A defesa pela efetivação do direito à educação é pauta histórica das educadoras e educadores, pesquisadoras e pesquisadores, movimentos sociais e entidades coletivas brasileiras. Em um avanço inédito, mesmo quando comparado a países desenvolvidos, a Constituição Federal de 1988 garantiu a creche e a pré-escola como direito da criança e dever do Estado, sendo inegáveis os avanços decorrentes dessa declaração constitucional nos últimos trinta anos, como por exemplo, expansão do acesso, garantia de financiamento público e reconhecimento da criança como sujeito de direitos, condições estas reafirmadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei 8.069/1990), pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN) 9.394/1996e pela inscrição da educação infantil na política de financiamento da educação a partir do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), em dezembro de 2006.
A materialização dessas conquistas em normas e políticas pouco tinha prosperado quando o Estado brasileiro anunciava novo ciclo de reformas. Inspiradas nas perspectivas da Nova Gestão Pública (JUNQUILHO, 2002; 2004; GARCIA; ADRIÃO; BORGHI, 2009; OLIVEIRA, 2015), as propostas reformadoras inscritas no Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado (PDRAE), apresentado no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), formalizaram-se através de um conjunto de leis e decretos que permitiram a ampliação do protagonismo e a ação do setor privado para garantia dos direitos sociais (PERONI; ADRIÃO, 2005; PERONI; OLIVEIRA; FERNANDES, 2009). Na área da Educação, dentre outras ações, testemunhamos a transferência da responsabilidade pela oferta educacional para as municipalidades, processo conhecido por municipalização da educação OLIVEIRA, 1999) - entes federados com menor capacidade fiscal -; a expansão da presença do setor privado de base empresarial na definição das políticas (FREITAS, 2014); e a ampliação da transferência de fundos públicos para instituições privadas, lucrativas ou não, tendo em vista a transferência da oferta educativa, da gestão educacional e da elaboração e implementação de currículos (ADRIÃO, 2018).
Especificamente na Educação Infantil, tema deste dossiê, as reformas fomentaram a transferência da oferta educativa para organizações privadas, generalizando-se como estratégia governamental durante a vigência do FUNDEF (PINTO, 2007; ARELARO, 2008) - instituído pela Emenda Constitucional 14 de 1996 - que, dentre outras coisas, focalizou o financiamento educacional no ensino fundamental (PINTO, 2007; CORREA, 2011). Essa transferência da oferta educativa foi aprofundada com a EC 19 de 1998, que normalizou e induziu o financiamento público para oferta privada de serviços públicos por meio da celebração de contratos e convênios e da parceria público-privada, exigindo novo marco regulatório para adequar a gestão pública às orientações de cunho gerencial (ADRIÃO; BEZERRA, 2013; PIRES, 2015); a EC foi agravada posteriormente à Lei de Responsabilidade Fiscal - Lei Complementar 101/2000 - que, ao fixar um teto de gastos com despesa de pessoal, induziu a desresponsabilização do setor público para com a oferta direta da educação (DOMICIANO-PELLISSON, 2016; ADRIÃO, 2017; ADRIÃO; DOMICIANO, 2018). A esse cenário agregam-se as contradições introduzidas pelo FUNDEB - decorrente da EC 53 de 2006 -, que, ao mesmo tempo que inclui toda a educação infantil na dinâmica de financiamento do fundo, permitiu o repasses desses recursos ao setor privado não lucrativo (PINTO, 2007; ADRIÃO; BORGHI, 2008; DOMICIANO, 2009; BASSI, 2011; DOMICIANO, 2011; OLIVEIRA; BORGHI, 2013).
Às tendências de privatização, facilitadas pelo arcabouço legal, soma-se a fragilidade financeira da maior parte dos municípios brasileiros em virtude do modelo de arrecadação e repartição de impostos no Brasil, seja, conforme Rezende (2010), em decorrência da concentração espacial das bases tributárias modernas, seja pelas exigências de eficiência da tributação. Para o autor, “a ausência de um sistema de transferências orientado para a correção desses desequilíbrios agrava, ao invés de corrigir as disparidades decorrentes da concentração da atividade econômica.” (REZENDE, 2010, p. 72). Desse modo, os entes federados mais pobres da esfera administrativa optam pela forma mais ‘econômica’ de garantir a expansão do atendimento das crianças pequenas, o qual, tradicionalmente, na creche, se assenta pela via do conveniamento (CAMPOS, 1989; CAMPOS; ROSEMBERG; FERREIRA, 2006).
