1 Introdução
Para Vigotski (1999), a arte não é apenas transmissão de sensibilidade ou um contágio sensível, mas um essencial instrumento de produção histórica da humanidade. Lukács (1970) compreende a arte como particularidade sensível, uma unidade criadora entre o singular e o universal que possibilita a concomitante apropriação e transformação do gênero humano. Nesse sentido, trata-se de uma área essencial do conhecimento, não se constituindo apenas como técnica, mas também como processo criativo, estudo teórico da história da arte ou desejo de comunicação sensível. O ensino de arte deve, então, se orientar também, dialeticamente, em todas essas direções, o que em geral não acontece porque outros interesses velam o verdadeiro sentido do ensino, agregando a arte a outros interesses externos (VIGOTSKI, 2001), como o valor de troca e interesses de mercado.
Para compreender a arte como disciplina epistêmica no ensino básico, é importante elucidar, criticamente, alguns aspectos do desenvolvimento histórico do ensino de artes no Brasil, que, ao priorizar a reprodução de interesses mercantis, limita a arte aos interesses momentâneos que se somam, produzindo novas abordagens inovadoras e, ao mesmo tempo, que reproduzem limitações históricas. Tais limites são possíveis de serem apreendidos somente mediante um estudo mais fundamentado sobre como se dá a apropriação da arte pelas sociedades de cada tempo histórico, a diferença entre a reprodução do senso comum e das formas estéticas mais desenvolvidas e elaboradas, inerentes à educação escolar na perspectiva histórico-crítica, que valoriza sobretudo os clássicos e a concepção dialética da apropriação criadora do conhecimento e da arte.
O ensino de arte não pode reproduzir o senso comum ou interesses externos à própria arte, pelo contrário, pressupõe a apropriação de um conhecimento metódico e sistematizado, incluindo a apropriação das referências estéticas inerentes à história da arte, como o fundamento do desenvolvimento da criatividade fundamentado na apropriação das variadas linguagens artísticas. Tais reflexões guiam a problematização fundamental do presente artigo, que objetiva situar a arte como disciplina epistêmica no currículo do ensino fundamental e médio, num caminho em que partimos das elaborações das referências que analisam as formas políticas de consolidação da arte como disciplina do currículo, para propormos um debate substantivo sobre essa condição de disciplina epistêmica da arte, buscando compreender como o ensino de arte pode ser limitado a interesses externos à própria arte ou pode possibilitar a apropriação emancipadora da cultura humana.
O objeto somente pode ser compreendido em sua concretude partindo do seu desenvolvimento histórico, ou seja, das forças sociais que conformam o ensino de artes hoje no nosso país, e a tradição intrínseca dos vários períodos desse desenvolvimento que contribuíram para as políticas estatais de ensino de arte atualmente aqui.
O ensino de arte no Brasil, desde a década de 1930, tem sido objeto de uma abordagem tecnicista, por vezes, abstraindo seu caráter de disciplina epistêmica, que também pode se constituir em objeto de estudos a partir dos diferentes métodos, com consequências sobre como a disciplina tem sido considerada no currículo, ao lado de outras que estudam objetos e áreas de conhecimento reconhecidas e consagradas pela ciência. Do ponto de vista pedagógico, a arte é essencial para o desenvolvimento da sensibilidade dos alunos, possibilitando-lhes o contato com o universo da estética, para além da ciência e da filosofia. Neste estudo, elegemos como pressuposto que o universo da aparência e da essência, das ideias e das experiências, não se apresenta desconexo na realidade concreta, de modo que só pode ser apresentado aos alunos dialeticamente articulados, como parte da totalidade das práticas sociais.
Na Reforma Francisco Campos, de 1931, a arte foi instituída como atividade complementar, reduzida à música e ao desenho nas leis orgânicas da formação de professores, com forte influência positivista (BARBOSA, 2012). A pedagogia tradicional e pedagogia nova vão ocupando espaços no ensino de artes desde a primeira metade do século XX (FUSARI e FERRAZ, 2001). Em 1946, figuraram no currículo disciplinas como desenho, música e trabalhos manuais. Na primeira Lei de Diretrizes e Bases, em 1961, a arte assumiu um caráter de disciplina própria para a sondagem de aptidões, por meio do “Programa de Artes aplicadas”. A disciplina educação artística ganhou o estatuto de obrigatória somente na reforma do primeiro e segundo graus, no artigo 7º da Lei 5692/71, motivando a instituição dos primeiros cursos de formação de licenciados em artes, polivalentes, para o ensino das artes plásticas, cênicas, da música e do desenho. Mas na prática predominando no primeiro grau o ensino do último (ROCHA, 2013).
