Introdução
O uso do rádio educativo para alfabetizar os jovens e adultos no Brasil em 1958, acontece, após uma série de experiências e propostas já lançadas no Brasil ao longo de quase 30 anos. A exemplo, a experiência de Jannuzzi, em Valença no Estado do Rio de Janeiro que, em 1950, organizou um curso de alfabetização de adultos pelo rádio, servindo de referência para outros cursos de alfabetização pelo sucesso que obteve, conforme anuncia Fávero (2006).
Segundo Scocuglia (2006) e Fávero (2006), a matriz principal sobre o uso dos rádios educativos para alfabetizar os jovens e adultos em escolas radiofônicas iniciou-se com as experiências de mons. Salcedo Guarin, em Sutatenza, na Colômbia em 19471. No final de 1950, as escolas radiofônicas tinham sete transmissores e aproximadamente 50 mil receptores cativos, rádios que sintonizavam uma única emissora e possibilitaram a alfabetização de mais de 800 mil jovens e adultos.
A aquisição dos rádios/receptores cativos para as escolas radiofônicas no Brasil foi realizada pelo regime de convênio instituído pelo presidente Jânio Quadro se firmado como dispositivo na forma do decreto presidencial 50.370, em 1961, com o Movimento de Educação de Base (MEB)2, criado pela Igreja Católica por meio da Conferência Nacional dos Bispos (CNBB) que, em parceria com o governo federal, implantaram um programa de educação de base, cuja finalidade foi expandir uma rede de emissoras com suas respectivas escolas radiofônicas nas zonas rurais das áreas subdesenvolvidas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, de acordo com Horta (1972) e Fávero (2006).
A análise dos sentidos e significados sobre o rádio cativo3, presente nas escolas radiofônicas da Prelazia do Guamá, Amazônia paraense, é identificado pela produção, à circulação; aquisição e a apropriação dos materiais4 de comunicação e escolares, organizados pelos Comitês Paroquiais do Sistema Educativo Radiofônico de Bragança5 que estão interligados à produção da cultura material escolar.
O rádio, enquanto um artefato cultural, expressa significações que permitem constituir a cultura material escolar e os sentidos sobre a educação nessa instituição de ensino. Dessa forma, Gaspar da Silva e Petry (2012) mencionam que o enfoque sobre os artefatos culturais e a produção de cultura material pode imprimir diversas interpretações ou sentidos sobre as materialidades de cada projeto educativo porque existem os intermediários no cotidiano escolar, os sujeitos escolares6.
Conforme Frago (1995), os objetos escolares, enquanto elementos da cultura material escolar, devem ser analisados para além de sua função e composição técnica, visto que estabelecem as marcas da própria cultura escolar nas instituições escolares, quer sejam nas diversas manifestações instauradas nas práticas escolares, na produção e circulação de saberes, na organização, nas condutas, no pensar, nas mentes e corpos, entre outras especificidades.
As discussões e reflexões sobre o uso do rádio cativo, enquanto um elemento da cultura material escolar, são incipientes no âmbito da literatura nacional e internacional. Dessa forma, propomos o seguinte questionamento: como a produção, a circulação, o uso e as apropriações do rádio cativo, visto como um artefato cultural de ensino, produziu os sentidos da recepção auditiva no cotidiano das escolas radiofônicas na Prelazia do Guamá, Amazônia paraense, no período de 1961-1971?
Metodologicamente, o estudo faz parte da abordagem da Nova História Cultural e está diretamente correlacionado com a compreensão das práticas culturais e os sentidos dos sujeitos escolares com os artefatos culturais. As representações de Chartier (1990) são importantes para análise dos objetos culturais, principalmente os atrelados à história cultural de objetos de leitura-livro, dos impressos, das mais variadas formas de leitura que operam em um determinado mundo do texto (como bens culturais relacionados aos praticantes ordinários-seus consumidores)7.
As fontes identificadas sobre as escolas radiofônicas estão articuladas a uma circularidade cultural de materiais históricos que apresenta similitudes e diferenças em seu cotidiano. Assim, o corpus desta pesquisa foi identificado no Tribunal de Contas da Diocese de Bragança com seus respectivos ‘livros de tombo’: Histórias do SERB (1957-1980); Prelazia do Guamá (1971-1979), Figuras diversas (1972), Prelazia (1947-1964)e o de Exames supletivos (1976-1981). Além disso, utilizamos os acervos digitais sobre a história do rádio no site da Philips e nos arquivos dos relatórios do MEB/Nacional, no Centro de Documentação Científica Professor Casemiro dos Reis Filho.
Durante o levantamento dos objetos nos espaços investigados, encontramos dois técnicos8 que trabalharam na rádio e obtivemos algumas conversas informais que foram acrescentadas a esta pesquisa. Com fins de manter a ética, criamos pseudônimos e os identificamos neste trabalho como a Técnica 1-T¹ e Técnico 2-T²9. As conversas informais nos permitiram compreender as práticas cotidianas dos sujeitos como rádio cativo, visto que, conforme Minayo (2001), as conversas informais apontam para os aspectos rotineiros, as relevâncias, os conflitos, os rituais, bem como a delimitação dos espaços público e privado onde o sujeito se encontra.
As representações metodológicas dos três eixos indissociáveis, em Roger Chartier (1990), serviram de base para a análise do artefato cultural (o rádio cativo) no interior das escolas radiofônicas, são eles: a história do objeto em sua materialidade quanto a sua forma, afrequência, ao dispositivo e estrutura que apontam o tipo de dispositivo projetado para os objetos de consumo. O segundo refere-se à história das práticas nas suas diferenças, problematizando: o que os sujeitos fazem com os mesmos objetos que são impostos? E o terceiro eixo apresenta a história das configurações dos dispositivos nas suas variações históricas, este que se intercruza com os dois primeiros eixos, considerando as formações sociais, as estruturas psíquicas e as armaduras conceituais em meio a estratégias e táticas utilizadas pelos sujeitos no cerne das instituições, conforme mencionam Nunes e Carvalho (2005). Nesse sentido, o texto apresenta um diálogo entre o consumo dos rádios cativos enquanto um artefato cultural de ensino que produz os sentidos da recepção auditiva no cerne da sala de aula das escolas radiofônicas.
