INTRODUÇÃO
Acompanhando o fluxo migratório da última década, as escolas de Educação Básica de Santa Catarina têm recebido um número significativo de populações imigrantes, advindas de diferentes países, notadamente do Haiti. É fato que novas sociabilidades interpõem-se nas cidades e nas escolas, e, neste último ambiente, para além de práticas acolhedoras individualizadas ou da política institucional, há um tensionamento que se espraia nas sociabilidades cotidianas do espaço escolar, traduzido em dificuldades encontradas por crianças, adolescentes e profissionais, no estranhamento com a cultura, nos usos da linguagem e da comunicação e no processo de ensinoaprendizagem, agravado pela falta de adequação dos materiais didático-pedagógicos.
Tais evidências, constatadas em diferentes momentos de observação nos espaços escolares da cidade de Chapecó, Região Oeste de Santa Catarina, remeteram-nos a uma preocupação de ordem estrutural, visto que a presença de crianças e jovens estrangeiros nas escolas não se constitui em fato isolado, é uma nova realidade no Estado de Santa Catarina, oriunda de determinantes nacionais e internacionais, que resultaram em políticas migratórias.
É fato que a presença dos haitianos nas escolas públicas aponta para novas demandas objetivas e subjetivas para a escola e para os seus sujeitos, todavia essa inserção no novo país e em suas respectivas escolas não tem sido necessariamente acompanhada de políticas públicas em educação. É aí que situamos a pergunta orientadora deste trabalho: existem políticas públicas estaduais de inclusão e inserção qualitativa da população haitiana nas escolas de Educação Básica do Estado de Santa Catarina? Esse questionamento requer que pensemos nesses novos sujeitos no espaço escolar, mas anterior e/ou concomitantemente nos aportes institucionais para esta inserção.
Para responder a essa questão buscamos, inicialmente, conhecer mais sobre a imigração haitiana e os aportes jurídicos relativos ao tema, dentre os quais a Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997 (BRASIL, 1997), que define os mecanismos para implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, conforme acordado pelo Brasil na Convenção de Genebra; e a Lei nº 13.445 de 24 de maio de 2017 (BRASIL, 2017), a chamada Lei de Migração, que estabeleceu os direitos e deveres, bem como os mecanismos de regulação de entrada, saída e permanência de imigrantes no país. Há também a Resolução Normativa nº 97, de 12 de janeiro de 2012, do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), que “[...] dispõe sobre a concessão do visto permanente previsto no art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, a nacionais do Haiti” (BRASIL, 2012). Em âmbito estadual, temos a Lei nº 18.018, de 9 de outubro de 2020, que institui a Política Estadual para a População Migrante, dispõe sobre seus objetivos, princípios, diretrizes e ações prioritárias no Estado de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2020).
É importante destacar que a chegada e o crescimento da população haitiana no Brasil se deram a partir da liberação de vistos humanitários pelo governo brasileiro, atraída pela perspectiva de melhoria de suas condições de vida, por meio da procura e das promessas de oportunidades no mercado de trabalho. De fato, o crescimento da utilização de mão de obra de estrangeiros de origem haitiana no mercado de trabalho brasileiro tem sido corroborado por vários autores, dentre os quais Costa de Sá e Silva (2016, p. 3), que afirmam, a partir da base de dados do Ministério do Trabalho e Emprego, que “entre 2011 e 2012 houve aumento de 406% na participação de haitianos no mercado de trabalho formal do Brasil. Entre 2012 e 2013, o aumento foi de 254%”.
Tendo em vista as diferentes etapas do fluxo migratório, Bordignon e Piovezana (2015) consideram que, após se estabilizarem nas empresas locais, os haitianos dão início ao processo de reunião familiar, trazendo as crianças de seu após de origem e/ou dando à luz filhos já em território catarinense, o que caracteriza o terceiro movimento da imigração haitiana, que pode ser sentido na inserção de estudantes haitianos na Educação Básica e no Ensino Superior.
Tal inserção é perceptível nos dados dos Censos Escolares sistematizados no banco interativo Números da Imigração Internacional para o Brasil,1 por meio do qual é possível acessar o número de matrículas de alunos estrangeiros na Educação Básica, a nacionalidade dos novos alunos, a cidade em que se inscreveram no sistema educacional, a etapa de ensino que frequentam e o sexo. A partir dessas informações, foi possível elaborar a progressão do número de haitianos matriculados em Santa Catarina no período de 2011 a 2019,2 com um total de 11.731 matrículas na Educação Básica.3
A constatação de entradas sucessivas de estudantes haitianos na Educação Básica, notadamente na rede pública de ensino, instiga-nos a compreender as respostas dadas pelo Estado de Santa Catarina, mais especificamente pelos seus órgãos de gestão e formulação de políticas educacionais, às necessidades dessa população, que se configura agora como integrante da comunidade escolar. Nesse sentido, torna-se primordial identificar a existência ou inexistência de programas, projetos, legislações, resoluções e/ou normativas voltadas à inclusão da população haitiana nas escolas de Educação Básica de Santa Catarina. E, simultaneamente, perguntar pelas políticas voltadas às condições de trabalho nas escolas, de modo a garantir o direito, o acesso e a inclusão aos alunos estrangeiros no ensino público brasileiro.
Nesse , cabe-nos questionar sobre a existência de programas de formação e qualificação dos profissionais da educação para a recepção e formação deste novo público; sobre os aportes que o Estado oferece às instituições e a seus profissionais para a realização do trabalho pedagógico diante desta nova demanda; sobre a existência de projetos que visem à produção de materiais didático-pedagógicos em seus respectivos idiomas e incorporem aspectos da história e cultura desta população, agora presente nos espaços escolares de Santa Catarina; bem como sobre a existência de projetos de sociabilidade e integração nesse encontro multicultural.
PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO
Visando responder os questionamentos anteriormente formulados, realizamos uma análise documental de políticas educacionais. O caminho percorrido para a busca de fontes contou com diferentes e simultâneas etapas de coleta, sistematização e análises. A primeira dessas etapas consistiu numa revisão de literatura sobre o tema, com a qual buscando dialogar com as pesquisas já existentes, visto que “[...] a pesquisa científica constrói-se, também, sobre o legado das anteriores e na interlocução com elas” (EVANGELISTA; SHIROMA, 2019, p. 3). Para isso, priorizamos três bases de pesquisa: o Catálogo de Teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); os Anais dos Encontros Estaduais de História, promovidos pela Associação Nacional de História, Seção de Santa Catarina (ANPUH-SC); e os Anais das Reuniões Científicas Regionais Sul da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd-Sul). Nessa busca, utilizamos como descritores ‘Haiti’ e ‘haitianos’, cruzados com os seguintes descritores secundários: ‘estrangeiros’, ‘imigrantes’ e ‘Santa Catarina’.
A segunda etapa compreendeu um mapeamento de fontes nos sites institucionais da Secretaria Estadual de Educação (SED), do Conselho Estadual de Educação (CEE) e da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc). A escolha da SED se deve ao fato de ser um órgão responsável pela parte administrativa, pela “[...] formulação, controle e avaliação das políticas educacionais, bem como pela coordenação das atividades, ações, programas e projetos da educação básica, profissional e superior em Santa Catarina” (SANTA CATARINA, [2021]). Ao CEE compete, entre muitas funções, subsidiar a elaboração e acompanhar a execução do Plano Estadual de Educação; propor e aprovar medidas que garantam a qualidade do ensino; sugerir alterações das leis que regem o Sistema Estadual de Educação de Santa Catarina; normatizar, avaliar, credenciar e supervisionar os estabelecimentos de educação.4 No âmbito da Alesc, instância legislativa do Estado, procuramos por legislações e atas das comissões permanentes, especialmente da Comissão de Educação, Cultura e Desporto.
Nesse mapeamento de fontes, impulsionadas pela escassez de documentos oficiais, selecionamos notícias que focassem a temática em tela nos sites das referidas instituições, o que nos permitiu obter pistas importantes sobre os debates travados acerca dos imigrantes, em especial no âmbito da educação, bem como captar momentos de formulação e/ou implementação de uma dada política.
A terceira etapa consistiu na análise do corpus documental à luz de referenciais das políticas educacionais, cujas abordagens contemplam diferentes etapas e âmbitos da política, desde o processo de proposição e elaboração, até sua implementação e/ou avaliação, etc. Alguns autores caracterizam diferentes análises por sua finalidade e clientela. Nesse sentido, Mainardes et al. (2011) apresentam um quadro com duas divisões. De um lado, as análises para políticas, nas quais se localizariam a defesa de políticas, a informação para políticas, o monitoramento e a avaliação de políticas. De outro, estariam as análises voltadas à formulação das políticas e a seus conteúdos. Situamos as análises aqui apresentadas nesses dois momentos, visto que estamos buscando captar um momento ainda incipiente de elaboração de políticas públicas, por meio do reconhecimento dos aspectos de conteúdos nela propostos.
No âmbito desta pesquisa, compreendemos a importância de atentarmos para os contextos de influência e de produção de texto, conforme as proposições de Stephen Ball e Richard Bowe, disseminadas no Brasil especialmente por Mainardes (2006), as quais nos ajudam a captar a permeabilidade do Estado à formulação de políticas voltadas à inclusão e inserção da população haitiana na Educação Básica de Santa Catarina.
A REVISÃO DE LITERATURA
Considerando as três bases de pesquisa para a revisão de literatura e os critérios de refinamento de busca por meio dos descritores principais (Haiti, haitianos), cruzando-os com descritores secundários (Santa Catarina, catarinense, imigrantes, estrangeiros), bem como a realização de leituras parciais e classificações dentro do recorte temporal estabelecido (de 2011 a 2019), foi possível selecionar, no Catálogo de teses e dissertações da Capes, um conjunto de cinco trabalhos. Destes, apenas uma dissertação dedica-se prioritariamente à questão educacional. Nos Anais dos Encontros Estaduais de História -promovidos pela ANPUH/SC, selecionamos dois trabalhos que correspondiam aos critérios de busca. De forma semelhante, no repositório das Reuniões Científicas Regionais da ANPEd-Sul, selecionamos três trabalhos corndizentes com os propósitos desta pesquisa.
O que dizem as produções acadêmicas?
Em sua dissertação, Bordignon (2016) focaliza o lugar social de sua fala como descendente de imigrantes, evidenciando a defesa do direito de migrar como um direito humano. A autora chama atenção para a ideia, disseminada mundialmente, de que o Brasil é um país acolhedor para a comunidade imigrante, explorando ao longo do trabalho as contradições, as dificuldades e as possibilidades deste ‘acolhimento’. Apresenta historicamente as políticas imigratórias brasileiras, indicando que elas não foram acompanhadas “[...] de soluções de permanência e integração dos indivíduos que são aceitos em território nacional” (BORDIGNON, 2016, p. 37). Seu objeto de estudo é “[...] a inserção dos haitianos nos contextos escolares e não escolares no oeste de Santa Catarina, mais precisamente nas cidades de Chapecó, Nova Erechim, Águas de Chapecó, São Carlos e Xaxim” (BORDIGNON, 2016, p. 40).