Com demanda crescente, atendimento historicamente deficitário e sob a responsabilidade prioritária do ente federado financeira e tecnicamente mais frágil no Brasil, ampliam-se as formas de privatização na e da Educação Infantil. Por privatização da educação, entendemos com Hill (2003) as estratégias de reprodução do capital. Este, além de atuar no corte ou diminuição dos gastos públicos com saúde, educação, previdência, assistência social e outros da esfera social, procura também se ampliar e se reproduzir por meio da busca de novos mercados. Para o autor, há três estratégias ou Planos para ampliação do capital, dentre eles, “um Plano de Negócios na Educação: este se concentra em liberar as empresas para lucrar com a educação.” Neste caso, a educação pública é transformada em campo para realização de negócios.
No Brasil, estudos identificam variadas formas de privatização e, consequentemente, da lógica de mercado impregnada na expansão do atendimento, seja na oferta da educação básica - financiada com recursos públicos por meio de parceria público-privada, tendo como exemplo a cidade de Belo Horizonte (ADRIÃO; BEZERRA, 2013) -, seja ainda nos processos de conveniamento da educação infantil e gestão privada de unidades públicas com subsídio governamental (SUSIN, 2006; BORGHI, 2012; DOMICIANO, 2012; DOMICIANO-PELLISSON, 2016; FRANCO; DOMICIANO; ADRIÃO, 2019), ou a venda de insumos curriculares por corporações e por segmentos a estes associados (ADRIÃO; DAMASO; GALZERANO, 2013; ADRIÃO, 2017).
Desse modo, intencionando explicitar as formas de privatização e os riscos advindos desses processos para o direito fundamental das crianças pequenas, reunimos neste dossiê, um conjunto de seis pesquisas, desenvolvidas por investigadores de diferentes lugares e contextos, oriundos de universidades brasileiras, de Portugal e Buenos Aires. Esperamos contribuir para o avanço do conhecimento na área e pautar a defesa de nossos pequenos no caminho até as unidades educacionais públicas e de qualidade.
Com uma síntese de dados de pesquisa concluída em 2018 em dez países da América Latina e Caribe - Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Honduras, México e República Dominicana -, o artigo El derecho a la educación y al cuidado em la primera infância: perspectivas desde America Latina y el Caribe, de Mercedes Mayol Lassale, Camila Croso e Giovanna Modé Magalhães, abre o dossiê trazendo ao público leitor um panorama das respostas dos países investigados aos princípios e propósitos inscritos na Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), que inaugura uma nova etapa sobre a concepção de infância e eleva as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. A materialidade das ações nesses países é apresentada e discutida pelas autoras a partir do levantamento das leis nacionais, das políticas de atendimento à primeira infância (0-8 anos) e do investimento despendido à faixa etária correspondente. Ressaltam as autoras que, apesar dos avanços, as políticas expressam grande heterogeneidade e fragmentação, colocando em risco a garantia do direito humano à Educação Infantil, principalmente quando se observam tendências privatizantes nos países investigados.
Da América Latina e Caribe, passamos para Portugal com o artigo Articulações entre o público e o privado na Educação de Infância em Portugal, de Emília Vilarinho, no qual a autora analisa o papel do Estado português na promoção de políticas educativas para crianças de 3 a 6 anos e a sua relação com a promoção da igualdade em educação e com os direitos da criança. Dados de investigação anterior são atualizados, trazendo para o leitor as principais medidas de intervenção do Estado, a redefinição do seu papel no pós-Estado providência e como foi feita a construção da agenda para a Educação de Primeira Infância no país. A partir de dados de Lisboa e do Porto, Vilarinho evidencia que a educação para as crianças de 0-3 anos é majoritariamente privada, ainda vinculada ao Ministério do Trabalho e Segurança Social. No Jardim de Infância, a taxa de cobertura pelo Estado é maior, mas isso não significa atendimento público e gratuito, na medida em que Portugal avança na permissão de subvenção à esfera privada lucrativa e não lucrativa, mantendo e aprofundando modalidades, processos e “arranjos institucionais” que caracterizam a privatização da e na educação de infância.
