, destes 13 foram selecionados para a leitura dos resumos e três foram lidos na íntegra. No portal da Capes foram encontrados 830 artigos, sendo 28 selecionados para a leitura dos resumos, dois não tinham acesso liberado e três já tinham sido selecionados na busca do Scielo. Dos 26 artigos, sete foram selecionados. O critério de inclusão aceitou os artigos que envolviam discussões sobre avaliação dinâmica relacionados à educação. Foram excluídos artigos específicos da área da saúde. Os mesmos artigos do Scielo foram encontrados no portal da Capes. Vejamos uma explicação mais detalhada na Figura a seguir:
Pelo fluxograma acima, vemos que foram encontrados poucos artigos, embora não tenham sido determinadas datas específicas na busca. Para uma análise por categoria, selecionamos os artigos em três grupos: a) discussões na clínica que se relacionavam com diagnósticos e encaminhamentos para a educação especial; b) artigos que discutiam avaliação dinâmica no ensino regular; c) artigos que discutiam avaliação dinâmica relacionados a alunos com deficiência, transtorno global do desenvolvimento ou ainda superdotação. Observe-se a Figura 3 para maior clareza:
Observa-se que todos foram produzidos entre 2008 e 2019, ou seja, essa reflexão ainda pode ser considerada muito recente. Sobre os autores, temos 4 artigos com autores psicólogos (PORTUGAL, 2012; VEIGA, 2014; FIGUEIRA, 2017; ANANCHE, 2018), sendo duas pesquisadoras de Portugal (PORTUGAL, 2012; FIGUEIRA, 2017). Um artigo com autores que apresentam formação na terapia educacional (DEMARCH et al, 2019) e dois artigos escritos por educadores (DIAS, 2018; BEZERRA, ARAÚJO, 2010). Vê-se que a discussão dessa temática ainda está voltada principalmente para os psicólogos, contudo, essa avaliação não está centrada no campo da psicologia, mas sim no campo dos estudos sócio-históricos (VYGOTSKY, 1962/2003).
As pesquisas vinculadas à clínica foram selecionadas porque estavam relacionadas indiretamente à escola, voltadas às avaliações de alunos que seriam encaminhados a educação especial. Em seu estudo, Anache (2018) afirma que os encaminhamentos para os serviços de educação especial têm sido realizados a partir das avaliações psicológicas e nesse sentido, destaca a importância de se considerar uma perspectiva histórico-cultural para a análise. Desta forma, descreve a importância de uma avaliação psicológica que seja processual, interventiva e relacional e ainda que considere três pontos importantes: a) análise do processo e não do objeto; b) análise explicativa e não descritiva; e c) a análise genética, do processo de desenvolvimento do indivíduo, construímos nossas proposições para a avaliação psicológica de indivíduos que apresentam deficiência intelectual. De seu lado, tanto Demarchi et al (2019), que analisam a avaliação dinâmica na área da terapia ocupacional voltada a estudantes de 6 a 12 anos, quanto Veiga (2014), com uma proposta de avaliação psicológica modular, apresentam, de forma breve, a importância da avaliação dinâmica, ressaltando que esse tipo de avaliação para um diagnóstico mais interativo, confiável, individualizado e que consideram a integralidade da criança.
Na educação regular, Dias (2008) faz uma crítica a avaliação quantitativa, objetiva e centrada apenas nos resultados. Para o autor, embora não se possa negar esse tipo de avaliação, é importante referir que essa prática é conservadora, fechada e isolada, desconectada de outras formas de avaliação. A autora destaca o papel da avaliação dinâmica, que considera a historicidade da pessoa em formação, em contraposição à estática que toma o estudante como um objeto a ser analisado. Dito em outras palavras, a avaliação dinâmica é um processo recorrente que busca entender as mudanças dos desempenhos do estudante por um período determinado e nesse sentido, não se trata de uma fotografia ou medida da retenção de conteúdos num momento dado, mas sim de compreender as mudanças que vão ocorrendo ou os valores que vão sendo agregados ao longo do percurso.
As autoras portuguesas Figueira (2017) e Portugal (2012) discutem com aprofundamento teórico e exemplos as relações e práticas escolares a partir da avaliação dinâmica. Para Figueira (2017), a avaliação dinâmica deve dar ênfase a identificar o tipo de mediação que favorece a aprendizagem de cada criança em uma determinada tarefa. Nesse sentido, o professor pode realizar diferentes estratégias e tentativas para reconhecer qual a melhor forma de se estabelecer uma aprendizagem. Apenas dessa forma é possível conceber a avaliação dinâmica como ferramenta potencializadora de aprendizagem. A ajuda do professor só poderá ser retirada ou suspensa quando houver garantias da realização da tarefa de forma autônoma, podendo ser utilizado também os mediadores externos como a escrita, jogos, desenhos, dentre outros.