As principais dificuldades elencadas pela autora relacionam-se à documentação e sua validação, bem como ao não domínio do idioma português, dificuldade esta corroborada pela entrevista com os pais de crianças matriculadas na rede pública. Bordignon (2016) também destaca a importância do Centro de Referência dos Direitos Humanos da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e as potencialidades do intercâmbio cultural. Critica a isenção do poder público, destacando a prevalência de iniciativas de organizações não governamentais e das igrejas. Finaliza com a defesa da ampliação da participação dos imigrantes nas decisões das políticas e programas que lhes dizem respeito e alerta para a necessidade de “[...] criar políticas que, além de definir as questões de entrada, também garantam aos indivíduos condições dignas de permanência e inserção na sociedade” (BORDIGNON, 2016, p. 204).
Em dissertação defendida no mesmo ano, Figueredo (2016) volta-se mais especificamente à inserção socioeconômica de trabalhadores haitianos nas empresas de Santa Catarina, passando por importantes categorias teóricas, dentre as quais a de ‘experiência’, desenvolvida pelo historiador Thompson, a partir da qual o autor reflete sobre os significados da trajetória desses trabalhadores no “[...] processo de mudança e movimento, o sofrimento, a perda de status e de liberdade e os desafios enfrentados diante da nova realidade” (FIGUEREDO, 2016, p. 28-29). Além de análise documental de revistas, jornais, produções acadêmicas e documentos oficiais, realizou entrevistas para apreender experiências de trabalho dos imigrantes haitianos no mercado de trabalho, focalizando, por fim, a relação pragmática da contratação dos haitianos na região estudada, cujos interesses não são de ordem social, mas sim motivados pela necessidade de mão de obra por parte das empresas da região. Outro aspecto relevante diz respeito às estratégias de organização dos trabalhadores haitianos, que passam a constituir Associações. Em suas conclusões, Figueredo (2016) aponta para a contradição entre a realidade enfrentada pela comunidade haitiana e a realidade idealizada por esta população quando escolhe o Brasil para imigrar, pois se depara com um país que não possui legislação que os ampare, enfrentando inúmeras dificuldades de comunicação, o que colocaria essa comunidade em posição de fragilidade e miserabilidade.
Em tese defendida no ano seguinte, Magalhães (2017) identifica o perfil social, demográfico e econômico da imigração haitiana no Brasil. No caso específico de Santa Catarina, visa caracterizar a imigração haitiana levando em conta a mobilidade interna no Estado, com destaque para o elemento da dispersão no território catarinense. O objetivo central da tese é “[...] analisar a presença haitiana no Estado de Santa Catarina […], buscando identificar as especificidades deste processo migratório em relação aos demais que compõem a tradição migrante haitiana” (MAGALHÃES, 2017, p. 7). Para isso, o autor fundamenta-se em dados estatísticos sobre a concessão de vistos humanitários e solicitações de autorização de estadias por parte da população haitiana entre os anos de 2010 e 2014. Sistematiza quadros das atividades econômicas realizadas pela comunidade haitiana no Brasil durante o ano de 2014 e as emissões de carteira de trabalho no mesmo período, além de outros dados, tais como a inserção laboral e o salário dos imigrantes. De forma semelhante a Figueredo (2016), Magalhães (2017) identifica um processo de organização política por parte da comunidade haitiana na Mesorregião do Vale do Itajaí, que se dá por meio de criação de Associações. Consideramos esta uma importante referência para conhecermos os diferentes fluxos migratórios do Haiti, que envolve inúmeras questões, além do terremoto de 2010. Contribui, desse modo, para pensarmos sobre “[...] as relações entre a dependência estrutural haitiana, a crise capitalista internacional e suas repercussões na dinâmica migratória internacional e a expansão do capitalismo dependente brasileiro, entre 2006 e 2010” (MAGALHÃES, 2017, p. 252). O autor sinaliza, ao final, para a necessidade de futuras pesquisas que abarquem as relações de trabalho e gênero, bem como “[...] o papel da religião, especialmente as evangélicas, na imigração haitiana no Brasil e em Santa Catarina” (MAGALHÃES, 2017, p. 254).
O quarto trabalho obtido pela revisão é a dissertação de Ruiz (2019), por meio da qual a autora apresenta o fluxo imigratório haitiano para a cidade de Brusque, no Estado de Santa Catarina, que se deu a partir de 2013. É um estudo fundamentado na história do tempo presente, que utiliza o método da História Oral, o que viabiliza a escuta das vozes dos imigrantes, bem como a observação de “[...] suas histórias particulares e as experiências vivenciadas nos deslocamentos, visando reconhecer espaços simbólicos para além das fronteiras econômicas e do Estado” (RUIZ, 2019, p. 3). Dessas escutas, sobressai uma característica marcante, a vinculação de todos os entrevistados haitianos à religião evangélica. Essa vivência remete a muitos aspectos, desde os aspectos linguísticos até os laços de solidariedade, convertidos nas experiências de criação de suas Igrejas como espaço de usos múltiplos:
[...] desde o estudo da Bíblia a ensaios de canto e dança e vigília de oração, tudo acontece em crioulo. Através da igreja a comunidade haitiana promove o acolhimento dos recémchegados, além de manter uma rede de incentivo e solidariedade entre aqueles já instalados na cidade. Auxiliam-se na busca de emprego, na procura de imóveis para moradia, cooperam entre si nos cuidados de suas crianças […]. (RUIZ, 2019, p. 89).
Ao abordar as fronteiras da alteridade, a autora reflete sobre a sociedade contemporânea e as dificuldades enfrentadas por esta comunidade na região de Brusque, localizando-a também no movimento global das sociedades contemporâneas.