Na Lei de Diretrizes e Bases de 1996, atualizada, no artigo 26, inciso 2º, “O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”, ratificado no inciso 6º, que detalha as diferentes linguagens artísticas: artes visuais, a dança, a música e o teatro (BRASIL, 2017).
Com relação aos estudos mais recentes sobre políticas educacionais para a formação artística dos alunos na escola básica brasileira, Barbosa (1989), Lavelberg (2014) e Rocha (2013) têm pesquisado o histórico do ensino de artes no Brasil, destacando o estatuto da disciplina no currículo, no âmbito das diferentes legislações. Outros autores também se dedicaram à reflexão sobre a arte na escola, destacando diferentes aspectos de sua contribuição para a formação integral dos alunos, tais como Eça (2010), que aborda a centralidade da arte no currículo, a partir da hipótese de que o capital criativo seria essencial ao desenvolvimento de uma economia sustentável. Na perspectiva do materialismo histórico e dialético, destacamos a dissertação de Bacarin (2005), que se dedicou a investigar as determinações históricas para a constituição da disciplina educação artística como componente curricular obrigatório na educação básica, cujas conclusões reafirmam o potencial da arte para uma educação profundamente humanizadora, e que, ao abordar a temática da arte no capitalismo, não é possível abstrair que ela também está sujeita às relações mercadológicas nesse modo de produção.
Na Base Nacional Curricular Comum - BNCC (BRASIL, 2017), o ensino de arte é apresentado na educação infantil como campo de experiências, sob a denominação “traços, sons, cores e formas”, com ênfase na criação espontânea e na manipulação de recursos tecnológicos e no exercício da autoria, na perspectiva do ensino centrado no aluno. No ensino fundamental, o currículo estabelece nove competências para o componente curricular arte e cinco unidades temáticas: artes visuais, dança, música, teatro e artes integradas, com nove objetos de conhecimento, sendo que contextos e práticas, elementos da linguagem, processos de criação aparecem nas unidades artes visuais, dança, música, teatro. O objeto materialidades aparece em artes visuais e música; sistemas de linguagem, em artes visuais e artes integradas; matrizes estéticas e culturais, em artes visuais e artes integradas; sistemas da linguagem, em artes visuais; patrimônio cultural e arte e tecnologia só aparecem em artes integradas; registro musical aparece somente em música. O objetivo é que se desenvolva nos alunos 26 habilidades nos anos iniciais e 35, nos finais (BRASIL, 2017). No ensino médio, a arte figura como uma das linguagens na Área de Conhecimento e Linguagens, podendo ser estudada num dos cinco percursos formativos a serem oferecidos no sistema escolar, não necessariamente na escola mais próxima do aluno. Em seguida, apresenta-se como temática de situações de trabalho que favoreçam o protagonismo juvenil, mais especificamente na forma de núcleos de criação artística, em que,
[...] desenvolvem processos criativos e colaborativos, com base nos interesses de pesquisa dos jovens e na investigação das corporalidades, espacialidades, musicalidades, textualidades literárias e teatralidades presentes em suas vidas e nas manifestações culturais das suas comunidades, articulando a prática da criação artística com a apreciação, análise e reflexão sobre referências históricas, estéticas, sociais e culturais (artes integradas, videoarte, performance, intervenções urbanas, cinema, fotografia, slam, hip hop etc.) (BRASIL, 2018, p. 472);
O documento prevê que haverá oportunidades de aprofundamento de conhecimentos artísticos, porém de forma espontaneísta, privilegiando as atividades e o protagonismo juvenil. Enfim, o aprofundamento do aprendizado das artes dependerá do percurso formativo que o aluno escolherá, não contemplando o estudo sistemático tendo a arte como objeto de uma análise científica. Nesse sentido, a arte não é proposta como disciplina epistêmica, com um corpo de conhecimentos, mas conjunto de práticas oportunizadas num currículo flexível, lúdico, multicultural. As artes aparecem mais diretamente nas competências específicas três e seis, da área linguagens (BRASIL, 2018). A arte é mencionada numa habilidade na área linguagens, de número EM13LP49, que relaciona à análise de relações intertextuais entre literatura e artes em geral e outra, na área matemática, de número EM13MAT105, que relaciona à aquisição de noções isométricas e homotéticas para análise de produções humanas, entre elas, a arte. Nessa fórmula em que as habilidades são apresentadas como itens, com etiquetas, valoriza-se os aspectos mais pragmáticos do conhecimento e os conteúdos são rasos, na medida em que se resumem a uma mediação para o desenvolvimento do “aprender a aprender”1.
