ESPAÇO E MOVIMENTO
Na escuridão dos tumbeiros, reis, rainhas, guerreiros presos às correntes do cativeiro cruzaram o Atlântico, muitos enlouqueceram, outros tantos mancharam as vestes de Iemanjá com o sangue de suas crianças.
Por esses, no Novo Mundo, meu povo foi ao profundo para religar-se à essência.
Não sabiam o que traziam, os sem valia, nos porões dos negreiros, erraram, esses forasteiros.
Como calar num guerreiro seu canto revolucionário? Não há, em sã consciência, alguém que a outro pertença que resista à violência de seus sonhos libertários.
E nas Américas, um novo cenário.
(Altay Veloso - Vai-Vai, o quilombo do futuro, 2018)
O singelo ensaio tem como objetivo apontar algumas notas que dialogam na encruzilhada dos conceitos de interseccionalidade, descolonização e infância. Inicia-se pelo oceano na travessia poetizada na epígrafe, as vestes de Iemanjá manchada com o sangue de nossas crianças, que morriam pelas condições insalubres da travessia, mas também pelo infanticídio que simbolizava a resistência das mulheres escravizadas e a possibilidade de proteção possível naquelas condições de absoluta desumanização.
Assim como o mar está em constante movimento, a dinâmica é a principal marca, a diáspora negra, por isso Exu, o dono de toda e qualquer encruzilhada e, portanto, o patrono da interseccionalidade, é quem traduz mapas conceituais para buscarmos a centralidade da infância, bem com o reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos e produtoras de culturas, pois, conforme Santos e Santos (2014) afirmam, ele é a primeira criança do universo.
Exu Agbá foi criado por Olorum e Orixalá, o ar e a água. Exu é mais habilidoso, inteligente e forte que os outros, além de ser de difícil trato. Olorum o envia para Orixalá, que o coloca longe de si próprio, perto da entrada principal e o despacha, como seu representante, para realizar trabalhos. Porém, nenhuma criança havia sido moldada ainda. Exu é a primeira criança da criação, a primeira a existir. Como tal, ele é transferido para terra, como filho de Orumilá e sua esposa. Exu, concebido pelo movimento da água e do ar, nos espaços infinitos do Orum, foi renascido e transferido para o mundo pela cópula de um par formado por um elemento masculino e um feminino. Em um processo de crescimento e expansão, que consiste em se multiplicar infinitamente enquanto ainda houver existência, Exu descende, vindo de sua mãe e cortado pela espada de seu pai, irá se dividir e se reproduzir, populando e dando vida a cada um dos elementos que individualmente o representam (Santos, Santos, 2014, p. 50-51).
Assim, as crianças que marcaram as vestes de Iemanjá em um giro epistemológico em direção ao Sul global podem ser poeticamente buscadas na lógica exúlica de Souza (2016, p. 141) que, na afirmação aprendida com as crianças de terreiro “Brincar é o caminho que o corpo usa para conversar”, movimenta uma reorganização semântica para pensar que: brincar remete à criança; caminho remete a Exu Lonan; corpo remete a Exu Bara; e conversa remete a dialogismo e à relação transitiva, no sentido de levar um ao outro, que por sua vez remete a Exu Elebó e a Exu Enugbarijó. Se x é igual a y, nessa proposição, então, é certo concluir que Erê é Exu, ou uma manifestação de Exu sob a cobertura figurativa da infância. Dessa forma, apresenta-se a lógica exúlica como a natureza matriz e fundadora da semiosfera de produção e circulação de culturas por crianças, que no Candomblé é o espaço fundador da África mítica que descreve Sodré (2017, p. 16):
[...] admitimos que o conceito de África é geográfico e não metafísico. Mas, consideramos, como Nietzsche em Além do bem e do mal, que a geografia é algo a ser levado em conta na perspectiva de outros modos de pensar. E o que apresentamos é a perspectiva de um modo afro de pensar tipificado no sistema nagô, que é de fato uma forma intensiva de existência forma em que a passagem do biológico ao simbólico ou ao espiritual é quantitativamente significativa com processos filosóficos próprios. Afro não designa certamente nenhuma fronteira geográfica e sim a especificidade de processos que assinalam tanto diferenças para com os modos europeus quanto possíveis analogias.
