Introdução
A formação de professores consiste em um processo contínuo e permanente, através da formação inicial e continuada, sendo entendidas de maneira interarticulada, na qual a inicial diz respeito ao período de aprendizagens nas instituições formadoras e a continuada refere-se à aprendizagem no exercício da profissão (Monteiro, 2001; Goi, 2014).
A formação inicial e continuada de professores tem sido também chamada de “desenvolvimento profissional” (Marcelo-García, 2009). Essa nova nomenclatura se ajusta à compreensão do professor na qualidade de profissional do ensino, realizando a conexão entre a formação inicial, indução e formação em serviço em uma concepção de aprendizagem que se dá no decorrer de sua trajetória docente (Nóvoa, 2008).
Corroborando esse apontamento, Gonçalves (2007) afirma que, nesse decurso de aprendizagem docente, o professor inicia o seu processo de desenvolvimento profissional tendo em vista as seguintes etapas: a do desenvolvimento pessoal – que admite que o desenvolvimento profissional é resultado do crescimento individual; a da profissionalização –, que admite que o desenvolvimento é resultado da aquisição de competências relativas ao processo de ensino-aprendizagem; e a concepção da socialização profissional – que envolve a tentativa do professor de se adaptar à esfera profissional. Logo, é relevante a percepção de que o professor tem um percurso vivenciado e construído de acordo com o contexto em que se encontra inserido. Vale ressaltar que nas diferentes etapas do desenvolvimento profissional os professores poderão demonstrar diferentes necessidades e pretensões (Nóvoa, 1997; Gonçalves, 2009).
Ao se discutir o desenvolvimento profissional docente, uma tendência que ganha relevo é a ampliação, para além dos muros das escolas regulares, das possibilidades de inserção profissional do licenciado em diferentes instituições, nas quais a prática educativa tem se feito presente com vistas à promoção da formação humana. Libâneo (2005) reforça essa situação ao afirmar a existência de diferentes manifestações e modalidades da prática educativa, como a educação informal, a não-formal e a formal. Essas manifestações se dão em todas as instituições, como as escolares, familiares, religiosas, políticas, sociais, culturais, entre outras; ou seja, em qualquer situação há um processo de ensino-aprendizado.
Para além da atuação dos licenciados nas escolas regulares está a educação prisional. De acordo com informações do Departamento Penitenciário Nacional (Brasil, 2020), a população carcerária no país, em 2020, era de 752.277 pessoas, sendo a quarta maior população prisional do mundo em termos absolutos, revelando um aumento em nível preocupante no que se refere às taxas de encarceramento. Desse total de presos em 2020, 110 mil estavam frequentando escolas prisionais.
Destaca-se que essa modalidade de educação deu seus primeiros passos com intervenções realizadas já há algumas décadas que, em sua grande maioria, nasceram de experiências isoladas em alguns estabelecimentos penais, sendo realizadas por voluntários sensibilizados com a situação dos apenados (Julião, 2016).
A educação prisional no Brasil é balizada por diferentes normatizações, como a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988); a Lei nº 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996); a Lei nº 7.210/84 – Lei de Execução Penal (Brasil, 1984), entre outras leis, decretos e resoluções. Sobretudo por meio de suas ações, a educação prisional deve se constituir em uma dimensão importante para transformar a realidade dos indivíduos em situação de privação de liberdade.
Estudos relacionados à educação prisional (Lopes, 2013; Menotti, 2013; Almeida, 2014; Souza, 2015; Amorim, 2016; Salvalaggio, 2016; Vieira, 2016) sinalizam para a necessidade de uma formação docente adequada para atuação em escolas prisionais, descrevem singularidades da docência nesses ambientes, relatam desconhecimento prévio das especificidades da educação prisional por parte dos professores, apontam um distanciamento entre os textos oficiais e a realidade das escolas prisionais, revelam diferentes obstáculos e dificuldades para a prática docente na educação prisional como, por exemplo, a precariedade de recursos pedagógicos para as aulas, a falta de apoio à educação pelos agentes de segurança prisional e, ainda, apontam que os aspectos de segurança influenciam negativamente a educação prisional.
Por sua vez, as especificidades inerentes às escolas prisionais constituem importantes elementos que levam a pensar nas implicações para a prática pedagógica desenvolvida pelos professores nesse setor de atuação profissional.