2 Fundamentos para uma crítica ao ensino de artes
Identifica-se em variados momentos da história, e particularmente na BNCC (BRASIL, 2017), uma filiação à educação tecnicista, que valoriza a racionalização dos meios, desvalorizando professores e alunos, que são reduzidos de sujeitos do conhecimento a agentes executores, dirigidos por especialistas supostamente neutros (SAVIANI, 2005). O autor destaca que a formação para a cidadania não poderá ser alcançada tendo mediações na escola limitadas a um conjunto de competências e habilidades que preparam os sujeitos sociais para o desempenho de tarefas no mundo da produção, numa perspectiva mecânica, pois,
[...] para produzir materialmente o homem necessita antecipar em ideias os objetivos da ação, o que significa que ele representa mentalmente os objetivos reais. Essa representação inclui o aspecto de conhecimento das propriedades do mundo real (ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte). Trata-se aqui do trabalho não material, isto é, a produção de ideias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades. (SAVIANI, 2016, p. 9).
Para além da análise da circunscrição do conhecimento artístico ao estatuto de substrato para o desenvolvimento de competências e habilidades, o autor nos convida a refletir sobre qual é o lugar da disciplina arte no currículo do ensino básico, e sua colaboração para a formação crítica e emancipadora. Essa tarefa exige que se discorra sobre a origem da arte como resultado do trabalho humano historicamente acumulado, e como o ensino de arte pode promover o desenvolvimento imanente à sensibilidade humana, não sendo subjugado às demandas da preparação da força de trabalho para o mercado.
Para empreender esta reflexão, compartilhamos dos pressupostos de Lopes (1999, p. 145), de que na arte há “(...) uma dimensão objetiva e subjetiva, material e imaterial, espiritual e prática e por fim a individual e a social (...)”, demandando uma análise necessariamente dialética, tomando tal objeto como práxis humana. Então, as concepções que isolam a arte do desenvolvimento histórico e material da humanidade podem ser consideradas reproduções de formas ideológicas de dominação. Conforme Saviani (2016), o gênero humano se relaciona com a natureza sob a mediação do trabalho, explorando a capacidade de antecipação mental dos resultados das ações, o que possibilita o planejamento e a reflexão sobre operações, ações complexas, processos e respectivos resultados. O trabalho, entendido como objetivação e apropriação dos elementos materiais e não materiais da realidade externa, é uma característica ontológica da humanidade, não sendo possível discutir as produções como a arte, sem eleger tal reflexão como pressuposto.
Cada ser humano, no decurso de seu desenvolvimento, se apropria da cultura produzida historicamente pelo conjunto dos homens, o que o dispensa de refazer todo o caminho de descoberta construído até seu nascimento e, ainda, apreende os processos educativos de transmissão dessa herança cultural às próximas gerações. Esse movimento de objetivação e apropriação dos conhecimentos dá sentido ao desenvolvimento humano e coloca uma contradição para o gênero, pois o fato de cada cultura ter um desenvolvimento superior e mais complexo que a precedente não significa, necessariamente, que as produções venham a contribuir para uma maior humanização dos homens. É essa a essência dos processos formativos emancipadores: proporcionar esse movimento de apropriação e objetivação em cada ser humano, partindo da apropriação da cultura histórica.
