Introdução
Este artigo foi elaborado a partir do trabalho em conjunto de duas educadoras, uma pedagoga e uma educadora musical, em uma escola particular com sistema apostilado1. Foi nesse contexto que se instaurou a situação-problema trazida pela pedagoga, cuja previsão curricular era a elaboração de um livro correlacionado a um espetáculo. Diante disso, a educadora musical propôs trabalhar o Modelo de Enriquecimento, desenvolvido pelo cientista norte-americano Joseph Renzulli, de modo a ofertar o enriquecimento musical para todos os alunos e com possibilidades de indicação de talento.
Em face disso, este trabalho tem o objetivo de relatar a aplicação do Modelo de Enriquecimento e a identificação do talento, ocorridas em uma escola particular do interior do estado de São Paulo, com educandos do 5º ano do ensino fundamental. Participaram 26 alunos, uma professora regente com formação em Pedagogia e uma educadora musical, com formação em Educação Especial, em uma escola particular. Dessa forma, com o intuito de compreender o contexto, far-se-ão breves apontamentos sobre a educação musical e o talento.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n° 9.394, de 1996, utiliza o termo altas habilidades ou superdotação. No entanto, este artigo adota a terminologia “talento” com base nos estudos teóricos de Haroutounian (2002) e Kirnarskaya (2009), devido ao conflito terminológico que ainda há no Brasil (Rangni; Costa, 2011; Pérez, 2012; Koga, 2019). Haroutounian (2002) se fundamenta nos estudos de Renzulli e Reis (2014) e Renzulli (2018), porém versando com as especificidades da área da Música. Para Haroutounian, termos como hight abilities/giftedness (altas habilidades/superdotação) não são muito comuns entre os músicos. Para uma melhor comunicação com a área, a fim de incentivar a identificação, a autora assinala o talento como aptidão, inteligência musical, criatividade, entre outros, pois ela busca amplitude para seu significado terminológico. Considera também que, na área da Música, são muitas as especificidades que podem manifestar uma pessoa com talento, assim, ela conceitua essas associações terminológicas. Em síntese, com base em Kirnarskaya (2009), pode-se concluir que o talento engloba inteligência musical, motivação e criatividade.
A Educação Musical no Brasil está prevista no § 6o do art. 26 da LDBEN, com redação expressa na Lei nº 13.278/2016. De acordo com a LDBEN, “[a]s artes visuais, a dança, a música e o teatro são as linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o § 2o deste artigo” (Brasil, 2016).
Com isso, preconiza que o ensino da Arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação básica, sobretudo com as mudanças promovidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), pois a disciplina de Educação Musical pode ser considerada no âmbito da competência 3 - produções artísticas (Brasil. MEC, [2018]). A disciplina de Educação Musical deveria ser comum a todas as escolas, entretanto, ainda segue ocorrendo pontualmente no Brasil, conforme constatou Fonterrada (2008) em seus estudos. De acordo com as pesquisas recentes, há o predomínio do ensino polivalente, que gera uma ênfase maior em artes visuais ou plásticas, enquanto disciplinas, deixando as outras linguagens em segundo plano e como conteúdos a serem ministrados nas aulas de artes (Cunha; Lima 2020).
Nesse contexto, geralmente, são poucas as escolas privadas e públicas que contam com essa disciplina em sua matriz curricular e, por vezes, quando é adotada nas escolas, ela é ministrada por profissionais sem formação em Música, sem despender a ela a devida valorização, como ocorre com as outras disciplinas acadêmicas.
A situação se torna mais complexa quando se trata da suplementação de estudantes com indicadores de talento (Brasil, 2011, 2020). No âmbito da LDBEN, as pessoas talentosas são consideradas parte do público que integra a educação especial. A Lei nº 13.234, de 2015, orienta a identificação precoce dos estudantes talentosos, seu cadastramento e o direito ao atendimento educacional especializado, bem como manda executar políticas públicas e encaminhamentos, como, por exemplo, para escolas especializadas em música, idiomas, esportes, laboratórios, institutos, entre outros.
