“E quem garante que a História é carroça abandonada numa beira de estrada ou numa nação inglória? A História é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue”. Nesse trecho de Cancion por la unidad de Latino America, composição de Pablo Milanês e Chico Buarque de Holanda1, foram evidenciados alguns dos atributos que caracterizam a História, tanto enquanto campo de estudo quanto como disciplina. Sobretudo no que diz respeito às implicações políticas que são estabelecidas a partir da forma como se lida com ela.
É preciso ter em mente o lugar da história e a sua importância quando se pensa processos políticos e históricos como o que se tem experimentado desde a Lei da Reforma do Ensino Médio2, sancionada em 16 de fevereiro de 2017, que transformou a composição curricular desse período do ensino escolar e relegou a disciplina de História ao status de não obrigatória. Alterações como essa, no entanto, não constituem uma novidade no processo de construção da educação e currículo escolar no Brasil. Durante o período da Ditadura civil-militar (1964 - 1985), uma das políticas de Estado para a educação em nível escolar foi a exclusão da Disciplina História do currículo no primeiro grau, sendo estudo obrigatório apenas numa série do segundo grau. A partir desta exclusão, foi instituída a disciplina de Estudos Sociais no primeiro grau, que fundia os estudos de História e Geografia.
Mais do que combinar duas disciplinas, o aparato militar tinha pretensões outras no trato com a educação que denotavam a consciência das relações de poder que poderiam resultar da modificação empreendida. A disciplina foi remodelada para que tivesse um caráter conciliador com o regime, que desejava uma formação profissional da população que atendesse aos imperativos do mercado e da produção. Nas palavras de Juliana Miranda de Filgueiras, que estudou “A Educação Moral e Cívica e sua produção didática entre os anos de 1969 e 1993, “A escola era considerada uma das grandes difusoras da nova mentalidade a ser inculcada - da formação de um espírito nacional” (FILGUEIRAS, 2008, 85). A História foi destinada ao campo das marcações de datas e heróis e aliada a um ensino técnico que visava reformular e adaptar todo o sistema educacional aos objetivos políticos e ideológicos do golpe de 1964.
O aspecto que interessa a este artigo diz respeito à educação e ao ensino de História, que teve o campo de abrangência da disciplina e o seu currículo manipulados e relegados a segundo plano. A discussão consiste em demonstrar que a destituição da História de seu lugar na educação, enquanto disciplina obrigatória e campo epistemológico reconhecido e independente, ainda que num regime democrático, pode se mostrar uma medida temerária. É preciso considerar, mais precisamente, que a imposição de um único currículo para os chamados estudos sociais, no período aludido, foi constituída sob argumentos democráticos. Nesse sentido, importa compreender que a formação curricular, prevista durante a ditadura civil-militar, com destaque para a definição de papeis sociais dentro da perspectiva que priorizava uma educação moral e cívica, marcada no desenho da formação da nação e do povo brasileiro, foi estabelecida com a justificativa de que se movia dentro de princípios democráticos de participação da sociedade. E também analisar como essa leitura foi difundida através dos manuais didáticos para que visões de sociedade e nação alcançassem os bancos escolares; uma vez que, para Benito (2012, p. 43), as produções didáticas podem ser examinadas como frutos de discursos pedagógicos sobre a ação escolar e como objeto indicativo dos valores em que se baseia a gestão que as regulam.
Entre as fontes que dão suporte a essa reflexão estão o manual didático Curso de Estudos Sociais Integrado produzido pelas Edições Michalany3, de autoria de Douglas Michalany4, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Cristã de Letras. Assim como a Contribuição para o desenvolvimento de Educação Moral e Cívica e de Organização Social e Política no Brasil nos currículos de 1° e 2° graus, publicada no ano de 1984. Documentação que se justifica por ter sido instrumento de veiculação e convencimento dos ideais próprios do regime, na qual, paradoxalmente, apresentava tal imposição como uma ação democrática.
Ditadura, ensino de História e o manual didático
Durante o período de Ditadura civil-militar no Brasil foram desenvolvidas diversas estratégias de organização e controle social. O grupo de civis-militares que ascendeu à Presidência da República através do Golpe civil-militar de 1964, premido pela necessidade de garantir sua permanência no governo do país, precisava, com o intuito de se manter no poder, da aprovação da maior parte da população, bem como da anulação de eventuais focos de revolta. A estratégia utilizada para obtenção do controle popular teve várias faces, uma das mais importante foi o remodelamento da educação, sobretudo para crianças e jovens, destinada à adequação do seu comportamento aos parâmetros requeridos.
