Introdução
O debate e a formulação do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 envolveram uma gama diversa de atores da Sociedade Civil e da Sociedade Política. A construção desse documento estabeleceu os procedimentos de conferências locais e/ou microrregionais, estaduais e regionais como etapas preparatórias da Conferência Nacional de Educação (CONAE). Assim, a construção do Plano esteve alinhada aos anseios de participação da Sociedade Civil no processo decisório dessa política educacional. Vale lembrar que, alguns anos antes, tais anseios foram frustrados no PNE de 2001 quando o texto base do poder executivo nacional suplantou o texto construído pela Sociedade Civil.
A preocupação em garantir e legitimar a participação da Sociedade Civil na formulação dos planos educacionais subnacionais (estaduais, distrital e municipais), em alinhamento com o PNE 2014, foi, então, inscrita no corpo da lei e se constituiu enquanto princípio da discussão do plano nos territórios.
Para examinar essa questão, objetivou-se investigar, analisar e explicar como ocorreu a institucionalização da participação da Sociedade Civil na formulação dos Planos Municipais de Educação (PMEs) dos municípios de Rio Verde-GO, Jataí-GO e SerranópolisGO entre os anos de 2014 e 2020. Em resumo, este artigo adota, como objeto de análise, o processo de institucionalização da participação em planos municipais de educação.
A metodologia da pesquisa teve como pressuposto os processos de reconstrução social (ALONSO, 2016) e se apoiou nas metodologias da (i) pesquisa bibliográfica (MARCONI; LAKATOS, 2010), tendo como aporte pesquisas e publicações concernentes a planos educacionais e a processos participativos da Sociedade Civil; (ii) da pesquisa documental (KRIPKA; SHELLER; BONOTTO, 2015), que tratou da análise dos documentos oficiais e oficiosos sobre a formulação dos PMEs investigados; e da (iii) pesquisa de campo por meio dos instrumentos questionário on-line (TORINI, 2016) e entrevista (LIMA, 2016), recorrendo aos sujeitos que integraram a discussão da formulação dos PMEs nos três municípios estudados2.
Do PNE aos PMEs: o desdobramento do planejamento educacional participativo
A promulgação do PNE 2014-2024 tem sido considerada um marco referencial para as ações de planejamento educacional de médio e longo prazo, não somente para a União, mas também para os outros entes federados, especialmente os municípios brasileiros (SOUZA; MARTINS, 2014). Isso porque, ao tratarem da matéria, os legisladores desdobraram e ampliaram a ação de construção de planos educacionais para os demais entes.
Além disso, houve significativo incentivo a partir da vinculação da elaboração dos planos como um dos pré-requisitos para que um município recebesse repasses de recursos advindos da exploração petrolífera (BORGES; CONCEIÇÃO, 2017).
Vale destacar que, segundo Saviani (1999, p. 131), “nem a Constituição nem a LDB preveem a competência dos municípios para elaborar planos de educação”, mas também não a proíbem, permitindo, assim, sua elaboração e execução. Em ressalva, o autor destaca que a previsão da Constituição e da LDB de facultar aos municípios a “opção por organizar os sistemas municipais de educação implica, a fortiori, a formulação de planos municipais de educação” (id., ibid.).
Entretanto, embora houvesse alguma previsão anterior relativa aos planos municipais, em muitos municípios e em alguns estados só houve articulação à elaboração desses documentos a partir da aprovação do PNE 2014-2024. Assim, desse marco em diante, inúmeras autoridades municipais, representações da Sociedade Civil e instituições de ensino começaram a se organizar no intuito de construir e formular aquilo que seria, para diversas regiões, o primeiro Plano Municipal de Educação (PME), articulando os diversos níveis, etapas e modalidades educacionais ofertadas no território.
Segundo Souza e Martins (2014, p. 14),
chegado ao término da vigência do PNE 2001-2010, já em 2011, contabilizou-se a existência de 2.181 municípios (39,2% de 5.565) sem PME, enquanto, mais recentemente, em 2014, o montante é de 14 Estados sem PEE [Plano Estadual de Educação] (54% do total de 26), em paralelo ao vácuo também gerado pela inexistência de um Pedf (sic) [Plano de Educação do Distrito Federal].
Sobre esse aspecto, vale ressaltar que a exigência normativa de criação de planos de educação subnacionais já havia sido estabelecida na lei nº 10.172, do PNE 2001-2011, mas não indicava prazo de exequibilidade e tampouco vinculava uma assistência técnicafinanceira do Ministério da Educação à existência e elaboração desses documentos.