Para tanto, inicio evocando essa noção de África do sistema nagô descrita acima para localizarmos um debate, por meio da concepção de espaço, na discussão do significado de pátria conforme a analogia presente no título pátria pai hostil em contraponto ao trecho do hino nacional que narra dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada Brasil. Afinal, de que tempo/espaço estamos tratando? Respondo do movimento inerente a Exu e sua lógica lembrando o adágio “[...] Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que hoje atirou”.
Na obra de Chemeche1 (2013, p. 27, tradução nossa), “[...] Exu é o possuidor de um poder secreto, axé, que se reconhecido, trará vida, mas se desprezado, criará estragos”. A definição de Exu para o autor é a de associá-lo a um trickster, e com isso torná-lo sinônimo de possibilidades. A poesia de Mário de Andrade, inspira-nos inclusive na compreensão de Exu, pois, conforme destacaram Amado e Oliveira (2016), Macunaíma é filho de Exu. Assim, um filho de Exu é necessariamente um herói sem nenhum caráter, justamente porque em sua rapsódia o poeta mostra que o herói detém todos os caráteres; ter apenas um caráter seria superficial e não consideraria a multiplicidade humana. Exu é o dono das possibilidades e Macunaíma é o filho daquele que é a boca do mundo, pois tudo come.
Ambos são trickster, Exu e seu filho Macunaíma. A rapsódia em questão apresenta um Brasil afirmado nas raízes negras e dos povos originários, e com uma pachorra imensa da tentativa de se parecer com a Europa, o herói de nossa gente retrata que as nossas raízes estão no campo das encruzilhadas. A pachorra marca a poesia de Mário de Andrade para a compreensão do Brasil: “[...] meu maior sinal de espiritualidade é odiar o trabalho, tal como ele é concebido, semanal e de tantas horas diárias, nas civilizações chamadas cristãs. O exercício da preguiça que cantei em Macunaíma, é uma das minhas maiores preocupações” (Andrade, 1955apudFaria, 1993, p. 122).
A compreensão das infâncias no Brasil passa necessariamente por Mário de Andrade, visto que, segundo Faria (1993), ele foi um educador especial que não tentava impor um modelo cultural único, ao contrário, reconhecia a produção de culturas nos diferentes grupos, inclusive a produção de culturas entre as crianças. E como um intelectual que ressaltava as diferenças no intuito de valorizá-las, define compreensões de infâncias dentro de um projeto subversivo de nação. Em o poeta come amendoim, datado de 1924, apresenta uma definição estética de pátria que faz mais sentido para a população negra.
Noites pesadas de cheiros e calores amontoados... Foi o sol que por todo o sítio imenso do Brasil Andou marcando de moreno os brasileiros. Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...
A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos2...
Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurús conspiram na sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre'm-deus-padres irmanava os homens de meu país... Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos, Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...
Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta república temporã. A gente inda não sabia se governar...
Progredir, progredimos um tiquinho Que o progresso também é uma fatalidade...
Será o que Nosso Senhor quiser!...
Estou com desejos de desastres...
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas Se encostando na cangerana dos batentes... Tenho desejos de violas e solidões sem sentido Tenho desejos de gemer e de morrer.
Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua corumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons... Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas...
Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada, Porque é o meu sentimento pachorrento, Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir (Andrade, 1955, p. 157-158, grifos meus).
Nas palavras de Mário de Andrade, no protesto “[...] Brasil amado não porque seja minha pátria”, o poeta subverte o tempo lembrando que pensa nos tempos antes de nascer acerca do que
intitula por acaso de imigrações, o sentimento descrito não poderia ser outro além de pachorra, aliás, a etimologia da palavra pátria, de genitivo patris, para lembrar paterno e tomar esse por raiz, já não inclui a nós negros. A pátria, especialmente a brasileira, não fora projetada para nós, a nossa re-existência simboliza o fracasso do projeto patriarcal imposto para esse país.