Algumas crianças, em determinados momentos, podem apresentar aptidão musical ao demonstrarem resposta aos estímulos sonoros, a partir de elementos musicais e da musicalidade, da sensibilidade à música (Lecanuet, 2003; Gordon, 2015). A “[a]ptidão é a medida do potencial de uma criança para aprender música; representa ‘possibilidades interiores’” (Gordon, 2015, p. 17). As aptidões são: senso de altura, capacidade para discernir a intensidade, duração, senso de harmonia, memória musical e senso rítmico (Teplov, 1966). Para esse autor, essas seis aptidões são consideradas elementares e base importante para o talento e, quando se correlacionam ao senso estético, lógico e produtivo-criativo na música, se tornam aptidões musicais superiores. O sinal característico delas é o desenvolvimento e a internalização precoce dos elementos musicais: senso estético, criatividade e amor incondicional pela música (Teplov, 1966).
Na perspectiva de Rubinstein (1967), geralmente o talento é composto pela combinação de personalidade (a qual é composta por necessidades, propósito e ideais) e capacidade de produzir coisas inéditas em um dado marco histórico, sendo que o talento depende muito das condições socioeconômicas.
Nos estudos de Kirnarskaya (2013), o talento musical é a combinação dos seguintes fatores: inteligência musical, motivação e criatividade (giftedness). A respeito da inteligência musical, especificamente, é preciso ressaltar os estudos de Gardner (1993, 1995), o qual, por sua vez, discute que o ser humano pode apresentar diferentes tipos de inteligência, entre elas a musical, cuja manifestação é a sensibilidade para discernir e reagir intencionalmente aos elementos musicais.
Haroutounian (2002) pontua que o talento musical ocorre a partir de um spark (fagulha ou centelha), que seria identificado em artistas que se imortalizam em suas obras e/ou suas interpretações em decorrência de seu talento, que ultrapassa os níveis da performance e do domínio técnico do virtuose (instrumentista e/ou compositor muito hábil). As pessoas com spark utilizam os elementos da música de modo original e inédito, pois elas sentem a música e se expressam com originalidade, tornando-se atemporais.
Winner (1996) expõe que o talento é composto pela precocidade,2 autonomia do sujeito e desejo por aprender. As crianças talentosas em música têm fascínio pela linguagem da música e colocam sua energia no objetivo de internalizá-la ao máximo.
Renzulli e Reis (2014) e Renzulli (2018) não postularam sobre o talento musical especificamente, mas afirmaram que a intersecção/interação da habilidade acima da média (capacidade de processar informações, integração de experiências e engajamento do pensamento abstrato), o envolvimento com a tarefa (motivação, perseverança, trabalho duro, autoconfiança etc.) e a criatividade (originalidade, engenhosidade e capacidade produtiva), associados à personalidade e aos fatores ambientais, são sinais claros de talento, isso, independentemente da área do conhecimento humano.
Para enriquecer de modo assertivo, é preciso conhecer quem de fato tem características de talento, por isso há o processo de identificação. É um processo que objetiva designar a criança ou o jovem para que possam ser atendidos de modo mais direcionado e de acordo com suas necessidades educacionais (Gordon, 2015).
De acordo com Gagné e Guenther (2010), na população em geral, há 10% de pessoas com potenciais a serem desenvolvidos, ou seja, indivíduos com aptidões para diferentes áreas do conhecimento humano. Em outra perspectiva teórica, poderá haver uma parcela que, mediante seus esforços, alcançará altos níveis de domínio musical, os quais podem ser considerados experts (Galvão; Ribeiro, 2014). Nessa perspectiva, todas as crianças devem ser incentivadas e estimuladas, porque podem manifestar suas aptidões em alguma área, perfazendo um total de 2% da população (Cerda, 1978). Ademais, Gordon (2015) assinala que há 20% de educandos talentosos nas escolas públicas e privadas, muitos dos quais não são identificados pelos professores. Os índices assinalados pelos autores, com base em seus resultados de pesquisas, variam no cálculo com a população, devido aos critérios adotados por eles. No entanto, é preciso destacar que, nos três índices, está clara a existência de pessoas talentosas à espera da identificação, de uma oportunidade e do acesso para desenvolverem seus talentos.
Quanto ao enriquecimento, Renzulli e Reis (2014) conceituam como um continuum de serviços e oportunidades que podem ser integrados no ambiente escolar de modo flexível e adaptados à realidade de cada escola. Nesse modelo, os estudantes são convidados a criar e encorajados a inovar. Nessa perspectiva, o estudante tem a oportunidade de desenvolver seu talento e contribuir com a comunidade escolar a partir de seu produto final.