O consumo dos rádios cativos nos comitês paroquiais das escolas radiofônicas na Prelazia do Guamá
No Sistema Educativo Radiofônico de Bragança existiam dois tipos de Comitês com seus agentes sociais: O Comitê Central, localizado no município de Bragança, onde funcionava o Sistema Educativo Radiofônico de Bragança (SERB) com os professores- locutores, técnicos da rádio, bispo local e padre vigário10, ambos coordenadores do SERB. Já os comitês paroquiais estavam localizados em 11 municípios da Prelazia do Guamá11 na Amazônia paraense12, onde se estavam os monitores que eram os líderes das comunidades escolhidos para orientar os alunos para obterem habilidades de leitura e escrita.
Nesse âmbito, o Sistema Educativo Radiofônico de Bragança foi projetado pela doutrina filosófica dos Barnabitas13 como terra de missões e evangelização pelo bispo dom Eliseu e padres para civilizar os caboclos ingênuos nas comunidades da Amazônia paraense, mediante a alfabetização e escolarização, utilizando como fio condutor o rádio cativo no interior das escolas radiofônicas.
A adjacência caboclos ingênuos surgiu a partir das fontes identificadas. Nos relatos de dom Eliseu Maria Corolli é encontrado o referido termo, atribuído aos sujeitos, jovens e adultos que constituem a Prelazia do Guamá. É preciso destacar que falamos de um bispo italiano da Congregação dos Barnabitas que veio para Bragança, Sede da Prelazia do Guamá, no intuito de implantar o Sistema Educativo Radiofônico de Bragança14 a fim de obter mais adeptos para a Igreja Católica e evangelizar os caboclos da Amazônia.
Os caboclos ingênuos - jovens e adultos do SERB-eram pescadores, ribeirinhos, pequenos comerciantes, colonos, domésticas, marisqueiros, umbandistas, espíritas, protestantes, pajé se indígenas, sujeitos da Amazônia paraense que procuraram o SERB para aprendizagem. Por isso, suas identidades eram designadas pelo bispo como caboclos. Para Rodrigues (2006)15, o termo caboclo na Amazônia é entendido como uma condição relacional da superioridade de um grupo sobre o outro, vistos como rústicos e, em meio à modernidade, logo, associado a um estereótipo negativo.
Essa representação religiosa na Amazônia, no século XX, produz percepções de superioridades de um grupo e inferioridade de outro - a ponto de eles serem vistos como não civilizados, descendente de indígena, analfabeto e mestiço (índio, negros e branco). Portanto, os padres utilizavam esse termo para alcançar uma estratégia de imposição sobre o aumento de suas atividades pastorais em toda Prelazia do Guamá por meio das práticas culturais para alfabetizar e escolarizar os caboclos jovens e adultos.
No que se refere ao refinamento teórico de estratégias e táticas, dialogamos sob a perspectiva de Certeau (2014) que as considera como um estudo das práticas de consumo cultural, vistas como interdependentes. Suas distinções estão nos esquemas de operações formulados nos espaços institucionais, onde as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo de que as táticas podem utilizá-las, manipulá-las, não obedecendo determinada lei que atua num lugar.
Demonstramos a seguir a implantação dos sistemas educativos radiofônicos, por Estados e municípios, onde ocorreu o consumo dos rádios cativos nos mais variados Estados brasileiros, entre o período de 1961 a 1965, conforme o Mapa 1 e a Tabela 1.
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] (1960) 16.
No mapa é apresentada a aquisição e o consumo dos rádios cativos nos primeiros cinco anos dos trabalhos desenvolvidos pelo Movimento de Educação de Base (MEB), com os sistemas rádios educativos no Brasil. O consumo desses rádios circulava para além da sede central de cada Estado, pois eram nas comunidades de cada município e de cada Estado que eles foram utilizados, lugares, onde o acesso à informação era crucial para as populações rurais do Brasil. Para Certeau (2014), o conhecimento dos objetos de consumo nos permite compreender as representações e os comportamentos de uma sociedade, pois o ato de operar que os grupos exercem com os objetos de consumo fazem com que as práticas dos consumidores revelem as semelhança se as diferenças sobre esses objetos a partir da produção do lugar.
Conforme os documentos legais-apostila 1/Série a-Fundo MEB, acervo CEDIC (1961-1965) 17. No ano de 1961, foram implantadas no Brasil sete escolas
radiofônicas nos seguintes Estados: Goiânia, Pará, Natal, Pernambuco, Alagoas, Aracaju, Bahia, além dessas sete escolas, identificamos nove escolas radiofônicas, constituídas na capital e no interior dos Estados. Em1962, além das sete escolas que foram implantadas, existiam mais cinco escolas no Maranhão, Piauí, Ceará, Mato Grosso e Minas Gerais, totalizando 31 escolas nesse período. Em 1963, além das 12 escolas em funcionamento surgem mais duas escolas, uma no Estado do Amazonas e outra no Estado da Paraíba, que totalizam 59 escolas.