[...] Só por meio da riqueza objetivamente desenvolvida do ser humano é que em parte se cultiva e em parte se cria a riqueza da sensibilidade subjetiva humana (o ouvido musical, o olho para a beleza das formas, em resumo, os sentidos capazes de satisfação humana e que se confirmam como capacidades humanas). Certamente, não são apenas os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), ou melhor, a sensibilidade humana e o caráter humano dos sentidos que vêm à existência mediante a existência do seu objeto, por meio da característica humanizada (MARX, 2001, p. 143-144).
O processo do desenvolvimento ontogênico do indivíduo se dá por meio da apropriação das objetivações do gênero humano, que são os resultados do trabalho, intencionalidades transformadas em objetos materiais (instrumentos), e imateriais (linguagem, ritos, valores). Da mesma forma, os sentidos humanos são produzidos e desenvolvidos. Concomitantemente ao seu desenvolvimento social, o desenvolvimento da subjetividade se dá por meio das relações intersubjetivas. Os sentidos também são objetivações humanas construídas historicamente. Então, não só é possível humanizar, mas também transformar o indivíduo social por meio dos sentidos, que são reinventados no contato com as produções humanas.
Assim como as demais produções humanas, a arte é produto do trabalho criador livre e coletivo, não a manifestação de um gênio, posto que os próprios sujeitos sociais são produtos de uma sociedade. Sendo a arte produto humano, a formação dos seus produtores, bem como de apreciadores também, é objeto das práticas pedagógicas na escola, com vistas ao desenvolvimento nos alunos da consciência em si à consciência para si.
O desenvolvimento da consciência em si dos homens se dá por meio da apropriação das objetivações genéricas em si, tais como a linguagem, os costumes, os ritos, mas também dos valores éticos e estéticos indispensáveis para que os indivíduos convivam em sociedade, transmitidas no cotidiano, incidentalmente. Trata-se de um nível de desenvolvimento da consciência elementar, na medida em que os indivíduos se veem como sujeitos capturados pelo universo imediato, não alcançando a dimensão histórica, tampouco, da totalidade do gênero humano, ou seja, da generacidade (PEIXOTO, et al. 2006).
Na medida em que um contingente de seres humanos pertencentes à classe trabalhadora são submetidos aos processos educacionais que não proporcionam o conhecimento das objetivações genéricas mais complexas, presos ao universo das objetivações em-si, constituem-se como sujeitos assujeitados, alienados, numa relação de estranhamento consigo mesmos, com o mundo e com os outros humanos, permanecendo no “[...] abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano genérica e a participação consciente do indivíduo nessa produção” (HELLER, 1989, p. 38).
A vida cotidiana é a esfera social na qual todo indivíduo inicia sua formação, vivendo a cotidianidade, sua individualidade em-si (DUARTE, 1992). Porém, Heller (1989) identifica que a individualidade para-si é atingida por meio da apropriação das objetivações genéricas para-si. Então, o desenvolvimento das capacidades máximas dos sujeitos em cada contexto do desenvolvimento histórico do gênero lhes possibilita uma relação livre e consciente com a história, a invidualidade para-si, e se constitui neles por meio dos processos educacionais em que se oportunize a apropriação das objetivações genéricas para-si, especialmente na escola, sob a mediação da ciência, da filosofia e da arte (DUARTE, 1992). Isso orienta a formação de sujeitos sociais emancipados “[...] cuja individualidade está em permanente busca de se relacionar conscientemente com sua própria vida, com sua individualidade, mediado pela também constante busca de relação consciente com o gênero humano [...]” (Id., 1992, p. 184).
A perspectiva crítica de um ensino de artes, que busca o desenvolvimento de uma individualidade para-si, precisa ser compreendida como produção humana criada para satisfazer novos carecimentos, em acordo com momentos de desenvolvimento social mais complexo, superior ao momento histórico primevo de satisfação de necessidades imediatas. Pressupõe a apropriação de signos de um desenvolvimento espiritual da civilização de caráter superior, cuja mediação entre o mundo, seus significados e os indivíduos proporcionem a compreensão e inserção na história, o domínio das pluralidades das linguagens artísticas, bem como as funções sociais que assume nos contextos históricos: de registro, expressão, questionamentos sociais, realidades idealizadas, criação de consensos políticos e religiosos, espaço de experimentação de técnicas e sensações (Cf. PEIXOTO et al., 2006).
