Introdução
Atualmente, no Brasil, vêm se instalando medidas de ajustes fiscais, principalmente nas áreas sociais e em especial no campo educacional. Compreende-se que a lógica de mercado tem determinado medidas reestruturantes para as políticas educacionais que visam estreito alinhamento aos ajustes da economia mundial.
É lamentável que a educação venha tomando rumos que são balizados por grupos hegemônicos que não visam à emancipação e à humanização dos sujeitos como cidadãos de direitos, mas, pelo contrário, objetivam instrumentalizá-los e controlá-los com base em índices nacionais e internacionais determinados pelo capital internacional, via organismos multilaterais.
Nessa perspectiva, compreende-se que tais ações são castradoras e desumanizadoras da possibilidade dos sujeitos em busca de suas potencialidades. Para Freire (1981), o ser humano é ontologicamente voltado para uma vocação de humanização; mesmo que a história mostre situações de injustiças e desumanização, esta não é permanente do ponto de vista das possibilidades e das lutas.
A desumanização que não se verifica, apenas, nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do SER MAIS. [...]. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos (Freire, 1981, p.30).
Assim sendo, a formação de professores vem, também, configurando-se como uma estratégia a serviço de interesses corporativistas que não respeitam a autonomia nem os interesses da categoria profissional dos professores e profissionais da educação.
Nesse sentido, recorre-se aos ideais freireanos, em busca de uma compreensão consciente da realidade em que estamos imersos. É preciso lutar, coletivamente, a partir de uma consciência de classe e de superação das situações opressoras. Nesse sentido, Freire (1981, p.40) afirma que não basta apenas a consciência crítica, mas é necessária a reflexão-ação – que ele chamou de práxis: “A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-la. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido”.
Assim, este artigo busca, a partir de uma compreensão crítica da realidade brasileira, identificar as situações-limite que permeiam a educação nacional e vêm interferindo na autonomia e emancipação dos professores, por meio de formações e orientações estabelecidas sem a participação popular.
Brasil: cenário de fortalecimento das políticas neoliberais em defesa do livre mercado
A partir de 2016, instaurou-se uma realidade caótica na democracia brasileira, estruturada por alguns segmentos diferentes e até divergentes quando analisados em contextos isolados, mas que, diante de interesses que se convergiam (tomar a presidência e instaurar políticas de austeridade econômica), puderam alinhar-se e formar um bloco conservador e ao mesmo tempo comprometido com o capitalismo internacional.
Nesse contexto, podem-se tecer algumas ideias a partir dos estudos de Apple (2003), quando este analisou a formação do que ele chamou de uma “Nova Direita”, constituída por uma aliança direitista formada entre os neoliberais, os neoconservadores, os populistas autoritários e a nova classe média de profissionais qualificados e gerentes. Analisando-se esse fenômeno de alinhamento e materialização da “Nova Direita” no Brasil, há que associá-lo às políticas de ajuste fiscal legitimadas pela elite brasileira, à pressão de organismos representativos do capital mundial, aos fundamentalistas religiosos, aos conservadores que detêm as forças econômicas locais, e, principalmente, à mídia hegemônica e suas tecnologias a serviço do capital, entre outros fatores.
Para poder compreender essa coalizão de forças diversas, mas que se unem em prol da reconfiguração do papel do Estado brasileiro através do realinhamento de medidas reformistas/modernizantes e ao mesmo tempo conservadoras, trazem-se a lume as reflexões tecidas por Pochmann (2017). Eis suas ponderações acerca da postura do Estado perante as pressões hegemônicas internas em consonância com as pressões externas do capitalismo mundial em seu processo de globalização:
A mudança no papel do Estado acompanha, por decorrência, a pressão de organismos internacionais e dos interesses das grandes corporações transnacionais no interior das decisões nacionais. Nos dias de hoje, a crise do capitalismo global iniciada em 2008 tem revelado o acirramento da concorrência intercapitalista entre as grandes corporações transnacionais, que vêm operando com taxas de inversão deprimidas, porém articuladas à valorização da órbita financeira (Pochmann, 2017, p.315).
Observa-se que um dos primeiros mecanismos de alinhamento com as forças do capitalismo, proposto pelo então presidente Michel Temer (2016-2018)3 e aprovado pelo parlamento, foi a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016, que tratava do congelamento dos gastos primários do executivo por vinte anos para recursos com a saúde, educação e outros gastos sociais. No processo de tramitação até a sua aprovação, a MP 241/2016, foi sancionada pela Presidência da República, como Emenda Constitucional n° 95, em 15 de dezembro de 2016, alterando os Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, instituindo o Novo Regime Fiscal e dando, ainda, outras providências.