Em 1964, das 14 escolas em funcionamento foi implantada mais uma escola no Estado de Rondônia totalizando 54 escolas em 15 Estados que variavam para o ano seguinte com 51 escolas em 14 Estados. A seguir demonstramos, na Tabela 1 a implantação do Sistema Radiofônico de Bragança na Amazônia paraense, onde o consumo dos rádios ocorreu nos primeiros cinco anos de trabalho do Movimento de Educação de Base:
Estado (s) | 1961 | 1962 | 1963 | 1964 | 1965 |
Pará | Bragança | Bragança Conceição do Araguaia | Bragança Conceição do Araguaia Belém | Bragança Conceição do Araguaia - Belém Santarém | Bragança Conceição do Araguaia -Santarém |
Fonte: Centro de Documentação e Informação Científica [CEDIC-PUC-SP]. (1961-1965).
Conforme os dados na Tabela 1, observamos que o Sistema Educativo Radiofônico de Bragança foi o primeiro a ser implantado no Estado do Pará e, conforme a análise dos dados, em toda região Norte do Brasil, no ano de 1961, em conexão com mais seis escolas radiofônicas de outros Estados brasileiros18. Outro ponto a ser analisado, conforme a Tabela 1, é que no interior do Pará e na capital, a escola radiofônica de Bragança continua sendo a referência em um ensino via rádio, visto que, em 1962, é implantada a escola radiofônica de Conceição do Araguaia-PA.
Em 1963, essas escolas servem de experiências para as escolas radiofônicas da capital, em Belém do Pará. No ano de 1964, é implantada a escola radiofônica de Santarém e, em 1965, as escolas radiofônicas da capital são extintas pelo regime ditatorial. E a única escola que permanece vigente com seus trabalhos é a escola radiofônica de Bragança na Prelazia do Guamá. Para Coimbra (2003), em toda região da Amazônia paraense existia um coordenador do Movimento de Educação de Base Estadual para acompanhar tanto a implantação quanto a prática educativa das escolas radiofônicas, no sentido de identificar os processos de alfabetização pelos rádios. No Estado do Pará, o padre Aloísio da Silva Neno19 foi um dos principais coordenadores, que atuaram no período de 1960 até 1964.
Assim, é possível dizer que o SERB, localizado na Prelazia do Guamá, é um lugar de produção cultural e social. Certeau (2010, p. 65) diz que “[...] meu patoá representa minha relação como lugar [...]”, as questões da particularidade do lugar não se distanciam das questões globais, mas, é na compreensão sobre um determinado lugar, combinadas as práticas populares, política e socioeconômica, que se circunscreve a produção cultural do lugar e das atividades humanas, operadas pelos sujeitos. Eis a relevância dos rádios/receptores cativos em toda Prelazia do Guamá.
Na própria Amazônia paraense, existia, por meio das escolas radiofônicas, uma ação missionária de educação para os inúmeros fiéis que participaram desse ensino, aqui, entendemos que o Estado e a igreja caminhavam juntos para coibir o conjunto de ausências das políticas públicas sobre o analfabetismo, a escolaridade, a saúde, as organizações de associações e cooperativas e a constituição de líderes enquanto representantes para o desenvolvimento das comunidades, conforme Coimbra (2003), foi com esses objetivos que foi planejado e executado o ensino pelo rádio receptor nas escolas radiofônicas no território da Prelazia do Guamá. Assim, a partir desse mapa, identificamos algumas comunidades, onde houve o consumo dos receptores cativos e o funcionamento das escolas radiofônicas, no período de1960 a1971.
Municípios da Amazônia paraense | Algumas comunidades |
---|---|
Bragança | Mocambo, Bôca de Induá; S. Pedro de Induá; Cajueirinho; S. Sebastião de Induá; Capitão Poço; Capuateua; Zeuarí; BoaVista; Cajueirinho; Nova Colônia; Timbó. Bragança - (Nova Canindé, A. Montenegro; Bragança, Bacuriteua; Acarajó; Camutá, Campos; Riozinho). |
Augusto Corrêa | |
Ourém | |
Irituia | |
Capitão Poço | |
São Domingos do Capim | |
Santa Maria | |
São Miguel do Guamá | |
Viseu | |
Arquidiocese de Belém(1963) | |
BR 010 - BR316 | |
Km 47 - Pará- Maranhão (1970) | |
KM48 - Pará -Brasília (1971) | |
Paragominas |
Fonte: Prelazia do Guamá: livro do tombo (1971-1979), (n.d.).
Vale destacar que nem todos os municípios supracitados nesta tabela 2 formaram escolas radiofônicas desde o início do trabalho do SERB. Na primeira década de1960-Ourém; Irituia, Capitão Poço, Augusto Corrêa, São Domingos do Capim, Santa Maria, São Miguel do Guamá e Viseu foram os primeiros municípios a participarem da formação dos monitores e alunos com alfabetização de jovens e adultos pelo MEB. Enquanto na BR010 - BR316, KM47- Pará Maranhão, KM48 Pará-Brasília e Paragominas20 foram os municípios, onde a partir de 1970 foram instaladas escolas radiofônicas com outras formas de escolarização pelo MEB/SERB.
A partir de 1964, a maioria das escolas radiofônicas na região Nordeste foi fechada pela repressão do regime ditatorial no Brasil, conforme Fávero (2006). Na Amazônia paraense, as escolas foram se expandindo21 porque os bispos e os padres se tornaram coordenadores, ao denunciaram os militantes do Movimento de Educação de Base que atuavam à frente de suas instituições de ensino. Além disso, eles passaram a obter o apoio do governador Jarbas Passarinho, no Estado do Pará, para continuar as ações de alfabetização pela evangelização missionária nas escolas radiofônicas, segundo a assertiva de Coimbra (2003).
Assim, em cada município, constituído pela Prelazia do Guamá, existia um número de escolas e comunidades numa dimensão territorial, onde o deslocamento do bispo e dos padres era de difícil acesso, por isso, o consumo e a escuta rádio educativo tinha o intuito de elevar o desenvolvimento sobre as questões regionais, locais, de alunos e monitores, a partir do sentido de ouvir os conhecimentos transmitidos pelos professores-locutores do Comitê Central de Bragança.
