1 Introdução
Buscamos relacionar nossas experiências e pesquisas, e para isso, analisamos o problema tahânico1 que aparece no livro Aritmética da Emília (1942) e observamos as similaridades encontradas na obra O Homem que Calculava (1938). O problema tahânico proposto por Emília:
[...] Um lixeiro juntou na rua 10 pontas de cigarros. Com cada três pontas ele fazia um cigarro inteiro. Pergunto: quantos cigarros formou com as 10 pontas?
Nada mais simples, respondeu o visconde. Formou 3 cigarros e sobrou uma ponta.
Está enganado! berrou Emília. Formou 5 cigarros…
Como ? Não é possível…
Nada mais simples. Com as 10 pontas achadas na rua ele formou 3 cigarros e fumou-os - e ficou com mais três pontas, que juntadas àquela quarta deu 4 pontas. Fumou esse e ficou com 2 pontas. E vai então e pediu emprestada a outro lixeiro uma ponta nova e formou um cigarro inteiro - o quinto! Temos aqui, portanto 5 cigarros formados com as 10 pontas, e não 3 cigarros, como o senhor disse. Ahn!... concluiu Emília botando-lhe um palmo de língua.
Está errado, protestou o visconde, porque se ele fumou esse quinto cigarro, sobrou uma ponta.
Não sobrou coisa nenhuma, volveu Emília, porque como ele havia tomado de empréstimo uma ponta nova, pagou a dívida com a última ponta sobrada. Ahn!... e botou-lhe mais um palmo de língua.
(LOBATO, 1942, p.161-162).
Nele, observamos o uso de frações, ao traduzir, matematicamente, o resultado dado ao problema tahânico proposto por Emília. Pois, a cada três pontas de cigarro, formaríamos um novo cigarro, ou seja, a cada três terços, formaríamos um inteiro.
Note que, ao traduzirmos, matematicamente, o problema proposto, encontramos o termo três terços, que é três vezes um terço; na linguagem Matemática, um terço significa um número fracionário que corresponde à terça parte de um inteiro. A terça, na língua materna, tem o significado de terça-feira, que é um dia útil da semana. Quando utilizado para se referir à terça parte na Matemática tem outro significado. Dessa maneira, notamos que a linguagem Matemática é específica, e, apesar de utilizar termos que existem na nossa língua materna, esses, quando utilizados em ambientes matemáticos, podem assumir acepções diferentes daquelas conhecidas na linguagem cotidiana.
As autoras Fonseca e Cardoso (2005) apontam que alguns obstáculos podem surgir quando os alunos estão interagindo com textos matemáticos. Entre esses obstáculos se encontram “vocabulário exótico, ambiguidade de significados, desconhecimento funcional do conteúdo” (FONSECA; CARDOSO, 2005, p.64). Ou seja, essas autoras já observaram essas dificuldades encontradas na significação de alguns termos. Para elas:
A leitura e a produção de enunciados de problemas, instruções para exercícios, descrições de procedimentos, definições, enunciados de propriedades, teoremas, demonstrações, sentenças matemáticas, diagramas, gráficos, equações etc. demandam e merecem investigação e ações pedagógicas específicas que contemplem o desenvolvimento de estratégias de leitura, a análise de estilos, a discussão de conceitos e de acesso aos termos envolvidos, trabalho esse que o educador matemático precisa reconhecer e assumir como de sua responsabilidade.
(FONSECA; CARDOSO, 2005, p.65).
Dessa maneira, o educador matemático, ao trabalhar esses textos [Aritmética da Emília e O homem que calculava] em sala de aula, poderá discutir assuntos como a significação dos termos, os conceitos matemáticos, a construção de problemas, estratégias de resolução, a transformação de um problema e sua resolução em termos matemáticos, e assim também se faz importante a discussão aqui proposta.