O artigo Atuação dos governos dos estados de Alagoas e Maranhão no financiamento da educação infantil, de Nicanor Lopes, Theresa Adrião e Gabriela Cristina Ramos, chama a atenção para a fragilidade do regime de colaboração por parte dos estados e correlaciona esta ausência colaborativa à privatização e às desigualdades das condições de oferta nesta etapa da educação básica. Os autores apresentam inicialmente um panorama da oferta da Educação Infantil no período de 2005 a 2015 nos estados selecionados, explicitando a atuação das diferentes esferas administrativas. Posteriormente, a partir de um conjunto de insumos e infraestrutura selecionados com base no Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e no Índice de Condições de Oferta (ICOE), mostram a situação crítica da rede educacional maranhense e alagoana, principalmente no que concerne à creche. Complementando os dados e as análises, os autores discutem os gastos desses governos na subfunção educação infantil, destacando os empreendidos com o setor privado, explicitando o volume de recursos públicos drenados para aquele setor e a completa ausência de cooperação entre estados e municípios na promoção da Educação Infantil.
A oferta, a gestão e o financiamento educacional também são parte da análise do artigo Nova Gestão Pública e Programa ‘Nave-mãe’: caminhos comuns à privatização, de autoria de Cassia Domiciano. Por meio de pesquisa realizada no município de Campinas-SP, a autora mostra os efeitos da privatização da gestão de unidades públicas de Educação Infantil após a implantação do Programa de Atendimento Especial à Educação Infantil (PAEEI), comprovando a ascensão desse setor na definição das políticas locais, o direcionamento crescente de recursos públicos a esse segmento e a disputa entre as entidades privadas para gerir os equipamentos a fim de angariar volume maior de financiamento público. Avalia a autora que o PAEEI se assenta sob as perspectivas da Nova Gestão Pública, colocando em xeque o direito humano à educação.
Complementando a investigação sobre Campinas-SP, o artigo As instituições sem fins lucrativos na privatização da Educação Infantil, escrito por Maria Lúcia Lemos Ceccon e Nádia Pedrotti Drabach, focaliza a análise na natureza das instituições privadas que se tornaram atores de destaque na oferta da Educação Infantil e na gestão dos equipamentos públicos, principalmente depois de 2007, quando o município passou a priorizar o atendimento com gestão privada. Mostram as autoras que, ao longo do tempo, houve transformações político-normativas no que chamam de (re)constituição das instituições sem fins lucrativos, com vistas a ampliar o atendimento às demandas de Educação Infantil do município.
Destacando um “novo” nicho de mercado, o artigo A Educação Infantil sob a lógica do empreendedorismo e dos “Negócios de impacto Social”, escrito por Bianca Correa, que fecha este dossiê, discute o material intitulado Empreendedorismo e negócios de impacto social para a Primeira Infância, publicado e organizado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, cujo objetivo explícito é “apoiar empreendedores interessados em desenvolver negócios de impacto para a Primeira Infância”. Como destinatário de seus produtos de impacto social, está a população infantil em situação de vulnerabilidade, com destaque para as “creches e pré-escolas de baixo custo”. De forma crítica, ao analisar o material, a autora destaca os novos desafios impostos à defesa de todas as crianças como sujeitos de direitos e ao enfretamento de sua subordinação a interesses contrários, na avaliação de Correa, expressos na sua transformação em “meras mercadorias, ou, exagerando numa analogia, commodities.”
Nesta conjuntura, na qual o Congresso debate o NOVO-Fundeb - e, novamente, somos convocados a refletir e incidir na defesa da educação infantil como direito dos pequenos/as e adequado a seus interesses e necessidades -, a Educação em Revista publica este dossiê, cujo conteúdo, acreditamos, contribui para o avanço das pesquisas sobre políticas públicas para a primeira infância, para o diálogo informado entre pesquisadoras e pesquisadores do tema e para a concretização deste direito humano a todas as nossas crianças.