Entre as disciplinas curriculares da educação básica ofertadas nesse contexto encontra-se a Educação Física, com suas singularidades, características e demandas próprias do rol dos componentes curriculares que compõem o currículo do referido nível de ensino. A oferta da Educação Física nas escolas prisionais é prevista na Lei de Execução Penal, a qual ampara o direito à prática esportiva e à recreação, que são conteúdos dessa disciplina, em seu artigo 83, descrevendo que “o estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a [...] recreação e prática esportiva” (Brasil, 1984, p. 15).
Tendo em vista o contexto apresentado, este artigo traz uma parte de uma pesquisa que teve como objetivo identificar e refletir sobre a formação inicial e continuada de professores de Educação Física atuantes em escolas de unidades prisionais localizadas na Região dos Inconfidentes/MG.
Procedimentos Metodológicos
Tendo em vista o fenômeno estudado, a trilha científica das ciências humanas e sociais se mostrou a mais indicada para nortear a sua averiguação em face dos procedimentos metodológicos adotados nesta investigação. Dessa forma, este estudo caracterizou-se como uma pesquisa de natureza qualitativa, na qual, de acordo com Minayo (2011), trabalha-se com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes. Isso corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos, que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.
Como instrumento de coleta de dados, foi utilizada a entrevista semiestruturada, conduzida e fundamentada nos estudos de Marconi e Lakatos (2003), que descrevem que a entrevista busca obter informações referentes a determinado assunto mediante uma conversação de perspectiva profissional entre dois indivíduos, objetivando, de maneira verbal, obter as informações necessárias.
Participaram desta investigação três professores de Educação Física, todos do sexo masculino, com média de idade de 33 anos, sendo que cada um atuava em uma unidade prisional convencional da Região dos Inconfidentes. A escolha dessa região se deu pela intenção de contribuir para compreensão de uma problemática regional, oferecendo um retorno às cidades da região onde a Universidade se encontra inserida. Essas unidades prisionais localizam-se nas cidades de Mariana, Ouro Preto e Ponte Nova, no estado de Minas Gerais. Na seleção do grupo amostral, foram considerados os seguintes critérios de inclusão: docentes licenciados em Educação Física, atuantes no componente curricular Educação Física em unidades prisionais localizadas na Região dos Inconfidentes, que aceitaram em participar da pesquisa e que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Vale ressaltar que esses participantes são os únicos professores de Educação Física da referida região, reforçando a relevância da abrangência da investigação. Os nomes aqui adotados através dos quais os professores participantes desta pesquisa são identificados são fictícios, buscando preservar o direito ao anonimato.
Na análise dos dados, após a transcrição das informações contidas nas entrevistas, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo (Bardin, 2009). A autora da técnica citada identificou três etapas que configuram a técnica de análise de conteúdo: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados e interpretação. A primeira etapa é uma fase de organização, que pode utilizar vários procedimentos, como: leitura flutuante, hipóteses, objetivos e elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação. Na segunda, os dados são codificados a partir de unidades de registro. Finalmente, na última etapa se faz a categorização, que consiste na classificação dos elementos segundo suas semelhanças e diferenciações, com posterior reagrupamento em função de características comuns.
Na execução deste estudo, foram consideradas as diretrizes regulamentadas pela Resolução nº 466/12 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, sendo o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Ouro Preto em 17 de outubro de 2017, conforme ofício CEP nº 2.232.241.
Resultados e Discussão
A discussão dos resultados obtidos desenvolveu-se por meio da análise dos dados obtidos nas entrevistas realizadas com os professores participantes; da bibliografia utilizada, que vinha ao encontro da temática abordada; e, também, das posições assumidas pelos autores da investigação em relação ao tema.
Atuação nas escolas prisionais: implicações da formação inicial e continuada dos professores de Educação Física
De acordo com os relatos dos professores participantes da pesquisa, ao ingressarem na docência em uma escola prisional, eles não se sentiram preparados para desempenhar a função docente naquele contexto. Segundo os entrevistados,
Primeiro a gente tem que ter uma base muito boa dentro de uma faculdade, às vezes, eu não tive essa preparação tão grande com alguns professores que deixaram a desejar [...]
(Teodoro).
[...] no primeiro dia eu já fiquei pensando, o que eu vou fazer com esse pessoal aqui, porque infelizmente eu não achei que minha graduação me preparou para isso
(Raimundo).
