INTRODUÇÃO
Perfil conceitual é um modelo que caracteriza a heterogeneidade do pensamento conceitual na significação dos conceitos científicos, assumindo a coexistência, nos indivíduos, de dois ou mais modos de significar um mesmo conceito, quando ele é mobilizado em diferentes contextos socioculturais. Essa é a ideia central do programa de pesquisa em perfis conceituais1 (Mortimer et al., 2014). Desde o seu surgimento, o arcabouço teórico sobre perfil conceitual vem amadurecendo como uma teoria sobre o ensino e aprendizagem e como uma metodologia para a construção dos perfis (Sepulveda, 2020). Entretanto, em decorrência de sua difusão na área da Educação Científica, uma pauta importante tem se destacado nos últimos anos: o uso dessa teoria e dos modelos desenvolvidos por meio dela para o planejamento do ensino de ciências (Aguiar Jr., 2014; Sabino e Amaral, 2018; Sepulveda, 2020).
Estudos como os de Aguiar Jr. (2014) e Sepulveda (2020), por exemplo, já propuseram maneiras de utilizar o arcabouço teórico e os resultados de investigações empíricas sobre perfis no desenho de atividades para o ensino de ciências. Todavia, na literatura sobre perfis conceituais existe uma grande diversificação entre os métodos de planejamento e de implementação de práticas fundamentadas pela teoria, conforme evidenciam os trabalhos analisados na revisão apresentada neste artigo, realçando que um entendimento generalizável sobre o uso dos perfis no planejamento do ensino de ciências ainda não foi explicitamente sistematizado. Isto posto, partimos neste estudo da seguinte questão: Quais diretrizes podem fundamentar um planejamento didático-pedagógico do ensino de ciências em conformidade com a teoria dos perfis conceituais?
Consideramos como elementos basilares em um planejamento didático-pedagógico a definição de objetivos, conteúdos, metodologia, estratégias didáticas e modos de avaliação em uma intervenção. Os objetivos são o ponto de partida diante do qual se estruturam ações intencionais e sistemáticas no processo de ensino. Os objetivos gerais expressam propósitos mais amplos, relacionados com demandas advindas de intencionalidades moldadas pelo contexto social, já os objetivos específicos apresentam caráter pedagógico e englobam a abordagem dos conteúdos e o desenvolvimento da aprendizagem (Libânio, 2013). Os conteúdos por sua vez, podem ser classificados como: conceituais, relacionados à compreensão de conceitos, princípios, e evidências que estruturam uma disciplina; procedimentais, que tangenciam a dimensão metodológica e se relacionam com o exercício e com a aplicação de técnicas e métodos; e atitudinais, que englobam uma dimensão axiológica relacionada com valores, normas, atitudes e condutas (Zabala, 1998).
No planejamento, a metodologia de ensino se caracteriza como um eixo orientador teórico-prático, regido por concepções sobre a aprendizagem, a natureza da ciência, as funções da educação escolar e o papel do professor e dos alunos em sala de aula, e assume uma dimensão estruturadora no planejamento didático-pedagógico. Já as estratégias didáticas compõem um conjunto de ações intencionais e planejadas pelo professor para atingir os objetivos específicos de aprendizagem propostos no planejamento. Elas devem ser flexíveis, moldadas a partir de uma metodologia de ensino, e baseadas na delimitação de propósitos (Alves e Bego, 2020). O planejamento ainda prevê os diferentes modos de avaliação adotados em uma intervenção, modos que sustentam diferentes perspectivas que incluem desde concepções tradicionais, até concepções emancipatórias sobre a avaliação da aprendizagem (Luckesi, 2014).
Os objetivos deste estudo teórico-bibliográfico são: caracterizar os objetivos, conteúdos, metodologias, estratégias e modos de avaliação de intervenções de ensino implementadas em estudos sobre teoria dos perfis; e propor diretrizes para o uso dessa teoria no planejamento didático-pedagógico do ensino de ciências. Para tanto, reunimos dados de um conjunto de pesquisas que implementaram intervenções para analisar processos de ensino e aprendizagem com o aporte da teoria dos perfis, e interpretamos as características dessas intervenções com base em pressupostos desse programa de pesquisa, o que fundamentou a proposição de diretrizes para o uso de perfis conceituais no planejamento do ensino de ciências.