O quinto estudo selecionado é a tese de Souza (2019), que analisa as narrativas da comunidade haitiana na cidade de Joinville e o papel da imprensa local na construção do imaginário acerca do imigrante. A autora também reconhece as práticas comunicacionais de sociabilidade da comunidade haitiana como uma estratégia de sobrevivência diante das, a exemplo da utilização de redes sociais e dos encontros presenciais organizados pela comunidade. Das reportagens analisadas, sobressaem alguns aspectos: a ênfase no imigrante como desterritorializado e como refugiado por questões humanitárias; a visão do terremoto de 2010 como um fato isolado, responsável pelo processo migratório; a atribuição de adjetivos a refugiados pacíficos e silenciosos; abordagens ligadas ao acolhimento, associado à disposição do imigrante para o trabalho. Outra narrativa recorrente é a ideia de dissimulação do preconceito por meio do seu avesso, em frases como “eles são bem-aceitos”, etc. Por fim, a autora conclui que, em Joinville, a comunidade haitiana “[...] se configura em um grupo heterogêneo, singular em sua forma de expressão e de vivência da experiência migrante, produtores de sentidos e articuladores da interculturalidade” (SOUZA, 2019, p. 231).
No âmbito dos Encontros Estaduais de História da ANPUH/SC, chamou-nos a atenção a pouca presença do tema. Em seu estudo, Souza (2018) focaliza percursos e narrativas individuais dos imigrantes advindos para a cidade de Joinville, buscando, por meio da História Oral, compreender as suas formas de inserção e apropriação da/na cidade, bem como identificar laços de pertencimento e as tensões enfrentadas pela população haitiana no novo território.
Já o estudo de Farias (2020) discute a imigração haitiana na cidade de Criciúma, que exalta as origens migratórias dos povos que colonizaram região, mas não percebe as migrações contemporâneas da mesma maneira, entre as quais as haitianas. Tem-se assim uma problematização sobre a visão acerca do imigrante pioneiro e colonizador em contraste com a visão perante a imigração haitiana contemporânea.
No âmbito das Reuniões Científicas da ANPEd/SUL, Castro, Bernart e Baptista (2016) abordam as dificuldades encontradas pelos imigrantes haitianos em relação ao trabalho, ao mercado de trabalho e à educação, por meio da apresentação de dados sobre o fluxo imigratório da comunidade haitiana retirados da Relação Anual de Informações Anuais (Rais), elaborada pelo Ministério da Economia (2014), evidenciando que São Paulo, Paraná e Santa Catarina são os Estados com maior número de imigrantes haitianos com vínculo formal de trabalho. Entre as dificuldades enfrentadas por estes imigrantes, segundo os autores, estaria a burocracia, em especial a demora para a revalidação de diploma de graduados estrangeiros, o que os tem conduzido a postos de trabalho com baixas exigências de qualificação, tais como os da construção civil, do setor frigorífico, dentre outros. Outra importante questão diz respeito à implementação dos direitos, pois, embora a educação seja um direito da comunidade haitiana garantido pela Constituição Federal de 1988, os autores apontam que, na realidade social e diária desses imigrantes, tal garantia estaria distante de concretizar-se, haja vista “[...] o complexo processo burocrático para a matrícula e frequência à escola […]” (CASTRO; BERNART; BAPTISTA, 2016, p. 12), além das dificuldades com a língua. Em vista disso, os haitianos acabam dando prioridade a questões como moradia e trabalho em detrimento da educação.
Essa preocupação também aparece no estudo de Galli (2018), que discute os desafios de garantir o exercício do direito e o acesso educacional aos imigrantes haitianos no município de Londrina, Paraná. A autora nos traz dados do Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que atestam a vinda de 80 mil imigrantes haitianos para o Brasil entre os anos de 2011 e 2016. Tais fluxos migratórios não têm sido acompanhados de políticas de acesso à educação, o que faz com que a comunidade haitiana encontre grande dificuldade de acesso à educação, sentida especialmente nos processos de adaptação, que envolvem a língua e a cultura.
No estudo de Giroto e Teixeira (2020), também recebem atenção as narrativas de haitianos e haitianas sobre seus processos migratórios, as experiências de acolhimento que receberam no Brasil, o processo de aprendizagem da língua portuguesa e o acesso ao sistema de ensino público para eles e seus filhos. Os resultados apontam que os haitianos entrevistados, em um contexto geral, elogiaram a educação brasileira, que, por ser pública e igualitária entre homens e mulheres, diferencia-se da realidade educacional de seu país. Concluem sinalizando para a importância da inclusão desta população na comunidade escolar, dando acento especial ao papel do professor e às dificuldades relacionadas ao idioma.
Embora as pesquisas contemplem diferentes cidades, é possível perceber a recorrência de muitas questões, dentre as quais o difícil caminho para acessar direitos e a importância que a língua assume nesse processo migratório. Passamos agora a olhar mais de perto as fontes documentais selecionadas no percurso da pesquisa.
INQUIRINDO AS FONTES
A busca por fontes que pudessem nos fornecer respostas aos questionamentos elencados na pesquisa resultou, inicialmente, em quatro documentos oficiais. O primeiro é oriundo do CEE, a Resolução CEE/SC nº 52, de 12 de julho de 2016 (SANTA CATARINA, 2016), que trata da equivalência dos estudos e da revalidação de diplomas, transferências, dentre outros aspectos.5 O segundo documento oficial é oriundo da Alesc, a Lei nº 18.018, de 9 de outubro de 2020,6 que “Institui a Política Estadual para a População Migrante, dispõe sobre seus objetivos, princípios, diretrizes e ações prioritárias no Estado de Santa Catarina” (SANTA CATARINA, 2020). De modo complementar, utilizamo-nos também do Projeto de Lei (PL) nº 0464.7/2019 (SANTA CATARINA, 2019), que deu origem à referida lei, bem como do PL nº 0234/2018 (SANTA CATARINA, 2018), que tramitou anteriormente pela Comissão de Constituição e Justiça.