Dando continuidade ao seu projeto reformista-conservador, aliado ao capital e às alas ultraconservadoras da sociedade, o então presidente Temer também “flexibilizou” as leis de seguridade ao trabalhador, desestabilizando os seus direitos e ampliando os interesses dos empresários, mediante a aprovação na Câmara dos Deputados, no dia 22 de março de 2017, do PL n°4.302/1998, que regulamentou a terceirização do trabalho em todas as atividades. O Projeto de Lei foi aprovado e transformado na Lei Ordinária n°13.429/2017, regulamentando a contratação terceirizada dos trabalhadores de forma irrestrita para todas as empresas privadas e a administração pública. A medida foi justificada por grupos empresariais e por apoiadores do governo como um mecanismo de estabilização e fortalecimento da economia, de forma a ampliar a empregabilidade.
Em consonância com a reforma trabalhista, estrutura-se atualmente no Brasil a reforma previdenciária, que, na análise dos movimentos sociais e sindicais, impactará negativamente a vida de muitos brasileiros por várias gerações. Todos os trabalhadores, tanto os que se encontram em plena atividade, quanto os que já se encontram aposentados, estão preocupados e temerosos com as possíveis mudanças que possam surgir, limitando o seu tempo de aposentadoria e as regras de contribuição, como também direitos já garantidos que serão reduzidos e ou até mesmo excluídos. Entretanto, o presidente em exercício (2019), Jair Messias Bolsonaro, juntamente com uma expressiva parcela de parlamentares que o apoiam, justificam que essa mudança é realmente necessária para garantir o futuro da economia e, consequentemente, o futuro da nação.
Com esse pacote reacionário de cortes aos direitos sociais da população, o Estado brasileiro reformista-conservador optou pelo não desenvolvimento da economia interna e pela redução de políticas inclusivas. Estabeleceu-se, então, uma estreita relação do Brasil com o capitalismo global, tomando como referência os Estados Unidos como principal regulador das forças hegemônicas do neoliberalismo dentro do país.
Segundo os estudos de Apple (2001) sobre o crescimento e fortalecimento da Nova Direita, na maioria dos países que realizam estratégias recomendadas pelo mercado internacional e suas corporações, observa-se a disseminação de que é preciso “mais mercado e menos Estado”:
Em quase todos os países de língua inglesa, embora não apenas neles, as várias facções da Direita forçaram o estabelecimento de uma relação entre mercado e o bem comum na cena política. Entre as mais influentes dessas ideias, encontram-se as seguintes: que o Estado do Bem-Estar, e o contrato social subjacente a ele, não foram uma ‘boa coisa’ para a economia porque “nós” simplesmente não podemos pagar por ele; que ele limitou o exercício da livre escolha democrática em função de interesses entrincheirados, principalmente profissionais; e que ele é destrutivo para o caráter dos pobres porque ‘os’ torna dependentes (Apple, 2001, p.38).
Diante desse contexto político-econômico em que se encontra o Brasil, com corte de gastos públicos e políticas restritivas e focalizadas, conforme as recomendações de organismos multilaterais a serviço apenas do mercado, pode-se recorrer ao que diz Apple (2003, p.22) sobre o neoliberalismo:
A maioria das grandes corporações são tudo o que quiserem, menos democráticas. De muitas formas, são mais totalitárias do que se admite abertamente. Assim sendo, os empregos são cortados de forma impiedosa. Os lucros são muito mais importantes do que a vida, as esperanças e o bem-estar dos empregados que dedicaram sua vida profissional a essas empresas. Em geral, nenhum nível de lucro consegue tornar esses empregos seguros. O lucro tem de aumentar constantemente, não importa o que custe às famílias e aos empregados. É necessário perguntar se essa é a ética que devemos introduzir como modelo para nossas instituições públicas e para nossos filhos.
No contexto de reformas das políticas sociais no Brasil, marcadas por características conservadoras e mercantis, é importante observar as representações que atualmente estão compondo o Congresso Nacional. Muitos parlamentares estão vinculados ao fundamentalismo religioso e relacionados ao “Movimento Escola Sem Partido”, que vem cerceando a liberdade e autonomia das escolas e de seus profissionais, bem como trucidando as questões de multiculturalismo e diversidade. Outros, ainda, estão extremamente envolvidos com os setores empresariais e o capital financeiro e, portanto, não expressam os interesses da maioria da população.
Em consonância com as reformas de impacto econômico imediatista, surgem também reformas no campo educacional, desconsiderando todas as lutas travadas pelos educadores, principalmente a partir dos fins dos anos de 1980, com o processo da Assembleia Constituinte e sua posterior materialização na Carta Magna, a Constituição Brasileira Cidadã de 1988. Desconsideram, também, os processos de disputas e poder em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei nº 9.394/1996, os quais garantiram algumas mudanças significativas na política educacional.
A reforma do Ensino Médio: precarização da Educação Pública
Esta discussão tem por foco as reformas conservadoras no campo educacional, fortemente imbricadas com outras de cunho econômico e conhecidas como reforma do Ensino Médio. Foi primeiramente lançada por Medida Provisória (MP), no caso, a MP n°746/2016, e, logo em seguida, aprovada e transformada na Lei n°13.415/2017. Esta define os rumos de jovens e professores atuantes nessa etapa da Educação Básica, instituindo um microcurrículo composto por Português, Matemática e Ciências sob a orientação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e deixando os itinerários formativos por conta das possibilidades dos sistemas de ensino.
