INTRODUÇÃO
A gênese sapatônica é discursiva.
É a partir do saldo de tal problemática que é possível acomodar a existência lésbica1 – aspecto que tem a ver com a experiência de si (LARROSA, 1994), portanto, com a conduta dos desejos e afetos ante estratégias regulatórias – dentro de uma lógica teórica pós-estruturalista. Acomodar tal aspecto nesse cenário é admitir por suposição que a existência não é só produzida por sujeições às normas estabelecidas, assim como que a maneira dessa existência – contrapondo-se às leis sociais, mas completamente constituída por elas mesmas – não poupa as relações normativas de modificações. Como é possível, então, aproximar-se dessas relações sociais? Faz-se necessário considerar, em resposta, que somos sujeitos/as contadores/as de histórias: narramos a si e os outros mundos exteriores a nós.
Esse ato de narrar a si é uma expressão daquilo que nos constitui, e, por alguma razão, somos interpelados/as pelo narrar de outros/as – estes/as que, por vulnerabilidade subjetiva nossa, nos atravessa, nos produz, nos transforma (BUTLER, 2017). Para além: como corpos, somos necessariamente algo a mais do pensado, do proferido por nós mesmos, sendo, em momentos, algo outro do que nós somos. Há algo exterior ao espaço do eu que exige um reconhecimento, que, por vezes, desarticula as narrativas do sujeito que profere ideias sobre si. Faz-se necessário apostar, portanto, em um diálogo que ponha as normas – de cunho social – como origem da existência própria.
A existência do eu é posterior ao aspecto normativo. O rosto, as orelhas, os cabelos, até mesmo a parte mais “nua” do corpo humano, oferecem-se como inscrições sociais que legitimam uma “posse” sobre aquele/a que pode vir a ser. Certamente o ato do nascimento não é a problemática em si, mas tudo aquilo que conecta corpo biológico – friso: o genital – e gênero é o cerne da questão, que se estabelece como campo discursivo, produzindo itinerários ao cotidiano dos sujeitos, “sua imagem, seus desejos, seus limites, e reduzem a complexidade humana à questão anatômica” (SANTOS; OLIVEIRA, 2019, p. 50). É uma espécie de maquinaria que demarca significações em torno dos corpos, penso: são sentidos acerca de uma feminilidade atribuídos a um ser ainda nascituro, e, quando chega ao mundo, é factível que não se desprenderá à série de signos e à linguagem nas quais foi entregue.
Essa consideração nada tem a ver com a possibilidade de tensionar o que é posto como norma – regimes de verdade –, mas com o experienciar de sociabilidades normativas ao longo da vida, o que não anula as expectativas de rompimentos com o reconhecimento, da tal leitura de corpos – cuja lógica apreende a possibilidade única de ser mulher e ser homem, isto é “o gênero reveste-se de fortes insistências de que formas de masculinidades e feminilidades devem ser estabelecidas como fixas e rigorosamente opostas” (VIANNA; CAVALEIRO, 2015, p. 2). Quando ponho a vista essa colocação, surge à mente o aspecto de entrelaçamento, uma coexistência emaranhada, entre sexo-gênero-desejo (BUTLER, 2003): forçam ao corpo de uma mulher cisgênera aceitação de uma “feminilidade elogiável de uma “boa moça”, daquelas “de família”, que desfruta momentos de prazeres e afetos com o não-feminino, um “bom moço”, daqueles “de família”” (TORRES, 2018, p. 11). É nessa – vã – tentativa de fixar modelos que se atesta o abjeto – as vidas precárias (BUTLER, 2018) –, que contradizendo a norma, e lançado à margem, em razão, por ela mesma, não são excluídos em totalidade, pois é parte da “regra” a existência de seu “corpo não-modelo”, cujas relações de significações o assume como exterior constitutivo (LACLAU; MOUFFE, 2015).
Antes mesmo de termos conhecido os sentidos acerca do conceito sapatão e colocar-se como, as palavras em si são sinalizadas com o intuito de extinguir socialmente sujeitos: é parte de investidas para relegar as sujeitas sapatãs ao lugar contagioso, repugnante e pecaminoso. Mas, a sapatão também conjura um não-lugar, mesmo que ela seja nomeada e afirmada como tal por um sujeito semelhante – que compartilha marcadores sociais, a exemplo, gênero, raça-etnia, classe, geração –, mas que utiliza dos discursos (cis-hetero)normativos2 para demarcar fronteiras e estabelecer a margem – normalizada – como o território legítimo existente. Sem meias palavras: elegem as sapatãs como modelos danificados de fábrica, antro de produção de uma hegemônica feminilidade – tão aguçada por arquitetar uma estética de corpo, uma docilidade, uma postura, um prazer em vestir-se e maquiar-se para um outro, numa matriz de beleza invejável, mas que sempre se mostra falha, inalcançável. Há alguma coisa que constantemente escapa. E é essa coisa, em desvio normativo, que se apresenta como motivo de frustração e morte social, quando não, a morte física.
A desobediência, protagonista do espetáculo de gênero, põe ameaças, como reações às violações sociais: “a repressão ao ‘desvio’ deve ser pública e implacável, afinal está em jogo a salvaguarda de um projeto social” (SANTOS; OLIVEIRA, 2019, p. 51). Essa feminilidade duvidosa torna-se alvo de redobrada vigilância e punição. É coisificada, vulgarizada e execrada a partir de um controle sexual, digo a violência física, o silenciamento, a estigmatização – alinhados maliciosamente numa conjunção de estratégias poderosas na imposição de normas de gênero e sexualidade: apelidos, brincadeiras, olhares acusatórios, estupros corretivos.