Nesse estudo, ao observarmos a citação de Malba Tahan por parte de Lobato no livro Aritmética da Emília encontramos similaridades na obra O Homem que Calculava. Então, buscamos, timidamente, responder a algumas perguntas suscitadas: Lobato e Malba Tahan, ao escreverem seus romances, propõem com isso modelos idealizados de ensino de Matemática? Como Monteiro Lobato pode ter citado Malba Tahan se a primeira edição da Aritmética da Emília é datada de 1935, enquanto a primeira edição do livro O Homem que Calculava é de 1938? Quais eventuais excertos do texto de Malba Tahan podem ter inspirado Lobato a encerrar seu livro com o problema tahânico? Esses textos têm sido aproveitados de alguma forma no ensino de Matemática? Como esses textos podem contribuir para a formação de professores?
Nossa opção de análise fundamenta-se na intertextualidade entre esses diferentes documentos históricos por nós arrolados, na tentativa de evidenciar similaridades entre os diferentes textos. Acreditamos que os textos literários se configuram como documentos históricos, uma vez que estão atrelados aos discursos de uma época. Borges (2010) complementa:
no universo amplo dos bens culturais, a expressão literária pode ser tomada como uma forma de representação social e histórica, sendo testemunha excepcional de uma época, pois um produto sociocultural, um fato estético e histórico, que representa as experiências humanas, os hábitos, as atitudes, os sentimentos [...] e as questões diversas que movimentam e circulam em cada sociedade e tempo histórico. A literatura registra e expressa aspectos múltiplos do complexo, diversificado e conflituoso campo social no qual se insere e sobre o qual se refere. Ela é constituída a partir do mundo social e cultural, e, também, constituinte deste.
(BORGES, 2010, p. 98).
Ainda, salientamos que em nossa interpretação, não pretendemos exaurir as obras literárias analisadas, pois, uma suposta tentativa de esgotá-las, incidiria numa contradição: ao tentar interpretar uma obra literária, a ela dando vida por meio dessa análise, reduziríamos toda elaboração artística ao “pé da letra” ou a mero documento.
Pretendemos escrever nossa análise a partir da estética proporcionada pelas cartas: troca epistolares entre a personagem Emília, o personagem Beremiz e um estudante de graduação. Com isso, intencionamos amplificar as potencialidades do debate, aprofundando a discussão. Pois. a estética ficcional permite uma articulação entre acontecimentos aparentemente díspares. Com efeito, Aristóteles considerava a ficção como uma forma de saber superior à história, que se via condenada a repetir os acontecimentos de acordo com a sua ordem caótica (RANCIÈRE, 2012). Evidentemente, essa prática de saber historiográfico, interrogada por outras formas de se pensar a escrita da história, foi superada, até porque o termo historiografia (isto é, "história" e "escrita") traz consigo uma ideia bastante paradoxal, pois congrega palavras com raízes epistemológicas distintas - o real e o discurso. A escrita pautada na retórica com apelo ficcional permite o entrelaçamento de conexões mais profundas (LIMA, 2006). Já declarou o historiador italiano Ginzburg (2002, p.58) que “os historiadores se movem no âmbito do verossímil (eikos), às vezes do extremamente verossímil, nunca do certo – mesmo que, nos seus textos, a distinção entre ‘extremamente verossímil’ e ‘certo’ tenda a se desvanecer”. Concordamos com Ginzburg (2002): para nós, a história possui compromisso com o verossímil. Não afirmamos, com isso, que tudo seja ficção; mas antecipamos a reflexão de que
a ficção da era estética definiu modelos de conexão entre as formas de inteligibilidade que tornam indefinidas a fronteira entre razão dos fatos e razão da ficção, e que esses modos de conexão foram retomados pelos historiadores e analistas da realidade social
(RANCIÈRE, 2012, p. 58).