Esta pesquisa se destina especialmente a professores e pesquisadores que desejam lançar mão de perfis conceituais para fundamentar suas práticas de ensino, e pretende contribuir para a consolidação e ampliação desse programa de pesquisa como um referencial para o desenvolvimento do ensino de ciências. A seguir, será apresentada uma seção sobre as bases teóricas da noção de perfil conceitual, e logo após apresentamos uma seção dedicada à metodologia empregada no estudo. Em seguida, discutimos os resultados em cada categoria analisada e as diretrizes delineadas, e por fim as considerações finais.
AS BASES TEÓRICAS DO PROGRAMA DE PESQUISA EM PERFIS CONCEITUAIS.
Sob um prisma sociointeracionista, os conceitos podem ser entendidos como generalizações/abstrações situadas em um plano social, supraindividual, que resultam em significados atribuídos a entidades e fenômenos (Mortimer et al., 2014) como, por exemplo, os conceitos de átomo e de calor. Categorias mais amplas, que são ao mesmo tempo objetos científicos e metafísicos, como matéria, vida, mente e sociedade, são classificadas como ontoconceitos (Coutinho et al., 2007). Conceituação, por sua vez, é um processo emergente, produzido por meio da interação entre um indivíduo e algum evento ou experiência social, processo esse que ocorre no pensamento do sujeito e é socialmente orientado (Mortimer et al., 2014).
Levando em consideração a perspectiva sobre conceito e conceituação apresentada, a teoria dos perfis pressupõe que conceitos e ontoconceitos não são construções cognitivas originadas e acomodadas na mente dos sujeitos, e defende a possibilidade de os indivíduos conceituarem suas experiências de diferentes maneiras, com base na variedade de contextos em que elas acontecem, o que fundamenta a existência dos perfis conceituais. Os modelos que personificam um perfil conceitual são estruturados por zonas que representam os diferentes modos pelos quais um dado conceito pode ser significado em diferentes contextos. A caracterização de cada zona, por sua vez, é feita com base nos compromissos epistemológicos, ontológicos e axiológicos que sustentam as diferentes formas de mobilizar o conceito (Mortimer et al, 2014).
Os compromissos epistemológicos dizem respeito ao modo como o conhecimento é produzido por meio de diferentes substratos filosóficos e de uma variedade de interpretações da natureza e de seus fenômenos. Algumas dessas perspectivas epistemológicas identificadas em zonas propostas para diferentes perfis são o realismo, o substancialismo, o empirismo, o racionalismo e o ultrarracionalismo (Silva & Silva, 2017). Os compromissos ontológicos dimensionam a natureza existencial do ser e as propriedades que garantem a sua essência. São exemplos de categorias ontológicas a classificação das “coisas” como materiais, abstrações ou processos (Chi, 1993, citado por Dimov et al., 2014). Os compromissos axiológicos, por sua vez, estão relacionados aos valores e finalidades atribuídas às entidades, bem como ao caráter afetivo e de julgamento moral da relação do sujeito com o mundo tal como ele o representa (Sepulveda, 2020).
O arranjo das zonas em um perfil é organizado com base nos estágios da gênese sociocultural que direciona a significação do conceito, e os compromissos dirigem os diferentes modos de significá-lo em determinada situação (Sepulveda, 2020). A Figura 1 apresenta o exemplo de um perfil conceitual desenvolvido por Amaral e Mortimer (2001) para o conceito de calor. Outros conceitos e ontoconceitos já foram modelados nessa mesma perspectiva, a exemplo de átomo (Mortimer, 1994), entropia e espontaneidade (Amaral, 2004), vida (Coutinho, 2005), adaptação (Sepulveda, 2010), substância (Silva & Amaral, 2013), energia (Simões-Neto, 2016) e equilíbrio (Silva Costa & Santos, 2022), entre outros.
Os diferentes modos de significar um conceito científico expresso por um perfil conceitual podem coexistir no mesmo sujeito e podem ser utilizados em diferentes situações, de modo que uma forma de significar esse conceito não substitui outra (Mortimer et al., 2014). Esse foi o principal argumento empregado como contraponto ao modelo teórico de Mudança Conceitual (MC) (Posner, 1982, citado por Mortimer, 2011), perspectiva bastante difundida na pesquisa em ensino de ciências na época do surgimento da noção de perfil conceitual.