Analisando o contexto da reforma do Ensino Médio atrelada ao modelo empresarial, Freitas (2018) aponta as consequências danosas, principalmente para os estudantes oriundos das camadas populares:
Daí porque a reforma empresarial defende também a profissionalização no Ensino Médio (implementada pela atual reforma do Ensino Médio com a desculpa de que hoje ele não é “atrativo”) criando uma linha de exclusão que vai do Ensino Médio para as empresas (profissionalização precoce dos mais pobres), em detrimento de uma linha de inclusão que vá do Ensino Médio para o Ensino Superior (reservado à elite do Ensino Médio). Sem essa profissionalização, uma parcela da juventude fica algum tempo dentro do sistema de Ensino Médio e sai, denunciando sua má formação através da evasão; com a profissionalização precoce, essa mesma parcela é desviada para o trabalho, saindo oficialmente das estatísticas de abandono escolar, sem que se tenha que alterar a qualidade de ensino para atender a todos (Freitas, 2018, p.84).
Preocupadas com os resultados excludentes dessa nova onda reformista e castradora da autonomia dos educadores, as entidades científicas do campo educacional vêm se mobilizando com estratégias de resistência e propostas contra-hegemônicas em busca de uma qualidade social para a Educação Pública brasileira. Podem-se tomar para análise os estudos realizados pela professora e pesquisadora Saul (2016), coordenadora da Cátedra Paulo Freire na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP):
No momento atual, o risco da implantação de um “novo paradigma” de controle da educação brasileira surge com sérias consequências para a organização das escolas, ao propor uma base curricular nacional como referência para o que se deve ensinar, com o propósito de estabelecer um forte sistema de avaliação e com prescrições para a formação de professores (Saul, 2016, p.12).
Segundo Apple (2001, p.50): “A educação aqui se torna um produto como pão ou carros, e a única cultura sobre a qual vale a pena falar é a ‘cultura empresarial’ e as habilidades, conhecimentos, disposições e valores flexíveis necessários para a competição econômica”.
No que se refere ao conteúdo proposto pela Lei n°13.415/2016, há que se desconfiar da nova estrutura curricular só por áreas, sem especificar os componentes curriculares como Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia, entre outros. Apenas os componentes de Matemática e de Língua Portuguesa estão definidos e são obrigatórios nos três anos do Ensino Médio. Não estão claramente definidos aqueles componentes curriculares que não estejam intrinsecamente relacionados com a lógica do mercado e se voltem para questões como as relações humanas e a formação do ser, ou que visem construir a reflexão crítica e o respeito ao pensamento plural, entre outras capacidades. Sobre estes, diz-se que serão trabalhados de forma ampla a partir das grandes áreas (Brasil, 2017).
Compreende-se que a nova arrumação curricular do novo Ensino Médio se torna interessante para a classe dominante, porque não convém que a classe popular amplie os seus horizontes nem seu poder discursivo-argumentativo, mas apenas que seja um trabalhador apto e eficiente para cumprir o que seu cargo lhe exige. Outro aspecto contido nessa Lei (Brasil, 2017) e que ameaça a docência é a questão da abertura para profissionais não habilitados ao magistério, no itinerário formativo técnico-profissional, em que o “notório saber” figura como possibilidade de exercer a docência com uma capacitação aligeirada a ser criada e legalizada mediante orientação para tal fim.
Acredita-se que tal abertura para outros profissionais não habilitados exercerem a docência é, no mínimo, um desrespeito à classe dos professores que fizeram uma formação inicial em curso de licenciatura e várias formações continuadas ao longo da sua trajetória no exercício do magistério. Essa ação se caracteriza como mais uma tentativa de enfraquecer e desmoralizar os professores, além de ir na contramão de toda a legislação educacional em vigor no que tange à formação docente. Dentre os dispositivos legais que garantem uma formação ampla numa perspectiva de unidade teoria-prática, cabe lembrar as Diretrizes Curriculares para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica (Brasil, 2015), estabelecidas pelo Parecer do CNE/CP n°2/2015 e pela Resolução do CNE/CP n°2/2015, como também o Decreto n°8.752, de 9 de maio de 2016, que instituiu a Política Nacional de Formação dos Profissionais da Educação Básica e, por fim, o próprio Plano Nacional de Educação, que propõe uma sólida formação aos professores e a valorização destes, em suas metas 15, 16,17 e 18.
Ainda no rol das propostas da Lei em análise, os especialistas tecem críticas à questão da abertura de convênios e parcerias entre o setor público e o privado com recursos provenientes do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Os recursos públicos poderão ser liberados à iniciativa privada para dar conta da formação técnico-profissionalizante. E, ainda, com a flexibilidade de o percurso voltado para a formação técnica e profissional poder agregar no currículo cursos e formações na modalidade à distância.