O rádiocativo da philips: um artefato cultural de ensino para os caboclos ingênuos da amazônia paraense
O receptor cativo da Philips - o rádio Cativo tinha por finalidade transmitir os conteúdos advindos da voz dos professores-locutores do SERB para os alunos e monitores nas escolas radiofônicas da Prelazia do Guamá. Esse artefato cultural de ensino foi fabricado pela empresa Philips Eletronics, também denominada de Philips, é uma empresa holandesa que dês de189122 produz materiais de consumo para o mercado mundial.
A circulação dos rádios nos mais variados países também chega ao Brasil em 1935, quando a Philips criou uma subsidiária da Royal Philips Eletronics da Holanda. No Rio de Janeiro, a empresa Philips foi se expandindo também pelo consumo de rádios nos primeiros anos de 1924, o que demarcou a influência das empresas internacionais e seus produtos de consumo de energia e eletrônica no Brasil. Em 1960, a Philips firmou um escritório em Recife, um dos Estados pioneiros na utilização dos receptores cativos (A história da Philips..., 2018) com incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), logo, surgia a Philips Eletrônica do Nordeste (PHILINORTE), destinada à fabricação de receptores que serviu também para aquisição e alfabetização e escolarização dos jovens e adultos nas escolas radiofônicas como MEB.
Conforme o técnico da Rádio 1 do SERB,
[...] a Philips fabricou estes rádios exclusivamente para o Movimento de Educação de Base, o MEB, por isto que é difícil de encontrar estes rádios aqui em Bragança. Deixa eu te contar uma coisa, este rádio ele era diferente, porque era do tipo transistorizados e tinha um Trimmer23 que modificava a sintonia. Ele tinha o transistor, ele veio depois daqueles rádios valvulados. Tu sabe NE que os rádios tem uma série e, em cada série vai se modernizando [...] (Técnico da rádio 1, informação verbal)24.
Para compreensão desse dispositivo de recepção radiofônica que aqui nomeamos como um artefato cultural de ensino, mostramos a seguir, o receptor cativo fabricado pela S. A Philips do Brasil:
Fonte: Feitosa e Bitencourt (2014, p. 11)25.
Com base nas informações levantadas a partir dessa imagem (Figura 1) e das conversas informais com o técnico, propomo-nos a partir da cultura material escolar, presente nesse dispositivo, apontar os sentidos da recepção auditiva nas escolas radiofônicas. Para isso, foi exposta a estrutura externa e duas peças internas; as marcas na forma dos símbolos do rádio até identificar o símbolo do dispositivo em análise; e as estratégias de imposição e as táticas desviacionistas no uso desse receptor cativo da Philips. Nosso entendimento e tal qual o de Souza (2007) quando diz que os artefatos escolares estão vinculados a concepções pedagógicas, saberes, práticas e dimensões simbólicas, no cotidiano do universo escolar, atrelados ao aspecto significativo do espaço escolar - da cultura escolar.
Chartier (1990) menciona que as significações dos objetos produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas, culturais), que tendem a impor uma autoridade de um grupo em relação a outro. Tal imposição tem a intencionalidade de legitimar um projeto reformador para justificar aos indivíduos as suas escolhas e condutas nas mais variadas formas de ensino aos indivíduos.
Esse artefato cultural da Philips era revestido de Baquelite - uma resina externa resistente ao calor para melhor se adaptar aos espaços escolares das escolas radiofônicas, além disso, eram revestidos pelas cores bege na parte da frente e os lados com a cor preta. Ele pesava 2,5 kg e tinha as medidas de comprimento: 26 cm de largura e 15 de altura, assim, era viável manuseá-lo antes, durante e depois das aulas, seu peso era importante para que o monitor pudesse manejá-lo, pois alguns monitores não o deixavam na sala de aula, eles o levavam para suas residências e só o traziam no horário das aulas.
Na frente desse dispositivo existiam dois botões um de ligar e desligar e o outro quando era ligado já estava na sintonia, na frequência da emissora, que aparece embaixo entre os dois botões, aliás, a frequência era de uma única emissora. Além disso, era um receptor que funcionava na maioria das vezes com pilha, o que facilitava seu uso para as escolas radiofônicas, como as da Amazônia paraense, onde não existia energia elétrica.
No meio do rádio cativo da Philips, no SERB, identificamos um símbolo que indicava a marca da empresa Philips. O símbolo contido no rádio/receptor cativo da Philips, década de 1960 nas escolas radiofônicas da Prelazia do Guamá, Amazônia paraense, eram constituídos pelas cores bege com a cor vermelha na mesma forma de escudo e ondas dos rádios e estrelas representando as lâmpadas, contendo, ainda, a palavra Philips no interior do escudo e fora do círculo (Mundo das Marcas: a história da Philips, 2006).
Outro ponto interessante refere-se a algumas peças que compõem a estrutura do receptor cativo da Philips objeto - o Transistor e o Trimmer. O transistor (Curso prático de eletrônica em geral, 2019), formado por cristais de silício, foi utilizado nos rádios cativos das escolas radiofônicas e fabricados na década de 1950. Ele tinha a função de aumentar e chavear os sinais elétricos - (tinha a capacidade de fazer amplificações e alternar sinais). É um componente do circuito elétrico do rádio e seu nome vem do termo transfer resistor ou seja, é um dispositivo de resistor de transferência de sinais. Ele é importante porque pode funcionar como amplificador de sinais e regulador de tensão.
Os transistores e o Trimmer são vistos, nesta pesquisa, como duas peças que compõem o rádio e estiveram presentes nas escolas e compunham a cultura escolar e material das escolas radiofônicas como modos de fazer e apropriações específicas que geraram uma cultura material. Por isso, estes dois utensílios podem ser vistos como “[...] um dos componentes ligados ao mundo da educação [...]”, conforme Souza (2007, p. 176).