Ao pensar uma resposta educativa, os autores supracitados criaram o Modelo de Enriquecimento, que se trata de uma proposta para ser executada na escola regular, de modo a transversalizar o currículo básico e destinado a todos os estudantes, mas com foco nas crianças e nos jovens talentosos. São três tipos de enriquecimento: 1) Tipo I - atividades gerais e exploratórias, que expõem aos estudantes possibilidades ou problemas reais para estimulá-los à pesquisa e ao estudo; 2) Tipo II - aproximação dos estudantes com técnicas e treinamentos, metodologias e conceitos, trazendo o estudante da curiosidade do senso comum para o pensamento científico sistematizado e empírico; trata-se da etapa de instrução; 3) Tipo III - constitui-se em uma síntese de tudo que foi vivenciado; trata-se de uma etapa de investigação que pode ser individual ou coletiva, a qual demanda adquirir um entendimento avançado, desenvolver um produto e habilidades e envolver-se com a tarefa. Nesse nível, o trabalho é interdisciplinar e transversal, e o resultado será compartilhado. Essa etapa pode ocorrer dentro do ambiente escolar ou em outras instituições parceiras no contraturno do aluno (Renzulli; Reis, 2014).
Assim, o talento resulta da combinação de aptidões que dependerão das oportunidades ao desenvolvimento.
O projeto
O projeto inicial proposto pela escola tinha por objetivo criar um livro com o tema “assombração/mistério”. No primeiro encontro entre as profissionais, ocorrido na sala dos professores, a especialista em Música viu a inquietude da pedagoga, que não sabia o que fazer diante da temática e como cumprir o cronograma curricular frente àquele desafio; ambas então decidiram construir o projeto, de forma a contemplar a escrita do livro e a música.
Com o apoio da tecnologia, as duas profissionais se reuniram virtualmente para discutirem e compartilharem possibilidades para o desenvolvimento do projeto. Ao chegarem a uma conclusão, elas levaram as sugestões aos alunos e conversaram sobre como poderiam finalizar o escopo do projeto. Após o encontro com os alunos, ficou definido o estudo do livro O Fantasma da Ópera (Cena Musical, 2018a, 2018b, 2018c).
Trata-se de um romance francês, escrito entre 1909 e 1910, com reimpressões em 2012, cuja capa ilustrativa se encontra na Figura 1.
A trama se passa no teatro Ópera de Paris e traz a história de Érick, um genial cantor lírico acometido por uma deformidade facial. Ele vive sua vida no teatro, de modo devotado, a assombrar os espetáculos, que é a forma que encontrou de se vingar do tratamento desumano que as pessoas da época davam a ele por não permitirem que cantasse em decorrência de sua deficiência (Leroux, 2012).
Entre um espetáculo e outro, Érick se apaixona por Christine, uma jovem bailarina do corpo de baile, que ganha o papel de solista após um teste para a substituição de Carlota, a diva principal da ópera francesa da época, que havia ficado doente em uma das temporadas. Durante o período que passou no corpo de baile, Christine conheceu Érick e, com ele, passava boa parte do tempo recebendo instruções sobre como cantar e atuar em óperas. Christine e Érick eram excluídos pelos demais artistas em decorrência de apresentarem diferenças - Érick pela deformidade facial e Christine pelo talento musical extraordinário e sua simplicidade (Leroux, 2012). Com isso, eles se tornaram amigos.
O ápice do espetáculo ocorre quando Christine se apaixona por Raul, um dos patrocinadores dos espetáculos do teatro Ópera de Paris. A partir desse momento, e com o retorno de Carlota ao papel principal, o que fez com que Christine fosse excluída, Érick se revolta e inicia sua vingança, ameaçando destruir um espetáculo após o outro caso Christine não fizesse o papel principal e Raul não se afastasse dela (Leroux, 2012).
Com esse contexto compreendido por professoras e alunos, as estratégias adotadas para a execução do projeto do livro possibilitaram envolver diferentes formas de estudo da obra O Fantasma da Ópera e, a partir dela, os alunos puderam criar seu próprio livro, usufruindo de sua criatividade. A Figura 2 expõe o plano criado para organizar o desenvolvimento do projeto “O Fantasma da Opera”.