[...] me formar como um profissional suficiente para a área que eu fui atuar não me formou, então eu tive que estudar mais, eu tive que pesquisar, e através dessas pesquisas fazer meu trabalho do jeito que tem que ser feito, só desse jeito!
(Kalebe).
É possível perceber nas falas dos professores a indicação de que, ao iniciarem a docência nas escolas prisionais, perceberam lacunas nos seus cursos de formação inicial. A esse respeito, Tardif e Raymond (2000), em suas pesquisas sobre saberes, tempo e aprendizagem da prática docente, afirmaram que muitos professores indicam uma má preparação para a prática docente julgando a formação recebida; ou seja, revelam que seus cursos de formação inicial não os prepararam de maneira adequada para exercerem o trabalho docente. Sobre essa situação, Massa (2002), em seu estudo sobre a caracterização acadêmica e profissional da Educação Física, revela que compete às instituições de formação inicial preparar os indivíduos no sentido da aquisição de competências e responsabilidades, para que os futuros profissionais tenham a capacidade de atuar no mercado de trabalho.
Nessa direção, o estudo da temática da formação de professores desenvolvido por Pesce e André (2012) com professores e acadêmicos de cursos de licenciatura expressa que os cursos de formação inicial no Brasil têm exibido poucos avanços no que diz respeito a propiciarem conhecimentos teórico-práticos consistentes para o exercício da profissão.
Investigações na área de formação de professores anunciam uma desarticulação entre teoria e prática na formação docente, sejam eles estudos desenvolvidos em outras áreas, como em Fiorentini et al. (2002), que constitui uma pesquisa desenvolvida na área da matemática, ou estudos específicos que analisam a formação em Educação Física, como podem ser citadas as pesquisas de Ghilardi (1998) e Borges (2005).
Os relatos dos professores participantes dessa investigação realçam algumas questões que convergem para a situação assinalada por estudos que discorrem sobre a formação de professores. Os docentes revelam ausências na oferta de disciplinas e de conteúdos específicos sobre a educação prisional nos seus cursos de formação inicial. A partir de seus relatos, percebe-se que o curso de licenciatura em Educação Física não os possibilitou qualquer experiência, conteúdo ou disciplina relacionada diretamente à realidade escolar prisional e à docência nesse contexto, sejam conhecimentos teóricos ou práticos. De acordo com os professores:
Eu não tive nenhum conteúdo específico, nem para adultos e nem, muito menos para o sistema prisional. Eu acho que o alicerce que a graduação da para a gente é saber onde buscar as fontes para aplicar no nosso serviço, no nosso trabalho. Porque se for parar para pensar em uma coisa específica [...] nunca foi abordado nem que existia, na verdade, escola em presídio
(Raimundo).
Eu não tive nenhum trabalho ou nenhuma conscientização durante meu curso falando sobre dar aula em um presídio, jamais. [...] Primeiramente eu não vivenciei nada desse tipo que eu vivencio hoje. [...]Não tive nenhuma experiência nível universitário sobre isso, não estive em nenhum presídio durante meu curso inteiro [...]
(Kalebe).
A respeito disso, o estudo sobre políticas de formação de professores para a educação no cárcere desenvolvido por Onofre (2013) revela a ausência de formação específica para os docentes atuantes em escolas prisionais. De acordo com a autora, a temática da educação prisional é assunto fora de pauta nos cursos de formação, tendo apenas algumas tímidas iniciativas relacionadas ao Ensino de Jovens e Adultos. Nessa direção, um dos participantes propõe uma alternativa para minimizar essa condição apresentada, sugerindo que a formação inicial deveria trabalhar a educação prisional e oportunizar a experiência aos alunos, por exemplo, por meio da oferta de uma disciplina como estágio supervisionado em escola prisional.
[...] o curso de Educação Física deveria ter um estágio no sistema prisional. Porque nós fazemos o estágio no Ensino Fundamental I, Fundamental II, Ensino Médio, mas não fazemos mais nada. Então, quer dizer, porque não tem isso também, um estágio de pelo menos dez horas dentro de um presídio para conhecer. Então isso daí seria uma coisa ideal [...]
(Kalebe).