Tais imposições de verdade esforçadamente (re)produzidas acabam por atravessar as subjetividades de jovens/mulheres lésbicas, constituindo e transformando suas narrações de si e como se autoidentificam, bem como identificam (e classificam) a existência do Outro através das relações sociais – diga-se: constituições discursivas forjadas nas relações de poder. E é nesse ponto que é preciso se ater a uma certa atenção. A manifestação de si – ordenada à maneira como o sujeito se autodescreve, percebe-se – está sendo produzida constantemente no campo das subjetividades (uma dimensão dinâmica integrada por tensões e contingências), que é o lugar da experiência de si. Isto é, o sujeito é o efeito de relações discursivas – tensões e articulações – dos contextos sócio-cultural e histórico nos quais se integra, de tal maneira que as vivências os atravessa, transforma-o e produz aquilo que se é. Então, em vivências e vivências aprende-se a “ser” e a se “recriar” (TORRES, 2019). A escola e a família, ante tal lógica, são estruturas que aparecem quanto lóci mais inospitaleiro para o desenvolvimento íntegro das que recusam a heteronormatividade.
Leite (2019, p. 128) diz: “A escola tem um papel central para os jovens. É lá que eles passam boa parte de suas vidas, constroem suas redes de sociabilidade e experimentam a maioria de seus valores”, experienciam, também, os desejos e afetos por sujeitos do mesmo gênero, como produtos dessas socializações. Vivem suas sexualidades – precárias – neste universo, pois atribuem a esse uma lógica de “segurança”, de acolhimento, que desconhecem – por experiência – em outras estruturas sociais. Isso não quer dizer que a escola não exerça uma gramática do sofrimento (RANNIERY, 2017). Mas não só. Se as normas delineiam estratégias de padronização de corpos e desejos, a partir dela pode-se também tecer fios precários de vida, mas vivíveis, que sinalizam “para modos alternativos de conhecer e ser que não são inadvertidamente otimistas, mas que não estão atolados nos becos sem saída das críticas niilistas” (HALBERSTAM, 2011, p. 24).
Torna-se curioso, portanto, saber quais movimentações se expressam neste espaço social. Como a escola se comporta ante um corpo lésbico? Como este mesmo corpo encara a escola? Reconhecendo que a maior tonicidade é atribuída à família, por ser espaço primeiro de socialização, toma-se como pressuposto um diálogo – social – entre essas duas estruturas. A insinuação de uma coligação entre a escola e a família, implica o saber de que a família compõe um projeto educacional que elege o sujeito – especialmente a criança – em “um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto” (PRECIADO, 2014, p. 6). Então, quais mecanismos de controle sexual, ante sujeitas lésbicas, são desempenhados pela família? Como a família e a escola se articulam em prol de um projeto educacional? Será que as lésbicas se submetem pacificamente às normas impostas? Ou experimentam estratégias que ousam manipular tais ordens?
Este artigo lança o olhar, portanto, sobre narrativas lésbicas – de duas estudantes e quatro recém-concluintes do ensino médio: uma formanda e três concluintes em escolas públicas e duas outras, formanda e concluinte, em escolas privadas – da região metropolitana do Recife. Tais sujeitas se narram, se julgam, mostram seus medos e valentias, a partir de uma lente forjada por tudo aquilo que as interpelaram: as experiências do espaço-tempo escolar e familiar. O mapa – iminente – construído por suas narrativas levou-me à diversos caminhos, que desembocaram nos dispositivos pedagógicos (LARROSA, 1994): qualquer lugar que, na intenção de estabelecer verdades, produz e transforma as subjetividades coletivas. Dessa maneira, pus-me a identificar e compreender esses lugares e seus efeitos na construção subjetiva lésbica, que percorre caminhos entre escolas e famílias, destacando hegemonias, articulações e antagonismos.
ITINERÁRIOS INVESTIGATIVOS
O debate exposto neste artigo é produto de uma série de dados parciais da investigação científica realizada por Torres (2018) com seis participantes, quatro eram recém-concluintes e duas ainda estudantes do ensino médio, que se integraram/integram nas redes de ensino público e privado. Todas elas são moradoras da região metropolitana de Recife. Como já tinha previsto, um grupo heterogêneo foi constituído a partir do ponto de vista da classe social, religião, local de moradia (centro, periferia, bairros nobres) e raça/etnia. Os únicos pré-requisitos para a participação das jovens na entrevista eram possuir idade a partir dos 18 anos, manter relacionamento afetivo-sexual com outra(s) mulher(es), conjuntamente autonomear-se lésbica, e estar devidamente matriculada em alguma escola de educação básica ou recém-concluído o ensino médio até dois anos, a contar a data de realização da entrevista.
A fim de identificar as participantes da pesquisa que se encaixariam nos pré-requisitos, contatei algumas pessoas, professores/as de escolas públicas e privadas, coordenador de curso pré-vestibular, para me indicarem alguns nomes. Mas, os pré-requisitos não eram atendidos por essas jovens indicadas. Os contatos tornaram-se certos quando as mesmas iniciaram uma busca coletiva, cada qual manifestando nomes de possíveis estudantes e recém-concluintes lésbicas. O recrutamento de jovens, através dessa técnica de “cadeia de informantes”, é compreendido como snowball – um método de extrema utilidade ao estudar populações difíceis de serem acessadas, desenvolvendo, assim, redes de comunicação eficientes (BERNARD, 2005).
Nos encontros com cada jovem indicada na rede de comunicação – mesmo todas já informadas sobre os objetivos da pesquisa, os pré-requisitos e os critérios éticos –, eu ressaltava as mesmas informações oralmente e através do TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido), cumprindo, desta maneira, os critérios estabelecidos pelo comitê de ética em Ciências Humanas. Para além disso, no pré-encontro e encontro, informei à todas estudantes e recém-concluintes que as entrevistas seriam gravadas em áudio (formato MP3), como também, pensando na comodidade de cada jovem, disse-lhes para escolher os espaços privados que seriam realizadas as entrevistas, colocando apenas como requisito lugares que, preferencialmente, estivessem livres de ruídos externos. Sem empecilhos, cada entrevista foi realizada de maneira eficiente e, posteriormente, transcritas, com atenção aos critérios de transcrição de Marcuschi (2003).