Além desses documentos oficiais, valemo-nos de notícias obtidas nos sites institucionais dos aludidos órgãos, o que nos permitiu captar um pouco mais sobre as dinâmicas, as demandas e os sujeitos em movimento. Na SED, selecionamos cinco notícias, assim intituladas: Alunos estudam imigração haitiana em Lages (ALUNOS..., 2016); Alunos desenvolvem trabalhos sobre movimentos migratórios e ganham exposição (ALUNOS..., 2018); Educação de Santa Catarina oferece cursos de português para estrangeiros com ênfase em cidadania no Brasil (ANTUNES, 2019); Unidade descentralizada do Ceja em Pouso Redondo está atendendo alunos haitianos (UNIDADE..., 2018); Como solicito minha Equivalência de Estudos? (COMO..., [202-?]).
Além destas, recolhemos oito notícias divulgadas pela Agência AL, qual sejam: Grupo de trabalho discute situação dos imigrantes e refugiados em SC (ESPINOZA, 2016); Políticas para imigrantes serão debatidas na Alesc nesta quarta-feira (21) (POLÍTICAS..., 2018); Políticas públicas para imigração em Santa Catarina em debate na Alesc, (DIAS, 2018); Aprovada reinstalação do Grupo de Trabalho e Apoio aos Imigrantes em SC, de 10/04/2019; Assembleia instala grupo de trabalho de apoio aos imigrantes e refugiados (LOPES, 2019); Encontro discute políticas públicas para atender os migrantes em SC (BUENO, 2019); Avança projeto de lei que cria política estadual para os migrantes (ESPINOZA, 2020a); Plenário aprova políticas públicas para apenados, egressos e migrantes (ESPINOZA, 2020b).
Passemos a partir de agora a inquirir os conteúdos subjacentes a este conjunto de notícias constitutivas do corpus documental, que vão nos conduzir a uma compreensão da movimentação que terá como corolário a aprovação da Lei nº 18.018/2020.
Embora curtas e aparentemente objetivas, o olhar para tais notícias requer bastante atenção. É preciso observar essencialmente o alerta de Cardoso e Vainfas (1997, p. 539), de que “[...] o pressuposto essencial das metodologias propostas para a análise de textos em pesquisa histórica é o de que um documento é sempre portador de um discurso que, assim considerado, não pode ser visto como algo transparente”.
Guiando-nos por pistas metodológicas da Análise de Conteúdo, olhamos os conteúdos manifestos e as inferências possíveis mediante uma dada sistematização. Vala (1986) compreende essa metodologia de análise como uma técnica de tratamento de informação que pode ser utilizada em diferentes níveis de investigação empírica, fornecendo contribuições para o nível descritivo, o nível correlacional e o nível causal. O autor destaca que a Análise de Conteúdo “[...] pode incidir sobre material não-estruturado [sic]. […] permitir trabalhar sobre a correspondência, entrevistas abertas, mensagens dos mass-media, etc.” (VALA, 1986, p. 105). Para isso, entre os procedimentos analíticos, podemos encontrar a sistematização de perguntas, a quantificação simples, o inventário de palavras, os temas maiores e os temas ignorados, a definição de categorias a priori ou a posteriori e a análise de ocorrências. Eis alguns exemplos de perguntas sugeridas pelo autor:
- Com que frequência ocorrem determinados objectos [sic passim] (o que acontece ou que é importante);
- Quais as características ou atributos que são associados aos diferentes objectos (o que é avaliado e como);
- Qual a associação ou dissociação entre os objectos (a estrutura de relações entre os objectos). (VALA, 1986, p. 108).
Reconhecemos os sites institucionais como importantes meios de comunicação e diálogo com a sociedade, que atuam como difusores de ideais, projetos, ideologias do governo e/ou refletem litígios e respostas demandadas socialmente.
Considerando a página oficial da SED, destacamos a sua característica informativa e orientativa. No âmbito das notícias, há forte uma tendência de destacar experiências realizadas em diferentes cidades do Estado, além de relatos da chegada de imigrantes nas diversas cidades de Santa Catarina, frisando-se que “[…] muitas pessoas passaram a trocar a pequena e pobre ilha do Caribe pelas cidades brasileiras em busca de trabalho, segurança e melhores condições de vida […]” (ALUNOS..., 2018). Há ainda projetos de relatos de experiências desenvolvidas em determinadas escolas públicas, com o objetivo de conhecer e discutir a imigração haitiana. As matérias dão ênfase à troca de experiências e vivências entre estudantes brasileiros e haitianos, à tomada de consciência acerca das dificuldades dos imigrantes com questões burocráticas para a efetiva reunião familiar e aos relatos de homenagens aos haitianos. Chama atenção a presença majoritária dos relatos sobre experiências vivenciadas na Educação de Jovens e Adultos.
Em matéria publicada em 2018, há um informe de oferta de aulas para a alfabetização de 51 haitianos residentes em um dado município de Santa Catarina. Conforme relato da diretora,
A grande maioria já está trabalhando em um frigorífico na cidade, que os incentivou a estudar e aprender a Língua Portuguesa para facilitar a comunicação. Os haitianos falam Francês, Espanhol e o Kreyòl, a língua oficial, por isso estamos oferecendo turmas específicas de alfabetização. (UNIDADE..., 2018).