2 O Ensino de Matemática na Literatura
Esboçaremos uma breve síntese de como a Literatura penetra o âmbito da formação, apontando fatores positivos, culminando na sua problemática, superando-a por meio das estórias da tradição oral, que desvelam a antecipação da prática educativa similar àquela que considera o conceito foucaultiano de heterotopia, isto é, de um lugar outro num mesmo lugar. Essa reflexão objetiva antecipar a fertilidade do terreno da Literatura e da Filosofia como objeto de investigação por parte de educadores matemáticos.
Darnton (1986) mostra como as estórias da tradição oral desmentiam a máxima burguesa que se impregnou na literatura infantil de que "o bem sempre seria recompensado". Tais narrativas não advogavam, com isso, a imoralidade, mas desconstruíam essa ideia que serve a um controle social, problematizando assim a raiz da formação humana.
Como se constitui uma formação plenamente humana? Rousseau (2004), no livro Emílio, dá a receita: formam-se as plantas pela cultura, e os homens pela educação. Ninguém nasce pronto. O ser humano precisa ser cuidado, nutrido, educado, para que venha a ser adulto e plenamente humano. E tudo o que lhe falta ao nascer será provido pelo processo educativo. A formação é, portanto, central no processo educativo. Na tradição alemã do século XIX essa crença foi tão forte que o campo da educação foi ampliado para fora do espaço escolar, ganhando forma na Literatura dos romances de formação, em que Goethe é talvez o maior expoente segundo Gallo (2015). Segundo Bakhtin (2003), o próprio livro Emílio escrito por Rousseau (2004) pode ser considerado um romance de formação.
Longe de ser amplamente aceita e inquestionável, essa noção moderna de formação parece já não responder mais às inquietações contemporâneas dessa problemática.Kafka (1999) desconstrói isso que parecia ser consenso entre intelectuais daquela época, ao construir uma narrativa que imita o romance de formação. Em Um relatório para uma Academia, Kafka (1999) narra a história de um macaco que foi capturado e levado de navio da África para a Europa; decidira tornar-se humano, por ter percebido que essa seria sua única via de saída. Sem ambicionar uma liberdade, propriamente, o símio pretendia tão-somente escapar das jaulas que o aprisionavam. Podemos concluir que Kafka (1999) ridiculariza esse fenômeno "tão alemão" que foi o romance de formação.
Benjamin (1987) mostra que o romance de formação empobreceu a narrativa, retirando dela o que ela continha de mais precioso, que era o saber oriundo da experiência. Ao invés disso, o romance de formação objetiva ensinar a aprender, isto é, ensinar a criança a aprender, formar um espírito auto-didata; por mais que a ideia seja boa, na prática não era assim que ocorria. Kafka (1999) punge a ferida da questão, ao construir um macaco que, não sendo humano por natureza, atinge a humanidade por meio da imitação, reduzindo assim, com refinada ironia, toda a formação à imitação. De fato, o macaco imita o homem. Monkeysees, monkey does. A repetição foi a matriz de seu aprendizado. Declara o macaco, enfaticamente: "Repito: não me atraía imitar os homens; eu imitava porque procurava uma saída, por nenhum outro motivo" (KAFKA, 1999, p. 70).
Kafka (1999) desvela o processo formativo proposto pela gênese do romance de formação como impregnado de uma de-formação. Pois o processo que o macaco narra não visa atingir aquilo que ele de fato é: macaco; mas, sim, buscar ser o que não é, a negação de si mesmo: o macaco tornar-se humano.
Com efeito, segundo Gallo (2015) Nietzsche inspirou-se na ideia de romance de formação, ao compor sua autobiografia filosófica, motivada pela questão: como alguém se torna aquilo que é? Não por acaso, Lobato (2008) escreveu livro da obra destinada a adultos cujo título é O Macaco que se Fez Homem, num evidente diálogo com Nietzsche, de quem foi fervoroso leitor, e Kafka.