Lanço a seguir um quadro com as principais características das jovens entrevistadas. Mas, quero chamar atenção para o cumprimento de um dos critérios éticos estabelecidos, segundo o TCLE aplicado: o sigilo. Esse aspecto refere-se a não exposição de certas informações, em especial os nomes das interlocutoras da pesquisa, portanto, exponho suas autodescrições com pseudônimos.
CODINOME | IDADE | REGIÃO | ESCOLARIDADE | AUTODESCRIÇÃO |
---|---|---|---|---|
Maria | 18 | São Lourenço | 3º ano do ensino médio | Parda; família LGBT e lésbica. |
Bruna | 18 | Igarassu | Ensino médio completo | Parda; lésbica. |
Rebeca | 18 | Igarassu | 3º ano do ensino médio | Católica; parda; sapatão. |
Júlia | 19 | Olinda | Ensino médio completo | Negra; lésbica. |
Sofia | 19 | Cabo | Ensino médio completo | Negra; assexuada; lésbica; andrógena. |
Isabella3 | 20 | Recife | Ensino médio completo | Negra; lésbica. |
Fonte: Torres (2018).
As minhas interlocutoras participaram das entrevistas de qualidade semi-estruturada, em diálogo com elementos da entrevista narrativa. Pode-se dizer que a entrevista semi-estruturada é uma técnica que pode ser descrita como uma conversa entre duas pessoas com um propósito de obter informações sobre um determinado tema (GASKELL, 2002). Este instrumento de pesquisa possibilita uma maior profundidade ao que se pretende estudar, visto que há a elaboração de um roteiro pré-determinado como norteador do processo. Ainda, este tipo de entrevista permite adicionar perguntas não previstas, a depender das repostas dos/as entrevistados/as (LUDKE; ANDRE, 1986). É importante, portanto, que o/a pesquisador/a proporcione acolhimento e liberdade de expressão ao/a entrevistado/a.
UM SUJEITO SEM NOME E SEM ENDEREÇO
[...] “poxa, eu sinto vontade, deve ser massa”, mas eu ficava “é complicado também”, porque meus pais e tal. Eu pensava muito nos meus pais, nessa época, tá ligado? Na minha época de estudo, de escola, eu pensava muito nas minhas ações que influenciariam na minha relação com o meus pais. Então, eu sempre queria, mas ao mesmo tempo eu ficava “não posso”. Basicamente assim. Escondi por muito tempo (Júlia).
Dentre outras identificações, Júlia diz ser politicamente lésbica. Hoje, com 19 anos, já ingressa numa universidade pública, permite-se dizer o que se é – lésbica. Nunca antes afirmou ser ou minimamente relatou desejos/afetos para sujeitos amigos nas fronteiras do espaço-tempo escolar. Ressalta ela: mas me reconheci ali dentro [da escola]4. A escola foi para ela um espaço de importância extrema para aprendizagem sobre si, construindo ao decorrer de sua trajetória escolar a sua identidade mulher em relação aos desejos e afetos por outras mulheres. Mas, por uma alguma razão, Júlia desconfiava de uma cumplicidade entre a escola – onde se percebia vigiada e passível de entreguismo – e a família – lugar que previa sua punição e isolamento constantes –, então, o silêncio de si foi a maneira de lidar consigo em relação ao mundo.
Para que se entenda a ideia proposta aqui, é preciso compreender primeiramente para que se propõem os dispositivos pedagógicos. Pode-se dizer que não é senão práticas pedagógicas de regulações à constituição e à transformação da percepção de si dos sujeitos: como se narrar, se descrever ou julgar a si mesmo (LARROSA, 1994). Se há regras prévias que – se reinventam, transitam e – estruturam uma organização inteligível de regulação sobre as subjetividades, percebo, então, que tais práticas [ou dispositivos pedagógicos] não são emaranhados aleatórios que surgem no fazer escolar e familiar, mas produções inerentes às dimensões políticas do currículo. Sim! Como qualquer outra estrutura social, a família é constituída por uma série de dispositivos pedagógicos.
Expressa-se, de certo modo, um currículo familiar, um currículo cultural. Antes de tudo, adotando as palavras de Ranniery (2017, p. 9) inspiradas por Macedo (2012), penso que “é uma tarefa urgente a da desconstrução da sinonímia entre currículo e conhecimento, como correlata ligação de educação com ensino, porque tais sentidos tendem a tornarem-se refratários às possibilidades de diferenciação e criação que as tramas curriculares constituem”. Se o currículo funciona como um campo de construção e mediação da experiência de si, e está em constante movimento narrativo duplo, configura-se, então, como um constructo fundado por dispositivos pedagógicos: aqueles que produzem e regulam subjetividades de sujeitos, mas que, também, são ineficientes e instáveis em sentidos que tendem a fabricar sujeitos “normais”, pois há Outros que se inserem, se descobrem e permanecem tencionando e ressignificando a “normalidade”.
Toma-se aqui, como início analítico, o modelo familiar ocidental que – apesar de seu caráter contingente – possui uma estrutura cis-heterocentrada: sujeitos cis-heterossexuais ligam-se a Outros através do matrimônio, constituindo novas famílias. A lógica estrutural é percebida como um dispositivo de controle, visto que ela é imposta como um regime de verdade. Entre umas conversas e outras com Bruna – 18 anos, recém-concluinte do ensino médio e nascida e criada na cidade de Igarassu –, perguntei sobre suas primeiras experiências com meninas e a maneira como ela lidava com estas vivências em relação a família, e ela me disse:
[...] teve uma vez que eu fui e tinha duas meninas e a gente resolveu brincar de família e eu, eu decidi que queria ser o “pai”. Tinha uma mãe e uma filha, né? Só que, tipo, acabou que lá na hora a gente tava brincando e o meu papel era de “pai”. E como a sociedade diz que o papel de “pai” é sair, trabalhar, trazer as coisas pra casa e tal, aí dá o beijo na mãe, né? Só que acabou que deu um rolo muito grande porque beijava as mães e as filhas, aí eu “pai”, no caso, beijava a mãe e beijava a filha, e a mãe e a filha se beijavam, aí ficava naquela coisa (risos!) [...] e depois disso, eu, tipo, disse: “aconteceu, né? Ah, não, mas, aconteceu pelo fato de ser uma brincadeira e eu ser o pai, a gente tava lá se divertindo!” Aí depois quando eu, sei lá, tinha uns anos, eu comecei a, tipo, a ver as minhas amigas com namoradozinho: “eu gosto de João!”, “Eu gosto de Pedro!”. [...] aí eu percebi, ai meu Deus do céu, todo mundo, todas as meninas ao meu redor tem um namorado, né? Minha mãe casou com o meu pai, a mãe da fulaninha tem... é casada com um homem. Aí comecei a pensar: como isso é errado, isso o que eu fiz foi péssimo, eu não poderia ter feito isso! Aí o fato de ter me sentindo culpada por ter beijado uma menina (Bruna).