Além da possibilidade de repasses futuros dos ganhos econômicos da chamada camada do pré-sal, como apontado por Borges e Conceição (2017), o MEC passou a condicionar esses repasses à construção do Plano de Ações Articuladas (PAR). Dessa maneira, em consequência, a assistência técnica e financeira passou a ser vinculada a metas e estratégias dos planos decenais dos entes subnacionais.
Oliveira (2011, p. 329) abaliza a caracterização necessária dos planos de educação como políticas de Estado, entendidas como “aquelas que envolvem mais de uma agência do Estado, passando em geral pelo Parlamento ou por instâncias diversas de discussão resultando em mudanças de outras normas ou disposições preexistentes, com incidência em setores mais amplos da sociedade”. A definição de plano de educação traçada por Monlevade (2004, p. 34) corrobora com esse entendimento:
os poderes públicos, exercidos por sucessivos governos centrais, regionais e locais, desafiados pelas demandas de escolarização, projetam e executam ações, satisfazendo mais ou menos desejos da população e os objetivos do próprio estado. Entre as intenções e os resultados das ações se estabelece uma permanente incompletude, uma maior ou menor tensão. O plano é o aperfeiçoamento científico e democrático da política. Pode-se definir um plano de educação como um conjunto de estratégias com que o poder público responde às demandas educacionais da sociedade, por meio de um diagnóstico científico e de uma escolha democrática de metas, ações e recursos que garantam a consecução dos objetivos.
A adesão dos planos de educação como integrantes de políticas de Estado tem sido apontada por vários expoentes da literatura como meio possível e capaz de superar a descontinuidade, fragmentação, focalização e dispersão das políticas educacionais brasileiras (CURY, 2009; DOURADO, 2007; OLIVEIRA, 2011; SAVIANI, 2014; SOUZA; MARTINS, 2014), fundando um caminho à organicidade das ações públicas em educação.
Dourado (2007) assinala que entender os planos de educação como planos de Estado implica reconhecer, ainda notadamente, o Plano Nacional de Educação como uma política de Estado - mas não somente. Advoga o autor que o caráter de política de Estado é também aplicável aos planos estaduais, municipais e distrital, demonstrando necessário e respectivo redimensionamento das políticas.
Para Oliveira (2011), a fragmentação das políticas educacionais identificada no governo central também pode ser observada nos entes subnacionais. Para a autora,
o contexto de reformas instaurado nos anos de 1990, legitimado pela crise da escola ou pelo declínio de uma forma escolar canônica de socialização definida como um programa institucional, como o define Dubet (2004), criou um ambiente propício à mudança ou mesmo à inovação que, em muitos casos, representou a negação de valores, culturais e tradições constituintes do ambiente escolar e do ofício docente. [...] Esse clima, somado ao modelo de gestão implantado a partir dessas reformas - maior flexibilidade, descentralização e desregulamentação -, contribuiu para a dispersão de experiências e modelos de organização escolar e de descontinuidades de políticas nos âmbitos estaduais e municipais; mais uma vez as políticas eram de governo e não de Estado.
Nesse sentido, este trabalho subsidia e estabelece concordância com Dourado (2007) em sua compreensão dos planos municipais de educação como expressão de políticas de Estado. Assim, compreende-se os PMEs como elementos planejadores das demandas educacionais da sociedade, de forma a buscar a superação da descontinuidade das ações governamentais no nível local. Entende-se, ainda, que o caráter de política de Estado dos planos de educação vai além da simples diferença temporal de exequibilidade em relação aos Planos Plurianuais (PPA), instrumento de planejamento geral de um governo eleito para o período de um mandato eletivo de quatro anos.
Pindado (2009) assevera que, em regimes democráticos, importa não somente resolver os problemas coletivos, mas também as formas em que se dá essa resolução. Em adição, Bordignon (2014), Cury (2009) e Dourado (2009) apontam para a existência de um outro critério a ser atendido na configuração de uma política de Estado: essa necessita surgir e ser desenhada como expressão das demandas da sociedade, devendo, portanto, envolver a possibilidade de ampla discussão, debate de posicionamentos divergentes e diálogo entre Sociedade Civil e Sociedade Política. Em resumo, uma política de Estado implica uma eminente participação sociopolítica.