Motta e Frigotto (2017, p.358) apresentam e analisam criticamente algumas questões-chave que visam justificar, na ótica dos seus defensores, a necessidade da Lei n°13.415/2017:
1. Investimento em capital humano para obter maior produtividade;
2. Modernização da estrutura curricular, flexibilizando-a por áreas de conhecimento;
3. Melhora nos resultados de desempenho escolar, aferidos por avaliações nacionais e internacionais.
Ainda segundo Motta e Frigotto (2017), a intenção de investir em capital humano com vistas à maior produtividade é uma prática da política brasileira desde o ciclo modernista-desenvolvimentista, voltado para a expansão da economia local e internacional. No entanto, ao longo do processo histórico da economia brasileira, observou-se que o setor de serviços e comércio foi o que mais cresceu no país, com a ressalva de que a maior parte da mão de obra para suprir as vagas ofertadas pelo setor foi centrada em funções menos complexas do ponto de vista do conhecimento, resultando em baixa remuneração dos trabalhadores.
Concluindo, os autores afirmam que essa justificativa não se sustenta, ou seja, é uma falácia:
Enfim, a realidade concreta demonstra que a difusão da necessidade de investir em capital humano como motor de desenvolvimento econômico e social é uma ideologia, parcial e artificiosa. Os cortes no orçamento da educação e os repasses de recursos públicos para setores privados ofertarem cursos aligeirados e de baixo valor tecnológico agregado vão de encontro à ideologia do capital humano (Motta; Frigotto, 2017, p.361).
No que diz respeito à modernização da estrutura curricular pela flexibilização por áreas de conhecimento, Motta e Frigotto (2017) refletem que o que está como objetivo central por trás dessa flexibilização é atender às exigências de habilidades e competências prescritas nas avaliações externas (internacionais e nacionais), focadas nos componentes curriculares de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências. Estes se configuram como instrumentos certificadores de qualidade, segundo as recomendações do Banco Mundial e a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Tomando ainda como análise as considerações de Motta e Frigotto (2017) acerca do processo de ampliação das forças econômicas hegemônicas no Brasil, os autores apontam que elas foram se fortalecendo ao longo dos anos e que, especificamente no campo da educação, conseguiram estabelecer mecanismos fortemente presentes em muitas gestões públicas, disputando e estabelecendo políticas que representam os interesses da classe burguesa. Eis as ponderações dos autores:
[...] trata-se de uma contrarreforma que expressa e consolida o projeto da classe dominante brasileira em sua marca antinacional, antipovo, antieducação pública, em suas bases político-econômicas de capitalismo dependente, desenvolvimento desigual e combinado, que condena gerações ao trabalho simples e nega os fundamentos das ciências que permitem aos jovens entender e dominar como funciona o mundo das coisas e a sociedade humana. Uma violência cínica de interdição do futuro dos filhos da classe trabalhadora por meio da oficialização da dualidade intensificada do Ensino Médio e de uma escola esvaziada, na perspectiva de Antonio Gramsci (Motta; Frigotto, 2017, p.369).
O Ensino Médio proposto pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), Lei nº 9.394/1996, e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, já compreendia uma formação geral nos três anos, como também abria a possibilidade para a existência das escolas profissionalizantes, porém sem perder de vista o caráter de formação geral nas diversas áreas do conhecimento. No entanto, com a atual reforma, o Ensino Médio perde esse caráter mais geral, limitando a oportunidade de aprendizagem ampla e contextualizada, propagando agora a ideia de escolha e flexibilização e, consequentemente, excluindo muito mais os jovens oriundos das camadas sociais desfavorecidas e limitando as possibilidades de continuação dos seus estudos em nível superior, pois dependerão, exclusivamente, desse novo contexto de reformas do Ensino Médio voltado para a escola pública.
A partir dessa lógica mercantil, observa-se em muitas das gestões da Educação Pública brasileira o emprego do modelo gerencial e o princípio da responsabilização. A política de responsabilização parte do pressuposto da participação e responsabilidade dividida entre as esferas públicas e os sujeitos corresponsáveis pelo alcance das metas e resultados.
Entretanto, os princípios do diálogo e respeito ao outro, em suas diferenças e especificidades, são renegados nessa proposta. Retomando as palavras de Freire (1981, p.92), “não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”. Nesse sentido, essa reforma não escutou os educadores e educandos nem dialogou com eles.
Cabe ainda lembrar que surgiram várias mobilizações e enfrentamentos da sociedade civil contra a reforma do Ensino Médio. A pesquisadora Kuenzer (2017, p.333), apresenta as seguintes considerações:
[...] é importante ressaltar que, embora tenha havido acirrado enfrentamento dos setores progressistas da sociedade civil, em particular do movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio, e do movimento dos estudantes secundaristas, a proposta do governo foi aprovada integralmente [...].