A partir desses delineamentos, as concepções do Modelo Triádico de Enriquecimento de Renzulli e Reis (2014) - Tipos I, II e III - foram observadas. O projeto teve um caráter interdisciplinar,3 pois envolveu conhecimentos das seguintes áreas: Música, Artes Visuais, Artes Cênicas, Dança, Literatura, Língua Portuguesa, História, Geografia e Educação Especial (talento, deficiência e dupla excepcionalidade)4.
O Enriquecimento do Tipo I
A construção do livro
O projeto do livro, que foi proposto para todos os alunos, estava previsto na apostila deles e também era programado pela equipe gestora.
A pedagoga que estava à frente da criação do livro tinha o propósito de envolver os alunos em uma produção coletiva (livro e espetáculo), na qual os alunos fossem autônomos para participar da construção do projeto, opinando e decidindo a estrutura.
Nessa etapa, os alunos deveriam explorar os conceitos de mistério e assombração, bem como os tipos de textos possíveis no âmbito da literatura brasileira, além de identificar diferentes características dos gêneros textuais, como: cenário, descrições, personagens, clímax e desfecho, por exemplo. Também deveriam esmiuçar a compreensão de um texto extraindo dele seus sentidos.
Nas palavras de Maingueneau (2015, p. 37),
[...] o texto é apreendido como o traço de uma atividade discursiva - oral, escrita, visual - relacionado a dispositivos de comunicação, a gêneros de discurso: desde os mais elementares (uma etiqueta numa mercadoria) às mais complexas (um romance).
Nesse sentido, foi possível trabalhar com os alunos o conceito de “texto-arquivo”. Trata-se da permanência do texto a partir das edições que o fazem permanecer na memória de geração em geração. Ainda mais, se esse mesmo texto é adaptado ao contexto de uma ópera. Quantas edições e versões não teve O Fantasma da Ópera? Essa permanência também vem sendo cada vez mais presente mediante as possibilidades dispostas pelos recursos da web (Maingueneau, 2015).
Os conceitos de autoria e de discursividade (Foucault, 2015) foram discutidos, de acordo com o nível dos alunos, pois a preocupação era trazer para o debate os problemas do plágio e a importância da autoria.
A organização do espetáculo musical
Configurou-se esse tipo de enriquecimento quando os alunos iniciaram a leitura do livro O fantasma da ópera, quando assistiram à ópera (espetáculo) e quando conversaram com a especialista em Música, a qual socializou os pontos importantes da história e respondeu aos questionamentos e às curiosidades dos alunos.
A curiosidade em torno da figura central do fantasma foi unânime, principalmente sua deformidade facial. Os alunos queriam saber se ele sentia dor, se as cicatrizes eram grandes, sobretudo o que havia acontecido para que ele as tivesse, entre outras curiosidades. Assim, a especialista em Música interveio explicando para os alunos que Érick era uma pessoa com dupla excepcionalidade. Em Música, por exemplo, a dupla excepcionalidade é comum em casos como: savants, 5 síndrome de Williams,6 deficiência visual (Andrea Bocelli, cantor lírico italiano), surdez (Evelyn Gleinne, percussionista escocesa) e deficiência intelectual (Noboyuki Tshuim, pianista japonês) (Winner, 1996; Kirnarskaya, 2009).
O personagem de Érick trouxe à tona questões relacionadas à inclusão e à aceitação da diferença. Na época em que se passa a ópera, a sociedade renegava a existência dessas pessoas (Jannuzzi, 2004) mais que nos dias atuais, muito embora, ainda haja discriminações, que se configuram em crime. O outro ponto que os alunos não entendiam era: por que não permitir que Érick cantasse nos espetáculos se ele era talentoso? Uma parte da turma estava certa que o preconceito impede as pessoas de enxergarem o talento das outras. Sobre isso, Massuda e Rangni (2017) assinalam que há muitos passos que precisam ser dados no âmbito educacional para a inclusão de pessoas com dupla excepcionalidade.