Na obra infantil de Lobato, a personagem Emília cumpre papel semelhante a personagens típicos da Literatura de cordel, como Camonge, João Grilo, Pedro Malasartes. É uma função dialógica que tenciona o debate, por meio do ponto de vista crítico das teorias filosóficas erigidas a partir do embate com as ciências ditas rígidas. Neste sentido, o título da obra Aritmética da Emília ganha destaque, pois já aí vemos esse confronto. Ora, um livro chamado Aritmética em nada diferiria dos calhamaços que assustavam as crianças na década de 1930. Mas uma Aritmética que é da Emília parece ter a pretensão de arrefecer o medo diante dessa ciência. Assim, a expressão qualificadora "da Emília" vem suavizar o peso do teor da aritmética.
Oliveira (2015) nos mostra que no título Aritmética da Emília existe uma ambiguidade: trata-se de uma aritmética que pertence a Emília ou de uma Aritmética escrita pela boneca? Embora a ex-boneca não seja a autora das aulas de aritmética, considerá-la co-autora não seria um erro. Pois a aula que nos é apresentada não é aquela que um suposto professor, o visconde, idealizou, e sim a que ele executou, sendo, inclusive, confrontado, a quase todo instante, pelos questionamentos da boneca, que podem ter sido uma tática de Lobato para suavizar o peso do conteúdo do livro, que era afinal destinado a crianças na faixa etária de 12 anos.
Assim, Lobato propôs uma espécie de romance de formação, tal como Goethe segundo Gallo (2015) e Rousseau. Mas não o faz naqueles mesmos moldes. Uma vez que sua estética aproxima-se do escárnio com que Kafka (1999) ironizou essa questão. Aproximamos nossa reflexão à incitação causada pelos pensadores franceses, sobretudo Foucault (1991) e Deleuze (1988), acerca da problemática que reside na escola pensada pela modernidade. A escola tal como a conhecemos hoje é um espaço onde se trava a perpetuação das relações de poder, por meio da disciplina da mente e, sobretudo, do corpo; ela educa para o consumo, advogando a manutenção do status quo social, formando cidadão e, por cidadão, entendendo o indivíduo apto para o trabalho, portanto, consumidor. A escola, como mostraram Thompson (1998), Foucault e Deleuze, cumpre papel de educar pela disciplina, o que contraria o sentido original da palavra. Escola vem de skholé e significa "o tempo livre, pensado como uma questão pública" (GALLO, 2015). A Escola deveria ser lugar de descaminho, desorientação, deformação, num sentido que considera esses os princípios para experimentação de si mesmo que permite o conhecer-se, orientar-se, escolher caminhos, isto é, formar-se. A escola, no sentido original, seria aquela que cria oportunidades para o indivíduo formar-se, sendo sujeito de suas ações, e não ser formado, passivamente, como no atual modelo. Foucault (1991) cria o conceito de heterotopia, isto é, criar espaços outros em mesmo espaço. O debate atual sobre essa questão da Escola aponta para a necessidade de uma escola outra numa escola mesma.
Essa discussão é bastante ampla e profunda, no entanto não é nossa intenção desenvolvê-la, aqui. Nós a evocamos para traçar paralelos com a prática educativa evidenciada a partir da estética de Lobato, cuja obra é uma espécie de síntese dessa apropriação nietzscheana (ou kafkiana) do romance de formação e das estórias da tradição oral. A estética de Lobato parece convergir, parafraseando Foucault (1991), para uma modelo de formação outra na formação mesma. Uma estética outra na estética mesma. Outro problema tahânico num Malba Tahan outro.
3 A Literatura no ensino de Matemática
O uso de textos de Literatura em sala de aula auxilia no ensino da Matemática, pois, ao ler uma estória, o aluno buscará mecanismos para compreender o problema que fora resolvido nela. Assim, articula a Matemática que conhece para compreender a resolução dada em uma estória.
Integrar Literatura nas aulas de matemática representa uma substancial mudança no ensino tradicional da matemática, pois, em atividades deste tipo, os alunos não aprendem primeiro a matemática para depois aplicar na história, mas exploram a matemática e a história ao mesmo tempo.