Neste “teatro de subjetivação” (PRECIADO, 2014), a jovem lésbica, mesmo colocando em risco um modelo de futuro, não possui uma autonomia sobre si mesma e “é sempre um corpo ao qual não se reconhece o direito de governar” (PRECIADO, 2014, p. 3), que é vigiado e punido para que não ouse manifestar-se, uma vez que não deve “existir”. As estratégias de imposição de verdade acabam por construir paredes invisíveis de controle, os armários, e, de alguma maneira, atuam para mantê-los. Como dito por Sedgwick (2007), o armário é construído por barreiras subjetivas e, então, sair dele, tornar público o proibido, não é algo meramente hermético, pois “assumir-se não acaba com a relação de ninguém com o armário” (p. 40). Narrando seus momentos de pânico familiar, Júlia me diz que era um sentimento de me estranhar. Um estranhamento que perpassava pela autoflagelação emocional: “não, isso não é certo”. Então, eu preferia ficar na minha porque eu gosto de evitar problemas, até mais por conta dos meus pais. Em seguida, ela, aos poucos, vai me lançando dicas sobre quais práticas e discursos hegemônicos a atingiram, e, por consequência, lhe silenciaram por tempos, como uma “obrigação de rejeitar em si mesmas seus sentimentos e negar seus desejos” (CAVALEIRO, 2009, p.174).
Meu pai não falou muita coisa. Só chegou pra mim: “não, isso aí é você que sabe. Você sabe do que você gosta e do que não gosta”. [...] não foi aberto comigo, mas também ele não falou nada, nem reclamou de nada, sabe? Minha mãe é que deu a louca nela, ela ficou chorando, disse que isso era coisa da minha cabeça, influência de outras pessoas, só que daí eu falei pra ela: “mãe, eu venho escondendo isso há muito tempo, o meu primeiro beijo nem foi com menino. Então, eu já escondi isso há muito tempo porque eu tinha medo de vocês passarem a não gostar mais de mim, mudarem comigo, me deixarem de lado por causa disso, mas sempre teve aqui. E a senhora, eu sei que já notou muita coisa, sim! Porque eu sempre joguei bola, sempre tive um jeito meio assim [abre os braços numa expressão “armada”]”. Ela só não queria enxergar, né? (Júlia – Grifos meus).
Num primeiro momento, visualizo na narrativa de Júlia uma situação de isolamento no interior do próprio convívio familiar – algo predominante nas experiências das entrevistadas. Sob a passagem de eu cheguei pra minha mãe: “mãe, tenho um negócio pra contar pra senhora”. Aí ela fez: “o que foi?” Eu disse: “num sei se a senhora vai gostar, talvez eu vá decepcionar a senhora”, na fala de Maria, se materializa algum medo da rejeição de seus familiares, em especial a mãe, que se sobrepunha a qualquer consequência fora desse convívio (transparentemente visível, também, no relato de Júlia). Na narrativa de Júlia, percebe-se, também, sua suposição de que a mãe sabia sobre sua lesbianidade, pelo seu jeito de se comportar, anunciando que “o segredo” tinha lançado pistas e, por consequência, o/a interlocutor/a já vinha sendo preparado/a para “a liberdade pública”: porque eu sempre joguei bola, sempre tive um jeito meio assim [abre os braços numa expressão “armada”].
Rebeca, aos 13 anos, quando ficou e namorou com a primeira menina, experienciou também situações permeadas pelo medo do isolamento e rejeição – como já previa:
Foi o meu pai que descobriu [...] acho que pra ele foi um baque, assim. Daí a minha mãe nunca aceitou nada, minha mãe é homofóbica pra completar a situação e ela nunca aceitou nada, porque na família dela nunca teve nada disso, então, ela não ia aceitar isso da filha dela. Se ela pariu, ela pode matar, é a frase dela. E ela diz isso todos os dias, basicamente [...] E foi muito complicado... é muito complicado, ainda (Rebeca).
O princípio da “essência” humana está, supostamente, no corpo como uma expressão do desejo e da vontade, do querer-viver o presente, da invocação do passado e do futuro como abstrações (CACCIOLA, 2007). Essa “essência” finda-se com a morte. Ao pensar a morte, reconhece-se, imediatamente, o sentido da aniquilação. Ela tem papel central na reiteração de modelos aceitáveis e condenáveis. Quando diz: se ela pariu, ela pode matar, Rebeca engatilha dois significados possíveis e distintos, mas que só fazem sentido quando dialogados: sua morte física e sua morte social.
Ao sujeito, como artefato biopolítico no seio familiar, é negada a autonomia sobre o seu corpo, desejos, cujos efeitos indicam os/as familiares como governadores. Essa questão transborda o controle sutil – quando as normas de gênero e sexuais não são vistas como verdades a serem seguidas – e parte para uma educação que castiga com intimidação, exílio e a morte (PRECIADO, 2014). Pressuponho que essas estratégias elaboradas e postas em ação são medidas de negação extrema, com o intuito de aniquilar um desejo que não se quer lidar, especialmente com as consequências que se referem ao “segredo aberto”. A mãe de Rebeca, portanto, (re)produz o discurso da morte com a capacidade de elaboração em torno de uma governabilidade: já que ela foi o sujeito que gerou a vida que agora governa, deste modo, tem o direito de “tirá-la” com a morte física, aniquilando, em sua totalidade, o desejo. O desejo da filha por mulheres.