Na continuidade do protesto poético, porque tempo e espaço necessariamente se subvertem na lógica exúlica, cabe continuar com os cânticos e poesias que nos movimentam desde as insurgências contra a escravidão. Reverbera também, nesses fluxos e refluxos da diáspora, a letra de Negro Drama, composta por Mano Brown e Edy Rock em 2002, que denunciou as condições da população negra no Brasil, pois para negras/os a violência e o temor ao Estado são regras; “[...] Família brasileira, dois contra o mundo / Mãe solteira de um promissor vagabundo / Luz, câmera e ação, gravando a cena vai / Um bastardo, mais um filho pardo sem pai”.
A família brasileira que se expressa na expressão dois contra o mundo denuncia que o sistema patriarcal não a considera, pois a pátria não a reconhece, porque sua liderança é sempre feminina nas diferentes formas de re-existir, seja devolvendo o corpo à mãe África ou insistindo em viver em um Estado que a destitui de cidadania, tipo de família retratada em Macunaíma, mãe e filhos sobrevivendo. É importante lembrar que assim se configura, não apenas porque muitos homens abandonam as famílias, mas principalmente porque são vítimas do genocídio e do encarceramento em massa.
Em quase todos os estados brasileiros, um negro tem mais chances de ser morto do que um não negro, com exceção do Paraná e de Roraima que em 2019 apresentaram taxa de homicídios de não negros superior a de negros. Alagoas, como desde de 2015, é o estado que apresenta maiores diferenças de vitimização entre negros e não negros, com taxas de homicídios de negros 42,9 vezes maiores do que as de não negros. Os altos níveis de discrepância da violência experimentada por esses grupos podem ser observados também nos estados do Amapá 9,0, da Paraíba 7,5, de Sergipe 6,4, do Rio Grande do Norte 5,9, do Espírito Santo 5,4 e do Ceará 5,1. Na tabela abaixo, a razão de risco relativo entre a taxa de mortalidade por homicídios de negros e não negros em 2019 pode ser observada em relação a todas as UFs (Cerqueira, 2021, p. 52).
É fundamental afirmar que as pesquisas acadêmicas ainda não reconhecem a infância como um descritor fundamental para a compreensão da sociedade brasileira. Mesmo o Atlas da Violência citado acima tem em seus descritores: juventude, mulher, que intersecciona com raça, pessoas negras, população LGBTQIA+, pessoas com deficiência e indígenas. Ou seja, o descritor infância ou infâncias ainda não foi reconhecido como fundamental para a compreensão da interseccionalidade para a maioria dos pesquisadores/as. Essa lógica adultocêntrica prejudica a compreensão da sociedade brasileira e dificulta a articulação e políticas públicas que corrijam os equívocos e distorções que transformam diferenças em desigualdade.
Tomar a infância como um marcador fundamental para a interseccionalidade é essencial em Carvalho e Souza (2021, p. 5): “[...] o complexo de Miguel Otávio é a normose da necropolítica voltada para as crianças” trançando uma analogia à ideia, numa ideia, o que concerne à morte facilmente evitada, pois o marcador infância vive um apagamento por oclusão.
Ainda reverberam no Brasil os reflexos das políticas de Estado descritas nos estudos higienistas de Nina Rodrigues, que associa a criminalidade ao que ele intitula degenerescência, ou mestiçagem3. Assim, a pátria que não nos pariu ainda busca pela redenção de Cam4, e se recusa em reconhecer que as previsões higienistas que estimavam um país branco, falharam.