De acordo com o professor Kalebe, o estágio supervisionado em escolas prisionais poderia se constituir como um processo formativo significativo para conhecimento da realidade desse campo de atuação profissional docente. Scalabrin e Molinari (2013), em seus estudos sobre a relevância da prática do estágio supervisionado nos cursos de licenciatura, enfatizam que essa experiência é imprescindível na formação do professor. Segundo os autores, a disciplina de estágio constitui-se num processo necessário para que o docente possa enfrentar os desafios da carreira, permitindo-lhe conhecer os cenários educativos e a realidade sociocultural desses públicos e das instituições.
Nesse sentido, outra pesquisa sobre estágio supervisionado sendo compreendido como uma atividade integradora do saber com o fazer, produzida por Kulcsar (2012), revela que o estágio deve ser percebido como uma ferramenta essencial na formação docente, preparando o futuro professor, entre outras coisas, para compreender e enfrentar o mundo do trabalho.
Já no que diz respeito à formação continuada, os participantes deste estudo relataram que já haviam cursado alguma pós-graduação ou cursos de curta duração voltados à área de Educação Física, mas nada direcionado especificamente à educação prisional pelo fato de não terem encontrado uma instituição de Ensino Superior que ofertasse cursos na área, como mostra o apontamento do professor Teodoro:
Infelizmente nunca encontrei nenhuma fonte que ofertasse cursos para unidades prisionais, isso pode ser um grande desafio para o futuro, porque eu nunca ouvi falar, nunca nada, direcionado a unidade prisional. [...] Nem procurei também me especializar através de pós-graduações, porque até então, das que tive procurando, eu não achei nada específico na área, é uma área que infelizmente eu não consegui achar nada pronto, com nenhum projeto de formação pessoal.
A esse respeito, Oliveira e Araújo (2013), em seu estudo que aborda a educação prisional com base nos direitos humanos, indicam que, muitas vezes, os professores atuantes em escolas prisionais não possuem uma formação inicial adequada, muito menos participam de formação continuada.
Assim também os dados de uma pesquisa desenvolvida por Julião (2010) que versa sobre os impactos da educação e do trabalho como mecanismos de reinserção social nos estabelecimentos prisionais do Rio de Janeiro convergem com os desta pesquisa, uma vez que retratam que os profissionais que atuam com atividades educacionais no cárcere não são capacitados para o trabalho que desempenham. Além disso, o referido autor enumera aspectos que realçam uma problemática do cenário escolar prisional, como a ausência de integração nas ações educativas realizadas, a precariedade das ações educacionais e profissionalizantes desenvolvidas e a inexistência de acompanhamento e avaliação dos programas e projetos desenvolvidos.
Sobre esse cenário, convém destacar, que, apesar da legislação vigente, ainda se observa a efetivação de princípios que normatizam a educação prisional e a formação de professores. Acerca deles, a Resolução nº 3 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (Brasil, 2009) e a Resolução nº 2 do Conselho Nacional de Educação (Brasil, 2010), que dispõem sobre as diretrizes nacionais para a oferta da educação nos estabelecimentos prisionais, abordam, entre outras questões, a necessidade de garantir aos professores atuantes em escolas prisionais o acesso a programas de formação inicial e continuada que considerem as especificidades e a relevância das ações educativas desenvolvidas nesses estabelecimentos.
O estudo realizado por Miranda (2016) sobre a educação prisional para a ressocialização de mulheres encarceradas faz um alerta ao descrever que, em razão das características e especificidades das escolas prisionais, os profissionais atuantes nesse contexto demandam formação adequada para que consigam atingir os objetivos esperados. Portanto, em conformidade com Onofre (2013, p. 154), cabe aqui mencionar que “a valorização do professor e a defesa da formação específica para atuar em escolas de unidades prisionais é tarefa urgente em nossa agenda de desafios e tarefas [...]”.
Laffin e Nakayama (2013, p. 161), em seus estudos sobre o trabalho de professores em um estabelecimento de privação de liberdade de Florianópolis, descrevem que o professor de escola prisional “se constitui em sua prática, estabelecendo relações com uma formação que não priorizou esse contexto”. Considerando as lacunas percebidas na formação, os professores atuantes em escolas prisionais assumem algumas estratégias para a aquisição dos conhecimentos específicos e necessários para a docência nas escolas do cárcere, numa busca de conhecimentos práticos que favoreçam suas ações pedagógicas nesse cenário.