Esse discurso atrela-se a ideia de uma educação mal sucedida, mal vigiada e punida, onde a frustração procede como o sentimento primeiro, restando para a jovem lésbica o lugar da vergonha, da patologia e do pecado, pilares para a morte social – a invisibilidade. No convívio familiar, a existência lésbica dessa jovem – e demais outras – está nas searas da vida invisível, não-digna de humanidade, da vida não-desejada, não-merecida de existir, de pouco valor.
ENTREMEIO DA EXISTÊNCIA
Debruço-me com maior atenção, nesta seção, sobre o que me referi anteriormente como morte social. Não é um sintagma simplista. Trata-se de um projeto estrutural: as interrelações estruturais acabam por desencadear um controle sexual sobre sujeitos que podem vir a ser – é algo como assegurar a referência cis-heterocentrada e/ou (re)conduzir à mesma os/as que distam da lógica –, de maneira sutil ou violentamente desmascarada, propondo-se a anular existências dos/as destoantes, em nome de um modelo – entregue ao fracasso. E por anular digo relegar, os sujeitos da abjeção, à margem dos grupos sociais que ocupam os espaços centrais na ordem social e política – onde são garantidos direitos de diversas ordens, por se ter “voz” socialmente. Mas, quando se nega “voz” a determinados grupos? Em estado de pura inércia, tendem a continuar mortos socialmente.
Não é uma morte com aniquilação total. É uma série de processos que nutrem invisibilidades nas dimensões da política, do trabalho e da sexualidade – trata-se, portanto, de uma indigenciação (FOUCAULT, 2008) – cujas intencionalidades são decorrentes de silenciamentos. Estados que têm a ver com ensinamentos, transformações, lugares de subjetivação [os dispositivos pedagógicos], que nunca intentam excluir plenamente sujeitos das tramas oblíquas de poder, pois o abjeto configura-se em seu exterior constitutivo. Mas, para agora, o que interessa é ampliar o debate sobre alguns processos de indigenciação – invenção do próprio discurso –, na dimensão da sexualidade, de jovens lésbicas, entre contratos morais estabelecidos pela escola-família.
Iniciemos o debate sobre aquilo que entendemos por entreguismo:
[...] eu fui expulsa por que o diretor, ele não aceitava a minha opção sexual. Ele foi muito crítico, porque eu estudava lá desde que eu tinha me mudado. Aí ele chegou pra mim e fez: “olha, porque você não tem um príncipe encantado?”, eu “porque eu nunca acreditei”. Aí ele fez “porque você não tem um namorado?”, aí eu “porque eu não quero, se eu não tenho namorado é porque eu não quero”. Ele era muito amigo dos meus pais, daí ele falou: olha, é que fiquei sabendo que você tem uma opção sexual diferente. [...] Aí ele: olha, não vai dá pra você continuar aqui. Eu ainda continuei um ano porque já tinha pago, basicamente um ano. Aí ele falou: ou você arruma um namorado ou não vai poder continuar aqui. É porque a religião dele, tipo, ele é evangélico e a escola toda tinha que ser regida a esse ponto e eu disse que não ia aceitar não, que não ia mudar a minha opção sexual por conta de uma opção religiosa do diretor da minha escola. Nesse dia chorei horrores porque foi na mesma semana que minha mãe descobriu. Foi um tiro atrás do outro. Pronto, aí ele chamou a minha mãe na escola, pior ainda. Não sabia se chorava mais ou... saí da escola e fui estudar na Escola João Patrício5 (Rebeca).
A categoria “opção sexual” acaba funcionando, neste fragmento destacado, como meio de engessar a ideia do desejo-afeto enquanto algo que procede a partir de escolhas conscientes, cujo efeito anula a lógica da manifestação de si pelo viés do constructo social. Desse modo, ao dizer fiquei sabendo que você tem uma opção sexual diferente, insinua-se a existência de desejo-afeto destoante do que é normal, ainda assim adotada como uma identidade que se “escolhe”. A afirmação pressupõe que opta-se por ser de tal maneira, dessa forma, é possível tornar-se o oposto disso, e a escola percebe que é necessário ultimar – onde recai num segundo mecanismo de controle, a ameaça de expulsão: não vai dá pra você continuar aqui [...] ou você arruma um namorado ou não vai poder continuar aqui.
A rejeição de Rebeca em respeitar os códigos normativos e religiosos pleiteados pelo diretor da escola acabou por (re)acionar a fronteira escola-família: quando as investidas normativas se esgotam, a família de imediato é convidada para o interior escolar. Essa comunicação pontual denota uma condição originária de um projeto educacional, aquele que permite conexões de estruturas para que seja factível a vigilância e controle das normatividades. Visto que a família é o lugar de maior importância socializadora, o sujeito desenvolve suas primeiras experiências, por consequência, padrões de socialização e modelos de mundos, que acabam imergindo e tencionando outros modelos migrados para a esfera escolar.
Sabendo que modelos são redesenhados, nesse processo que força uma reorganização discursiva, a existência da jovem lésbica é, então, percebida. Compreendida pela escola como uma sujeita desviante, mal alinhada ao modelo presumido de educação familiar, a estudante lésbica ao se revelar faz emergir uma espécie de pânico, enquanto algo que necessariamente deve ser aniquilado. Numa reunião que contava com a ausência de Rebeca – na intenção de isentar de potência, de fala, pois “a ausência da fala – aparece como uma espécie de garantia da ‘norma’” (LOURO, 1997, p. 68), o que também aconteceu com Maria –, os sujeitos familiares e os que representavam a escola chegaram a um acordo sobre a própria vida dela, sem consulta e compreensão decidiram que se em um ano não houvesse uma “mudança” seria expulsa. E foi. Não por falta de investidas despatologizantes.