O movimento teórico da MC defende que a aprendizagem conceitual está baseada na ideia de substituição dos modos mais simples ou espontâneos de conceituar por outros mais complexos e abrangentes, quando o sujeito é submetido a situações de aprendizagem que provocam conflitos cognitivos (Mortimer, 2011). Todavia, a aprendizagem conceitual do ponto de vista da teoria dos perfis é concebida por meio de dois processos dinâmicos interligados: um processo cognitivo, que ocorre por meio do enriquecimento de um perfil conceitual no indivíduo, possibilitado pela aquisição de novos modos de pensar sobre um determinado conceito científico, e que é compreendido como uma expansão do perfil em direção a novas zonas; e por um processo metacognitivo, que ocorre por meio da tomada de consciência pelo sujeito tanto da multiplicidade de modos de pensamento que constituem o perfil, bem como da maneira com que eles podem ser aplicados de modo plausível em diferentes situações sociais (Mortimer et al., 2011; Mortimer et al., 2014).
O modo pelo qual o programa de pesquisa em perfis concebe os processos de ensino e aprendizagem dimensiona as potencialidades da teoria em subsidiar um ensino de ciências que, ao promover o diálogo entre diferentes formas de conceituar o mundo, torne-o mais plural, o que possibilita que professores e estudantes construam uma visão holística das diversas formas de compreensão de conceitos (Diniz Júnior et al., 2015). Um dos estudos pioneiros que utilizou a abordagem dos perfis para fundamentar de modo sistematizado o planejamento e implementação de uma intervenção didático-pedagógica foi o de Aguiar Jr. (2014). Para esse autor, a ideia de contexto é central quando se pensa na utilização de perfis para o planejamento do ensino.
Aguiar Jr. (2014) levou em consideração diferentes escalas de contexto no delineamento da intervenção proposta em seu estudo. O macrocontexto envolve tanto a sala de aula de ciências, onde coexistem diferentes concepções sobre o mundo e os valores, quanto a materialidade da escola com seus recursos didáticos e metodológicos; o mesocontexto é caracterizado pela sequência de ensino a ser implementada, que se organiza em torno de um tema, com propósitos e características específicas; e o microcontexto são as atividades oriundas dessa sequência de ensino, que mobilizam modos de pensar os conceitos e seu poder de explicação para fenômenos e situações. Os contextos, então, podem ser entendidos como situações criadas dinamicamente por meio de interações, via negociação e contratos intersubjetivos estabelecidos entre os participantes de uma determinada esfera da atividade humana (Aguiar Jr., 2014).
Outra categoria abordada por Aguiar Jr. (2014) são as rotas de aprendizagem. As rotas são entendidas como vias de desenvolvimento para um conceito, viabilizando que ele assuma os significados plausíveis na linguagem da ciência escolar. Tais rotas auxiliam na escolha de atividades de ensino para a mobilização de zonas de um perfil de um modo adequado a uma situação específica (Aguiar Jr., 2014). Sepulveda (2020), por exemplo, utilizou as noções de escalas de contexto e de rotas de aprendizagem, junto a resultados empíricos de estudos sobre o perfil conceitual de adaptação, para propor princípios de planejamento para o ensino de Evolução em Biologia no Ensino Médio. Entretanto, alguns estudos propuseram intervenções de ensino a serem analisadas à luz da teoria dos perfis conceituais desenhando-as de maneira intuitiva, ou sem um alinhamento metodológico explícito, o que corrobora com compreensões multifacetadas acerca do uso de perfis no planejamento didático-pedagógico do ensino de ciências - questão que pretendemos elucidar neste estudo.
PERCURSO METODOLÓGICO
Este é um estudo teórico-bibliográfico de caráter qualitativo, desenvolvido por meio de uma revisão bibliográfica sistemática (Ramos et al, 2014) em teses e dissertações, e pela interpretação teórica dos resultados dessa revisão com base na bibliografia fundamental do programa de pesquisa em perfis conceituais com vistas à produção de um quadro de referência (Demo, 2010) sobre a utilização da teoria em sala de aula. O entendimento construído na análise possibilitou enunciar diretrizes teórico-metodológicas para o planejamento de ensino baseado na teoria dos perfis conceituais.