Os transistores na década de 1960 foram uma das invenções mais modernas para o rádio e no campo da eletrônica, porque ele substituiu as válvulas, esta que tinha também a capacidade de fazer amplificações, mas, seu custo, tamanho e o consumo de energia, eram maiores, por isso, o transistor a substituiu por ter menos custos para as empresas, foi fabricado em longa escala e passou a fazer parte dos circuitos de aparelhos eletrônicos.
O Trimmer é constituído por placas móveis que se encaixam em placas fixas quando se gira um eixo, sendo que ela se torna um capacitor de variável da sintonia. O Trimmer foi um componente elétrico que tinha uma fenda para os ajustes com chave e a sintonia das emissoras. Por ser um objeto pequeno, sua principal função era calibrar a sintonia do rádio no sentido de receber as ondas das estações advindas das emissoras, por isso permite variar sua posição correta e com volume alto. Esse dispositivo, fabricado para os rádios cativo das escolas radiofônicas da Prelazia do Guamá e do Brasil, tinha a finalidade da escuta de uma única emissora, aqui, a sintonia do SERB.
A estratégia de aquisição do receptor cativo transistorizado, por parte dos padres, era de evitar as campanhas contra as ligas camponesas similares das escolas radiofônicas do nordeste brasileiro, pois,
[...] Infelizmente já estão sendo organizados no interior do Pará as ligas camponesas de orientação comunista, como as de Pernambuco. Se a nossa Província Eclesiástica obedecer a uma única diretiva, orientada por uma única emissora, fácil será promover organizações rurais sob o controle da igreja Católica. Para alcançar todas estas vantagens apresentamos, outros sim, a proposta vantajosa e menos dispendiosa de um único transmissor para toda referida região (Prelazia do Guamá: livro do tombo (1971-1979), (n.d.), p. 9).
Dois objetos de comunicação são correlatos para a propagação das aulas ministradas pelos professores-locutores do SERB, os transmissores26, da Sede Central de Bragança que reproduziam as ondas eletromagnéticas até o receptor cativo da Philips, onde as ondas sonoras do rádio chegavam no interior da sala de aula na forma de conhecimentos aos alunos. Nesse âmbito, as estratégias de imposição usada pelos padres para escolher o tipo de transmissor e receptor tinham como função retirar as idéias comunistas dos conteúdos propagados pelos professores (durante o contexto da ditadura militar) a fim de assegurar a escuta de uma única emissora.
Segundo Coimbra (2003), o controle da Igreja Católica na Amazônia paraense durante os primeiros anos do regime militar, tinha por finalidade garantir a ordem e a paz entre os sujeitos constituídos nas escolas radiofônicas, entretanto, existiam sujeitos formados por dirigentes que atuavam no MEB - monitores e professores que transmitiam informações de outras emissoras da região nordeste27, a respeito de uma educação crítica emancipatória, (vista como ligas camponesas de orientação comunista), para que a população se conscientizasse e, consequentemente, reivindicassem os seus direitos negados na estrutura social do Brasil. De certa forma, isso gerou inúmeros conflitos internos vistos como uma ação de hostilidade às autoridades militares. Logo, a estratégia para o SERB foi sendo redimensionada, a de mudar os sujeitos militantes e além do rádio cativo, deixar apenas um transmissor para organizar a educação rural sob o controle da Igreja Católica.
Com base no segundo eixo de análise, a história das práticas nas suas diferenças, cuja questão é o que os sujeitos fazem como mesmo objeto que lhe são impostos? (Nunes &Carvalho, 2005). Identificamos que na medida em que os padres efetuavam cursos de capacitação para que os monitores operacionalizarem com êxito a sintonia dos rádios, obtendo conhecimentos básicos de eletrônica, nas próprias orientações das escolas, advindas dos técnicos da rádio, eles passaram a obter conhecimentos sobre a estrutura externa e interna do receptor e, em meio a diversos diálogos (paralelos) com os técnicos, sem a presença dos padres, perguntavam: “[...] que peça no Rádio poderiam ser mexidas para escutar outras emissoras? Ao serem orientados, eles abriam o receptor e interligavam os fios até o Trimmer do rádio, passando a escutar outras emissoras como a Difusora do Maranhão e do Piauí” (Técnico da rádio 2, informação verbal)28.
Esse depoimento do técnico da rádio revela o que Escolano (2017) defende as práticas culturais desenvolvidas nas escolas não devem ser silenciadas pelas instituições, criadas pelo Estado moderno para normatizar o modelo de professor e alunos que se postulam(vam) na historiografia. É necessário construir não uma postura totalmente contrária a essas tradições discursivas, mas compreendê-las, explicá-las e interpretá-las a partir de uma referência da realidade, de uma cultura empírica da escola que valoriza a cultura da prática dos sujeitos escolares como uso dos objetos e suas representações no interior das instituições para reconstruir uma cultura da práxis no território da educação formal e valorizar a experiência educativa e a realidade sociocultural.
Outro ponto a ser destacado,
[...] alguns monitores não conseguiam efetuar a mudança de emissoras quando abriam os receptores cativos. Aí, eles traziam os rádios para oficina do rádio aqui em Bragança, e eu descobria, eu sabia que eles estavam mexendo para sintonizar outra emissora, mas eles diziam que era problema no aparelho. Quando os Padres descobriram o que eles estavam fazendo, nos mandou soldar o Trimmer, aí eles não tinham como interligar os fios nesta peça e ficavam impossibilitado de escutar outras emissoras (Técnico do rádio 2, informação verbal)29.