[...] minha mãe disse: “isso que você faz que é errado” [...] ela tirou tudo, desativou o meu twitter, meu whatsapp, telefone. Tudo, tudo, tudo. Que toda vez que alguma menina ligava para o telefone de casa, ela desligava na cara, ela dizia “tá aqui não!”. Como assim se eu não saio de casa? Eu não podia sair de casa também, eu não ia mais pra escola sozinha, não voltava mais, não comprava pão. Foi um tempo assim... devastador. Eu só podia receber em casa esse menino, que era meu namorado (Rebeca).
Ainda assim, reconheço que esse projeto educacional heteronormativo está fadado ao fracasso. Há um sistema de existências que está em movimento, em conflito. Neste teatro de subjetivação, a jovem lésbica acaba por desenvolver estratégias de resistência e, ao decorrer de sua vida, vai percebendo que a heterossexualidade não pode alveja-la: é um projeto só bem-sucedido se aplicado sobre corpos que estejam dispostos a corresponde-lo. Não deixando a sua existência à deriva da eliminação, Rebeca sinalizou que estava disposta a “namorar” com o rapaz indicado por sua mãe – o que fez distanciar a família e a escola de seus passos –, e, em silêncio, relacionava-se com outras jovens entre becos e esconderijos dispostos na escola. Tais experiências escolares de socialização afetiva significou uma verdade sobre si: Foi quando eu percebi que eu realmente gostava de mulher. Foi quando eu pensei que “meu Deus, eu perdi muito tempo da minha vida curtindo e gostando de outra coisa”.
Enquanto trabalhavam suas memórias escolares, unissonantes, Rebeca, Maria, Bruna, Sofia e Júlia, lembravam que – das poucas vezes trabalhadas as questões de gênero e sexualidades – a identidade lésbica nunca foi pauta de debate. Havia constantemente uma generalização de homossexualidades, onde incitavam o discurso da igualdade e respeito, mas sem nomeá-las, descrevê-las e compreendê-las nas mais distintas esferas sociais. Segundo as jovens, este não-nomear existências faz parte de um projeto que intenta extingui-las socialmente.
[...] Jéssica disse a mim que ela disse isso pelo fato de eu ser muito pequena, e tá... tipo, trocando beijo com um pessoa. Mas, ela não quis dizer isso, era pelo fato de ser uma menina. Aí ela disse: você é muito nova pra isso! Isso é errado. Mas, ela quis dizer que eu era muito nova pra tá beijando meninas e que era errado pelo fato de ser uma menina. Aí eu ficava perdida na situação. Mas, depois eu vi... depois que eu conheci pessoas, eu vi que isso é normal. A gente é assim, as pessoas existem assim, o tempo todo (Bruna).
[..] eu vejo meninas muito novas e é bom elas entenderem que não é algo errado e que elas podem se sentir à vontade. Eu lembro de dizerem muito que era modinha. Mas e se não for, e se a menina tiver querendo ficar com outra, por mais que todo mundo esteja implicando? Ela não pode experimentar? Então, é bom a gente colocar isso não como se fosse algo estranho, mas como se fosse algo normal, porque é normal (Sofia).
É sutil – e incrivelmente violento – nem sequer mencionar a existência de sujeitos que não se adequam ao modelo hegemônico. Outros sujeitos que borram esta lógica heterossexual de manifestar a si. Não há originalidade, contudo, no não-mencionar a existência dessas vidas precárias. Trata-se de um projeto, de uma construção dinâmica onde elenca-se primordialmente o determinismo biológico, que considera “as diferenças entre homens e mulheres decorrente dos atributos corporais – o que contribuiu (e contribui) tanto para a “naturalização” das desigualdades sexuais e de gênero quanto para a formulação dos enunciados que hierarquizam essas diferenças” (FURLANI, 2011, p.16). Isso se processa através da ação de uma política heteronormativa. É, portanto, “crucial o aporte da escola [e da família]6 nesse processo de normalização heterorreguladora e de marginalização de sujeitos, saberes e práticas dissidentes em relação a matriz heterossexual” (JUNQUEIRA, 2010, p.212).
Contradizendo a noção de família como estrutura fixa e estável, local universal de amparo emocional e proteção, sinalizo com as narrativas dessas jovens, que os sentidos de família são construídos contingencialmente a partir das experiências vividas pelos sujeitos integrantes. Para as estudantes entrevistadas, a fonte de proteção, compreensão e apoio em questões de hostilidades vivenciadas em outros espaços foram ausentes nessa estrutura social. Bem por isso, as mesmas buscaram pontos de fugas para a superação de momentos “desagradáveis” que envolviam a sexualidade, e o contexto escolar é invocado como alternativa: mas depois eu vi... depois que eu conheci pessoas, eu vi que isso é normal. A gente é assim, as pessoas existem assim o tempo todo.
Mas no não-nomear existências, existe uma outra lógica atrelada: a fase lésbica. Eu lembro de dizerem muito que era modinha, explicava-me Sofia sobre suas percepções em torno das manifestações lésbicas no ambiente escolar. O que me envolve em seu fragmento é o discurso que aponta as lesbianidades como uma onda altamente febril que pode ser adotada, traduzindo um movimento estimulado por um “sentimento passageiro” (VIANA; CAVALEIRO, 2015) que se manifesta através de uma força fútil exterior e assumindo posição de algo que não as constituem. Esse discurso, notadamente, perpassa por uma lógica hierárquica sexual onde jovens e mulheres lésbicas são relegadas a ocupar posições marginalizadas, de invisibilidade, mas que vem sendo tencionado com a “emergência” de sujeitas lésbicas. Nesse sentido, a insurgência das jovens no ambiente escolar tem desafiado a reorganização desse território, possibilitando a existência de correntes de identificação através da manifestação das experiências de afeto e desejo, como a estratégia da assunção lésbica, ao “sair do armário”.
[...] depois que eu me assumi teve outra menina que disse “não, eu tenho curiosidade de ficar com outra menina e eu quero”, aí eu “eitaaa!”. Pronto, depois disso foi um B.O. na escola. Fora eu, tinha mais outras pessoas de séries abaixo se assumindo. Tinha uma menina do nono ano, e eu “gente, mais casal”, meninas de treze anos e tal (Rebeca).