Vale relembrar que o artigo oitavo da lei nº 13.005/2014, em seu segundo parágrafo, estabelece a necessidade da participação da sociedade na elaboração dos planos. Para Basílio (2018), os mecanismos participativos dos planos educacionais delineiam que embora “a responsabilidade seja do Estado, a construção dessas etapas precisa ser dividida com a comunidade educativa e outros segmentos sociais interessados e atingidos pelos efeitos dessas políticas” (id., ibid., n.p.).
Ao estabelecer a participação da Sociedade Civil por força de lei, os entes subnacionais passaram a organizar grupos de elaboração do documento, integrando representações governamentais, representações da comunidade escolar (estabelecimentos públicos e privados) e representações da própria Sociedade Civil, ao menos como indica a normatização e os documentos orientadores ulteriores.
Apesar disso, a inscrição da participação nos planos municipais de educação, compreendidos como política de Estado e em tese realizados na construção do interesse coletivo, implica em grande desafio para a materialidade desse direito, variando segundo os sentidos e os significados que os sujeitos traduzem e compreendem a respeito desse instrumento da política. Em outras palavras, essa efetivação depende da mobilização (CURY, 2009) ou, em termo utilizado por Gohn (2019), do engajamento com esse exercício participativo.
O que entendemos por participação?
A participação ou o direito a tomar parte e influir nas decisões da vida social e política, assim como o direito ao associativismo, tem sido considerada pela literatura como um dos direitos políticos conquistados por meio de várias lutas e movimentos sociais empreendidos pela Sociedade Civil. Essa luta e suas conquistas advieram de uma compreensão mais ampla de como a Sociedade Civil, os movimentos sociais e os sujeitos individuais poderiam/podem atuar de forma mais decisiva e menos esporádica no processo decisório das políticas públicas (DALARI, 2013).
No Brasil, em especial, a luta pela participação tem forte vinculação com os processos históricos de formação da nação brasileira e com os períodos políticos, ora mais autoritários, ora mais democráticos (CURY, 2002).
A respeito da participação, adota-se neste artigo o conceito analítico de Gohn (2018), em que
o entendimento dos processos de participação da Sociedade Civil e sua presença nas políticas públicas nos conduz ao entendimento do processo de democratização da sociedade. O resgate dos processos de participação leva-nos, portanto, às lutas sociais que têm sido travadas pela sociedade para ter acesso aos diretos sociais e à cidadania. Neste sentido, a participação é, também, lutas por melhores condições de vida e aos benefícios da civilização [...] a participação objetiva fortalecer a Sociedade Civil para a construção de caminhos que apontem para uma nova realidade social, sem injustiças, exclusões, desigualdades, discriminações etc. O pluralismo é a marca desta concepção de participação na qual, os partidos políticos não são os únicos atores importantes, há que se considerar também os movimentos sociais e os agentes de organização da participação social, os quais são múltiplos. Uma gama variada de experiências associativas é considerada relevante no processo participativo tais como grupos de jovens, de idosos, de moradores de bairros etc. Os entes principais que compõem os processos participativos são vistos como “sujeitos sociais” - não se trata, portanto, de indivíduos isolados e nem de indivíduos membros de uma dada classe social (GOHN, 2018, p. 69-71).
Diferentes tratamentos terminológicos são dados à temática da participação pela literatura especializada. As principais terminologias encontradas incluem: participação social (DOURADO; GROSSI JUNIOR; FURTADO, 2016); participação política (DALLARI, 2013); e participação sociopolítica (GOHN, 2011)3. Neste trabalho, adotamos a expressão “participação sociopolítica”, nomenclatura também utilizada por Gohn (2011), entendendo esse como o melhor termo para o estudo das relações entre a Sociedade Civil e a educação, pois privilegia tanto os aspectos sociais quanto os políticos. Importa à participação sociopolítica a análise dos elementos sociais e políticos em um mesmo plano, complementarmente.
Soma-se a isso a abrangência da observação das relações estabelecidas entre a Sociedade Civil e a Sociedade Política no tratamento da participação. De acordo com Gohn (2019), os estudos sobre a participação social implicam duas dimensões: o olhar sobre as ações da Sociedade Civil e o olhar sobre as ações do Estado4.
Historicamente, no Brasil, a Sociedade Civil buscou construir a participação na definição das políticas públicas a partir do associativismo, dos coletivos, dos protestos e dos movimentos sociais5. Por outro lado, o Estado passou a adotar a participação, a partir da década de 1990, institucionalizando-a no interior do aparelho do Estado.