No atual governo federal não há espaço para o diálogo nem para a proposição de ideias diferentes ou que expressem outros interesses que não sejam “os deles”. Ou seja, “os outros” são invisibilizados e excluídos dos seus projetos prontos e orientados pela cartilha do Banco Mundial e da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio, ocorrido no Brasil em 2016, reuniu várias entidades científicas da área educacional contra a MP 746/2016, numa tentativa de barrar as alterações que ela implicaria na LDB. Os pontos mais críticos e combatidos pelo Movimento se centravam na questão da organização curricular e na alteração das regras para usar os recursos públicos para a educação. Conforme nota da Anped em defesa do Ensino Médio:
Do ponto de vista da organização curricular, a MP nº 746/2016 retoma um modelo já experimentado nos tempos da ditadura militar, trazendo de volta a divisão por opções formativas. A formação básica comum que atualmente é garantida nos três anos do Ensino Médio passaria a ser dada em apenas a metade desse tempo e, após isso, o(a) estudante seria dirigido(a) a um ou outro itinerário formativo (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas ou formação técnico-profissional), a critério do sistema do ensino. Essa medida, além de significar uma perda de direito e um enorme prejuízo com relação à formação da juventude, fere a autonomia das escolas na decisão sobre seu projeto político pedagógico, o que hoje está assegurado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e que será alterado pela Medida Provisória (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 2016, online).
Percebe-se, de fato, uma tentativa de aproximar a Educação Pública dos interesses das empresas privadas4, que visam mão de obra instrumentalizada, e não em seres humanos conscientes e críticos quanto à sua realidade sócio-histórica.
Para o grande empresariado, a questão é formar mão de obra “um pouco especializada” para trabalhar e produzir lucros para suas empresas. Nessa lógica de mercado, a educação também é uma mercadoria que precisa ser modelada e adaptada à lógica do capital. Para eles, é preciso que se criem convênios com os governos a fim de que reformas neoliberais se tornem interessantes aos olhos do povo e sejam vendidas como produto a ser consumido, independentemente de sua (duvidosa) qualidade.
A reforma do Ensino Médio e a sua aproximação com a escola dual: considerações à luz dos mecanismos de reprodução, segundo Bourdieu e Passeron
Numa breve retrospectiva histórica da Educação Básica no Brasil, pode-se constatar que o Ensino Médio sempre foi objeto de disputa para o capital, uma vez que este determina o tipo de educação prioritária para a produção. Por isso, não é por acaso que reformadores educacionais e empresários se alinham a um único projeto que atende aos interesses de mercado, deixando em segundo plano os interesses da classe social menos favorecida e promovendo o fracasso escolar.
Segundo Bourdieu e Passeron (2014), a questão das desigualdades sociais promovidas no ambiente escolar se relaciona diretamente com o lugar que cada indivíduo ou grupo ocupa na escala socioeconômica. Assim, os autores apresentam alguns fatores que podem aproximar ou distanciar os indivíduos do fracasso escolar, a partir da proposta de reconfiguração do “Novo Ensino Médio”, em vigor por meio da Lei n°13.415/2017. Um dos fatores é o capital econômico, na medida em que promove bens e serviços e, consequentemente, mecanismos estruturantes para ampliar as possibilidades e o acesso ao próprio conhecimento. Outro fator apontado é o capital social, caracterizado pelo conjunto de relacionamentos sociais influentes e estabelecidos pela própria família de cada indivíduo. Por fim, o terceiro fator é o capital cultural, entendido como a busca e a acumulação de títulos escolares, os quais, por sua vez, promoverão legitimação e/ou ascensão socioeconômica de determinados grupos.
A partir da análise dessas estruturas, Bourdieu e Passeron (2014) observam que as famílias detentoras desses capitais desenvolvem um habitus, ou seja, um conhecimento prático que foi construído a partir de suas experiências ao longo da história, e que essa forma de pensar e agir se aproxima dos valores difundidos e exigidos pela escola. Por outro lado, as famílias desprovidas desses capitais, possivelmente, construíram ao longo de sua história um habitus ou modus operandi que as distancia das exigências e conhecimentos trabalhados na escola.
Segundo Bourdieu e Passeron (2014), os indivíduos desprovidos desses capitais, consequentemente, tendem a fracassar na escola, uma vez que o modo de falar, de se comportar, de avaliar e de construir conhecimentos nas escolas distancia-se muito do modo de vida das classes desfavorecidas. Nessa lógica, a escola surge como um mecanismo de reprodução social de cada grupo. Assim sendo, ela se caracteriza como uma violência simbólica para os indivíduos provenientes de grupos sociais que não detêm os capitais econômico, social e cultural, por apresentar conhecimentos muitos distantes da realidade desses grupos e por se caracterizar como uma instituição mais voltada para as classes médias e para as elites.
Os autores analisam as estratégias geralmente usadas pelas famílias, conforme sua origem: das classes populares, das classes médias ou das elites. Observam que cada grupo ou classe estabelece uma relação ou valorização diferente com a escola.