Ouvi muitas vezes não só por Bruna, mas também por Rebeca e Júlia, o quanto o “sentimento da rejeição”, portanto, a existência do armário forjado em um contexto supostamente “protecionista e compreensivo”, foi intenso, nas inter-relações familiares. De alguma forma, a fuga desse espaço – para saber lidar com os momentos de tensão ou autoconhecer-se antes de lidar com a “saída do armário” – produziu uma inter-relação com o contexto escolar. Por mais que o contexto escolar elegesse as jovens como sujeitos abjetos, era o lugar de maior socialização das mesmas, onde estabeleciam racionalidades acerca de si, autoidentificando-se através das relações afetivas, criando zonas de amizade com outros sujeitos LGBT.
VIDAS PRECÁRIAS EM QUADROS DE AGÊNCIA
A gente se beijava, porque a secretária mal sai da sala por causa do ar-condicionado. Aí quando vinha, a gente ficava nesse corredor aqui (sinalizando o local com a mão. Um corredor muito visível, aberto, do lado da cantina, em frente à entrada da escola), aí quando vinha, a gente cutucava ou gritava: “oh, tá vindo aí!”. Aí ficava de boa (Maria).
Quando cheguei na escola, a professora de biologia de Maria fez boa sala, convidando-me para conhecer os ambientes escolares. Logo, de início, percebi uma diversidade de espaços para socialização de sujeitos, o que me levou questionar Maria sobre outros possíveis lugares que haviam os encontros entre ela e demais estudantes lésbicas, e apontou-me todos os corredores: É, esse daí [o mais exposto próximo à cantina]7, esse daqui [um corredor um pouco mais escondido, que dividia dois blocos de sala de aula]8 e o de lá de cima. Isso parece-me sugerir pequenas interrupções de normas impostas, no caso não correspondidas, de tal modo que, utilizar os diversos espaços escolares – vistos como engessados, não vivíveis – tornam existências lésbicas factíveis: as histórias vivenciadas no circuito escolar contrastam a lógica normativa, deslocando os signos que as envolvem ao plano da agência.
[...] a escola seria de antemão, um campo de guerra, no qual um dos lados já teria perdido. Há mesmo quem defenda que o currículo é espelho da sociedade, adjetivada de heteronormativa, ou a maquinaria pela qual ela se faz. [...] É conhecida a popularidade que goza a tese segundo a qual o currículo, campo perverso em que o outro é sempre “representado” ou “construído” de acordo com interesses sórdidos de discursos normativos” (RANNIERY, 2017, p. 4).
A lógica da gramática do sofrimento, sob certa perspectiva, isola cada vez mais o Outro, interpretando-o – em vias acadêmicas do currículo – sob o caráter da violência, do silêncio, da exclusão. E, curiosamente, esse mesmo caminho da denúncia que tende a ser percorrido num ciclo de reiteração, torna-se, de forma análoga, um marco de violência, de silêncio, de exclusão, pois, aos Outros nega-se o direito da existência que escapa à condição da normatividade: onde negociam, ressignificam, produzindo modos de vida vivível no espaço-tempo escolar.
Acho que a escola que eu mais gostei foi a EREM Poeta Amaral9, [...] meio que você se sente em casa com as pessoas da escola, tá ligado?, diz Júlia. A política do reconhecimento está entrelaçada à escola enquanto território de experiências de vida. As histórias particulares não são exteriores ao universo escolar, mas componentes do próprio currículo, que provocam tensionamentos e exigem processos de articulação de sentidos: “o reconhecimento é uma relação intersubjetiva, e, para um indivíduo reconhecer o outro, ele tem que recorrer a campos existentes de inteligibilidade” (BUTLER, 2010, p. 168). Entretanto, por tratar-se de uma ambivalência, se a inteligibilidade reforça demarcação, as normas existentes passam a ser questionadas, revisadas e expandidas.
Em minhas locomoções a pontos muitos distintos para o encontro com as jovens, estabeleci diversos diálogos sobre linhas de fuga que elas desenvolviam para viverem seus desejos, prazeres e conhecimento de si no espaço escolar – lugar que oferece segurança e possibilidades de encontros com suas parceiras –, individualmente ou em grupos sociais entre os/as estudantes. Entre corredores, banheiros e quadras escolares, as existências lésbicas permitiam-se experienciar beijos, abraços, acolhimento e resistência, das maneiras mais astuciosas às sutis, sobretudo, conscientes das oposições estabelecidas com as normativas de gênero e sexualidades.
Maria iniciou a sua trajetória na escola atual no primeiro ano do ensino médio, lugar que se manifestou como integrante de um grupo de amigos/as ativistas LGBT – criando uma estratégia de fortalecimento –, cujas tramas de intervenção perpassavam por desfiles, teatros e músicas apresentados na própria escola. Teve uma apresentação esse ano. E teve a expo também. Duas apresentações LGBT. Aqui a gente fala de tudo, menina (risos). É uma expo literária pra comunidade toda ver. A escola é aberta pra todo mundo. Vem outras escolas que a gente convida – dizia ela, entre ares de orgulho. Sua escola era também conhecida por escola LGBT, como expressão que descreve uma quantidade enorme de sujeitos gays e lésbicas. Quando Maria abriu seu “segredo” para a escola, a repercussão foi mínima – mais com teor de fofoca –, pois era mais uma lésbica no meio de mais um bocado da família10. É nesse cenário que Maria percebe, assim como seus/suas outros/as amigos/as, o grupo que constituem: uma rede de acolhimento. Esse envolvimento transcende os muros escolares: O mesmo grupo. Se sair, sai todo mundo junto. Agora, se for com família a gente já entende, “pode ir”. Mas se for pra sair, sai todo mundo junto.