É a partir dessa relação e da tensão existente entre os distintos interesses identificados na Sociedade Civil e na Sociedade Política que o debate no campo educacional se constitui enquanto política pública e, nesse sentido, amplia as possibilidades de participação em sua definição.
Participação: proposição e orquestração
A luta pelo direito de participar na definição das políticas públicas atravessou parte significativa da história brasileira e, apenas tardiamente, resultou em sua consolidação como direito político.
Como aponta Gohn (2019, p. 102), a partir de 1988, a “participação e controle social passaram a ser diretrizes e normativas, regulamentadas por leis e programas sociais [...]. Tornaram-se políticas públicas e, em alguns casos, buscou-se transformá-las em políticas de Estado”. Em consonância com os processos de democratização da gestão das políticas públicas,
no discurso pedagógico, a gestão democrática da educação está associada ao estabelecimento de mecanismos institucionais e à organização de ações que desencadeiem processos de participação social: na formulação de políticas educacionais; na determinação de objetivos e fins da educação; no planejamento; nas tomadas de decisão; na definição sobre alocação de recursos e necessidades de investimento; na execução das deliberações; nos momentos de avaliação. Esses processos devem garantir e mobilizar a presença dos diferentes atores envolvidos nesse campo, no que se refere aos sistemas, de um modo geral, e nas unidades de ensino - as escolas e universidades (LUCE; MEDEIROS, 2006, p. 4 -5).
No campo da educação, o direito à participação passou a ser expresso, principalmente, na forma dos princípios da gestão democrática e do controle social. Nesse sentido, foram criadas e desenvolvidas instâncias e práticas no interior das escolas e no desenho das políticas educacionais. Esse movimento tanto se deve à luta pela redemocratização e permeabilidade do poder político empreendido pela Sociedade Civil a partir do final dos anos 1970 e início da década de 1980, como pela força da regulamentação - em boa medida, estruturada em consequência da reivindicação social.
Esse desdobramento normativo-jurídico impôs novas demandas à educação e sua gestão, em especial para os municípios, cujas práticas e políticas passam a ser perpassadas pelas alterações promovidas pela recém-estabelecida ordem constitucional e por novos contextos sociopolíticos e econômicos.
Segundo Arretche (2004), enquanto o autoritarismo e a centralização eram percebidos como herança do regime militar, havia certo consenso sobre as virtudes da descentralização. Esperava-se que a descentralização fosse capaz de produzir eficiência, promover a participação no processo decisório e aumentar a transparência e responsabilização dos gastos públicos.
A Constituição Cidadã, assim, “renovou” as expectativas de concretização de um federalismo real e democrático. De fato, observa-se que, em relação aos federalismos anteriores, a nova organização política empenhou, em certa medida, uma mais enfática descentralização administrativa em relação aos estados, Distrito Federal e municípios, definindo algumas competências entre os entes (SOARES; MACHADO, 2018).
Se as ações de descentralização e de gestão democrática e participativa passaram a influenciar a gestão da educação, ao mesmo tempo e de forma contraditória, ganha destaque uma “nova” e ascendente forma de gestão de educação, a conhecida Nova Gestão Pública (NGP), que toma como lastro o neoliberalismo, a “cultura de auditoria” e as políticas de incentivo baseadas no mercado (ANDERSON, 2017). Anderson (2017) afirma que a NGP opera de maneira criativa para a destruição do setor público em vista da consequente transferência de recursos públicos para o setor privado - que, em tese, se responsabilizaria por oferecer serviços públicos de melhor qualidade.
Azevedo (2004, p. 13) já alertava para as contradições desse formato de gestão quando se deu a adoção da abordagem neoliberal na condução das políticas sociais, em que a “referência básica é igualmente o livre mercado”, conforme se observou, posteriormente, na política educacional. Para a autora, a abordagem neoliberal postula
que os poderes públicos devem transferir ou dividir suas responsabilidades administrativas com o setor privado, um meio de estimular a competição e o aquecimento do mercado, mantendo-se o padrão de qualidade na oferta dos serviços. As famílias teriam, assim, a chance de exercitar o direito de livre escolha do tipo de educação desejada para os seus filhos. Ao mesmo tempo, minar-se-ia o monopólio estatal existente na área, diminuindo-se o corpo burocrático, a máquina administrativa e, consequentemente, os gastos públicos (AZEVEDO, 2004, p. 15).