A pátria degenerada e hostil segue clamando por esse pai historicamente ausente, que a faça legítima filha da Europa, pois se quer cristã, branca, heteronormativa e adulta. A figura desse pátrio poder é o fetiche da sociedade brasileira que fomenta as desigualdades quando recusa o reconhecimento das diferenças. Um espectro desse pátrio poder pode ser visto da deformação da política nacional que conta com uma bancada evangélica, esta que elege o bolsonarismo na figura do capitão reformado, o seu redentor, seguindo a política antiquada com traços higienistas e para se livrar do “[...] produto desequilibrado e de frágil resistência física e moral”5. Em 2018, temos a reatualização desses necrovalores destinados à população negra no lema do governo Bolsonaro: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.
A bestialidade saiu aos poucos, com risos estridentes e imbecilizados de um público memeficado, quando em abril de 2017 Bolsonaro afirmou, sem nenhuma fonte ou base factual, exceto o seu próprio racismo: fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$1 bilhão por ano é gastado com eles. O cenário era o Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, que deveria fazer esvaziar imediatamente o auditório por aqueles que haveriam de saber, pela epiderme da história, o que estava embutido naquela fala [...] Assim, o país também se habituou a associar a democracia com um Deus concebido por porta-vozes facciosos, intolerantes com os não aderentes ao chamado de seus serviços e ritos, contrafeitos às fragilidades e às singularidades humanas. Aqui, Deus ganhou outra definição: Deus é ódio, no lugar de Deus é amor. Rir da subalternização e da racialização dos outros, desde o acontecimento no Clube Hebraica, foi um passo importante para a fetichização da bestialidade política (Carvalho, Souza, 2021, p. 3).
Portanto, a bestialidade política segue demonstrada na naturalização e banalização da morte de crianças negras, nos ataques sistemáticos às religiões de matriz africana, na misoginia, no machismo, enfim, quando se decreta Brasil acima de tudo e Deus acima de todos, afirma-se a pátria pai hostil. Peço licença poética para lembrar o hino da anistia, de João Bosco e Aldir Blanc, eternizado na voz de Elis Regina, desde 1979: “chora a nossa pátria mãe gentil”, mas, nunca pelas crianças negras.
GIRO EM RE-EXISTÊNCIA O CORPO COMO TERRITÓRIO
Com os princípios de Exu, a procriação, a reparação e a comunicação, as sacerdotisas rompem com a dominação. Na denúncia de Nobles (2010), reconhecemos que a escravidão tirou os negros da África, mas a colonização tirou a África dos negros. O candomblé colocou a África em nós, devolvendo a humanidade, a comunidade e a ancestralidade. O culto restitui a propriedade do corpo à sua origem, a África ainda que mítica, desloca o corpo de ser propriedade do colonizador. Assim, um corpo iniciado encontra uma nação, que está para além das tidas como tradicionais, Nagô, Gegê, Banto; encontra uma Nação na religião e uma nova mátria em seu terreiro, oposto à pátria, que vem de pai, os terreiros simbolizam a mãe África.
Um dos suportes mais sólidos desse repertório negro foi, desde a senzala, o próprio corpo, espaço de existência, continente e limite do escravo. Arrancado do lugar de origem e despossuído de qualquer bem ou artefato, era o escravo portador - nem mesmo proprietário - apenas de seu corpo. Era através dele que, na senzala, o escravo afirmava e celebrava sua ligação comunitária; foi através dele, também, que a memória coletiva pôde ser transmitida, ritualizada (Rolnik, 1989, p. 2).
Para reexistir colocamos a África em nós, já que nossos corpos foram arrancados do continente, colocamos miticamente parte do continente em nossos corpos. Chamamos pela mãe mátria, e nas palavras do sacerdote Antônio Paulino de Andrade, a lembrança de que “[...] a mulher pari um homem, mas um homem não pari uma mulher, por isso mulher é para ser venerada e respeitada”6. Assim, no candomblé alimentamos o nosso umbigo, a primeira boca, a representação da encruzilhada, da circularidade, do movimento e de Exu. Essa força mítica que transforma erros em acertos e, talvez, explique a subversão de um povo que consegue re-existir na diáspora negra.