O âmbito escolhido para delimitação de um corpus de análise da revisão sistemática foi a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), por oferecer ferramentas de busca avançadas e complexas, que possibilitam operar diferentes tipos de metadados com uso de descritores e combinações de recortes temporais (Coelho et al., 2021). A equação de pesquisa utilizada na busca foram os descritores “perfil conceitual” ou “zonas do perfil” em qualquer parte do texto, em investigações desenvolvidas entre 2010 e 2020. Esse recorte temporal foi adotado com base em um estudo preliminar que forneceu evidências de que as pesquisas que utilizam perfis conceituais para subsidiar o planejamento de ações no ensino começaram a ser implementadas em quantidade significativa a partir de 2010 (Santos & Santos, 2021).
Utilizando a equação de pesquisa adotada, foram identificados inicialmente 45 trabalhos na BDTD. Por meio da leitura do título, das palavras-chave, dos resumos, dos sumários e das introduções, 27 pesquisas foram previamente selecionadas, observando o critério de inclusão de estudos que utilizaram a teoria dos perfis conceituais como principal referencial teórico para análise de processos de ensino e aprendizagem em disciplinas científicas. Desse grupo pré-selecionado, 17 trabalhos foram excluídos com base em pelo menos um dos seguintes critérios de exclusão: (a) estudos de elaboração/proposição de perfis conceituais; (b) investigações que não têm como objeto de estudo processos de ensino de aprendizagem ocorridos em sala de aula; (c) investigações que não utilizam um perfil conceitual já proposto como referência ou que apresentem interpretações divergentes ao marco teórico apresentado por Mortimer et al. (2014). Os 10 estudos selecionados foram identificados com códigos alfanuméricos T1 a T10, conforme expresso na Figura 2.
A análise qualitativa do material bibliográfico selecionado foi feita por meio de uma minuciosa leitura para que pudéssemos identificar os dados relativos as categorias: (1) objetivos de cada intervenção; (2) os conteúdos abordados; (3) metodologias de ensino adotadas; (4) estratégias didáticas utilizadas; e (5) modos de avaliação implementados em cada intervenção. A interpretação dessas informações foi articulada com pressupostos teóricos utilizados pelo programa de pesquisa em perfis conceituais e, com base no entendimento desenvolvido em cada categoria, enunciamos cinco diretrizes teórico-metodológicas que têm a finalidade de orientar o planejamento de ações educacionais embasadas pela teoria dos perfis.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dentre os níveis de ensino abordados nas intervenções das teses e dissertações selecionadas, a Educação Básica (EB) foi o nível mais pesquisado, com um total de seis trabalhos. Dentre eles há dois estudos com enfoque no Ensino Fundamental (EF), duas investigações com enfoque no Ensino Médio (EM) e dois estudos centralizados na Educação de Jovens e Adultos (EJA). O Ensino Superior (ES), por sua vez, foi abordado em quatro trabalhos, que investigaram experiências didáticas em cursos de formação de professores de Química, Física e Ciências Biológicas.
A Figura 3 apresenta uma síntese dos objetivos, conteúdos, metodologias de ensino e estratégias didáticas identificadas nas intervenções. Considerando que todos os trabalhos assumiram promover a contextualização em suas intervenções, aqueles que não explicitaram a metodologia de ensino foram classificados como “contextualização com enfoque no cotidiano”, quando utilizam o conhecimento científico para interpretar situações comuns do dia a dia, ou “contextualização com enfoque na natureza da ciência”, quando promovem discussões sobre a elaboração do conhecimento científico.
CATEGORIA 1: OS OBJETIVOS DAS INTERVENÇÕES - COGNIÇÃO E METACOGNIÇÃO
Ainda que alguns objetivos específicos tenham variado de acordo com o tema e com os conteúdos abordados, as intervenções analisadas compartilharam pelo menos de uma destas características: (a) a mobilização de zonas de um perfil conceitual; e/ou (b) a promoção da aquisição de novas zonas; e/ou (c) a promoção da tomada de consciência da heterogeneidade de modos de pensar sobre os conceitos e seu uso de modo compatível com uma situação abordada em sala de aula, conforme apresenta a Figura 3.