Dessa forma, essa corrente de pensamento parte do pressuposto de que o Estado evitaria inibir a livre iniciativa e não criaria “beneficiários à acomodação e à dependência dos subsídios estatais” (idem, ibidem). Em outras palavras, seus defensores buscam a redução da atuação do Estado em favor das regulações do mercado.
Essa é a lógica predominante que passa a ser operada na gestão pública brasileira a partir do final da década de 1980 e início da década de 1990, consagrada na Reforma do Aparelho do Estado de Bresser-Pereira, resultando em tensionamentos adicionais na gestão da educação: a implantação da cultura de avaliações externas padronizadas e seus rankings; a política de incentivos aos professores baseadas no mérito individual em contraposição à coletividade e aos sindicatos; a transferência de recursos públicos para organizações privadas, entre ONGs e Organizações Sociais (OS), que se incubem de oferecer serviços educacionais de “boa” qualidade; a criação de “quasemercados” educacionais (ANDERSON, 2017), entre outras medidas.
Todas essas dimensões normativas e simbólicas passaram a atravessar a produção e a implementação das políticas educacionais a partir da redemocratização brasileira. Nesse sentido, ao adotar o princípio da gestão democrática perpassada pelo federalismo e pelo regime de colaboração com os outros entes federados de um lado e, de outro, estruturar suas políticas pelo centralismo adotado pelo governo central, orientado pela difusão do ideário de Bretton Woods e da adoção do neoliberalismo como matriz de reforma do Estado, a gestão pública restou em uma encruzilhada. Nesse contexto de confrontação, a gestão da educação se tornou ainda mais complexa, passando a ser tensionada por polos opostos. Afinal, há flagrante aspecto contraditório entre a democratização do poder decisório, aliado ao princípio de garantia dos direitos civis, sociais e políticos assegurados na Constituição Cidadã, e a busca pelo encolhimento do Estado, com sua consequente desresponsabilização social via outorga de competências.
A experiência de três municípios do Sudoeste Goiano
Os municípios de Rio Verde-GO, Jataí-GO e Serranópolis-GO, que compuseram nosso contexto de estudo sobre a participação da Sociedade Civil nos processos de elaboração dos Planos Municipais de Educação, localizam-se na região de planejamento conhecida como Sudoeste Goiano6.
A partir de pesquisa realizada e da análise dos resultados, foi possível identificar duas lógicas distintas de organização e funcionamento da participação da Sociedade Civil nos PMEs desses municípios7.
Sobre as representações da Sociedade Civil na prática da participação, em dois desses municípios foi possível verificar uma participação “mediada” a partir de convites da Sociedade Política a determinadas instituições, sem livre adesão das representações e das instituições à temática dos Planos Municipais de Educação. Um sintoma dessa prática está, por exemplo, na nãoparticipação dos sindicatos dos servidores da educação pública nos municípios de Rio Verde-GO e Serranópolis-GO, além da nãoparticipação da escola privada existente nesse último.
Entre os municípios estudados, foi notável a lógica do convite em Rio Verde-GO e Serranópolis-GO. Os PMEs dos dois municípios foram formulados, monitorados e avaliados apenas pelas representações convidadas a participar dos processos. Portanto, não se tratou de processos participativos abertos a todos, mas apenas aos previamente selecionados segundo os interesses do grupo responsável pela formulação do documento.
Nesses dois planos de educação, o princípio da participação foi organizado - se não deformado - de modo muito semelhante, com base na exclusão de grupos e instâncias por meio de um convite de caráter exclusivo. Sani (1998) reforça que a construção de uma tipologia da participação pode partir desde o caráter de espectador até o nível da partilha de poder. Para o caso dos municípios supracitados, cunhamos uma tipologia que os define nos seus aspectos de semelhança do convite: a “participação autorizada”.
A “participação autorizada” se refere à lógica de instrumentalizar a participação necessária aos planos municipais de educação de modo a reduzir os efeitos potenciais de uma participação ampliada. Assim, o convite serviu como autorização de manifestação aos atores e organizações simpáticas à coordenação dos planos e à Sociedade Política daquele momento e localidade. Logo, os efeitos da participação, ao menos nesses casos, não ofereceriam “riscos à gestão”. Em suma, os convidados não se apresentavam em contraponto ao pensamento governamental-administrativo da cidade.