As estratégias dos padres para garantir a escuta de uma única emissora se fizeram presente com a descoberta das práticas culturais dos monitores. A partir de 1971, todos os receptores que chegavam no SERB eram abertos e soldados seu Trimmer e só depois seriam distribuídas às escolas radiofônicas, esta foi uma medida que os padres tomaram para evitar e minimizar abertura desse rádio nas escolas radiofônicas.
Desse modo, o receptor cativo era utilizado como estratégia para alfabetizar os jovens e adultos somente pela mensagem do evangelho com a restrição de uma única emissora. Por outro lado, as táticas de apropriação dos sujeitos do MEB com os monitores - orientadores dos alunos nas comunidades nos indicam que estes utilizavam táticas subversivas para escutarem as outras emissoras pelo rádio. Assim, a recepção desse mesmo objeto representava dois tipos de formações do controle por parte dos padres e técnicos e por práticas culturais de astúcias dos monitores.
Chartier (1990) diz que a produção do sentido sobre determinado objeto escolar está sempre colocada em um campo de competições e disputas, onde se legitimam em termos de poder e lutas. As lutas sobre os artefatos, sua fabricação, usos e apropriação trazem representações que estão para além da imposição de um determinado grupo dominante, visto que as representações coletivas e as categorias mentais dos sujeitos escolares demarcam a própria organização social de um grupo.
Ora, temos então um artefato cultural que coaduna como contexto histórico em tela, fomentar a alfabetização e escolarização de jovens e adultos, forjando uma consciência cívica, do progresso e ainda evangelizadora na forma da inculcação de saberes aos caboclos ingênuos, jovens e adultos, e a outra na escuta de outras emissoras.
Julia (2001) argumenta que a inculcação na forma de saberes forma os sujeitos sob o regime (as normas) de uma tutela preocupada com as finalidades pedagógicas, que aqui, a presenciamos pela cultura nacional do século XX, a de controlar e manipular as consciências dos sujeitos escolares pelos projetos pedagógicos, mantendo o controle do ensino, relações de poderes no interior das instituições educativas.
Para Vidal (2009), as relações de poder, constituídas nas instituições educativas para os sujeitos escolares, têm o intuito de moldá-los pelas inúmeras permanências pedagógicas no interior da sala de aula. Gaspar da Silva e Petry (2012) dizem que a fabricação, a aquisição e os sentidos e significados dos objetos, utilizado nas instituições educativas, controlam os corpos e mentes dos sujeitos no interior das escolas. É evidente que os sujeitos escolares traduzem as estratégias de imposição do sistema, entre suas normas, dispositivos legais, em práticas culturais de inovações pedagógicas que são compreendidas pelas apropriações com os usos efeitos dos materiais escolares, dos espaços da escola e de seus tempos, de acordo com Vidal (2009).
Escolano (2017) afirma que as práticas culturais dos sujeitos sobrevivem aos processos de controle e exclusão das instituições que os autorregulam, por isso, é preciso compreender os silêncios e códigos existentes na educação institucionalizadas. Nesse sentido, dependendo dos sujeitos padres, bispos, monitores, alunos, professores-locutores, o receptor cativo é um mediador cultural que transita entre valores cristãos, com base na emancipação, entre outros conhecimentos.
Diante da compreensão e análise do receptor cativo da Philips, enquanto um artefato cultural, identificamos também que este dependia de outros materiais para receber as ondas eletromagnéticas. Adiante, observamos as instruções de instalação do receptor com seus suportes, na forma de um aviso do SERB aos monitores do Curso de Suprimento e recuperação da Alfabetização Funcional para as escolas radiofônicas da Prelazia do Guamá (Figura 2).
Fonte: Livro de tombo exames supletivos (1976 -1981) (n.d.).
Esse documento revela que a instalação do receptor - rádio nos rádios postos deveria estar acompanhada por alguns objetos de suporte de instalação do receptor: as antenas, as castanhas e os fios de cobre. As antenas no formato de um T que deveriam ser instaladas acima dos telhados de palhas, em cada uma de suas pontas deveriam ser encaixadas duas castanhas. Assim, esse objeto, além de interceptar as ondas eletromagnéticas advinda dos transmissores, ela se tornava um condutor elétrico até os rádios cativos da Philips e as duas castanhas funcionavam como isoladores das antenas.
Os monitores ou técnicos deveriam obter o conhecimento específico de que “[...] 2- A antena deve ser instalada na direção de Bragança, podendo proceder da seguinte maneira: olhar a direção de Bragança abrir os braços e fazer a colocação da antena no sentido dos braços abertos” (Prelazia do Guamá: livro do tombo (1971-1979 ), (n.d.)).É preciso mencionar que todos os monitores das escolas radiofônicas da Prelazia do Guamá em seus mais variados municípios, tinham o município de Bragança - Sede Central do SERB como referência para direcionar as antenas em uma determinada altura. Segundo a Técnica 1: “[...] a antena tinha um fio entre 04 a 10 metros de altura entre os telhados das escolas radiofônicas e o receptor cativo” (informação verbal)30. Assim, a antena era um dispositivo que tinha um fio de alimentação de descida para também captaras ondas eletromagnéticas até o receptor cativo.
Este saber de instalação da antena, castanhas e o fio de alimentação era primoroso porque permitia que as ondas eletromagnéticas dos transmissores chegassem com qualidade até as antenas instaladas em cada escola radiofônica na forma de frequência sonora para o receptor cativo da Philips. Tais práticas culturais orientadoras dos técnicos e padres do SERB perdurou por mais de 20 anos neste sistema de ensino. Para Souza (2007), o uso da tecnologia como elemento da cultura material escolar, amplia as discussões sobre os significados assumidos pelos objetos, particularmente, os sentidos que apresentam no interior das instituições educativas que podem até serem designados pela história das técnicas e da evolução científica do mercado industrial.