Correlacionando os objetivos identificados com o pressuposto da aprendizagem conceitual defendido pelo programa de perfis conceituais, alguns objetivos foram relacionados a uma dimensão cognitiva como, por exemplo, mobilizar zonas de um perfil conceitual e/ou promover a aquisição de novas zonas, enquanto outros objetivos assumiram uma dimensão metacognitiva, como promover a tomada de consciência da heterogeneidade de modos de pensar (as zonas) sobre algum conceito e saber utilizá-los de maneira adequada em diferentes situações.
Objetivos que abrangem uma dimensão cognitiva da aprendizagem, por exemplo, foram identificados em T6, cuja intervenção definiu como objetivo promover a evolução do perfil conceitual de átomo (zonas científicas) no decorrer do desenvolvimento de atividades experimentais e T2, que buscou mobilizar zonas científicas do conceito de entropia e espontaneidade. Já a investigação T5 apresentou como um dos propósitos de sua intervenção era proporcionar uma tomada de consciência dos estudantes a respeito de sua própria forma de pensar o conceito de força, um propósito que abrange uma dimensão metacognitiva.
CATEGORIA 2: O CONTEÚDO DAS INTERVENÇÕES - A CENTRALIDADE DOS PERFIS CONCEITUAIS
Ao analisar o modo como os conteúdos são abordados em cada intervenção, verificamos que um perfil conceitual já proposto na literatura assume um papel central na abordagem dos conteúdos curriculares de uma disciplina, uma vez que o entendimento de diferentes definições, ideias, processos e fenômenos mobilizam zonas do perfil de um conceito em específico. Ilustramos esse entendimento tomando como exemplo dados oriundos dos estudos T1, T3 e T4.
Ao longo da aplicação do jogo pedagógico desenvolvido em T1, por exemplo, foi identificada a emergência de zonas do perfil conceitual de calor em interações discursivas envolvendo “fenômenos endotérmicos e exotérmicos”, “caloria”, “entalpia” e outras definições da Termoquímica. O estudo abordado em T3 apresentou a emergência de zonas do perfil conceitual de substância em uma discussão sobre “medicamentos”. Resultados dessa pesquisa mostraram que mais da metade do grupo de estudantes mobilizou a zona racionalista do perfil de substância durante as discussões sobre o tema no decorrer da intervenção, visto que uma definição de “medicamento” passa pelo crivo do entendimento sobre o que é uma substância química.
Já na investigação proposta em T4, a autora partiu do pressuposto que o processo de conceituação de ácidos e bases pode ser sustentado pelas zonas do perfil conceitual de substância e fez uma adaptação desse perfil para analisar o discurso de estudantes de licenciatura em Química em situações relacionadas com uma comunidade de prática formada por cabeleireiras. Os resultados mostraram que o conceito de ácidos foi mobilizado em diferentes contextos por meio de modos de pensar e falar característicos de zonas do perfil de substância.
Na literatura, uma das justificativas para a proposição do perfil conceitual de calor e de substância apontadas pelos autores desses perfis foi que eles são conceitos importantes para a aprendizagem de outros conceitos científicos (Amaral & Mortimer, 2001; Silva & Amaral, 2013). Nesse sentido, os dados de T1, T3 e T4 expõem essa relação e evidenciam a maneira como zonas de um perfil conceitual atravessam a compreensão de diferentes conteúdos curriculares. Além disso, esses resultados convergem para o que apontam Santos e Sepulveda (2017), quando defendem que as zonas de um perfil conceitual específico podem emergir na abordagem de outros conceitos e definições a ele subjacentes.
Com base nesse entendimento, corroboramos que os conceitos que possuem um perfil conceitual na literatura são centrais, e as zonas desse perfil sustentam o entendimento de diferentes conteúdos conceituais - definições, ideias, processos, eventos etc. Ademais, dados da investigação T6 demonstraram ainda que um perfil conceitual, além de conectado com a abordagem de conteúdos conceituais, também pode ter suas zonas mobilizadas na aprendizagem de conteúdos procedimentais, pois esse estudo apresentou uma intervenção por meio da qual os estudantes mobilizaram zonas do perfil conceitual de átomo para a compreensão de experimentos que envolvem a emissão de radiações eletromagnéticas.