Ainda se vivencia uma difícil realidade dos sistemas escolares que não enfrentam as questões referentes à deficiência e ao talento, bem como não discutem sobre o que seriam esses fenômenos com todos os alunos. Isso se sustenta nas argumentações de Winner (1996) e Haroutounian (2002), quando esses pesquisadores abordam os mitos e tabus em torno das pessoas talentosas. Especificamente, Haroutounian (2002) discute que falar do talento em algumas escolas tem impacto similar a quando se fala sobre o câncer. É possível concluir, com base nos estudos das duas autoras, que faltam formação inicial e continuada aos professores e informação para os estudantes e para a sociedade, sendo que estes precisam ser orientados para reconhecer os potenciais das pessoas e não somente as debilidades.
Além da figura do personagem Érick, os alunos exploraram conhecimentos em torno do vestuário e de adereços da época e dos gestos dos personagens. Um dos aspectos que marcaram os alunos foi a estrutura da linguagem. Eles perceberam que O Fantasma da Ópera não foi criado na língua portuguesa, embora houvesse uma adaptação, mas essa era em inglês. Constataram, também, que foi realizada a tradução, bem como puderam notar que o mesmo ocorreu com o livro. Nesse momento discutiram questões culturais e sociais que se modificam em cada país, suas riquezas, necessidades, épocas e estilos (Lehmann; Sloboda; Woody, 2007).
Outras curiosidades que envolveram e intrigaram os alunos foi a personagem Carlota. Ela era uma cantora temperamental, egoísta, excêntrica, vaidosa e elegante em seu vestuário. Como pode existir uma pessoa assim, tão segura de si mesma? Para alguns alunos, Carlota estava certa em seu comportamento, porque ela era a diva do espetáculo, mas, para outros, ela era considerada um absurdo. Gardner (1993, 1995) traz uma importante discussão ao pontuar que uma pessoa talentosa com valores questionáveis e sem senso ético não seria útil para a sociedade porque não consideraria o coletivo e pensaria apenas em si; já aquela que contribui e soma ao coletivo contribui para o avanço da sociedade e, a partir de sua individualidade e ética, promove mudanças no meio social, ainda que estas sejam pequenas. O autor exemplifica denominando essas pessoas de “líderes éticos”.
Os personagens de Firmin e André contribuíram para o estabelecimento de reflexões críticas por parte dos alunos. Esses personagens caracterizavam-se como aristocratas da época, muito ricos, que queriam lucrar com o espetáculo, mas com as ameaças do fantasma e o adoecimento de Carlota acabaram preocupados com o destino dos espetáculos e, consequentemente, com os lucros da bilheteria. Por sorte, Christine, a substituta da diva Carlota, tinha encantado o fantasma Érick e o público.
Toda essa história trouxe para os alunos os problemas da vida real, assinalados por Renzulli e Reis (2014) e Renzulli (2018). Muitos alunos não compreenderam como interesses, vaidades, cautela, discriminação, ambição, resiliência, honestidade, arrogância e ganância podem ocorrer na sociedade, alguns inclusive aprenderam os significados dessas palavras.
Esse tipo de discussão crítica em sala de aula é estimulado por Freire (1992), pois, para o autor, ela promove a aprendizagem significativa. Alinha-se com o “aqui” e o “agora” do educando, supera os conhecimentos do senso comum para chegar ao nível científico por meio da escrita e da leitura, do senso estético e das possibilidades de ver o mundo. Nessa proposta progressista, vislumbra-se apresentar democraticamente para o aluno diferentes formas de vida, as quais são mediadas pelas escolhas que as pessoas fazem. Ou seja, foi possível compartilhar com os alunos as diferentes formas e os mecanismos que fazem a sociedade ser o que é mesmo após tantos anos de existência. Algumas coisas mudam, mas outras podem permanecer iguais, sendo apenas apresentadas de formas diferentes.
Após as curiosidades terem sido socializadas e respondidas, a turma foi dividida para a execução dos papéis e para a montagem do espetáculo. Ficou decidido pelos alunos que eles apresentariam o espetáculo no teatro da escola na data da noite de autógrafos. Nesse momento, de modo espontâneo, aqueles que queriam participar fizeram a inscrição para a realização do teste, para a distribuição dos personagens e do corpo de baile. Ressalta-se que toda a sala se engajou na atividade; embora houvesse o teste, muitos alunos indicavam seus colegas para os papéis, alegando que eles tinham o perfil do personagem, as habilidades para a composição, o tipo físico e emocional. A indicação por colegas é uma das formas de identificação que se encontra em Renzulli e Reis (2014).