(SMOLE; CÂNDIDO; STANCANELLI, 1997, p. 17).
Roedel (2016) afirma que o ensino da Matemática geralmente se restringe a contas, teoria, abstrações e formalidades. Os alunos, em poucos casos, são apresentados a textos literários que discutam a Matemática, ou a problemas que levem em conta sua rotina. E, para Souza e Oliveira (2010), a articulação entre Matemática e Literatura “[...] permite a reflexão e/ou diálogo sobre os elementos, os aspectos, as ideias, os conceitos matemáticos e as outras áreas do conhecimento, bem como sobre as diferentes visões de mundo presentes na Literatura” (SOUZA; OLIVEIRA, 2010, p. 958-959). Segundo Souza e Oliveira (2010) a sua utilização também propicia a formação de alunos leitores, que fazem da leitura uma prática social e que se utilizam de elementos que sejam necessários para a compreensão do texto que está sendo lido.“Contribui ainda para a formação de alunos conhecedores da linguagem, conceitos e ideias matemáticas; que sabem utilizar diferentes estratégias para resolver problemas – elaborando e testando hipóteses – e relacionar suas experiências ao saber matemático” (SOUZA; OLIVEIRA, 2010, p. 960).
O livro literário pode criar um contexto ao aluno, e, assim, propiciar ao professor um meio para o trabalho com a resolução de problemas, uma vez que, segundo Souza e Oliveira (2013), a partir dessa história apresentada, o professor pode apontar os questionamentos levantados pelo próprio texto ou novos questionamentos.
Carey (1992) mostra que a literatura infantil pode ser um rico contexto para trabalhar com resolução de problemas, pois a história permite apontar aos alunos várias questões explícitas no livro ou criadas pelo professor. A autora também afirma que, pelo fato de os problemas advirem de um contexto diferente dos livros didáticos, os alunos acabam se sentindo mais dispostos a utilizar estratégias variadas que são construídas a partir de seus próprios conhecimentos
(SOUZA; OLIVEIRA, 2013, p. 8).
O professor, quando em contato com os textos literários, se aproxima das potencialidades que o texto pode apresentar no ensino da Matemática; isso lhe permite discutir com seus alunos os significados das palavras na língua materna e na linguagem Matemática; guiar seus alunos a observar similaridades matemáticas, criar conjecturas e mecanismos para a resolução dos problemas que podem ser observados nos textos literários; além de auxiliá-los na criação de novos problemas a partir da Literatura lida.
4 As Cartas trocadas entre nossos amigos Beremiz, a boneca Emília e o professor em formação
Observamos que nas cartas trocadas entre Emília, o estudante de graduação e o Beremiz discutiram temáticas diferentes. Ao analisarmos os textos Aritmética da Emília e O Homem que Calculava, observamos como esses textos tem potencialidades de discussões, como o vocabulário, a própria Matemática, a história e conceitos culturais. Assim, a discussão se faz presente, pois acreditamos na potencialidade dessas discussões para a formação docente.
Atentamo-nos que Emília se encontra no passado, assim como Beremiz. O estudante do século XXI está no presente questionando seus colegas e estudando com eles sobre os textos que estão em discussão.
Sitio do Pica-pau Amarelo, em algum dia em que as maçãs estavam no chão no ano de 1935.