Entre essas estratégias está o aprendizado pela prática diária, cotidiana, por meio de tentativas, erros e acertos. O professor Teodoro aponta que, para atuar nas escolas prisionais, teve de aprender para ensinar; aprender com o dia a dia, como mostra o excerto a seguir:
[...] não foi uma situação muito coerente quando eu entrei na sala de aula pela primeira vez, eu [...] caí numa situação que eu tive que aprender para ensinar, às vezes até buscar informações depois até da própria graduação. [...] eu tive que adaptar a uma realidade em que eu tenho que saber falar, eu tenho que saber ministrar as minhas aulas com coerência e com discrição, é uma situação em que a gente tem que aprender, aprender com o dia a dia. [...] A gente a cada dia aprende de uma maneira diferente lá né [...]
(Teodoro).
Ao analisar esse excerto da fala do professor, pode-se perceber que, por meio da prática cotidiana, ele adquire saberes imprescindíveis para atuação nas escolas prisionais. Nessa direção, os professores participantes desta pesquisa anunciam saberes e características que consideram essenciais para que um professor desenvolva suas atividades pedagógicas nas escolas prisionais. Um primeiro saber assinalado pelos docentes Kalebe e Teodoro é que o professor deve saber se comunicar muito bem, tomando muito cuidado com o que fala nas aulas ministradas dentro do cárcere. Segundo eles:
A qualidade que ele tem que ter [...] ele tem que ter atenção no que ele está dizendo dentro de um presídio para um aluno lá, eles levam muito a sério, guardam o que você fala e joga para frente, para te perguntar de novo. Então você tem que estar atento no que você fala [...]
(Kalebe).
[...] não é aquele ambiente que a gente chega com certa liberdade de se expressar, você tem que saber se comunicar muito, porque, às vezes, as expressões do dia a dia que a gente utiliza com certa liberdade [...] e dentro de uma unidade prisional eu não sei se o cara está preso porque ele foi condenado, por assassinato, e ai o cara pode me olhar de uma maneira estranha, então a gente tem que saber muito comunicar lá dentro
(Teodoro).
Em conformidade com os dados encontrados a partir desta pesquisa, Souza et al. (2013), em sua investigação que traz olhares sobre a educação em espaços de privação de liberdade, revelam que o professor deve ser comedido ao lecionar na escola prisional, evitando o uso de determinadas expressões ou assuntos em suas aulas. Além desses saberes, os professores participantes desta investigação indicam a necessidade de conhecimentos de outras naturezas, além dos conhecimentos acadêmicos, como nos mostra os excertos a seguir:
A gente tem que estar sempre com uma segurança, muito atento... uma segurança. A gente tem que estar sempre atento a tudo que acontece dentro da sala. Além de saber passar uma informação, a gente tem que estar sempre muito atento. [...] isso é primordial dentro de uma unidade prisional, não é ser apenas um professor. Tem que ser além de um professor, você tem que estar completamente atento [...]
(Teodoro).
Primeira qualidade que acho que você tem que ter é flexibilidade, primeiro a mudança até de hábito lá dentro. [...] flexibilidade na disciplina, que você não pode ser muito engessado, que às vezes, você chega lá e eles não estão muito afim de uma coisa, ai você tem que fazer outra. [...] ser uma pessoa flexível, porque muda muito o ânimo do pessoal, é... as pessoas mudam muito
(Raimundo).
É, ser um educador diferente, tem que ser um educador que tem que usar muito a criatividade, ele tem que gostar do que faz, ele tem que ter interesse em ajudar quem está lá dentro
(Kalebe).
Dessa forma, percebe-se que, entre outros aspectos, os professores participantes desta pesquisa indicam a relevância de se ter algumas habilidades para atuar nas escolas prisionais, como a capacidade de atenção a tudo que ocorre durante as aulas e de terem flexibilidade e criatividade no trabalho desenvolvido durante as aulas. Nesse âmbito, a pesquisa de Onofre (2013) que tematiza a formação de professores de escola prisional, enfatiza que ser professor em escolas prisionais “exige do educador aprendizagens de outra natureza, que não somente as oferecidas em salas de aula da universidade” (p. 146). O relato do professor Kalebe ilustra esse apontamento ao mencionar que alguns conhecimentos e saberes não são aprendidos na faculdade, mas são importantes para a docência no contexto prisional:
Então um professor para dar aula no presídio, como não tem espaço para trabalhar o esporte mesmo, a atividade física, ele tem que se inteirar de mais coisas que ele aprende na faculdade, porque ele vai ter que falar de coisas que interessa para o aluno
(Kalebe).