Por que fazer um teste para a divisão dos personagens?
Primeiramente, para que os alunos experimentassem a vida real dos espetáculos, nos quais os personagens são selecionados mediante testes e, segundo, porque alguns papéis requeriam que os alunos dançassem e cantassem, por exemplo, além de interpretar. Havia outros papéis que requeriam a execução instrumental e a expressão corporal, além da memorização das linhas melódicas e dos textos.
Era preciso garantir o conforto e a integridade dos alunos e pensar na qualidade do espetáculo. Com base em Gainza (1988), pré-adolescentes e adolescentes, em geral, apresentam timidez para aparições em público. De acordo com a autora, eles ficam ansiosos para expor o que sentem e o que pensam, mas seus corpos apresentam descompasso e, às vezes, são desajeitados em decorrência das transformações internas e externas. Por isso, era importante realizar o teste e acordar com os alunos a escolha dos personagens. A seleção baseou-se nas orientações de Haroutounian (2002), porque a autora traz alguns quesitos sobre os elementos da música em geral e, em sua obra, há escalas e indicadores que possibilitam identificar o talento preliminarmente. Os alunos ficaram divididos (narração, Atos 1, 2 e 3) no espetáculo da seguinte maneira:
O Enriquecimento do Tipo II
A construção do livro
Durante a produção do texto, os alunos foram instruídos com relação a normas ortográficas, gramática, análise do texto, reflexões e ilustração. Mais que isso, as orientações centravam-se em não somente ensinar os alunos a escrever, mas a pensar (Garcia, 1992). Era preciso orientar os alunos sobre a diferença entre falar e escrever (Martins, 2017).
Em síntese, foram trabalhados com os alunos os conceitos de coerência e coesão. A primeira “é algo que se estabelece na interação, na interlocução, numa situação comunicativa entre dois usuários” (Koch; Travaglia, 2016, p. 13). A segunda “é, então, a ligação entre os elementos superficiais do texto, o modo como eles se relacionam, o modo como frases ou partes delas se combinam” (Koch; Travaglia, 2016, p. 15).
A organização do espetáculo teatral
A fase de Enriquecimento do Tipo II foi iniciada após a seleção dos papéis e a distribuição das tarefas. A pedagoga deu as instruções com relação à elaboração do livro, e a especialista em Música iniciou o treinamento vocal, cênico e os ensaios da turma. A pedagoga coordenou a elaboração dos figurinos e a adaptação do roteiro do espetáculo, e a especialista interveio nas partes cantadas do roteiro.
A turma foi dividida para ensaiar por ato. O treinamento focou a dicção, a presença de palco, a técnica vocal, a respiração, a afinação e a expressão corporal, tudo com base nos aspectos de desenvolvimento musical discutidos por Teplov (1966), Haroutounian (2002) e Gordon (2015). Com base nesses autores e depois de saber os níveis de aptidão musical dos estudantes por meio de testes, era preciso desenvolver a percepção/audição (audiation) musical, a capacidade de discernimento tonal e rítmico, o senso estético, a capacidade para improvisar e criar. Foi necessário oferecer a eles elementos musicais concretos e abstratos para interpretar os personagens. A falta de vivência cultural e artística dos educandos mostrou-se como um dos maiores obstáculos durante o processo, revelando a importância das artes nas escolas e na vida dos educandos (Lehmann; Sloboda; Woody, 2007; Gordon, 2015).
O Enriquecimento do Tipo II, concebido por Renzulli e Reis (2014), está previsto de ser desenvolvido em associação com outros especialistas. Em um dos dias de ensaio, a especialista convidou uma professora de balé para colaborar com a coreografia no Ato 2, a partir do ensino de posturas dos personagens, bem como gravou os ensaios para socializá-los com um docente de Artes Cênicas. Também, houve experiências com o técnico de som e de iluminação do teatro, o qual contribuiu para o jogo de som, a regulagem do piano digital e a liberação dos acompanhamentos de orquestra gravados. Essa etapa caracterizou-se pela instrução dos alunos e preparação técnica para o desenvolvimento do espetáculo.
Os ensaios foram semanais, de agosto a novembro de 2019. Nos dias da semana em que não ocorriam os ensaios e as aulas de Música para os alunos, a pedagoga realizava a construção do livro com os alunos e cumpria os conteúdos programados.