Esta é uma perspectiva marcante nas notícias encontradas. Os projetos destinados à comunidade haitiana estão voltados para a comunidade adulta, visando, sobretudo, à inserção no mercado de trabalho. Nessa mesma perspectiva, noticiou-se em 2019 que os Centros de Educação de Jovens e Adultos (Cejas abririam turmas para o curso de Língua Portuguesa para Estrangeiros, visando à “integração social e a qualificação para o trabalho desses novos habitantes” (ANTUNES, 2019). A ênfase do curso de Língua Portuguesa para Estrangeiros recai sobre atividades cotidianas. O projeto utiliza uma cartilha impressa, custeada com os recursos da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina, e seu conteúdo advém da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
Ao identificar a ênfase sobre projetos desenvolvidos com/para os imigrantes adultos e as experiências fragmentadas em destaques nas notícias, vislumbramos também o seu avesso, refletir sobre os temas maiores e os temas ignorados. Às notícias, em geral, subjaz um entendimento de que toda ação no sentido da inserção do imigrante é muito valiosa. Contudo, há temas ignorados no avesso da notícia, quando perguntamos, por exemplo, pelos locais onde as ações são realizadas. Citam-se centros de eventos, salões ou participações isoladas nas escolas. Tanto a fragmentariedade quanto o caráter de novidade que acompanham as notícias são sugestivos e reveladores da ausência de ações integradas com as Instituições Públicas de Educação e da inexistência de políticas públicas educacionais voltadas às novas demandas. As ausências e a fragmentariedade expostas nas notícias ainda indicam a carência de projetos planejados para a implementação de políticas públicas. Consideramos que há muitos outros temas ignorados, além das políticas públicas e das crianças, como o próprio sentido de integração, caracterizada como subordinada e unilateral. Tal constatação liga-se também ao léxico que acompanha as discussões sobre os imigrantes. Há recorrência de termos ligados à solidariedade e à compaixão, bem como vocábulos ligados à assistência e até mesmo ao assistencialismo, mas poucos vocábulos dirigidos a eles como sujeitos de direitos.
A primeira notícia selecionada produzida pela Agência AL é de 2016. Traz um aspecto incômodo. Embora seja muito sutil em sua abordagem, ela traz à tona o conflito, os incômodos, o avesso do acolhimento. Nela, tem-se o relato de um dos temas tratados na reunião ordinária do Grupo de Trabalho de Apoio aos Imigrantes e Refugiados, a saber, “[...] a abordagem feita pela Guarda Municipal de Florianópolis aos imigrantes que trabalham como vendedores ambulantes na região central da Capital” (ESPINOZA, 2016). Dentre os relatos apresentados, constavam a violência na abordagem e práticas de racismo, enfatizando a necessidade de acionar a Secretaria Municipal de Segurança Pública nesses casos. Outro tema tratado dizia respeito à prorrogação do prazo para registro dos haitianos com permanências concedidas no Brasil.
Em 2018, as notícias veiculadas traduzem uma ideia de intensa movimentação em direção à construção de políticas públicas voltadas ao imigrante em Santa Catarina. Sem dúvida, a Comissão de Direitos Humanos da Alesc aparece como o intelectual coletivo organizador dessa luta, por meio de uma voz recorrente nas notícias veiculadas naquele ano, a do então deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores (PT) Dirceu Dresch e do então coordenador do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (Crai), Luciano Leite da Silva. Por meio das notícias, é possível identificar a importância da audiência pública realizada, que parece ter colocado na agenda da Alesc quatro questões de grande magnitude: a continuidade do Crai, a necessidade de aprovação de um PL para estabelecer uma Política Estadual para a População Migrante, a criação do Conselho de Imigrantes e a continuidade do Grupo de Trabalho de Apoio aos Imigrantes e Refugiados (GTI), instância criada pela Comissão de Direitos Humanos da Alesc. É importante destacar que o referido deputado apresentou um PL em 2018 propondo uma Política Estadual para a População Migrante. Tal PL foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, mas depois arquivado em janeiro de 2019, de acordo com as normas regimentais, em virtude do término da legislatura de seu proponente. Outro aspecto importante é que a existência deste PL é mencionada apenas nas notícias veiculadas em 2018, pois as notícias veiculadas em 2019 referem-se ao PL apresentado pelo deputado Fabiano da Luz, que não faz menção ao projeto anterior.
Em 2019, noticiou-se a reinstalação do GTI, mas não se deu detalhes sobre as eventuais interrupções e/ou litígios no trabalho do Grupo, embora seja possível subentende-las. A notícia divulgada em maio informa que “A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa instalou, nesta quinta-feira (16), o Grupo de Trabalho de Apoio aos Imigrantes e Refugiados (GTI)” (SANTOS, 2019). Note-se que agora o GTI é coordenado pelo deputado Fabiano da Luz (PT), para o qual o primordial nesse trabalho “[...] é ver como a gente vai atender essas pessoas, como vai mostrar que Santa Catarina está aberta a receber e não apenas deixá-los por aí, mas dar um acompanhamento para que eles possam iniciar uma nova vida como catarinenses” (SANTOS, 2019). Ainda nesta matéria, Luciano Leite, então coordenador do Crai, destaca a questão migratória em sua totalidade: “A gente trata a questão imigratória como um fato total, pois atende crianças, adolescentes, jovens e adultos. Então o imigrante está dentro de uma gama de ações que precisam uma articulação de todas as políticas públicas” (SANTOS, 2019).