3 Arte, mercadoria e ensino de artes
No modo de produção capitalista, as relações humanas são mediadas pela troca de mercadorias, com vistas ao lucro e, consequentemente, ao acúmulo do capital, engendrando uma distinção cada vez mais profunda entre os proprietários e os produtores. A consequência disso é o distanciamento e o estranhamento entre produto e produtor, chegando ao limite da coisificação dos produtores, de modo a convertê-los na mercadoria força de trabalho. Essa é a origem da divisão dos homens em classes sociais antagônicas, em que os detentores dos meios de produção utilizam-se da força de trabalho dos produtores para criar e acumular riquezas. Estes últimos tornam-se dependentes do salário para a aquisição dos produtos e demais meios que satisfazem apenas as necessidades de sobrevivência, permanecendo capturados ao universo daquilo que Marx designou como uma vida banal (MARX, 2001, p. 65).
No âmbito da luta de classes, o trabalho livre é vendido mediante contratos entre os capitalistas e os trabalhadores, nas condições a serem determinadas nas relações jurídicas do Estado burguês. Os conhecimentos e o controle sobre suas criações são expropriados aos produtores. Nesse contexto, antes de contribuir à resposta da indagação de que arte ensinar, cabe compreender se a arte e o artista, no modo de produção capitalista também podem ser capturados pelo processo de alienação no trabalho explicitado ou se a verdadeira obra de arte resiste à reificação mercantil de todas as coisas. Tal discussão tem consequências diretas sobre que arte ensinar aos alunos.
Os proprietários dos meios da produção detêm também o poder, apoiados no Estado, produzindo relações sociais que geram o estranhamento entre os seres humanos que pertencem ao mesmo gênero, mas não se reconhecem mais como portadores das mesmas necessidades, interesses, direitos e deveres.
O mais importante mediador nas relações sociais que insere uma característica distintiva entre seres humanos, nas sociedades de classes, é a propriedade de bens úteis - com valor de uso - e que podem ser apresentados como mercadorias, com valor de troca. A mercadoria é o resultado do trabalho e, para se tornar um objeto, deve ter uma utilidade, servir para satisfazer necessidades humanas, tem sua valorização pelas suas propriedades naturais e se evidencia no seu consumo ou uso, caracterizando seu valor de uso. A partir do momento em que o objeto é produzido não mais para satisfazer as necessidades do produtor, mas para vender, converte-se em mercadoria e ganha um valor de troca. Hoje, cada vez mais, cada objeto ou serviço tem se convertido em mercadoria, cujo processo é a mercantilização, que alcança até mesmo as relações sociais, instituindo-se em novo mediador dessas relações.
A arte pode ser apropriada como forma de propriedade privada que assume um valor de troca, mas isso não se dá sem contradições, uma vez que as produções artísticas têm como finalidade o gozo estético, que diz respeito, antes, à satisfação de carecimentos humanos do que à satisfação de necessidades objetivas, supridas pelos bens materiais imediatamente úteis. Então, como caracterizar uma produção artística como mais ou menos útil? Como aferir o gozo? No capitalismo, a obra não perde seu caráter social tornando-se propriedade privada, cuja condição lhe confere caráter de equivalência com outras mercadorias. Entretanto, toda obra tem, por definição, um caráter precípuo público, de objeto produzido para a percepção de elementos estéticos universais em cada sujeito social (VAZQUEZ, 1968).
O fato de o trabalho humano - notadamente o do artista - ter sido convertido em mercadoria, informa uma nova ética: que é a naturalização e a mercantilização das relações humanas. Pode-se dizer que o valor de troca informa o que é belo, tendo em vista não só a utilidade de pessoas e coisas - o valor de uso - mas o valor de troca. “[...] encontra-se, assim, duplamente enraizada no quantitativo e no qualitativo. Mas o segundo se apaga como se o valor de uso do objeto, quando este se converte em mercadoria, se mantivesse fora a fim de mostrar apenas uma face: seu valor de troca” (VAZQUEZ, 1968, p. 210).