Portugal (2012) apresenta a proposta de educação pré-escolar chamada Sistema de Acompanhamento das Crianças (SAC) que faz parte das Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar (OCEPE, MEC, 1997) e que define as referências para os educadores sobre currículos, opções pedagógicas e práticas de avaliação em Portugal. A autora reconhece a falta de formação dos educadores, que em sua maioria, utilizam procedimentos estandardizados a partir de checklist de capacidades isoladas e realizados em atividades descontextualizadas, o que não permite perceber a unicidade e autenticidade de cada criança. Para a autora, o conceito de ZDP, de Vygotsky, impõe um conceito de avaliação autêntica, pois potencializa avaliações realísticas focadas nos passos e estratégias que indicam os processos para a aprendizagem das crianças.
O único artigo que trata da avaliação dinâmica na educação especial é o artigo de Bezerra e Araújo (2010). Os autores fazem uma crítica ao modelo de avaliação da aprendizagem escolar praticado na maioria das escolas regulares por se constituir de forma autoritária, disciplinadora e de orientação meramente quantitativa e ressaltam que esse o modelo é insuficiente para avaliar alunos com deficiência mental nas salas de aula comuns. Os autores destacam que a avaliação dinâmica parte do pressuposto de que o professor deve basear-se na promoção e análise das situações de cooperação entre os alunos para poder criar um ambiente favorável à aprendizagem, à coautoria do conhecimento e à convivência interpessoal.
Bezerra e Araújo (2010) destacam que um dos pontos para a reflexão nessa discussão é levar em conta dois conceitos: o aproveitamento escolar absoluto e o aproveitamento escolar relativo. O primeiro deles refere-se ao desempenho quantitativo imediato dos alunos, ao nível individual, e não considera, historicamente, a evolução da aprendizagem que apresentam no decorrer do ano letivo. O outro, por sua vez, permite uma reflexão sobre como se processou a aprendizagem nos alunos, o que de fato puderam aprender, como cada um progrediu em relação a si mesmo e à turma, pressupondo prioritariamente uma abordagem avaliativa que contemple a qualidade do desempenho escolar.
Os autores consideram que a avaliação dinâmica é promissora principalmente para os estudantes com deficiência mental, uma vez que, se ao nível meramente quantitativo, absoluto, eles acabam por apresentar frequentemente notas ou conceitos inferiores e negativos, isto é, abaixo da média definida pelas escolas regulares, que ainda se apoiam em perspectivas de avaliação quantitativa e objetiva. Nesse caso, há a necessidade de aprofundamento dos conceitos para que se possa fazer uma maior reflexão sobre a essa avaliação, na prática.
O que vimos na revisão bibliográfica evidencia uma lacuna significativa de trabalhos que discutam a avaliação dinâmica na perspectiva vygotskyana. Evidencia-se um distanciamento e, portanto, um desencontro entre essa forma de avaliação e no contexto da educação inclusiva. Há, assim, uma necessidade emergente de que essa temática seja tomada como objeto de investigação.
AVALIAÇÃO DINÂMICA PARA A EDUCAÇÃO ESPECIAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: O ENCONTRO
Buscou-se, nesse trabalho, um encontro com a avaliação de aprendizagem em uma perspectiva vygotskyana. Acredita-se que o aprofundamento dessa discussão possa promover impacto direto para o contexto atual da educação especial e inclusiva. As dificuldades dos alunos, pelo que vimos até agora, na sua maioria, são avaliadas de forma a evidenciar seus erros, mas não seus acertos, ou ainda, não identificam potencialidades diante de situações singulares que vivenciam. Acrescentamos que não é objetivo deste artigo aprofundar questões específicas sobre os alunos público-alvo da educação especial, mas sim refletir, de forma mais geral, o lugar da mediação no contexto da avaliação da aprendizagem. Primeiramente é importante retomar os principais conceitos que intercruzam com a avaliação dinâmica:
O que vemos destacado acima deixa evidente primeiramente o conceito de sujeito do qual se parte. Um sujeito historicamente situado, constituído a partir de suas interações. A aprendizagem ocorre mediada pela linguagem (do outro), que possui um papel regulador das demais funções cognitivas. E, nesse sentido, as interações sociais são constitutivas da cognição que também é reflexo da historicidade e singularidade de cada sujeito. Sujeitos esses, singulares em sua forma de lidar com suas dificuldades/diferenças e potencialidades (VYGOTSKY, 1962/2003).