O Enriquecimento do Tipo III
Quando se chega a esse momento, ao aplicar o Modelo Triádico de Enriquecimento, de Renzulli e Reis (2014), as atividades são direcionadas aos sujeitos que manifestaram o talento. Assim, nessa fase não se trabalha com todos os alunos devido aos interesses específicos e à motivação do sujeito talentoso que vislumbra aprofundar o conhecimento em sua área de domínio. No entanto, na escola pesquisada, essa possibilidade não existia, pois era obrigatório trabalhar com todos os alunos.
Para não haver desproporções, cada aluno buscou verticalizar aquilo que mais despertou interesse na obra O Fantasma da Ópera. Coincidentemente, os alunos que mais se destacaram estavam atrelados aos personagens principais e, ainda, houve aqueles que se sobressaíram na redação e na ilustração do livro.
O livro
De acordo com a pedagoga que conduziu a elaboração do livro, sete alunos se destacaram em todo o processo de produção do livro e do roteiro do espetáculo, sendo eles: dois narradores, Firmin, Carlota, Meg, Érick e Christine. A pedagoga os apontou com perfil criativo. Mas também acrescentou a esses sete alunos mais quatro, que, de acordo com ela, não fizeram parte dos papéis principais do espetáculo, mas se destacaram na elaboração do livro, apresentando perfil mais acadêmico.
O espetáculo teatral
Esse tipo de enriquecimento foi alcançado no momento em que os estudantes compuseram seus personagens e elaboraram o script gestual, a tonalidade de voz, o ritmo de expressão do texto e a expressão corporal. A aluna que interpretou Carlota foi a que melhor desenvolveu o papel. Em seu teste ficou claro seu talento para as artes cênicas, assim como o aluno que interpretou o Fantasma. A aluna que interpretou Christine se destacou vocalmente ao demonstrar afinação, ritmo e timbre.
Os alunos apresentariam um espetáculo ao final das atividades para uma plateia, composta da comunidade escolar e de familiares e, como alguns alunos não apresentavam habilidades artísticas, eles optaram por misturar elementos do teatro (fala) com os da ópera (canto), ficando o projeto “O Fantasma da Ópera” estruturado da seguinte maneira:
O produto final (espetáculo e livro) foi elaborado pelos alunos e apresentado a uma plateia, como expõem é exemplo.
Os alunos fizeram um trabalho de alto nível. Eles passaram pelas etapas de redação do livro, as quais foram praticamente as mesmas de um escritor. No que tange ao espetáculo, as etapas foram semelhantes à de preparação de um musical, uma ópera ou temporada de peça teatral. Renzulli e Reis (2014) e Renzulli (2018) postulam que é plenamente possível realizar trabalhos e pesquisas com alunos da educação básica no nível de sistematização, rigor e estética semelhante ao de cientistas, atores e escritores. A tabela 1 expõe a área e o índice de estudantes que se destacaram após o processo de enriquecimento implementado.
Área | Número de alunos/Índice |
---|---|
Acadêmico | 4 (15,38%) |
Produtivo - Criativo | 8 (30,76%) |
Total | 12 (46,14%) |
Fonte: Elaboração própria.
Um processo de identificação que encontra 12 alunos com possibilidade de serem designados como talentosos pode ser considerado um bom índice. Com base em Renzulli e Reis (2014), é preciso que esses procedimentos de identificação sejam relativamente amplos para não perder nenhum aluno com potencial talentoso. Porém, só se conseguirá assegurar a validade da identificação com o procedimento de avaliação vertical dos 12 alunos indicados, o que pode ocorrer em encaminhamentos futuros.
Com base nas teorias de Teplov (1966), Gordon (2015) e Renzulli (2018), a descoberta da aptidão musical e o desenvolvimento do talento estão na dependência de serviços educacionais e políticas públicas que viabilizem o acesso, que deem oportunidade e engajamento a crianças e jovens. Ainda Haroutounian (2002) assinala que os educandos estão à espera de pessoas das quais possam receber apoio e orientação.
Concluem Renzulli e Reis (2014) que pessoas com os indicativos de alto potencial podem realizar atividades e produzir em alto nível, como um grande cientista ou artista etc., mas em seu nível e com os recursos que são possíveis a elas, desde que sejam ofertadas oportunidades para o despertar do engajamento e do entusiasmo.