Outro sujeito coletivo presente nas matérias é a Arquidiocese de Florianópolis, pela promoção do encontro de parlamentares com o tema Migração e Políticas Públicas e pela importante participação da Ação Social Arquidiocesana (ASA) na celebração, em 2018, do convênio “[...] junto à Secretaria de Estado da Assistência Social, Trabalho e Habitação, para a criação e execução do Centro de Referência de Atendimento ao Imigrante (Crai)” (BUENO, 2019).
Nesta última matéria, chama atenção o tom de novidade dado à afirmação de que “A proposta de se criar uma política pública em favor dos migrantes será levada ao GTI e depois será apresentada uma legislação que atenda esses migrantes, resume Fabiano da Luz” (BUENO, 2019).
A dinâmica em direção à construção de uma lei que institua uma política pública para a população migrante parece ter sido interrompida, pois não há, no teor das notícias, uma perspectiva histórica que dê conta das discussões travadas nos anos anteriores.
Felizmente, tal perspectiva histórica pode ser encontrada na justificativa subscrita por 22 parlamentares e apensada ao PL nº 0464.7/2019, de iniciativa do deputado Fabiano da Luz. Nesta justificativa, há referências ao trabalho realizado pelo então deputado Dirceu Dresch no tocante ao tema da migração, bem como à reabertura dos trabalhos do GT e ao acordo firmado entre os parlamentares partícipes do Seminário Migração e Políticas Públicas em Santa Catarina e a sociedade, no sentido de “[...] readequar e reapresentar o presente projeto de lei, que “Institui a Política Estadual para a População Migrante, dispõe sobre seus objetivos, princípios, diretrizes e ações prioritárias no Estado de Santa Catarina” (SANTA CATARINA, 2019, p. 5).
Em junho de 2020, as matérias dão conta do avanço da tramitação do referido PL e da sua aprovação, efetuada em setembro de 2020. Há, contudo, um aspecto curioso na matéria Plenário aprova políticas públicas para apenados, egressos e migrantes (ESPINOZA, 2020b). Inicialmente, o título causa estranhamento, pois dá impressão de que se trata de políticas que reúnem estas três categorias. No teor da matéria, porém, esclarece-se que são dois temas e dois PLs distintos.
Há outros aspectos que causam estranheza: em primeiro lugar, o silêncio sobre os vetos do governo ao PL, os quais foram refutados no parecer do deputado Luiz Fernando Vampiro e não se mantiveram no Plenário. As notícias também se calam o fechamento do Crai, ocorrido em 20 de setembro de 2019, sob a alegação de falta de verbas. Essa é uma importante contradição que ainda precisa ser explorada, pois, de um lado, houve um movimento pela aprovação da lei que institui a Política Estadual para a População Migrante e, de outro, silêncio sobre o fechamento de um serviço que já havia se tornado uma importante referência.
OLHANDO PARA A LEI Nº 18.018, DE 9 DE OUTUBRO DE 2020
Embora, a princípio, essa LEI já estivesse fora do recorte temporal traçado inicialmente, ela demarca importante etapa para a população migrante em Santa Catarina e é corolário de um processo iniciado nos anos anteriores. Surge, pois, a aposta de que temos um instrumento legal que deverá subsidiar a elaboração de políticas públicas que tenham abrangência, organicidade e previsão orçamentária.
A referida lei “Institui a Política Estadual para a População Migrante, dispõe sobre seus objetivos, princípios, diretrizes e ações prioritárias no Estado de Santa Catarina” (SANTA CATARINA, 2020). Foi precedida pelo PL nº 0464.7/2019, que teve entrada na Câmara no dia 03/12/2019 e foi redistribuído ao Relator, deputado João Amin, que encaminhou à Comissão de Constituição e Justiça, no dia 18/12 /2019, Parecer favorável à inadmissibilidade de continuidade de tramitação do referido PL. Na mesma data, 18/12/2019, o autor do PL, o deputado Fabiano da Luz, pediu vista, devolvendo-o à Comissão de Constituição e Justiça no dia 10/03/2020, sem manifestação. No mesmo dia, o deputado Ivan Naatz pede vista. Em 13/05/2020, encaminha o seu voto contrário ao Parecer do Relator, deputado João Amin.
No dia 19 de maio de 2020, como pode ser visto no detalhamento do PL, a Comissão de Constituição e Justiça aprova por unanimidade o voto-vista do Deputado Ivan Naatz. Na sequência, o Parecer ainda tramitaria pela Coordenadoria das Comissões e pelas Comissões de Relacionamento Institucional, de Comunicações, de Relações Internacionais e do Mercado Comum do Sul (Mercosul), de Comissão de Direitos Humanos, dentre outras. Por fim, o PL foi aprovado na 66ª Sessão Ordinária e posteriormente encaminhado para a Comissão de Constituição e Justiça. A votação da redação final foi realizada no dia 17/09/2020. Na sequência, foi encaminhado ao governador para sanção, recebendo veto parcial. No dia 16/12/2020, o veto foi rejeitado em Sessão Extraordinária.
Essa simples descrição não evidencia a natureza das divergências, contudo, ao olharmos para o veto do governador, evidencia-se claramente que eles estão voltados aos aspectos orçamentários, capazes de fornecer condições de regulamentação à legislação.
Sobre o veto ao parágrafo único do artigo 3º, afirmou o relator, Deputado Luiz Fernando Vampiro, que ele não deve prosperar, pois “[...] não gera custos ou atribuições a um órgão estatal já existente, somente há necessidade de capacitação e divulgação” (VAMPIRO, 2020).