Para as classes populares, o conhecimento escolar é um investimento caro e demorado. Como os indivíduos dessa classe não detêm o capital econômico nem o cultural, geralmente investem moderadamente na escola, pois suas experiências de sucessivos fracassos escolares, construídas ao longo do tempo por seus antecessores, não os motivam a um investimento forte. Nessa linha de raciocínio, Bourdieu e Passeron (2014) explicam que esses grupos tenderiam a não esperar muito do sistema de ensino e sua passagem pela escola tenderia a uma formação básica, com o intuito de adquirir um conhecimento voltado para o campo do trabalho mais imediato.
E é em relação a essa parcela da população que a reforma do Ensino Médio se tornou mais conveniente para os capitalistas. Ou seja, já que os jovens das camadas mais pobres “precisam trabalhar para ajudar na renda da família”, nada melhor do que “flexibilizar” os conteúdos escolares, deixando que eles sigam apenas um dos percursos formativos, diminuindo a carga de conteúdos e disciplinas e, ainda, aprendendo algum “ofício simples” que lhes possa servir para o sustento material e a inserção no mercado produtivo de bens e serviços.
No entanto, no Brasil do período 2003-2014, com a política de expansão do Ensino Superior, com as políticas afirmativas e a oferta de cotas para grupos excluídos social e culturalmente, e, também, com o processo de interiorização das universidades, mais pessoas puderam cursar faculdade, inclusive nela inserindo os primeiros indivíduos de uma família, em contraste com as gerações de seus antepassados, que mal conseguiram concluir o Ensino Médio, e assim contrariando aquela lógica da reprodução.
Já os indivíduos oriundos da classe média buscam na escola um meio de ascensão socioeconômica, pois tenderão a investir de forma rigorosa e sistemática no mercado de ensino. Para alcançar tais objetivos, as famílias das classes médias geralmente se esquivam de outros bens materiais e culturais para investir, realmente, na formação acadêmica dos filhos. Portanto, investem, por exemplo, em cursos de línguas, intercâmbios, cursos preparatórios, disciplinas isoladas, escolas que ofereçam estudos mais avançados e que apresentem uma melhor proposta de ensino e equipe de profissionais mais capacitada. Para dar conta desse investimento cultural, as famílias de classe média tendem também a diminuir sua prole, a fim de concentrar sua renda mais no mercado de ensino. Então, para os filhos da classe média, provavelmente, o Ensino Médio não será focado em poucas disciplinas e conteúdos mínimos, pois as escolas particulares que os pais podem pagar (possivelmente, para garantir consumidores e ganhar a competição em relação às demais) enriquecerão o máximo que puderem os seus currículos e atrativos materiais, humanos e pedagógicos. Assim sendo, essas escolas possibilitarão aos indivíduos, seus “clientes”, uma formação mais densa e ampla do ponto de vista do conhecimento historicamente construído e da formação humana em seu aspecto integral.
Por fim, as elites tendem a investir também, fortemente, nos estudos dos seus filhos, mas de forma menos compromissada, pois compreendem que o sucesso escolar é algo natural, decorrente do grande acesso aos capitais econômico, social e cultural.
O Ensino Médio tal como proposto pela LDB e pelas respectivas Diretrizes Curriculares compreendia uma formação geral nos três anos e já abria a possibilidade para escolas profissionalizantes, porém sem perder o caráter de formação geral nas diversas áreas do conhecimento. No entanto, com a atual reforma (2017) – ou contrarreforma –, o Ensino Médio perde esse caráter mais geral, limitando a oportunidade de aprendizagem ampla e contextualizada, ao mesmo tempo que propaga a ideia de escolha e flexibilização. Por consequência, exclui muito mais os jovens oriundos das camadas sociais desfavorecidas e limita-lhes as possibilidades de continuação dos estudos em nível superior, pois eles dependerão exclusivamente desse novo contexto de reformas do Ensino Médio.
É importante ressaltar que já existiam direcionamentos legais que vinham redesenhando um novo Ensino Médio Inovador (EMI) e o próprio Pacto pelo Fortalecimento do Ensino Médio, de iniciativa federal, em cooperação com os sistemas de educação estaduais. Além desses mecanismos, estão ainda em vigor as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, estabelecidas e definidas a partir do Parecer CNE/CEB n°5/2011, da Resolução n°02/2012 e da Resolução nº04/2010, que define Diretrizes para Educação Básica, bem como a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), Lei n°9.394/96, cuja redação anterior já apresentava os componentes curriculares obrigatórios e a parte diversificada.
Corroborando essa discussão, vale lembrar as análises realizadas por Freitas (2018), ao discutir o fenômeno das reformas educacionais balizadas pelo modelo empresarial e apoiadas pela “Nova direita” (nascida nos Estados Unidos a partir dos anos 1990 e, mais recentemente, no Brasil):
Com a ênfase no ‘básico’ das ‘disciplinas básicas’ e sua avaliação em testes padronizados, desenvolve-se um discurso técnico-científico de legitimação que tem forte aceitação do senso comum (e na mídia) e cria uma pressão sobre as redes de ensino que [...] acaba por demandar a adoção da política da reforma empresarial pelos governos (Freitas, 2018, p.85).