Considerações finais
Constatou-se que é possível utilizar o Modelo de Enriquecimento I, II e III no ambiente escolar, no entanto, sua aplicação depende de iniciativas e de concessões dentro da instituição escolar. Para que possa ser uma prática exequível, o Modelo Triádico de Enriquecimento deveria ser incentivado e organizado pela gestão escolar juntamente com o corpo docente e não depender da proatividade, do acaso de um professor ou da flexibilidade e abertura entre professores.
As reuniões pedagógicas ou as horas de estudos dos professores poderiam ser um momento oportuno para isso; além de troca de experiências docentes, do estudo de referenciais teóricos e ajustamentos, poderiam proporcionar que professores dialogassem e se ajudassem no desenvolvimento de projetos e de atividades, inclusive, daquelas previstas no currículo. Infelizmente, o que se vê são sempre reuniões tomadas por burocracias e assuntos pouco úteis à prática docente, e professores voltados para as demandas (problemas) de suas salas de aula.
Embora alguns currículos sejam fechados e/ou apostilados, com muito trabalho e tempo exíguo nas escolas, há pontos flexíveis que podem incluir possibilidades como o Modelo Triádico de Enriquecimento. Evidentemente, demandará mais trabalho porque extrapolará os limites das aulas, da capacidade dos professores e dos conteúdos, que já são, por si sós, desafios para a educação atual, suas demandas e transformações, inclusive tecnológicas. Assim, como foi relatado, tornou-se possível vivenciar possibilidades como a atuação interdisciplinar e a docência colaborativa, bem como envolver os alunos agregando ao projeto a criatividade, o senso crítico e estético, suas fantasias, a imaturidade, mas, também, foi permitido partilhar com os alunos visões de mundo, convivência e expectativas.
Desse modo, é preciso se deter mais nos potenciais eminentes que estão na escola, socializar mais com os alunos situações da vida real e ajudá-los a pensar e a refletir sobre seus sonhos e talentos. Parece que a escola evita esses temas possivelmente por temer desagradar os pais, os alunos e até mesmo para se precaver de judicialização. Entretanto, sugere-se que o conhecimento ofertado pelas escolas não se baseie em equívocos e conteúdos sem cientificidade, quando são discutidas situações e problemas da vida real que os alunos sabem que existem.
O Fantasma da Ópera traz temáticas complexas, porém, plenamente compreensíveis a alunos de 5º ano, desde que os professores envolvidos tenham formação adequada. Narrativas como Alice no país das maravilhas, Cinderela, Branca de Neve, Dom Casmurro, Pedro e o lobo, Carnaval dos animais, Grande Sertão, entre outros, também trazem questões complexas que se aplicam à vida real. Cabe à equipe pedagógica mediar o trabalho com essas grandes obras e incentivar os alunos a desenvolverem o pensamento crítico e democrático, e os professores podem e devem se ancorar nas temáticas ao alcance de sua formação.
É preciso destacar as dificuldades enfrentadas para o desenvolvimento do projeto, quais sejam: o desafio de realizá-lo com toda a sala, principalmente no Enriquecimento do tipo III, o cronograma dos conteúdos apostilados, que dificulta maiores aberturas, e a falta de apoio da gestão para flexibilizar o tempo para a realização das etapas até o produto final.
Apesar das dificuldades, a sala de aula como um todo se beneficiou do trabalho com a obra O Fantasma da Ópera. Os alunos se envolveram, realizaram ensaios e puderam se aprofundar na história e na preparação, sobretudo porque houve aprendizagem no âmbito musical, teatral, de expressão corporal, entre outras manifestações, as quais não estavam previstas em apostila e tampouco estavam previstas no currículo. O ponto de maior importância nesse trabalho foi a identificação de 12 estudantes com indicadores de talento. Além de a pedagoga não conhecer a temática do talento anteriormente ao desenvolvimento do projeto, ela constatou nessa vivência o que as pesquisas da área relatam - que a identificação e o enriquecimento podem ser tangíveis em uma escola. Com os devidos feedbacks sobre o trabalho à escola, aos alunos e aos responsáveis, as professoras participantes também se sentiram enriquecidas.