Sobre o veto aos artigos 4º e 6º, assim se pronuncio o relator:
[…] o veto deve ser derrubado, pois a intenção destes artigos do projeto de lei são de capacitar servidores para atendimento de migrantes e designar uma estrutura estatal que poderia ser a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social ou até conveniar com município o atendimento ao migrante. Tanto a capacitação quanto a designação de estrutura de atendimento já existente não gera custos ao Estado já que no primeiro caso o Estado sempre esta capacitando seus funcionários e no segundo caso é o uso de uma estrutura já existente. Os artigos do projeto de lei vetados pelo Governo do Estado não cria ou altera [sic] a estrutura ou atribuição de órgão ou trata regime jurídico de servidores, bem como não aumenta a despesa pública contrariando a LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal]. (VAMPIRO, 2020).
A referida lei se divide em dez artigos, por meio dos quais define políticas de acesso a direitos fundamentais, princípios, diretrizes e acesso aos serviços públicos, bem como o papel do poder público ao manter estruturas de atendimentos aos imigrantes. Determina que a lei da população imigrante deverá ser considerada pelos programas, pelos planos e pelas leis de diretrizes de bases orçamentárias.
No que tange especificamente à área educacional, o artigo 4º afirma que “[...] será assegurado o atendimento qualificado à população migrante no âmbito dos serviços públicos […]” (SANTA CATARINA, 2020). Em seu inciso IV, fala-se na “[...] capacitação da rede estadual e municipal de ensino para atender as crianças, os adolescentes, os jovens e os adultos migrantes de acordo com suas identidades étnico culturais e, também, para garantir a integração linguística” (SANTA CATARINA, 2020, art. 4º). Eis aqui um passo importante, mas os programas específicos deverão manter um olhar atento às necessidades dos estudantes, das instituições escolares e dos seus profissionais, pois não basta criar programas de formação se não houver condições concretas para sua efetivação, o que implica, entre outras coisas, pensar na carga horária dos professores e nas condições materiais das instituições.
O artigo nº 7, inciso IV, também dá passos importantes ao garantir “[...] a todas as crianças e adolescentes, independentemente de sua situação documental, o direito à educação na rede de ensino público, por meio do seu acesso, permanência e terminalidade” (SANTA CATARINA, 2020).
Compreendemos que a existência da referida lei responde, em grande medida, aos processos organizativos da população imigrante por meio dos espaços institucionais constituídos, como o Crai, o GTI e a Comissão de Direitos Humanos da Alesc. Contudo, acreditamos que ainda não está bem estabelecida na pesquisa a força das associações da população imigrante na dinâmica de elaboração e implementação das políticas públicas, ainda que muitos estudos acadêmicos confluam no reconhecimento da sua existência como estratégia de sobrevivência cotidiana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos ao longo deste texto, são muitas as dimensões possíveis de serem abordadas quando falamos dos processos migratórios. Quando pensamos especificamente na inserção da população haitiana em Santa Catarina, deparamo-nos com dificuldades de diferentes ordens, sociais, econômicas, culturais e étnico-raciais, que são sentidas e, às vezes, intensificadas no ambiente escolar.
Ao longo desta pesquisa, percebemos que o Estado de Santa Catarina reconhece esta nova demanda educacional, haja vista os novos regramentos que revogam a obrigatoriedade do Apostilamento Consular, a realização de Protocolo de Haia para imigrantes refugiados e, por fim, a Lei nº 18.018/2020, que instituiu a Política Estadual para a População Imigrante. Consideramos que a referida lei representa um considerável avanço para o enfrentamento dessa nova realidade social, na medida em que afirma a valorização linguística, cultural e religiosa do imigrante, além de propor como diretriz a formação de profissionais do Estado, em diferentes esferas do serviço público, para cumprir esta demanda. Reconhecemos, por fim, a necessidade de futuras análises que não apenas aprofundem o conteúdo desta lei e dos seus processos de elaboração, mas sobretudo acompanhem a sua implementação na forma das políticas educacionais. Há litígios a serem discutidos, expressos nas tentativas de vetar importantes parágrafos da lei, que garantem direitos básicos à população imigrante, como o parágrafo único do art. 3º, que estabelece que “O Poder Público Estadual deverá oferecer acesso a canal de denúncias para atendimento dos migrantes em casos de discriminação e outras violações de direitos fundamentais ocorridas” (SANTA CATARINA, 2020).
Podemos afirmar que ainda há certa invisibilidade sobre as políticas públicas desta natureza, visto que a lei, por si só, não efetiva as políticas, que precisam seguir um curso de implementação, ter garantidos recursos financeiros na Lei Orçamentária, entre outros aspectos. No estudo realizado nas teses e dissertações, percebemos que o tema está sendo discutido em diversas áreas do conhecimento, que abordam as diversas dificuldades enfrentadas pela população imigrante haitiana. Embora nas questões ligadas ao ambiente escolar e às políticas educacionais o número de estudos ainda seja reduzido, esta realidade vem sendo percebida pelos pesquisadores, que evidenciam a necessidade de políticas destinadas às necessidades singulares dessa população.
Apontamos ainda que há uma questão que perpassa as produções estudadas e representa um risco perigoso no qual poderemos incorrer, qual seja, o de culpabilização dos professores pela ineficiência ou inexistência de uma inserção qualitativa dos imigrantes nas escolas. É fundamental e urgente que o Estado organize, por meio da Secretaria Estadual de Educação, em diálogo com municípios e Instituições Públicas de Educação, um programa orgânico e coeso, que não abandone a população imigrante, tampouco deixe os profissionais da educação sem recursos, nem carga horária disponível para efetivos estudos e/ou formação para a inclusão dessa nova comunidade escolar.