Caro futuro estudante de Matemática, ou de pedagogia, ou de Letras, ou sabe-se lá Deus em que área do conhecimento a minha turminha do Sítio será estudada…
A você, que desconheço quem, dirijo essa carta. A você apresentaram um problema, proposto por mim, denominado de tahânico, que significa algo relativo a Malba “Tahan”; e agora me acusam de plágio. Mas como isso pode ter sido plágio? Veja, eu fui a grande estrela do livro A Aritmética da Emília, que, entre outras coisas, veio primeiro que o livro que me acusam de plagiar, isto é, OHomem que Calculava. Como posso ter plagiado algo do qual vim primeiro? Tanto que, se buscarmos a primeira edição da Aritmética da Emília, veremos que isso não existe. Não existe problema tahânico algum. Tudo intriga da oposição. Vejam a data de minha epístola. 1935. É o mesmo ano da primeira edição da Arimética2 da Emília. Nela, não há problema tahânico algum. Esse referido problema só aparecerá na terceira edição da obra, em 1942. Mas, enfim, como eu saberia disso? Sou só uma boneca falante!
Amor, Emília
Rio Claro, 6 de maio de 2017
Caro amigo Beremiz
Acabo de ter notícias de Emília, ela me enviou uma carta do passado, e encontra-se inconformada por estarem dizendo que ela plagiou Malba Tahan, seu criador.
Andei lendo uma tese de Doutorado de um tal Adriel Gonçalves Oliveira, intitulada Memórias das Aritméticas da Emília: o ensino de aritmética entre 1920 e 1940, e nela ele nos conta que o criador da boneca sabichona [Emília], Monteiro Lobato, trocava cartas com o brasileiro Júlio César de Mello e Souza, cujo pseudônimo é Malba Tahan. Talvez Lobato, com as correspondências trocadas, tivesse alguns escritos do livro, antes mesmo da publicação do mesmo, não seria isso possível? Ou dialogavam sobre problemas matemáticos? Assim como dialogavam sobre os métodos educacionais? Busquemos entender melhor essa questão, pois Emília encontra-se furiosa.
Do seu amigo do futuro, Licenciando em Matemática.
Rio Claro, 7 de outubro de 2018.
Amigo Beremiz
Não recebi notícias suas, andei observando o problema Tahânico proposto pela Emília no livro de Monteiro Lobato “Um lixeiro juntou na rua 10 pontas de cigarros. Com cada três pontas ele fazia um cigarro inteiro. Pergunto: quantos cigarros formou com as 10 pontas?” e pude notar algumas semelhanças com problemas propostos no livro de Malba Tahan, em que narra muitas de suas estórias.
Temos então 10 pontas de cigarros, em que a cada 3 pontas formamos um cigarro. Poderíamos reescrever e dizermos que temos
Mas, formamos 1 inteiro, se somarmos
Então, rapidamente obteríamos a mesma resposta que Visconde:
Temos
Ou seja, 3 cigarros, e uma ponta.
Porém, Emília, a mesma maneira que você em suas soluções, apresenta soluções inesperadas. E retruca dizendo que está errado, pois, se temos 3 cigarros inteiros, ao fumá-los, restam-nos ainda três pontas, ou seja
Pois,
Então, ao fumarmos esse cigarro formado, sobrará então duas pontas, ou seja
Para obtermos outro cigarro, é necessário somarmos mais uma ponta de cigarro a estas duas, ou seja, tomar emprestado uma ponta do lixeiro, como sugere Emília e então formamos mais um inteiro. Ao fumá-lo devolvemos a ponta que emprestamos ao lixeiro e nada sobrará.
Assim:
E, assim, ela obtém como resultado 5 cigarros e não 3 cigarros e uma ponta como tinha sugerido visconde.
Andei debulhando o livro de Malba Tahan, em que ele conta muitas de suas estórias, e observei que no capítulo III sob o título: Onde é narrada a singular aventura dos 35 camelos que deviam ser repartidos por três árabes. Beremiz Samir efetua uma divisão que parecia impossível, contentando plenamente os três querelantes. O lucro inesperado que obtivemos com a transação,Malba Tahan expõe o seguinte problema:
- Somos irmãos – esclareceu o mais velho – e recebemos, como herança, esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo receber a metade, o meu irmão HamedNamir uma terça parte e ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos e a casa partilha proposta segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio.Como fazer a partilha se a terça parte e a nona parte de 35 também não são exatas?