Além do fio da antena de descida, existia também (o terra)31, “[...] este não podia tocar nem na parede e nem no solo, colocava no ferro, era enrolado no ferro e este que ficava no chão” (Técnico1, informação verbal)32. Aqui o objeto de suporte do fio era importante porque ele era conectado na antena e descia até o receptor cativo que ficava localizado na sala de aula. Por isso, o fio terra também não poderia ser instalado em qualquer espaço, pois era preciso ter cuidado com as paredes e com os solos no cerne das escolas radiofônicas.
Como o próprio nome diz o fio (o terra), nome designado ao nosso planeta, este dispositivo é um condutor que tem a função de se conectar a terra e a outros dispositivos do rádio, evitando o escape de energia, tornando o local seguro, onde ela possa ser dissipada, seja por motivo de segurança em relação à descarga elétrica ou pela melhoria da acústica (do som do rádio) (Curso prático de eletrônica em geral, 2019). De certa forma, o fio terra contribui para o prolongamento de vida dos rádios.
O uso desses objetos de suporte de instalação do rádio, (antenas, castanhas, fios de descida, fio o[terra]), eram ensinados durante as formações dos cursos dos monitores, no Centro de Treinamento do SERB, onde eles recebiam capacitações de como manipular o rádio e esses suportes no interior da sala de aula. Além disso, por meio de documentos como este apresentado e pela própria rádio eram reforçadas as mesmas orientações pelos técnicos do SERB.
De certa maneira, o uso do receptor cativo da Philips, com os objetos de instalação do rádio no século XX, apontam para a utilização de uma tecnologia que tinha por finalidade educar os caboclos ingênuos, jovens e adultos. Para Souza (2007), os materiais escolares projetados pelo uso da tecnologia em pleno século XX foram aplicados ao ensino com princípios de uma pedagogia moderna, fundamentada nos avanços científicos da tecnologia educacional para uma comunicação em massa no interior das instituições educativas, por isso, os objetos devem ser definidos de acordo com seu uso, suas condições históricas e assim analisados como uma tecnologia da história da cultura material escolar.
Sobre o horário para o Curso de Suprimento e Alfabetização Funcional, a direção do SERB comunicava que seriam das18h às18h30 e 20h às 20h30 iria ser desenvolvido esse novo horário. Estas são algumas das informações e medidas que o SERB iria tomar para propagar as aulas para as escolas radiofônicas com seus respectivos caboclos jovens e adultos na Amazônia.
Diante do exposto foi possível compreender que as práticas culturais, desenvolvidas entre os sujeitos escolares, produziram no interior das escolas radiofônicas os sentidos da recepção auditiva, onde as ondas eletromagnéticas que vinham dos transmissores e chegavam até as antenas na forma de frequência, de onda sonora e cativa, para o receptor cativo da Philips possibilitar o ensino aos monitores e alunos que deveriam apreender os conhecimentos transmitidos pelos professores-locutores do SERB. Na Figura 3, apresentamos os sentidos da recepção auditiva, a partir da reconstituição de uma escola radiofônica na Amazônia paraense, em seu cotidiano, e os objetos de suporte do rádio no interior das salas de aulas, conforme as informações que foram alçadas nos documentos.
Fonte: O autor.
A reconstituição deste espaço escolar33 foi possível de ser compreendida e projetada em virtude dos sujeitos escolares (alunos e monitores) que éramos principais agentes sociais para organizar a sala de aula; a posição do receptor cativo, entre seus suportes do rádio, como as antenas, fios e castanhas possibilitavam que este objeto de comunicação e escolar se transformasse em um artefato cultural de ensino, por meio da propagação das ondas sonoras advindas do rádio.
Tais sentidos da recepção auditiva só foram possíveis de serem constituidores de um refinamento teórico e metodológico quando utilizamos Chartier (1990) como forma de apontara produção, a circulação, o uso e apropriações em relação ao cativo no interior deste Sistema e Escolas Radiofônicas do SERB.
Desse modo, efetuamos o movimento de compreensão dos sentidos sobre o rádio cativo “[...] como dando a ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e o que é representado, por outro a representação como exibição de uma apresentação pública de algo ou de alguém” (CHARTIER, 1990, p. 20).
Assim, os sentidos da recepção auditiva nos espaços escolares das escolas radiofônicas, funcionando nas residências dos monitores, que se estabelecem nos Comitês Paroquiais da Prelazia, são constituidores das categorias de classificações de artefatos que produziram a cultura material escolar no interior das escolas radiofônicas da Amazônia paraense: os artefatos de suporte para instalação do rádio (as antenas, as castanhas, fios de cobre e os transmissores) e o rádio/receptor cativo da Philips- um artefato cultural de ensino que tinha por objetivo alfabetizar e escolarizar os caboclos ingênuos na Amazônia paraense.
Considerações finais
A aquisição dos rádios/receptores cativos nas escolas radiofônicas do Brasil foi realizada pelo regime de convênio firmado como dispositivo na forma de decreto 50.370, onde a Igreja Católica e o governo consolidam uma parceria entre o Movimento de Educação de Base e as escolas radiofônicas em 1961.
Vale mencionar que no Brasil e na Amazônia paraense, o contexto do século XX, o Estado e a igreja caminhavam juntos para diminuir o analfabetismo, a ausência de escolaridade, a saúde, as organizações de associações e cooperativas e a constituição de líderes enquanto representantes para o desenvolvimento das comunidades. Com esses objetivos foi planejado e implantado o Sistema Educativo Radiofônico de Bragança, utilizando o rádio para os sujeitos pescadores artesanais, ribeirinhos, comerciantes, colonos, camponeses, domésticas e alguns líderes de comunidades.
O receptor cativo da Philips, o rádio educativo foi fabricado exclusivamente pela empresa Philips da Holanda, cuja fabricação, no Brasil, era feita por uma subsidiária Philips do Rio de Janeiro, momento ímpar, demarcando a influência das empresas internacionais e seus produtos de consumo de energia e eletrônica no Brasil e a circularidade dos objetos.