Subvertendo a linguagem cartesiana, em que pensar no próprio umbigo indica egoísmo, no candomblé sugere fortalecimento da comunidade e conexão com o continente mãe ancestral, como se o cordão umbilical nunca tivesse sido cortado. E como só pela lógica de Exu, nossa legítima rainha Mama África nos tornou herdeiras/os/es de um patrimônio que só conseguimos acessar coletivamente quando nos unimos.
O patrimônio simbólico do negro brasileiro, a memória cultural da África, afirmou-se aqui como um território político-mítico-religioso, para a sua transmissão e preservação. Perdida na antiga dimensão do poder guerreiro, ficou para os membros de uma civilização desprovida de território físico a possibilidade de reterritorializar na diáspora através de um patrimônio simbólico consubstanciado no saber vinculado ao culto de muitos deuses, a institucionalização das festas, das dramatizações dançadas e das formas musicais. É o egbé, a comunidade litúrgica, o terreiro que aparece como base físico cultural dessa patrimonialização (Sodré, 2019, p. 52).
O patrimônio simbólico do negro brasileiro que nos fora atribuído pela mátria Mama África com nosso cordão umbilical fortalecido, subverte o tempo e o espaço e gira epistemologicamente, ressignificando o corpo como um território africano na diáspora. Assim, enegrecemos o país por meio da ancestralidade africana expressa no candomblé e nas demais expressões da religiosidade afro-brasileira. Por isso, conforme destacam Souza e Nogueira (2022, p. 33):
O giro epistemológico por uma educação antirracista é dado em direção das mulheres e crianças, é necessariamente um giro brincante, que ironiza o fato das políticas e epistemologias genocidas terem sucumbido nos pés descalços dos terreiros, que nos conectou com nossa mãe África que veio ocupando nossos corpos em nosso socorro e permanecem em nossos oris consolidando tantas parcerias como na pluriversalidade de textos presentes nesta encruzilhada literária. Tais produções precisam ser lidas com apoio nas simbologias brincantes e, por isso, reexistentes e subversivas de Exu, subversão essa que propõe reestabelecimento da ordem natural das coisas, o equilíbrio, a possibilidade e as escolhas, em uma perspectiva acadêmica tratamos das escolhas teóricometodológicas que ampliam ou restringem possibilidades.
Nos Estudos com Crianças de Terreiros há exemplos tangíveis que explicitam melhor o exposto anteriormente. No texto As crianças de terreiros somos nós, as importantes: mais algumas questões sobre os estudos com crianças de terreiros, Caputo (2020, p. 383) anuncia com a Iaô de Oxum Isis Gabrielle Santana, 6 anos, do ilê de Oyá localizado no Rio de Janeiro sabe quem é, pois ela por meio de sua fala nos orienta acerca de sua expressão, havendo coesão e coerência em sua cosmopercepção, pois a referida criança, sabe que é uma representante do território africano e, miticamente, Isis nos orienta anunciando a consciência de que excorpora realeza, pois é reconhecida como a herdeira legítima de Oxum, por isso, expressa quais crianças são importantes, ou seja, ela e as demais crianças de terreiros.
A pesquisa de Anjos (2016, p. 94) afirma que “[...] as crianças fazem parte da estrutura do candomblé [...] há no candomblé um referencial afro-brasileiro de infância”. Para Nascimento (2018, p. 589), por sua vez, as crianças nas tradições africanas são eivadas de memória, sua expressão. Assim como elas são expressão e manifestação do tempo passado, dessa temporalidade eterna. Ademais, para Souza (2016), no candomblé o conceito de criança não se constrói pela oposição semântica com o conceito de adulto, mas trata-se da possibilidade de trânsito portanto, categoria não estática, cujo movimento, transitividade e narratividade se inserem na ordem e na natureza do axé, força vital e de permanente movimentação. A infância, nesta propositura, sob a prescrição da lógica de Exu, reporta não a si mesma, mas evoca, polifonicamente, diferentes enunciados de estado gestação, nascimento, infância, adolescência, juventude, adultez, velhice e ancestralização, estados a que se pode ir e vir, numa perspectiva capaz de sabotar a cognição, a interpretação e representação simbólica eurocêntrica da percepção do tempo e do espaço.