(TAHAN, 1996, p. 19).
Para resolver o problema, você Beremiz, tomou o camelo de seu amigo e o inseriu aos 35 camelos dos três irmãos, obtendo então 36 camelos [assim como Emília fez com a ponta de cigarro emprestada], e fez a partilha a partir dos 36 camelos. E após a divisão sobrou não apenas o camelo que tomou de seu amigo [assim como no problema Tahânico proposto por Emília], como também outro camelo, totalizando dois camelos de sobra.
Mas esse fato se deve, pois, as frações não totalizarem um inteiro. Não é?
Quando somamos:
Engano-me ao fazer essas associações, ou você e nossa querida amiga fizeram uso do mesmo artifício para a resolução de problemas diferentes?
Atenciosamente,
Estudante de Matemática do século XXI.
Sitio do Pica-pau Amarelo, em um dia em que as macieiras encontram-se sem folhas no ano de 1936
Caro Estudante de Graduação,
Não quero ser intrometida, mas ao ler um capítulo da dissertação de mestrado em Filosofia da PUC/SP do Guilherme Magalhães Oliveira, intitulada Os princípios cosmológicos de Filolau e a música, observei que os números para os pitagóricos representavam não apenas quantidades, mas qualidades, porque são símbolos. Comenta que o todo para os Pitagóricos era representado pelo três, “o todo, e tudo que ele contém, é compreendido pelo número três; fim, meio e começo [tomados em conjunto] têm o número do todo, e isso é a tríade.” Observando que no livro O homem que calculava, o três se apresenta em quase todos os capítulos, seja para simplesmente contar uma estória ou em problemas propostos. Teria o nosso amigo Júlio César de Mello e Souza usado o três, pois para ele o três assumia o mesmo significado que para os pitagóricos?
Ainda, para os pitagóricos “o número três (3) é a Tríade, a proporção, a harmonia, o casamento, a paz, Hécate, a perfeição e a amizade” (OLIVEIRA, 2010, p.70). Observamos que o autor do O homem que calculava, ao utilizar o número três, em dois momentos em suas estórias, cita que o número três é um número divino. O primeiro momento em que ele menciona tal fato está no Capítulo VIII sob o título: Ouvimos Beremiz discorrer sobre as formas geométricas. Encontramos o cheiqueSalémNasair entre os criadores de velhas. Beremiz resolve o problema dos 21 vasos e mais outro que causa assombro aos mercadores. Como se explica o desaparecimento de um dinar numa conta de trinta dinares.
Nessa estória, Beremiz comenta sobre o número sete, que este número foi “para todos os povos, muçulmanos, cristãos, judeus, idólatras ou pagãos, um número sagrado.” (TAHAN, 1996, p.42) Pois, “Sete as portas do inferno; Sete os dias da semana; Sete os sábios da Grécia; Sete os céus que cobrem o mundo; Sete os planetas; Sete as maravilhas do mundo”. (TAHAN, 1996, p.42) E também salienta que o número sete é considerado sagrado, “por ser a soma do número três (que é divino) com o número quatro (que simboliza o mundo material)”. (TAHAN, 1996, p.42). Para os Pitagóricos o quatro “é a Tétrade, a natureza da mudança, Hércules e a chave da natureza” (OLIVEIRA, 2010, p. 70).
O segundo momento em que o número três como divino aparece é no Capítulo XIX sob o título: No qual o príncipe Cluzir elogia o Homem que Calculava. O problema dos três marinheiros. Beremiz descobre o segredo de uma medalha. A generosidade do marajá de Laore, em que Beremiz menciona que “acreditavam os antigos no poder mágico de certos números. O três era divino; o sete era o número sagrado.”(TAHAN , 1996, p. 110)
Dessa maneira, o misticismo sobre o número três é trazido pelo autor no livro O homem que calculava. Mas, o criador de Beremiz utiliza-se do três, em algumas partições e divisões, por também compartilhar do pensamento dos pitagóricos acerca deste número?