Uma análise relevante com relação à estrutura externa desse rádio é que ele tinha uma caixa de Baquelite que o tornava resistente, sendo adaptado ao clima da Amazônia, e uma marca de símbolo da própria empresa que apresenta o uso desse recurso para identificar seus objetos de consumo que, no receptor cativo da Philips, era constituído pelas cores bege com a cor vermelha na mesma forma de escudo e ondas dos rádios e estrelas, representando as lâmpadas, contendo, ainda, a palavra Philips no interior do escudo e fora do círculo. Ele pesava 2,5kg, isto possibilitava seu deslocamento no interior da sala de aula, inclusive para instalação e tinha apenas dois botões um de desligar/ligar e o outro para a escuta de uma única sintonia.
E de consenso que a aquisição dos rádios cativos no SERB compartilhava as mesmas práticas culturais de algumas escolas radiofônicas no Brasil, da escuta de uma única emissora pela educação evangelizadora. Contudo, o uso do rádio pelos monitores no SERB indicava duas práticas culturais: quando os monitores obtiveram conhecimentos sobre a eletrônica e a estrutura do rádio cativo, eles reinventaram o lugar das peças do rádio (Trimmer) para a escuta de outras emissoras como a Difusora do Maranhão e do Piauí, efetuando táticas desviacionistas para defender a educação crítica, com base na conscientização de seus alunos. Dessa forma, a ideia de representá-los como caboclos ingênuos, foi questionada, pois eles foram vistos como subversivos pelos padres por fomentarem campanhas das ligas camponesas comunistas. Por isso, para manter o controle, os padres mandaram soldar, a partir de 1971, todos os Trimmer dos rádios que chegavam no SERB, impossibilitando aos monitores e alunos a escuta de outras emissoras.
Dessa forma, é preciso compreender, ainda, que o uso do receptor cativo da Philips dependia de outros objetos de suporte do rádio e algumas orientações de instalação: as antenas no formato de T, as duas castanhas, os fios de alimentação das antenas e o fio terra. As antenas eram instaladas acima dos telhados de palhas, em cada uma de suas pontas deveriam ser encaixadas duas castanhas que servia de isolamento das antenas; tanto a antena quanto as castanhas interceptavam as ondas eletromagnéticas advindas dos transmissores.
As orientações eram que os monitores ou técnicos deveriam obter o conhecimento que a antena com as castanhas era instalada na direção de Bragança. Para isso, utilizavam a prática cultural de abrir os braços e fazer a colocação da antena olhando na direção de Bragança, ou seja, o município de Bragança - Sede Central do SERB foi a referência para direcionar as antenas nas escolas radiofônicas.
O fio de alimentação e o fio terra também necessitavam de saberes específicos: o primeiro permitia que as ondas eletromagnéticas chegassem com qualidade ao receptor cativo da Philips. Já o fio da antena de descida do terra, além de não poder ser tocado parede e nem no solo, o conectavam a um pequeno ferro (enrolado) que ficava no chão, isto impedia uma descarga elétrica bem como melhorava a acústica (do som do rádio). Entendemos o uso das antenas, castanhas, fios de alimentação do rádio e fio de descida (o terra) como os objetos de instalação do rádio. No ato de operar, os monitores e os técnicos necessitavam obter um saber específico para o funcionamento dos receptores cativos no interior das escolas radiofônicas.
Desse modo, os artefatos culturais de comunicação e ensino no interior das escolas radiofônicas foram analisados pela fabricação, usos, circulação e apropriações que apresentaram as mais variadas estratégias de imposição e táticas de apropriação, subversão e adequação. Por isso, compreendemos o uso do receptor cativo pelos sentidos da recepção auditiva - onde as ondas eletromagnéticas que vinham dos transmissores e chegavam até as antenas na forma de frequência de onda sonora e cativa - para possibilitar o ensino aos caboclos na Amazônia paraense estavam permeadas pelas representações de educação evangelizadora e crítica no cerne das escolas radiofônicas. Tais sentidos, não foram restritos pela linguagem da eletrônica sobre a ‘transmissão radiofônica e a recepção radiofônica’, porque só foi possível de compreender e analisar os diferentes modos de fazer e ver como rádio cativo, pelos principais protagonistas desta experiência educativa: os sujeitos escolares que produziram os sentidos da recepção auditiva no SERB.
É possível dizer ainda que os estudos sobre a história da educação radiofônica na Amazônia paraense são raros. Eles poderiam ser operados, ainda, sob a ótica da educação a distância, das políticas públicas da EJA, de uma perspectiva de colonial porque se tem a igreja colonizando os sujeitos caboclos da Amazônia; um estudo sobre a educação rural no Estado do Pará e Brasil; é possível firmar, ainda, que este estudo converge com a história do tempo presente, pois, mesmo sendo no período de 1960 a 1971, são vivenciados os conflitos culturais de uma educação crítica e evangelizadora no atual governo e que no SERB existe uma educação que se diferencia da educação formal, de outras instituições, na metade do século XX.
Nesse âmbito, os sentidos da recepção auditiva foram constituídos pela principal chave de análise deste estudo, a cultura material escolar nas escolas radiofônicas, identificada no uso dos objetos de suporte para instalação do rádio (as antenas, as castanhas, fios de cobre e transmissores); e no artefato cultural de ensino (intitulado como receptor cativo da Philips - o rádio cativo). Eis o motivo pelo qual era necessário obter saberes sobre a eletrônica e comunicação para manusear esses objetos, cuja finalidade educativa era a de transmitir um ensino aos caboclos ingênuos jovens e adultos e monitores para os comitês paroquiais, onde funcionavam as escolas radiofônicas da Prelazia do Guamá, Amazônia paraense.