Em seu trabalho sobre os saberes docentes e a formação profissional, Tardif (2012, p. 20) indica que “[...] ensinar supõe aprender a ensinar, ou seja, aprender a dominar progressivamente os saberes necessários à realização do trabalho docente”. O referido autor aponta, ainda, que os saberes adquiridos por meio da prática cotidiana da profissão desencadeiam o que se denominam saberes experienciais. De acordo com o autor, esses saberes são formados e se estabelecem a partir da reorganização dos demais saberes. Desse modo, os professores sinalizam que, com o passar do tempo e a partir das experiências cotidianas nas escolas prisionais, foram se sentindo mais preparados para exercerem suas atividades docentes nesse contexto.
[...] eu aprendi um pouco na prática também, hoje em dia eu me sinto muito mais confiante e tal, para dar aula. [...] já tem mais experiência. Então eu acho que qualquer trabalho, tanto no presídio quanto fora, o tempo que você está lá trabalhando te dá maturidade para um monte de coisas, isso interfere completamente no seu modo de lidar com o púbico ou com sua própria aula mesmo. [...] Eu me considero mais experiente, mais maduro, é... consigo ser mais humano entre as coisas que eu pensava, já não tenho mais tanta surpresa como eu tinha no início né [...]
(Raimundo).
É uma constante aprendizagem, né? [...] Foi uma constante evolução e queremos estar em constante evolução por novos jogos, por novos dinamismos, desde que ofereça segurança para todos, tanto para os professores quanto para os próprios alunos. [...] Me considero um pouco mais criativo, tive que ser muito criativo para poder fazer o que faço lá dentro hoje, tive que aprender mais né? A como lidar com o dia a dia, também [...]
(Teodoro).
No início, depois foi ficando tranquilo, foi ficando mais tranquilo, mas no início foi muito tenso, só no início, mas depois foi ótimo, está sendo ótimo. [...] Eu tive que modificar todo o meu conceito de dar aula de Educação Física. [...] Eu tinha uma concepção totalmente diferente, eu tinha liberdade para fazer o que eu queria [...] de repente ela deu um salto, que eu tive que mudar todo o meu conceito de dar aula, o meu conceito de dar aula é... em lugar aberto, mudou totalmente. Então hoje eu me sinto mais preparado [...]
(Kalebe).
Diante disso, o professor Kalebe afirma que as circunstâncias vivenciadas no contexto da escola prisional levam-no a se sentir preparado para atuar como professor de Educação Física em quaisquer outras condições de prática docente:
No início eu me sentia preparado, mas eu vi quando eu entrei no sistema prisional que o preparo é outro, então a gente tem que estar preparado para tudo. Eu imagino dando uma aula em um país onde é cheio de guerrilheiros que você não pode, que você pode usar só aquele pedaço ali, então você tem que usar aquele pedaço ali e acabou [...] Eu me sinto mais preparado para dar aula de Educação Física em qualquer situação.[...] Então se hoje eu saio do presídio para dar aula numa escola de interior, de roça, onde não tem nada, eu vou conseguir dar aula porque eu tenho uma bagagem para isso, então isso me ajuda
(Kalebe).
Essa situação conduz o professor a vivenciar uma aprendizagem tácita levada ao extremo em virtude das experiências em condições tão adversas na escola prisional. Nessa perspectiva, Crecci e Fiorentini (2014), em sua pesquisa na área da matemática sobre a gestão do currículo a partir das profissionalidades docentes, indicam que os conhecimentos e aprendizagem construídos na prática são estabelecidos de forma tácita por meio da reflexão do professor sobre a própria prática. Convém destacar que os relatos de dois professores participantes desta pesquisa indicam que a reflexão sobre suas práticas os levou a estudar e pesquisar de forma autônoma. Para eles, esse tem sido um caminho alternativo para conseguirem desenvolver suas práticas pedagógicas no cenário da educação no cárcere e minimizarem as lacunas da formação inicial que tiveram. Segundo os professores:
Então eu não considero que eu tive uma graduação tão boa, porque eu tive que me aperfeiçoar mais depois do que propriamente lá dentro da faculdade. [...] eu tive que procurar aprofundar um pouco mais, estudar um pouco mais, fora do ambiente de graduação, para poder, diretamente e indiretamente, trabalhar com o ambiente prisional
(Teodoro).