Maria junto ao seu grupo, em parceria com professores/as, desenvolvem no território escolar uma espécie de resistência coletiva: alunos/as LGBT e simpatizantes11, sentiam-se motivados/as em repercutir discussões sobre gênero e sexualidades na escola, seja numa palestra, conteúdo na sala de aula ou eventos produzidos por eles/as em parceria com alguns/algumas professores/as – a professora de ciências e a professora de inglês nos apoiam muito. Dizem que é pra gente pensar em alguma coisa que elas assinam embaixo – descreve Maria a relação de apoio que o grupo estabelece com o corpo docente, em complemento disse: A professora de inglês tem até uma bandeira, a gente fica passeando com ela aí. Por isso que eu falo: “essa escola é bem diferente”. Os professores brincam, tudo mais, tiram foto com a gente e com a bandeira.
Rolou esse ano uma discriminação básica do coordenador. Ele disse que se alguém descobrisse ia dá B.O., que ia dá um rolo muito grande, aí eu “como assim casal hétero pode ficar, e eu não posso? Não posso nem abraçar?” Relata Rebeca, enfatizando como não aceitou as condições de privilégio que sujeitos heterossexuais possuíam para viver a sexualidade na escola em relação às lésbicas. O retrucar, a imposição de sua verdade, enquanto sujeito de direitos e respeito, manifestaram-se como cenas desenvolvidas nos moldes da estratégia do argumento. Pode pensar essa estratégia como um mecanismo também de persuasão:
[...] eu arrumei uma namorada e ela estudava no São Luiz12, aí pra eu ficar perto dela, eu decidi mudar de colégio (com ar de riso). Aí, eu disse ao meu pai que o São Luiz era ótimo, melhor escola do universo, aí a gente foi visitar, ele gostou, só que minha mãe percebeu que, tipo, a minha mudança do colégio era muito repentina (Bruna).
Bruna, mesmo estudando sempre em escolas particulares em Igarassu, conheceu e começou a namorar uma estudante de uma cidade um pouco mais distante da dela, não considerando os aspectos geográficos como empecilhos. Ela [a mãe]13 não queria. Aí eu fiz a cabeça de painho, como era ele que pagava, ela não podia dizer não, aí ele foi e me matriculou lá.
Então, eu acho que a lembrança que mais tenho é dos meus amigos que eu tinha, quando jogava bola mesmo, eu era bem aberta com eles, tá ligado? Eu já estava começando a amadurecer bastante a minha cabeça, então eu acho que a lembrança é basicamente essa. Quando a gente ia algum torneio, tipo, aquela rodinha que se forma num quarto, conversando sobre tudo, tá ligado? E tinha muitas amigas minhas que eram sapatão e que eram bi, tá ligado? Lá rolava muitas conversas abertas, a minha cabeça foi abrindo muito pra isso a partir desse ângulo, tá ligado? (Júlia).
Há uma vinculação considerável entre “o que eu preciso saber”, que vem de uma espontaneidade de sujeitas lésbicas manifestada a partir de uma “necessidade” em quando e como se ver – “o que eu sou?”, “Quando tornar público meu segredo?” –, e “o que sabemos”, enquanto um saber coletivo, algo que se aproxima de um senso comum, que se constitui através de experiências comunais da sexualidade (de modo que denota uma forma de conhecimento). Júlia, sob a tensão entre as dinâmicas de verdade – norma e desejo –, procura o time de futebol, composto por jovens lésbicas e bissexuais, para que a sua compreensão sobre a lesbianidade ponha-se além dos discursos de patologização e anormalidade, que comumente ouvia. O que ocasiona uma espécie de identificação, pertencimento. Era para tentar compreender que não era errado se eu quisesse ser quem eu quisesse, diz Júlia.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
É tentador compreender essas experiências escolares e familiares da juventude lésbica, de maneira a perceber como os sentidos envoltos interpelam suas subjetividades, assumindo um caráter contingencial, contraditório, negociável e articulador. Isso sinaliza, de alguma forma, maneiras infindas de experenciar a existência lésbica, visto um intercruzamento de raça/etnia, classe social, geração e gênero. Uma certa intimidade deixou-me avançar para mais próximo de uma leitura sobre a família, mais, especialmente, a escola, enquanto lugar importante de viver a lesbianidade, ainda que atravessada, também, por dispositivos pedagógicos outros que intentam produzir e transformar experiências de si, numa correspondência normativa.
Embora arquetipicamente protetora, a família, enquanto espaço educativo constituído por uma série de dispositivos pedagógicos, intenta estabelecer verdades, fabrica e transforma as experiências de si de lésbicas. É sob esta perspectiva que percebi a vigilância do gênero sobre as sujeitas como um exercício de controle para que elas correspondessem a uma heterossexualidade. Nesse sentido, as mesmas são traduzidas como instrumentos biopolíticos, nos quais pertencem a um projeto educacional que vigia e pune os/as sujeitos que borram as fronteiras de gênero, onde não assumem uma autonomia sobre seus corpos, e são negados os direitos de governá-los, e por isso se abrigam em paredes invisíveis, o “armário”.
O projeto educacional heterossexualizador, no ponto de vista articulador entre escola e família, é composto por diversas práticas indigenciadoras, que investem na isenção de potência, silenciando e marginalizando as lesbianidades. Trata-se de uma lógica patriarcal, onde a mulher cisgênera deve submeter seus afetos e desejos a um homem cisgênero, para que a dinâmica hierárquica sexual permaneça em voga; quando não correspondida, uma série de dispositivos heterossexualizadores engatilham-se para silenciar a manifestação do afeto entre mulheres, que pode por em dúvida, em queda, um projeto social – já fracassado.
Entre os momentos de reorganização de si, entretanto, no desenvolvimento de políticas de agência, as jovens elegem a escola como um espaço possível de vivência – demonstrando que a escola pode – e deve – ser o lugar de viver as experiências lésbicas –, onde estabelecem relações de acolhimento e fortalecimento, bem como compreensões sobre si através da criação de zonas amigas com outros sujeitos LGBT. E essa leitura dinâmica da escola é que nos permite ver sujeitos para além do sofrimento, percebendo suas maneiras outras de ser.