Identificamos, então, uma inversão em que o importante não é, necessariamente, a qualidade que designa um valor de uso, mas a quantidade de atributos que é apresentado como critério na atribuição de um valor de troca. O processo de valorização se dá pela fetichização, em que são atribuídas qualidades artificialmente, elevando-a à categoria de objetos que transcendem aos homens e suas necessidades, vindo a suprir necessidades ainda nem constituídas, ou que existem no universo imaginário, ou ainda, que não passam de ideologias, pois a obra “[...] é qualificada, isto é, se lhe atribui um valor de troca quando ela entra no mundo das mercadorias; ou seja, quando é submetida, de fato, ao tipo de produção capitalista” (VAZQUEZ, 1968, p. 216). Conforme o autor, a contradição no processo de mercantilização da obra de arte consiste na impossibilidade objetiva em lhes atribuir valores de troca, a partir da comparação entre produções artísticas que traduzem as subjetividades de cada obra em sua relação com o mundo material ou imaterial.
A materialização da contradição entre a natureza da obra e sua apropriação consiste no fato de que visa à transformação do trabalho artístico em abstrato, submetendo seu valor de uso que representa valores do espírito humano e que atende às necessidades humanas ao valor de troca. Uma obra de arte que resulta do trabalho manual e intelectual de seu autor, e sintetiza os conhecimentos históricos e a interação do artista com o mundo, converte-se num objeto místico, fruto da genialidade de um ser privilegiado, cujo valor de troca se eleva a partir do atributo da raridade, da exclusividade, dos atributos do autor, independentemente de ser ou não decorrente de um processo criativo inédito, da aplicação renovada de técnicas e tecnologias já desenvolvidas pelo conjunto da humanidade, pela expressão da realidade social ou da projeção do artista em virtude da combinação de sua criatividade, imaginação com o seu conhecimento técnico, cultural e histórico:“[...] A obra de arte é fetichizada como revelação, a mais pura expressão de sentimentos e emoções pessoais, fruto da genialidade de seu criador; a originalidade, portanto, é tida como valor supremo” (PEIXOTO, 2003, p. 16).
Na década de 1960 e 1970 houve um movimento na arte contemporânea que buscava questionar tal ideologia, mas também gerar mitos, como o da criação universal, da participação do espectador, da indiscernibilidade estética e da morte da autoridade institucional do artista (TASCA, 2014). Ocorre que a verdadeira obra de arte resulta e expressa objetivações genéricas para-si, pois, para além de representação da natureza, pode representar os valores, sentimentos, ideias universais num determinado estágio do desenvolvimento cultural da humanidade e convocar os sujeitos a interpelarem o seu cotidiano, que é o universo das relações mediadas pela consciência em-si.
A arte não se limita a ser síntese de toda apropriação estética e ética da realidade objetiva, buscando representar as projeções futuras reais ou ideais pelo artista, cuja leitura promove o desenvolvimento intelectual, moral e afetivo dos seres humanos (Cf. DANTO, 2006). Tal campo do conhecimento não tem uma história à parte das relações sociais, do conhecimento produzido e cultivado pelo conjunto dos homens. Então, não faz sentido um estudo da arte como produção em si: os elementos e a imanência dela são a história do desenvolvimento humano para-si. E é a partir dessa análise, no âmbito de uma totalidade histórica, que se pode compreender a essência social de sentimentos que se apresentam na imediaticidade como individuais, pois mesmo o sentimento que inicialmente parece ser individual foi apropriado socialmente da cultura histórica (VIGOTSKI, 1999, p. 308). Trata-se de resultado do trabalho humano por suas qualidades estéticas, sendo síntese de determinações históricas, sociais, políticas e culturais:
[...] a própria Arte é um fenômeno social. Em primeiro lugar, porque o artista - por mais originária que seja sua experiência vital - é um ser social; em segundo plano, porque sua obra - por mais profunda que seja a marca nela deixada pela experiência originária de seu criador, por singular e irrepetível (SIC) que seja sua plasmação, sua objetivação nela - é sempre uma ponte, um traço de união, entre o criador e outros membros da sociedade; terceiro, dado que a obra afeta aos demais, contribui para elevar os desvalorizar neles certas finalidades, ideias ou valores; (VAZQUEZ, 1968, p. 122).