Compreende-se ser necessária a construção e o fortalecimento de perspectivas críticas e reflexivas acerca da educação brasileira, além da análise dos caminhos e sentidos que esta passa a tomar, desvelando se o modelo que está sendo proposto para a população brasileira representa suas reais necessidades e induz à transformação, no sentido de exercício de direitos e garantias sociais.
Formação de professores numa perspectiva libertadora: contraproposta ao modelo empresarial de Educação Pública
A lógica gerencialista defende fortes investimentos em formação de professores com vistas a elevar o nível da qualidade do Ensino Médio, partindo do pressuposto de que bastaria a qualificação individual do profissional. Opondo-se a tal ótica, Kuenzer (2011, p.673) tece as seguintes considerações:
Os resultados desses programas, dado o seu caráter recente, precisarão ser avaliados no que tange à sua efetividade, em termos de impacto das ações na qualidade do trabalho escolar, uma vez que a qualificação individual do professor não necessariamente resulta em melhoria dos indicadores de qualidade do trabalho da escola média. [...]. Não se está dizendo, com isso, que a qualificação deve se dar no trabalho, mas sim que é preciso desenvolver processos intencionais e sistematizados que envolvam os docentes que atuam na mesma escola ou pelo menos no mesmo processo pedagógico, uma vez que, pela via do trabalho individual, não existe possibilidade de transformação.
Considerando as reflexões acima, compreende-se que os espaços coletivos e de exercício da autonomia docente também são espaços de construção do conhecimento e de formação, além dos outros espaços coletivos de mobilização, discussão e reflexão da categoria. Hão que se considerar ainda aqueles espaços oferecidos pelas redes de ensino em parceria com instituições públicas de educação superior, desenvolvidos em nível de graduação, extensão e pós-graduação (lato sensu e strictu sensu).
No entanto, na atual legislação educacional, ainda vigoram dispositivos que foram criados após o Plano Nacional de Educação (PNE) e que buscam possibilitar a exequibilidade de algumas de suas metas e estratégias (Brasil, 2014). A saber, Dourado (2016) apresenta os seguintes marcos legais: o Parecer n°02/2015 do CNE/CP; a Resolução n°02/2015 do CNE/CP (ambos os documentos estabelecem Diretrizes Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério); o Parecer CNE/CES nº264/2016; e a Resolução CNE/CES n°02/2016 (os dois documentos estabelecem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Funcionários da Educação Básica); e, por fim, o Decreto n°8.752, de 9 de maio de 2016, que instituiu a Política Nacional de Formação dos Profissionais da Educação Básica.
Com base na produção emanada dos movimentos dos educadores e na legislação discutida e aprovada pelo CNE, compreende-se a formação continuada em consonância com as entidades científicas e sindicais que representam os profissionais preocupados com uma formação docente ampla, contínua e sistemática, numa perspectiva de formação permanente do ser humano e histórico. É, pois, uma concepção que se contrapõe às recentes práticas neoliberais, que vêm minimizando a autonomia e o diálogo dos profissionais da Educação Básica, mediante políticas de responsabilização que têm gerado individualismo, competição e falta de ética no campo pedagógico.
Nessa perspectiva, indaga-se até que ponto os professores da Educação Básica se envolvem (e acreditam) em formações que se vinculam a índices de desempenho mensurados por avaliações externas. É necessário que os docentes analisem as possibilidades e limites a partir dessas práticas, anunciando propostas contra-hegemônicas que atendam a suas necessidades de formação continuada, ao longo de sua trajetória enquanto profissionais da educação.
No que concerne à valorização dos profissionais da educação, Dourado (2016), sinaliza os impactos das metas 15,16,17 e 18 do Plano Nacional de Educação (2014-2024) e tece reflexões sobre os limites para alcançá-las:
Essas metas do PNE constituem importantes proposições, mas não garantem a sua materialidade, pois este processo será resultante das ações e políticas a serem efetivados pelos profissionais da educação e suas entidades representativas, conselhos, fóruns e outros atores coletivos junto à sociedade e ao executivo, ao legislativo, envolvendo, especialmente, os entes federados, seus órgãos executivos, normativos e de controle (Dourado, 2016, p.44).
Essa afirmação do autor confronta com as recentes agendas políticas implantadas no cenário educacional, na medida em que aponta grandes dificuldades para garantir as metas e estratégias do PNE (2014-2024).
Pode-se dizer que as ações da prática docente, bem como as reflexões sobre seus limites e possibilidades, constituem uma práxis política em prol de lutas pela categoria dos trabalhadores em educação e em busca de políticas educacionais mais inclusivas e de justiça social, em meio a um contexto tão diverso e excludente como no Brasil atual.