Já a investigação T10 demonstrou que um perfil conceitual pode ser mobilizado em discussões sobre valores e atitudes, ou seja, na abordagem de conteúdos atitudinais. Nesse caso específico, o perfil conceitual de adaptação foi mobilizado em discussões sobre a natureza da ciência e sobre o papel dos cientistas na elaboração da teoria de seleção natural. Um perfil conceitual, portanto, pode orientar a abordagem de conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, visto que os conceitos perfilados assumem um papel central na organização dos conteúdos de uma disciplina, e que as zonas desses perfis possibilitam estruturar o entendimento de diversos conteúdos.
CATEGORIA 3: AS METODOLOGIAS DE ENSINO - A IMPORTÂNCIA DA CONTEXTUALIZAÇÃO
O quadro expresso na Figura 3 apresenta também uma síntese das metodologias de ensino utilizadas em cada intervenção. Nesta pesquisa, essas abordagens metodológicas foram classificadas com base no entendimento de que a metodologia é um eixo orientador teórico-prático regido por concepções pedagógicas que orientam o ensino (Alves & Bego, 2020). Cabe salientar que, embora nem todas as metodologias adotadas tenham sido explicitamente assumidas pelos autores dos trabalhos, a análise das características de cada intervenção possibilitou a construção do quadro. Por conseguinte, foi possível verificar que todas as metodologias expressaram um ponto em comum: a busca por uma contextualização.
Contextualização é um termo que pode assumir diferentes perspectivas no ensino de ciências, pois existem várias abordagens que se rotulam como contextualizadas (Wartha et al., 2013). No entanto, as intervenções analisadas buscaram a contextualização como forma de promover a mobilização de diferentes zonas de um perfil, apresentando aos estudantes contextos que representavam situações do cotidiano e situações que exigiam o uso da linguagem científica. Nesses casos a relação entre perfis conceituais e as metodologias de ensino está caracterizada pela implementação de abordagens contextualizadas.
A relação entre conceito e contexto concebida pela ótica da teoria dos perfis conceituais denota as possibilidades dessa teoria de tecer interlocuções com diferentes abordagens metodológicas de ensino que focalizam a criação de diferentes contextos em sala de aula, uma vez que o próprio programa de pesquisa em perfis defende que são os contextos que evocam as diferentes zonas de um perfil conceitual (Aguiar Jr., 2014). A investigação relatada em T7, por exemplo, utilizou uma abordagem sobre calor e temperatura pautada na etapa de problematização inicial dos Momentos Pedagógicos propostos por Delizoicov e Angotti (1992). Já a intervenção pedagógica proposta em T8, desenvolvida no contexto da EJA, contemplou discussões comprometidas com elementos do contexto social na abordagem do conceito de átomo em debates sobre propriedades dos materiais.
Sob a perspectiva das escalas de contexto (Aguiar Jr., 2014; Sepulveda, 2020), as metodologias de ensino adotadas nessas intervenções apresentam o status de mesocontexto, pois elas envolvem uma sequência de ensino com características e propósitos voltados para a aprendizagem conceitual e sua relação com contextos socioculturais inerentes à sala de aula e à escola - o macrocontexto. O Ensino por Investigação (EI), a Aprendizagem Baseadas em Problemas (PBL) e os Momentos pedagógicos ou Abordagem Freiriana são exemplos de metodologias de ensino2 identificadas como intervenções que se materializam como um mesocontexto.
Dados das investigações revelaram também que, além das zonas científicas, que são características da linguagem da ciência escolar, as zonas não científicas de um perfil conceitual devem ser levadas em consideração no planejamento didático-pedagógico, pois no desenvolvimento de uma metodologia de ensino um perfil conceitual pode ser mobilizado por meio de zonas que não abrigam compromissos com a linguagem científica. Apesar disso, essas zonas não-científicas podem apresentar valor pragmático diante de diferentes tipos de discussões que atravessam a sala de aula.
Exemplos nessa direção podem ser verificados em T7, que relata uma atividade de leitura de textos sobre a ideia de “frio” na antiguidade. Os dados da investigação demonstraram que as zonas científicas do perfil conceitual de calor não foram mobilizadas nessa atividade. No entanto, as discussões desenvolvidas foram bastante proveitosas, pois evidenciaram o conhecimento espontâneo dos estudantes, bem como o modo como essas ideias podem ser utilizadas para explorar a compreensão de alguns fenômenos do dia a dia. Situação semelhante ocorreu em T9, na qual estudantes da EJA mobilizaram zonas não científicas do perfil de átomo para expressarem suas percepções acerca de situações apresentadas em classe, etapa que acabou despertando interesse dos alunos em buscar explicações científicas para os fenômenos. Nesse sentido, a mobilização de zonas não científicas assumiu um papel de rotas de aprendizagem em direção a zonas científicas.