Para Iyagunã e Dantas (2019, p. 55) o candomblé apresenta possibilidades para uma educação decolonial por meio das suas experiências das relações com as crianças, isso porque no candomblé “[...] o amadurecimento não se trata de um melhoramento, ou tipo de aperfeiçoamento, mas uma aprendizagem que permite dialogar com os espaços físicos e espirituais”. No candomblé, as crianças já são reconhecidas como pessoas completas e não como sujeitos em desenvolvimento. Na mesma perspectiva, Oliveira e Almirante (2017) reforçam em suas pesquisas que o papel ativo das crianças é evidenciado nas observações culturas de pares e suas reinterpretações dos rituais. Ayran de Oxoguian, com 5 anos, afirma que no terreiro a vida é boa, conforme coletado por Filizola e Ferreira (2021).
Os estudos com crianças de Terreiros nascem na interseccionalidade de, pelo menos, três grandes negações: a primeira origina-se de concepções sociológicas que negam a criança como sujeito de conhecimento e participação social, portanto as silenciando; a segunda foi e continua sendo praticada pelo projeto colonial racista que submeteu pessoas, seus corpos, conhecimentos e memórias, negando a vida de africanos e africanas e seus descendentes, homens, mulheres e crianças, arrancados e arrancadas de seu continente, escravizados, dispersados; a terceira herança hegemônica foi deixada pelo modo dominante com o qual a modernidade via os cotidianos, tidos como lugar de saberes menores. Os estudos com crianças de Terreiros desenvolvem pesquisas que contrariam essa tripla negação para afirmar, também na interseccionalidade que, justamente aquelas consideradas insignificantes, incompletas, não confiáveis as crianças, os conhecimentos e culturas igualmente considerados inferiores afrodiaspóricos, incluindo os terreiros de religiões afrodescendentes e os espaçostempos considerados também menores cotidianos são fundamentos vitais para compreender a sociedade brasileira, bem como para desestabilizar suas lógicas coloniais profundas que, seguramente, afetam as crianças (Caputo, 2020, p. 389).
Ao estudar com crianças de terreiros contrariamos a colonialidade do poder, afinal, os infas nos terreiros não só possuem fala como têm todas as percepções mais aguçada que qualquer adulto não iniciado, pois o mais velho não é necessariamente o mais experiente. E, ainda, lembramos ao campo das ciências humanas em geral que sem o marcador de infância a compreensão da sociedade permanece adultocêntrica e com isso ela é necessariamente racista, visto que, os colonizadores, ao transformarem diferenças em desigualdades, infantilizaram negros. Ou seja, pesquisa sem crianças e sem considerar os marcadores de infância quando discutem o processo de racialização ficam incompletas, reforçam estereótipos e corroboram com a manutenção da colonialidade do poder.
Conforme lembra Kohan (2020), com as crianças as perguntas sempre cabem, porque infância não é um conceito fixo. Assim, permitimo-nos perguntar, em especial por nos inspirarmos nas crianças importantes, como ensinou Isis de Oxum. Na pergunta que fazemos, à guisa de considerações finais, ou quiçá iniciais, pois conclusão me lembra o sentimento de pachorra tratado no início, ou será que aquele era o final? Afinal, se o Brasil está acima de tudo e Deus acima de todos, onde estão as crianças? Se tudo está abaixo da pátria pai hostil abençoado por isso que chamam de Deus, pode ser que as crianças estejam sufocadas.
Será que podemos procurar pelas crianças em um território em que o governo seja de Exu, visto que na lógica dele a da circularidade tudo e todos estão girando em sentido anti-horário e em círculo, pois assim seria possível compreender a história e buscar outros devires...
Eis o Elo perdido, que todos encontrem os seus, conectem-se com o cordão do umbigo, com os velhos mentores de suas tribos.
(Altay Veloso - Vai-Vai, o quilombo do futuro, 2018)