A arte consiste numa objetivação inexistente no universo natural, que surge como resposta às necessidades peculiares dos homens socializados de se expressarem, se comunicarem e se sensibilizarem, enfim, de satisfação do gozo estético, essencialmente livre e criadora e, ao mesmo tempo, carregada de conceitos históricos sociais, ideologias e sensações do espírito de um tempo.
A relação entre a arte e a sociedade foi historicamente se modificando, desde as sociedades primitivas até a capitalista (PEIXOTO, 2003). Na idade moderna, houve um aprofundamento na distância entre a arte e o grande público. Tal distanciamento tem várias determinações peculiares a este momento, como a privatização de obras de arte por indivíduos que a concebem pelo seu valor monetário, o nível de desenvolvimento do gozo estético da sociedade, que, por sua vez, não acompanha os níveis de complexidade e abstração de determinados movimentos artísticos, mas se prende ao atraso do desenvolvimento cultural que é sempre desigual para cada classe social.
Nesse sentido, a transmissão de conhecimentos humanos pela arte e a intrínseca educação estética desse processo, torna-se imprescindível para uma relação dialógica e uma experiência estética transformadora, o que confere à disciplina arte no ensino fundamental e médio um lugar especial no currículo, pois é essencialmente uma forma de diálogo, de comunicação que: [...] por sua própria natureza, reclama o derrubamento de todas as muralhas que querem limitar sua capacidade de comunicação [...] (VAZQUEZ, 1968, p. 264).
Deste modo, a importância do ensino de arte na escola como disciplina epistêmica, para além da dimensão prática, instrumental, profissional e/ou contemplativa está no fato de contribuir para a superação da consciência em-si, posto que se trata de uma forma de conhecimento diferente da ciência e da filosofia, mas que não deixa de guardar relações com estas.
4 Considerações finais
A escola é o lugar onde se dá a educação formal, que deve levar a cada indivíduo a consciência da sua condição de pertencente ao gênero humano, constituindo os sujeitos individuais e, ao mesmo tempo, o gênero como tal. Se, na cotidianidade, o processo educativo se dá espontaneamente e cumpre um papel mais elementar da vida humana e suas relações sociais, nas instituições escolares o processo de transmissão das objetivações genéricas se dá por meio das práticas pedagógicas planejadas. Trata-se de processos sociais que resultam no desenvolvimento da subjetividade do indivíduo e no nível de liberdade da sociedade para além da sua natureza educativa, vindo a ter estatuto de práticas sociais.
Na ambiguidade do sistema capitalista, a função social da escola - educar para adaptar os indivíduos à sociedade competitiva e, ao mesmo tempo, oferecer o conhecimento que os emancipa - os professores assumem um lugar estratégico ao escolherem os conteúdos que contemplem um contato mais amplo e profundo com a cultura, propondo problematizações que estimulem a objetivação/apropriação na escola com vistas a formar sujeitos transformadores da sociedade ou reprodutores do status quo dominante. Apesar do potencial emancipatório dos processos de ensino e aprendizagem, a priori, na medida em que possibilitam o acesso, as objetivações genéricas em suas formas mais desenvolvidas, como a ciência, a arte e a filosofia, tem sido ensinadas nas instituições escolares públicas de forma aligeirada, empobrecida, aprofundando a alienação da classe trabalhadora, que depende de tais instituições para sua formação cultural, promovendo-se objetivações no nível do universo cotidiano (DUARTE, 1992).
Se por um lado a disciplina de arte possui uma essência concreta e objetiva, que é proporcionar o estudo da “(...) produção livre de objetos - materiais ou espirituais -, totalidades concretas vinculadas à vida, carregadas de conteúdos fundidos em formas que se realizam como particularidades, expressões simultaneamente individuais e humano genéricas (PEIXOTO et al., 2006, p. 3291), por outro, as políticas educacionais têm orientado os professores a desenvolverem competências restritas ao âmbito do aprender a aprender, a fazer, aprender a ser e a viver juntos, com a centralidade nos saberes relacionais, em detrimento dos conteúdos de cada área de conhecimento específico, e a arte não foge dessa realidade.