Aguardo ansiosa por uma resposta sua,
Da boneca mais sábia, Emília.
5 Conclusões
Ao analisarmos o livro de Júlio César de Mello e Souza, por meio da dissertação de Moraes (2017), observamos que no capítulo XXVI, o autor parece criticar o método de ensino da memorização. Uma vez que, na estória, alguém diz que o Homem que calculava estudava muito e decorava tudo. Reforça tal tese afirmando que já ouvira uns zuns zuns a tal respeito (TAHAN , 1996). Mas, é interrompido por uma pessoa que diz: “-Decorar não adianta. [...] Não adianta. Eu, por exemplo, não consigo decorar nem a idade da filha da filha de meu tio3”. (TAHAN, 1996, p.145). Assim, Tahan (1996), ao escrever seu romance, poderia estar propondo novos modelos de ensino da Matemática. Morais (2017) subsidia esse pensamento quando afirma que a obra de Malba Tahan é valiosa para a Educação Matemática e que Malba Tahan estava preocupado com o ensino de Matemática ao escrever seus livros.
É inegável a relevância de Malba Tahan. Mas algumas questões ainda pesam, pois como Monteiro Lobato pode ter citado Malba Tahan, se a primeira edição da Aritmética da Emília é datada de 1935, enquanto a primeira edição do livro O Homem que Calculava é de 1938? Simples, na verdade. Na primeira edição de seu livro, Lobato não citou Malba Tahan. Nem poderia. Tal citação aparece apenas na terceira edição da Aritmética da Emília, publicada em 1942, pela Cia Editora Nacional. Apenas o encerramento nas últimas páginas do texto de Lobato foi alterado em relação à primeira edição. Outros aspectos do livro permaneceram o mesmo. Eis o porquê deo diálogo de Lobato com Malba Tahan não sermais extenso e profundo, com figuras que pudessem ilustrar melhor essa relação no livro.
Observamos que muitas estórias contadas por Malba Tahan em seu livro O Homem queCalculava contém o número três, e que em dois momentos do livro observa a singularidade desse, pois o número três foi considerado, segundo ele, pelos antigos como o número divino. Notamos que, para os Pitagóricos, o número três é a tríade, a amizade, harmonia, a perfeição. E no problema proposto por Emília ela utiliza o três, pois, a cada três pontas de cigarros, forma-se um inteiro. A ideia de inteiro também é amplamente discutida no livro de Malba Tahan, um exemplo é o famoso problema dos 35 camelos, em que as partições feitas pelo pai dos três jovens não totalizavam um inteiro. Além disso, o uso de frações é muito comum nas estórias do livro.
Pela nossa pesquisa realizada, observamos que a Literatura tem estado muito presente no ensino de Matemática nos anos iniciais. Porém, notamos que os textos podem ser utilizados e modificados, a fim de construir conhecimentos matemáticos em vários anos do ensino, uma vez que os conteúdos podem ser amplamente discutidos. Morais (2017) complementa que é possível a aplicação dos textos de Malba Tahan em diferentes anos do Ensino Fundamental e pela vivência de Silva, Melito e Brito (2016) foi observado que os textos podem ser trabalhados até no Ensino Médio, se os problemas forem adaptados a eles.
Ao estudar textos literários em sua formação docente, o professor faz ligações entre a Matemática e a Literatura, e outras áreas do conhecimento, conhecendo as potencialidades do ensino com esse material. Souza e Oliveira (2013) observaram que os textos literários propiciam ao docente em formação e ao aluno um contexto mais atrativo, além de estimular a imaginação que é um mecanismo importante no processo de ensino e aprendizagem uma vez que exercem um papel “nos processos de compreensão, reflexão e abstração” (SOUZA; OLIVEIRA, 2013, p. 7). Salientando assim a importância da Literatura no ensino de Matemática.