Nesse sentido, a análise crítica da tessitura política e econômica que atravessa as relações sociais e o coletivo dos profissionais do magistério e dos sujeitos que dependem da Educação Pública, é primordial para revelar as práticas hegemônicas, largamente divulgadas e que assumem legitimação a partir dos diversos aparelhos ideológicos5 que se colocam a serviço do capital.
Compreende-se essa proposta de formação de professores como um espaço de tomada de consciência crítica e de autonomia, além de ser também uma contraproposta aos modelos de gerenciamento e controle da formação docente, tal como ofertado pelas redes de ensino da Educação Básica, fortemente carregadas do viés empresarial, com foco em metas e resultados alcançados a partir da cultura de avaliação.
Compreendida a formação como espaço de diálogo e autonomia docente, pode-se tomar como base a perspectiva freireana da ação pedagógica como possibilidade de reflexão dos sonhos possíveis e de busca pelo “ser mais”6. Assumindo uma postura de denúncia como ação de desocultação das situações-limite vivenciadas pelos professores, Freire anuncia a possibilidade de transformação: “Por isso, venho insistindo, desde a pedagogia do oprimido, que não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens” (Freire, 2014, p.126).
Para Freire (2014, p.52), “A práxis, é a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-la, sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido”. É em direção à transformação social da realidade que, esperam os autores deste estudo, ele poderá contribuir, através da práxis freireana, nos diferentes espaços educativos, inclusive numa formação de professores que busque suplantar a perspectiva gerencialista, em prol de uma educação que supere as práticas opressoras e a falta de autonomia dos seus profissionais.
Considerações Finais
As reformas empresarias que vêm sendo implantadas sem negociação e sem discussão com as várias instâncias representativas da população, constituem um retrocesso no campo das políticas públicas que visam mais justiça social e cidadania plena.
A reprodução desse modelo na reforma do Ensino Médio (aqui denominada contrarreforma) retroage em direção a uma concepção dual de educação, de um lado precarizando o ensino público para as classes populares e, de outro, estabelecendo vínculos com a iniciativa privada que beneficiam e ampliam o ensino para as elites. Enquanto o primeiro modelo é destinado à preparação básica de indivíduos para o mercado de trabalho por meio de um currículo minimalista, o segundo formato aproveita a flexibilização para promover uma ampliação dos percursos formativos que possivelmente tenderá a encaminhar as elites a níveis superiores de conhecimento e preparação para atividades produtivas no mercado de trabalho, voltadas para a pesquisa, gerência e/ou profissões que requerem maior investimento cultural.
É nesse contexto conflituoso de perdas de direitos, lutas e resistências, que os educadores se indignam e buscam compreender os recentes processos de gerenciamento da educação por meio de resultados empregados em gestão como modelo “ideal”, “eficiente” e “eficaz” para a Educação Pública e, em específico, para a formação continuada de professores do Ensino Médio.
Os professores, a partir da reflexão crítica acerca da educação brasileira e da análise das situações-limite que têm impactado a prática pedagógica no contexto do Ensino Médio, vêm se posicionando contra o modelo de currículo imposto e a implantação da BNCC no Ensino Médio. A reforma não só desconsiderou a participação dos professores e a construção do Projeto Político Pedagógico da escola, como também incluiu a figura do professor de notório saber (sem formação no curso de licenciatura) para atuar no itinerário formativo que envolve a formação técnica e profissional, contrariando a Resolução n°2, de 1º de julho de 2015, que trata da formação inicial e continuada nos cursos de licenciatura.
Compreende-se que tanto a formação inicial como a formação continuada dos professores precisam ser garantidas como momentos de reflexão crítica e unidade entre teoria e prática, para que o exercício da profissão docente contemple a relação entre ensino, pesquisa e extensão. O professor não pode ser apenas um mero reprodutor, mas um intelectual que pensa e analisa a sua prática em constante movimento de práxis educativa.
Assim, os temas freireanos da construção de uma consciência crítica e transformadora da realidade opressora do povo brasileiro possibilitarão maior engajamento e emancipação diante da luta e resistência em favor da revogação da Lei n°13.415/2017 (Reforma do Ensino Médio) e contra a recente aprovação da atual proposta de Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio.
A iniciativa de trabalhar com o pressuposto teórico de base freireana é uma tomada de consciência política e ética contra as situações injustas e opressoras a que estão sujeitos todos os trabalhadores brasileiros, e sobre as quais se detém este estudo no tocante aos trabalhadores em educação, no segmento de docentes, por exercerem eles a ação específica de refletir sobre questões do contexto atual com os estudantes e com seus pares. Se esse profissional, de alguma forma, é levado a assumir uma postura passiva, inconsciente ou ingênua sobre a realidade em que vive – realidade de produção capitalista que só visa ao lucro e usa as pessoas como mero instrumento de trabalho, retirando-lhes vários direitos sociais –, é preciso que ele recupere a postura de agente dotado de consciência crítica e capaz de transformar essa realidade limitante.