Portanto, a contextualização dos conteúdos curriculares é uma importante contribuição que deve ser levada em consideração em intervenções de ensino baseadas em perfis, uma vez que a teoria recomenda a escolha de metodologias que possibilitem a imersão dos estudantes em múltiplos contextos nos quais as zonas de um perfil possam ser mobilizadas de modo amplo nas discussões em sala de aula. Os dados das investigações analisadas confirmaram essa tendência.
CATEGORIA 4: ESTRATÉGIAS DIDÁTICAS - ENGENDRANDO MICROCONTEXTOS
Com relação às estratégias didáticas, nossa análise tomou como ponto de partida o entendimento de que as estratégias são ações intencionais, planejadas com o amparo de uma metodologia de ensino, e com a finalidade de atingir objetivos específicos de aprendizagem (Alves & Bego, 2020). Ao analisarmos a implementação das diferentes estratégias foi possível verificar que o tipo de atividade desenvolvida influenciou as zonas mobilizadas de um perfil. Estratégias como experimentação, simulações, modelagem e resolução de situações-problema, por exemplo, tendem a orientar a mobilização de zonas científicas de um perfil. Já estratégias como a leitura e discussão de textos sobre História e Filosofia da Ciência, discussões sobre vídeos e filmes e leitura de textos jornalísticos em grupos demonstraram influenciar a mobilização de zonas não científicas.
Como exemplos, citamos a implementação da experimentação no estudo T6 e o uso de simuladores com animações representativas de fenômenos relacionados à Teoria da Relatividade Restrita, em T9. Ambas as estratégias desafiaram os estudantes a expressarem ideias sobre um determinado conceito científico (átomo e referencial) a partir de zonas relacionadas a uma perspectiva científica - um compromisso epistemológico - e a abordar os conceitos em uma linguagem abstrata - um compromisso ontológico. Desse modo, em situações em que a abordagem de um conceito é mais adequada a partir da linguagem científica e de uma ontologia abstrata como, por exemplo, a mobilização da zona quântica do perfil conceitual de átomo, as estratégias de ensino para esse propósito devem incluir atividades que desafiem os estudantes a expressar suas ideias com base nessas perspectivas. Logo, atividades como o uso de simuladores, a interpretação microscópica de experimentos ou a resolução de situações-problema são mais adequadas para esses propósitos.
No entanto, quando zonas não científicas de um perfil podem emergir em uma abordagem de ensino sendo úteis para a compreensão daquilo que está sendo discutido, é adequado adotar estratégias comprometidas com os aspectos epistemológicos e ontológicos que sustentam essas zonas. Nesse sentido, podem ser escolhidas estratégias de socialização e abordagens contextuais que demandam o diálogo e a expressão de ideias sobre o conceito de modo mais informal e intuitivo.
Correlacionando as observações apresentadas com a ideia de escalas de contexto (Aguiar Jr., 2014), é admissível afirmar que os compromissos epistemológicos e ontológicos que sustentam as zonas de um perfil conceitual podem ser utilizados como indicadores para a escolha das estratégias didáticas a serem desenvolvidas em uma intervenção, de maneira que tais estratégias gerem microcontextos que direcionem a significação de um conceito a partir de zonas de seu perfil que se apresentem plausíveis a uma situação específica.
Nessa direção, quando há intencionalidade de abordar zonas científicas de um perfil conceitual, cabe destacar a importância das rotas de aprendizagem, que ajudam a direcionar a significação de um conceito alinhado ao discurso da ciência escolar. As rotas podem ser materializadas por meio do tipo de estratégia didática desenvolvida em sala de aula, bem como pelo discurso do professor, quando se estabelecem contratos intersubjetivos em que os sujeitos são orientados a compartilhar pontos de vista e se predispõem a transcender seu mundo particular para acomodar a perspectiva do outro (Aguiar Jr., 2014; Sepulveda, 2020).