Tomar esses pressupostos como ponto de partida implica realizar a avaliação de forma individualizada, processual e sistemática. Isso significa que só se pode comparar um sujeito com ele mesmo, no seu percurso educacional. E significa mais, a avaliação não deve somente identificar o quanto cada aluno se afasta ou se aproxima da média. É necessário que ela indique caminhos para intervenções, que evidencie o que cada aluno consegue alcançar a partir da mediação do outro. É nesse sentido que a avaliação se torna dinâmica. Porque ela deve evidenciar o que cada sujeito é capaz em um dado momento e o que necessita para passar ao patamar seguinte de aprendizagem e desenvolvimento. É necessário avaliar o que o sujeito consegue realizar sozinho e com ajuda e, a partir desse processo de mediação, avaliar as estratégias possíveis para que o ensino e aprendizagem se realizem.
Pensar esses fundamentos em uma sala de aula inclusiva com alunos com diagnósticos diferenciados (alunos surdos, alunos com deficiência visual, cognitiva, motora, múltiplas deficiências, com altas habilidades, com transtorno do espectro autista), dentre tantos outros com dificuldades específicas, implica primeiramente uma modificação do olhar do professor para o processo. É necessário que o professor identifique também os principais mediadores externos a serem utilizados.
Os mediadores podem funcionar como andaimes (suportes) para auxiliar o aluno a passagem de uma ZDP a ZDR. Desta forma, o professor introduz um mediador para auxiliar as atividades do aluno e ajuda o aluno a utilizá-lo em atividades partilhadas até que a criança internalize esse aprendizado. Os mediadores são temporários e devem ser retirados depois de a criança alcançar a nova competência. Desta forma, o professor deve planejar não apenas qual o melhor mediador, mas também aprender a avaliar sua eficácia e sua necessidade, assim como o fim de seu uso e a introdução de um novo mediador. Esse processo não pode ser planejado previamente já que depende do tempo de aprendizagem de cada aluno. Podemos citar como exemplos de mediadores: desenho para identificar a cadeira da criança quando ela ainda não consegue ler seu nome, calendário para identificar o dia da semana, utilização do dedo para seguir a linha da leitura, utilização do dedo para contas matemáticas, uso de cronômetro para realização de uma determinada tarefa em um determinado tempo, canetas e lápis coloridos, post-its e menus (listas de coisas a fazer), almofadas para identificar o local onde a criança pode sentar-se na sala de leitura, dentre outros. Ele deve ser retirado quando a criança já domina esse conhecimento (FIGUEIRA, CRÓ, LOPES, 2014).
Figueira, Cró e Lopes (2014, p. 119-120) destacam que os mediadores devem introduzir um comportamento no tempo certo e devem obedecer a algumas características:
o mediador deve ter um significado especial para a criança e deve ser capaz de invocar esse significado. O ato de mediação deve ser incorporado, em ações que façam parte da rotina da criança;
o mediador deve estar ligado a um objeto que a criança utilize antes ou durante a realização da tarefa;
o mediador deve permanecer relevante para a criança. Os mediadores perdem a sua distintividade e deixam de induzir comportamentos adequados se forem utilizados muitas vezes ou durante um grande período. Escolher um tempo limite para o mediador ser utilizado aumenta a probabilidade deste permanecer relevante e instrumental;
combinar a mediação com a linguagem e outras pistas comportamentais;
escolher um mediador que esteja na ZDP da criança e seja utilizado para orientar as suas ações;
utilizar sempre o mediador para representar o que a criança quer fazer.
Quando se introduzir um novo mediador, deve-se ter um plano para que a criança o possa utilizar, de forma independente. É importante que a criança seja capaz de utilizar um mediador para induzir o seu próprio comportamento sem que o professor a recorde. O professor terá que fazer esforço para ceder responsabilidade a criança, porque isso não acontece naturalmente e espontaneamente. Se depois de algum tempo a criança continua sem conseguir lembrar-se de uma determinada ação, provavelmente, isso significa que o mediador não funciona. O educador deve rever a necessidade de escolher outro mediador.
Vemos assim que não há uma regra geral nem para todos os alunos nem tampouco para grupos específicos. Se tomarmos, por exemplo, alunos com deficiência auditiva/surdez, vemos uma grande heterogeneidade linguística, o que envolve, portanto, condições diferentes de aprendizagem (alunos que apresentam perda auditiva, mas que possuem como língua materna a língua na modalidade oral; alunos com próteses auditivas; outros têm a língua de sinais como primeira língua; outros ainda utilizam mais gestos, sem terem adquirido uma língua pelas dificuldades de acessibilidade linguísticas; outros têm deficiência intelectual associada; outros têm surdo-cegueira etc.). Ou seja, não há como conceber alunos com surdez como um grupo homogêneo e, nesse sentido, não há como conceber uma proposta de avaliação universal para eles (SANTANA, 2013).