Então tudo que eu faço hoje é através de pesquisas que eu faço e através da criatividade. [...] eu tive que pesquisar mais, então quer dizer, o curso não é o suficiente para poder, para que você chegue ao patamar que você precisa, então eu acho que se uma pessoa quiser fazer alguma coisa diferente como essa, ele tem que procurar estudar, ele tem que melhorar, ele tem pesquisar [...] eu tive que estudar mais, eu tive que pesquisar, e através dessas pesquisas fazer meu trabalho do jeito que tem que ser feito, só desse jeito!
(Kalebe).
Sobre essa temática, o estudo de Garcia (2009) que oferece auxílio teórico para questões presentes no início da prática docente em matemática, explica que o ato de pesquisar visa a melhoria da prática pedagógica e o desenvolvimento da autonomia do professor. Nessa circunstância, a investigação sobre a importância da pesquisa na prática pedagógica dos professores produzida por Pio, França e Domingues (2017) relata que, ao pesquisar e refletir sobre sua prática, o professor poderá obter uma melhor compreensão das suas condições e possibilidades de ações, sendo capaz de interpretar, adequar e reinventar suas carências e dificuldades. Nessa lógica, as políticas de formação de professores para a docência no cárcere mencionam que, ao analisar sua realidade, o professor passa a ser entendido como um profissional preparado para examinar com criticidade a sua prática e o contexto em que trabalha, assim como para lidar de modo autônomo com as incertezas e problemas do cotidiano escolar, investigando sua sala de aula e a cultura institucional e sendo, portanto, um produtor de conhecimentos (Onofre, 2013).
Considerações Finais
Os resultados encontrados e analisados nesta investigação dizem respeito à formação inicial e continuada de professores de Educação Física atuantes em escolas de unidades prisionais localizadas na Região dos Inconfidentes/MG e explicitam relevantes questões para a literatura, tanto no campo da Educação quanto da Educação Física nesse contexto.
Ao identificar e analisar a formação inicial e continuada dos professores de Educação Física atuantes nas escolas de unidades prisionais, percebe-se que a formação inicial dos professores não os preparou para atuarem na educação prisional. Esses professores relataram a presença de lacunas formativas e a não vivência de conteúdo ou disciplinas relacionadas especificamente à educação prisional. Eles nunca nem ao menos haviam ouvido falar da existência da educação em estabelecimentos prisionais antes de terem a oportunidade de atuar nesse contexto.
Com o intuito de minimizar as lacunas da formação recebida, esses professores realizam pesquisas e estudos de maneira autônoma e aprendem constantemente em suas práticas diárias, por meio de tentativas, erros e acertos. Com isso, percebe-se que eles se estabelecem por meio de suas atividades cotidianas e aprendem com o dia a dia. Essa situação conduz a uma ideia de que os docentes aprendem a ser professor por meio das experiências práticas da docência.
Destaca-se que é exigido dos professores, em suas ações docentes, saberes de outra natureza, que não acadêmica: conhecimentos relacionados à capacidade de comunicação, capacidade de atenção ao que acontece na sala, criatividade e flexibilidade em suas ações.
Soma-se a isso o fato desses professores já formados e atuantes nas escolas prisionais relatarem não terem encontrado cursos de formação continuada específicos sobre essa área. Essa situação desencadeia uma problemática, considerando-se o fato de os professores estarem atuando em um contexto de trabalho singular e com características pedagógicas próprias, como mostrou a literatura apresentada, sem formação adequada e sem a possibilidade de realizar alguma formação continuada. Tem-se com isso que os princípios que balizam a formação de professores e a educação prisional ainda não foram efetivados, no sentido de garantir formação inicial e continuada aos docentes atuantes em escolas prisionais, que levem em consideração as especificidades e a magnitude da prática docente nesse cenário.
Nesse sentido, é significativo descrever que a educação prisional representa um campo de atuação docente amplo e específico. Portanto, esses dados apresentados indicam que é imprescindível que as instituições formadoras reconsiderem suas atribuições na formação dos professores, de forma que os preparem efetivamente para atuar na educação prisional. Essa situação aponta a necessidade de se abordar a educação prisional durante a formação inicial nas licenciaturas, sendo, também, indispensável a oferta de formação continuada específica à área da educação prisional de maneira acessível aos professores.