Os professores também sofrem injunções das políticas educacionais, dos coordenadores escolares e das próprias condições de trabalho, para optar por conteúdos e estratégias que podem concorrer para a formação de competências, com vistas à alfabetização estética desde os primeiros anos da escolarização, tendo como fundamento uma concepção de arte como mercadoria. Então, eles sucumbem às práticas pedagógicas das releituras para formar o apreciador, porém abstrai que a tarefa do professor de arte não difere daqueles de outras disciplinas, no que tange à sistematização dos conteúdos, tornando-os inteligíveis aos alunos para que se apropriem com vistas a superar a consciência em-si, podendo tornar-se cada um deles um produtor de arte.
Ao sistematizar o conhecimento artístico e escolher práticas privilegiadas para sua socialização, cada professor tem em mente, de forma refletida ou não, um ideal de homem, de sociedade e de arte e de ensino. Peixoto et al. (2006) pontuam que se o ensino de arte se dá a partir da concepção da arte pela arte, deverá se apresentar, na prática, como um corpo de conhecimentos herméticos, divorciados da vida real e objeto de contemplação de poucos, o que justifica seu alto valor no mercado é uma mistificação, pois a produção artística tem, antes, conexões concretas com apropriação de referências estéticas e o desenvolvimento de técnicas e de um debate estético que se articula com o contexto da civilização em que se insere. O sentido da arte é despertar a sensibilidade universal, comum a todo gênero humano, e não o inverso, de evidenciar o gênio, em sua particularidade, pois o gênio e a obra prima são, necessariamente, sínteses do pensamento de uma civilização num momento histórico.
O rompimento com o senso comum impregnado no cotidiano impõe uma análise crítica e radical da realidade, desvelando suas bases. Por isso, o professor proporciona uma superação das intepretações de senso comum para edificar o conhecimento escolar científico, filosófico e artístico, incorporando seus aspectos qualitativos. O que determina o desenvolvimento global dos indivíduos - em especial o da sensibilidade - é o exercício de apropriação e objetivação da riqueza objetivamente desenvolvida, cultivada historicamente e recriada pelo conjunto dos seres humanos.
A expressão da criança só é livre quando se apropria das produções artísticas que se mantém na história, ditas clássicas, que são a base para que elas possam criar novas objetivações. Vigotski (2001 e 2014) é enfático em afirmar que a história da arte e os grandes artistas e obras universais são imprescindíveis no ensino de artes, e que a apropriação dessas referências estéticas possibilitará ao aluno o desenvolvimento da sua criatividade. Fusari e Ferraz (2001, p. 70) entendem que a teoria e a história da arte são fundamentais para o desenvolvimento estético do estudante. Isso pressupõe o conhecimento e a vivência estética de muitas obras, bem como a história onde elas foram formadas e a estética como teoria da arte. Para que as disciplinas de artes sejam epistêmicas, é necessário fundamentar o ensino de artes numa compreensão histórica e filosófica das obras a serem estudadas. Para Vigotski, nem toda a produção artística deve ser estudada em sala de aula, só aquelas que são uma síntese estética e histórica de um tempo e de uma cultura.
Mesmo autores que não pactuam com uma concepção materialista, histórica e dialética sobre a arte e o ensino da arte também fazem afirmações que vão neste mesmo sentido. Barbosa (1998, p. 46) afirma que os códigos eruditos são negados às classes populares, mas que são essenciais para a ascensão de classes e que a contextualização histórica dos grandes artistas enriquece, culturalmente. Mesmo na pedagogia triangular a autora identifica os fundamentos do ensino de artes num tripé que envolve o que ela chama de contextualização, no lugar de história da arte, mas conserva grandes similaridades. Duarte Junior (1981) afirma que a sensibilidade necessita da apropriação de códigos signos que possibilitem a vivência estética.
As práticas pedagógicas que enfatizam a expressão livre e espontânea, propostas pelo professor como uma atividade em si, sem articulação com um plano mais elaborado da história da arte e da estética, levam à alienação. Em vista disso, coloca-se para o professor a necessidade de uma orientação teórica e uma intervenção planejada a partir de referenciais claros, para que a prática seja fundamentada e, ao mesmo tempo, sedimente a teoria, de modo que se realize no professor e no aluno a práxis no ensino de artes como disciplina epistêmica.