É necessário, assim, que se identifique em sala de aula a qualidade das interações e as especificidades de cada aluno. Nesse caso, vários aspectos devem ser considerados para a avaliação: a qualidade da mediação, inclusive linguística; os mediadores externos visuais mais eficientes para cada aluno (figuras, mídias digitais, desenhos, leitura dialogada etc.); a utilização de atividades préteste com exemplos e feedback. Partir desses aspectos significa identificar não apenas a performance assistida e autônoma, mas também o caminho utilizado pelo aluno para a meta-reflexão de cada atividade proposta.
Este exemplo é apenas para ressaltar que cada aluno que adentra a sala de aula tem sua especificidade e, portanto, suas potencialidades necessitam ser avaliadas de forma individual, processual e assistida. O professor deve ter segurança de que o aluno compreende cada atividade avaliativa e que esta se encontra adequada a seu nível de desenvolvimento. Por isso, a interação significativa e intercompreensão deve ser ponto primordial. É aí que se considera uma grande diferença entre avaliação estática e dinâmica. É no papel ativo, tanto do professor quanto do aluno, assim como na mudança de estratégias que pode haver possibilidades de alcançar o conhecimento a ser adquirido.
Nesse sentido, como ponto de partida para que se realize a avaliação dinâmica, sugere-se que se compreendam os aspectos abaixo:
Pressupostos teóricos | Questões norteadoras |
---|---|
Domínio da teoria vygotskyana | Quais os fundamentos da teoria vygotskyana que embasam a avaliação? |
Compreensão do processo a ser avaliado | O que está sendo avaliado? Qual a melhor forma de avaliar esse conteúdo para este aluno? |
Compreensão do papel do mediador/interação | De que forma a mediação do conhecimento tem sido realizada? Os exemplos são os melhores para este aluno? De que forma o feedback tem sido realizado? Quanto tempo esse aluno precisa dispensar para a avaliação? |
Compreensão do papel dos mediadores externos | Que estratégias e mediadores externos devem ser utilizados para esse aluno? |
Compreensão do resultado da avaliação | Que caminhos o resultado da avaliação indica para o desenvolvimento das potencialidades do aluno? Quais as melhores estratégias? Qual a quantidade de mediação que ele necessita? |
Fonte: As autoras.
Apenas a partir dessas reflexões poderão existir possibilidades para um encontro entre a avaliação dinâmica e a educação inclusiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho destaca os (des)encontros da avaliação dinâmica com a escola. O desencontro é legitimado pela falta de discussão no campo da educação especial, e ainda, pela falta de aprofundamento teórico nos poucos trabalhos que discutem o tema. Por outro lado, procuramos enfatizar a possibilidade não apenas de um encontro de conceitos (avaliação dinâmica x educação especial x educação inclusiva) mas também da convergência de olhares para o sujeito singular que necessita que sejam identificadas suas potencialidades de aprendizagem.
O que se buscou destacar nesse trabalho foi a importância de se avaliar a aprendizagem dos alunos não apenas de modo estático, mas também dinâmica e mediada. Desta maneira, se diferenciam formas e quantidades de auxílio necessários para cada aluno. Assim, a partir do momento em que este processo é identificado, e não apenas dificuldades e falhas, se reconhece que a mediação favorece a evidência das potencialidades de cada aluno, antes desconsideradas, promovendo, assim, um avanço na aprendizagem.
É por isso que a avaliação dinâmica envolve mudanças de paradigmas na escola. Mais do que a avaliação do produto, é a análise do processo, não só da aprendizagem, na vertente do aluno, mas, igualmente, do ensino, no polo do professor/tutor. Mas se a mudança é um imperativo, é, igualmente, morosa. A observação individual, a análise contextual ou sistêmica carece de grande astúcia, motivação e interesse dos educadores. Não é tarefa fácil. Tem que acreditar no desenvolvimento, na aprendizagem e nas potencialidades deste seu novo posicionamento e ideologia. Envolve mudanças de concepção de sujeito, de aprendizagem, assim como da própria avaliação. Nesse sentido, é necessário que se consiga ver além dos déficits, para que se possa considerar condições de aprendizagem de pessoas que apresentam dificuldades/diferenças.
O olhar excludente sobre deficiências e condições de busca pela homogeneidade em sala de aula fazem com que exista o mito de que a avaliação deve ser pautada em patamares objetivos para ser considerada fidedigna. Para ultrapassar esse patamar é preciso ter formação continuada e constante. É preciso avaliar o processo pelo qual o aluno pode evidenciar cada vez mais suas potencialidades de aprendizagem e assim destituir o poder excludente que a avaliação tradicional tem constituído no campo da educação. É assim que podemos dizer que a encruzilhada é o caminho de encontro entre o mediador, o sujeito e suas potencialidades.