Se, por um lado, a “participação autorizada” serviu para consolidar a lógica estatal administrativa, por outro, diametralmente oposto, reduziu a arena e as possibilidades de expressão e manifestação da Sociedade Civil. O poder decisório e o desenho da política educacional de curto, médio e longo prazo não foram democratizados e continuaram sob a influência direta dos gabinetes mandatários. A “participação autorizada”, nesse sentido, funcionou apenas como mecanismo de legitimação do plano de educação, que foi apresentado e voltado unicamente ao atendimento da normatização jurídica - e não em seu real potencial de influir na política educacional do município.
De tal forma, a participação como diretriz e eixo articulador dos planos não se concretizou sob a perspectiva da participação sociopolítica adotada neste estudo. Não significou, portanto, a possibilidade de luta por melhores condições de vida e pela partilha dos benefícios da civilização.
No terceiro município, Jataí-GO, o processo de participação no Plano Municipal de Educação se desenvolveu de forma distinta. As características sociopolíticas consideravelmente diversas em relação aos outros dois municípios, como a forte presença de instituições públicas de ensino superior e a atuação política dos participantes do PME, além da considerável cultura associativista no campo da educação e da pesquisa, contribuíram para a conformação de uma outra trajetória. Corrobora o fato de o município ser o único dos três que alcançou êxito na regulamentação, composição e exercício do Fórum Municipal de Educação.
Nesse município, a participação da Sociedade Civil se constituiu em força motriz da formulação do PME, na expressão das necessidades públicas e em sua efetiva legitimação, ainda que essa tenha restado sabotada - conforme explicaremos. Em JataíGO, as representações da Sociedade Civil participaram do debate, do diagnóstico, da escrita e da formulação do PME. Participaram também da retificação do documento final em audiência pública. Esse processo contou, ainda, com participações da Sociedade Política. Configurado o texto do PME, o documento foi encaminhado para a Secretaria de Educação e, depois, seguiu para o prefeito. Por sua vez, o prefeito deu encaminhamento ao projeto de lei do PME para a Câmara Municipal, na qual foi protocolado.
Entretanto, em meio aos debates sobre o plano na Câmara Municipal, o texto foi substituído pelo Executivo repentinamente, sem que esse fato fosse registrado e comunicado. O Executivo apresentou um projeto de sua autoria única e exclusiva8. Naquele momento, as forças sociais, unidas em torno da aprovação do PME, conseguiram barrar a tramitação do projeto de lei do Executivo - que não havia passado pela participação ou sanção da Sociedade Civil. Uma mesa de negociação foi instaurada com representações do Grupo Gestor da formulação do PME, do Executivo Municipal e com os próprios vereadores. Ao fim da negociação, foi construída uma terceira versão do projeto de lei do PME, centrado nas responsabilidades da administração municipal e excessivamente preocupado em construir garantias jurídicas ao chefe do Poder Executivo, consolidando o texto que foi, então, aprovado.
A essa experiência, atribuímos o termo “participação sabotada”. Segundo os dados e relatos colhidos, o Executivo Municipal agiu de modo a enfraquecer a participação da Sociedade Civil na construção do Plano Municipal de Educação.
Desse modo, existiu ação orientada e intencional para reduzir, minar e desconsiderar exatamente os efeitos sociopolíticos da participação da Sociedade Civil. Sob argumentos de respeito à lei de Responsabilidade Fiscal, a atuação dos gestores municipais se pautou na redução dos investimentos em educação pública, na pactuação de mecanismos de avaliação “custo/benefício da qualidade de cada escola e seus servidores”; e em vista de “propor regras de cobrança de resultados que melhorem esses custos/benefícios”. Em outras palavras, esteve pautada na Nova Gestão Pública, que pressupõe a adoção de mecanismos de terceirização, de responsabilização e de accountability, corrente fortemente baseada na transposição de mecanismos da gestão empresarial para a gestão pública.
Desse modo, a prática da participação no PME de Jataí-GO também não logrou todos os efeitos positivos esperados pela Sociedade Civil na construção do documento, ainda que, no limite de suas tensões, tenha possibilitado alguns enfrentamentos face às práticas centralizadoras adotadas pela Sociedade Política naquele município.
Esse quadro de contrariedade àquilo inscrito sobre a participação no PNE não aconteceu com exclusividade nos municípios estudados. É preciso ressaltar também o refluxo das práticas participativas na conjuntura sociopolítica nacional. Como aponta Gohn (2019), desde 2015, o país vive um cenário de retração e desmobilização da participação, especialmente no contexto de institucionalização do desmonte inserido na própria estrutura administrativa do Governo Federal.