CATEGORIA 5: MODOS DE AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM - A CENTRALIDADE DO DISCURSO
A avaliação da aprendizagem sob a ótica da teoria dos perfis pode estar relacionada com: (a) a análise de zonas que os estudantes já mobilizam antes do processo de instrução; (b) a análise da aquisição de novas zonas de um perfil; (c) a análise acerca da tomada de consciência sobre a heterogeneidade de modos de pensar um conceito; e (d) a análise da mobilização de zonas de modo apropriado a um contexto. Entretanto, nas intervenções didáticas analisadas em cada pesquisa, a maior parte dos autores não se referiu explicitamente aos modos de avaliação utilizados nas intervenções desenvolvidas. A investigação apresentada em T1 foi o único estudo que mencionou de forma clara as possibilidades de avaliação a partir da abordagem dos perfis conceituais. Nessa investigação, a autora sugeriu que avaliação formativa é um modo coerente de avaliar a emergência das zonas e suas relações com os contextos apresentados em classe.
Nos estudos analisados identificamos tanto a emergência de zonas de um perfil quanto a de processos de tomada de consciência da heterogeneidade dos modos de pensar um determinado conceito científico. Os instrumentos utilizados nessas análises trazem importantes informações que podem ser utilizadas para se pensar em modos de avaliação quando uma intervenção em sala de aula é metodologicamente orientada por um perfil conceitual. Nas investigações levantadas em nossa revisão há um predomínio da análise de interações discursivas e de entrevistas, o que sugere que o modo de avaliação por meio da análise discursiva pode ser bastante frutífero.
Levando em conta a avaliação da aprendizagem em uma perspectiva dialógica, processual e dinâmica (Luckesi, 2014), e também a concepção mediadora (Hoffmann, 2011), que busca desvincular-se da verificação de respostas certas/erradas e do autoritarismo para orientar-se por um sentido investigativo e reflexivo do professor em relação às manifestações dos alunos, a avaliação no âmbito da teoria dos perfis pode ser desenvolvida pela análise dos diferentes meios pelos quais os estudantes expressam suas ideias, principalmente a oralidade. Desse modo, a avaliação da aprendizagem pode ser realizada pela articulação entre diferentes instrumentos que possibilitam ao professor estar em permanente contato com os diferentes modos de pensar e falar dos alunos sobre os conceitos científicos, priorizando, portanto, a oralidade.
Com base nas interpretações desenvolvidas em cada categoria analisada, sistematizamos cinco diretrizes que têm por finalidade orientar o planejamento didático-pedagógico de intervenções de ensino baseadas na teoria dos perfis conceituais. A Figura 4 apresenta uma síntese dessas diretrizes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta investigação partimos da seguinte questão: Quais diretrizes podem fundamentar um planejamento didático-pedagógico do ensino de ciências em conformidade com a teoria dos perfis conceituais? Com base em uma revisão nos elementos do planejamento de intervenções, implementadas em pesquisas que utilizaram a teoria para analisar processos de ensino e aprendizagem, e sua correlação com pressupostos desse programa de pesquisa, enunciamos cinco diretrizes que podem nortear a definição de objetivos, conteúdos, metodologias, estratégias e modos de avaliação em práticas de ensino amparadas pela teoria dos perfis conceituais e pelos perfis já propostos na literatura.
As diretrizes aqui enunciadas sintetizam nosso entendimento construído ao longo da análise dos dados, em sinergia com pressupostos da teoria alinhados ao marco teórico de Mortimer et al. (2014). Trata-se de diretrizes generalizáveis, que têm a finalidade de orientar a elaboração de diferentes propostas de ensino. Nesse sentido, sua divulgação é importante para inspirar professores e pesquisadores na elaboração de novas intervenções teórico-metodologicamente orientadas pela teoria dos perfis conceituais, bem como para o refinamento das diretrizes em si, aqui apresentadas.
Além disso, os resultados deste estudo poderão abrir novas frentes de investigação no programa de pesquisa em perfis conceituais relativas à relação entre perfis e conteúdos curriculares, às potencialidades da articulação entre diferentes metodologias de ensino com a abordagem dos perfis, à dimensão pragmática das estratégias didáticas em mobilizar zonas de um perfil em diferentes situações, e à avaliação na aprendizagem fomentada pela teoria. Investigações futuras deverão expor as potencialidades, possibilidades e limites das diretrizes propostas, viabilizando seu refinamento e sua consolidação.