Entendemos que a forma de escolha consagrada nesses municípios está vinculada diretamente à Nova Gestão Pública em suas lides do gerencialismo e da meritocracia. Conforme já discutido, importa à NGP a adoção de critérios empresariais a serem aplicados nos serviços públicos, a educação dentre eles, impulsionando mudanças estruturais e organizacionais de modo a promover a adaptação das políticas públicas aos cenários das reformas de Estado, a partir de preceitos do neoliberalismo, como apontando por Anderson (2017).
Considerações Finais
Em retomada da categoria de análise desse trabalho - a participação sociopolítica na perspectiva cunhada por Gohn (2018) -, em relação à análise dos processos participativos que ocorreram nos Planos Municipais de Educação de Rio Verde-GO, JataíGO e Serranópolis-GO, compreende-se uma continuidade da negação do direito político efetivo de participar.
O aspecto formal da participação esteve contido nas experiências dos três municípios, em maior ou menor termo. A participação dos profissionais da educação, da comunidade escolar e de representantes da Sociedade Civil esteve prevista tanto no PNE de 2014 quanto nos PMEs de 2015, aqui analisados. Ocorreram ainda reuniões, encontros e audiências públicas voltadas para o debate da realidade educacional local e para a proposição de estratégias voltadas a avançar na oferta da educação de boa qualidade. Assim, a participação, ao menos em seu aspecto formal, esteve configurada e atendeu aos dispositivos da normatização jurídica.
Entretanto, uma participação sociopolítica efetiva, entendida nas lides das “lutas sociais [...] para ter acesso aos diretos sociais e à cidadania” (GOHN, 2018, p. 70), não se concretizou na prática social. Em dois municípios, os PMEs foram impedidos de se constituírem como instrumentos de luta por melhores condições de vida, permitindo apenas representações convidadas. No caso de Jataí-GO, quando o embate ocorreu de forma exitosa para o conjunto da Sociedade Civil e o produto dessa participação apontava para a partilha dos benefícios da civilização, em especial no que se referiu ao incremento do financiamento da educação, o documento resultante desse esforço verdadeiramente participativo foi sabotado em pleno debate legislativo.
Avaliada segundo seus efeitos (GOHN, 2011; LAVALLE, 2011), a participação sociopolítica nos Planos Municipais de Educação de todos os municípios analisados não pôde se efetivar em sua completude, ou seja, não alcançou a totalidade de suas proposições. A mudança da conjuntura política nacional, a forte ingerência das gestões municipais e a adoção de práticas da Nova Gestão Pública atravessaram a participação nos Planos Municipais de Educação de Rio Verde-GO, Jataí-GO e Serranópolis-GO.
Embora muitas tenham sido as dificuldades, de diversas ordens, para a prática da participação sociopolítica nos debates dos Planos Municipais de Educação dos três municípios, é imperativo destacar que também existiram saldos positivos. Concordamos com Demo (2009, p. 19) que “não é realista apresentar a falta de espaço de participação como problema em si [...]. Dizer que não participamos porque nos impedem, não seria propriamente o problema, mas precisamente o ponto de partida”. A falta de espaço para a realização da participação é, precisamente, o ponto de partida para a luta social com vistas a conquistar e exercer o direito à participação.
Não há, como também nos lembra Demo (2009), participação suficiente ou completa, mas processos de luta por esse direito político e seu contínuo alargamento. A participação existe, portanto, como conquista processual e inacabada, nunca completa.
Isso nos remete, ainda, a outro saldo positivo: a aprendizagem das regras do jogo e a construção da cultura democrática. Ainda de acordo com Demo (2009), a participação é um exercício democrático que se aprende na ação. Para o autor, a consolidação de uma cultura democrática seria o objetivo mais essencial da participação. Nessa acepção, “cultura democrática significa democracia como cultura de um povo” (DEMO, 2009, p. 79) e, para isso, exigem-se processos de aprendizagem. É preciso, portanto, aprender a participar, compreendendo as regras do jogo democrático.
Tal aprendizagem democrática exige esforço e continuidade. Trata-se de um processo de conquista - e não de dádiva concedida. Exercício nada simples, visa tornar a democracia uma vivência cotidiana na vida em comunidade, estabelecendo-se como um modo característico de ser.