Esta estratégia exigiu a reformulação dos currículos do ensino básico (RIBEIRO JUNIOR, 2015) que uniu a antiga escola primária ao, também antigo, ginásio num ensino unificado de 1° grau, atualmente fundamental, que precedia o ensino de 2° grau5. Nesse ínterim, as disciplinas foram, da mesma forma, alteradas de modo a corresponder às novas aspirações educacionais. História, por exemplo, foi suprimida do primeiro grau, tendo parte de seu conteúdo incluído na disciplina de Estudos Sociais que também trabalhava os temas Organização Social e Política do Brasil, Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística, Ensino Religioso, Programas de Saúde e Vultos da Pátria.
O produto dessas mudanças seria percebido também na edição de produções didáticas, sobretudo porque esses volumes ocuparam, durante todo o século XX, no Brasil, um espaço significativo dessas edições. Segundo Alain Choppin (2004, p. 551), “os livros didáticos correspondiam, no início do século XX, a dois terços dos livros publicados e representavam, ainda em 1996, aproximadamente a 61% da produção nacional”. Sendo reforçada a ideia para a maioria da população, em todo o século XX, de que as produções textuais didáticas são fontes legítimas sobre o saber histórico. De modo que, era imprescindível controlar o que era veiculado neles.
Todavia, o consenso historiográfico é de que produções que resguardem uma intencionalidade, de ser expressamente voltado para o ensino escolar, do autor ou editor; o sistema e a sequência escolhida na exposição dos conteúdos; o formato textual, recursos didáticos e a estruturação para o trabalho pedagógico; o uso de imagens articuladas ao texto; e, principalmente, o cuidado na regulamentação dos conteúdos conforme as disposições de ensino oficial, bem como a atenta fiscalização do Estado tanto na produção quanto na circulação desses artefatos culturais se constituem em manuais escolares, indo além da proposta do livro didático. Ou seja, de ser uma dentre outras proposições para o ensino, sem um caráter de doutrinação (Badanelli et al, 2009; Ossenbach, 2010). Assim, conforme Cigales e Oliveira (2020, p. 4), “o manual escolar é objeto da escola, mas, ao mesmo tempo, transcende aos interesses pedagógicos e didáticos internos a ela”.
No Brasil o material produzido, no que diz respeito aos Estudos Sociais, passou por modificações a fim de ser alinhado aos novos parâmetros curriculares determinados pelos “Subsídios para Currículos e Programas Básicos de Educação Moral e Cívica”, de 1970. Já no ano seguinte, o Conselho Federal de Educação (CFE) também apresentou Parecer (n° 94), para fixar “Currículos e Programas de Educação Moral e Cívica para todos os níveis de ensino”. A partir de então, percebeu-se uma intensificação de tais determinações para as produções didáticas no Brasil, que passaram a necessitar de Homologação pelo Ministério de Educação e Cultura, através da Comissão Nacional de Moral e Civismo - CNMC6: os atestando com Parecer favorável, ou não, de acordo com os termos previsto pelos decretos n° 869/69, de 12 de setembro 1969, e n° 68.065, de 14 de janeiro de 1971, e os programas curriculares da CNMC ou CFE.
Entre as editoras que modificaram suas produções para adequá-los às disposições dos referidos decretos estava a Edições Michalany, de Douglas Michalany, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Cristã de Letras. A edição de 1973, originalmente Coleção Enciclopédia do meu Brasil, foi lançada como Curso de Estudos Sociais Integrado, em dois tomos, objeto de estudo deste artigo.7 Aqui se pretende realizar uma análise das estratégias de controle social através da Educação escolar de crianças e jovens, observando detidamente as noções de formação da nação e de povo brasileiro ali estabelecidas, e da produção de livros didáticos, bem como da intencionalidade da produção de um manual didático. Posto que, como propõe Benito (2012, p. 44), estes devem ser entendidos como uma representação holística de toda a cultura do ensino, um documento pertinente para revelar algumas chaves para a nebulosidade da gramática escolar mais tradicional.
O primeiro aspecto a ser observado é o registro de aprovação da obra em mais de uma instância, sendo uma delas a já citada Comissão Nacional de Moral e Civismo - CNMC, ligada ao Ministério da Educação e Cultura, como pode ser observado na imagem abaixo. É mister chamar atenção para o lugar do documento: fixado na parte de trás da capa do manual, constituindo a primeira informação trazida pela obra e que a legitimava como saber oficial8.
O Curso de Estudos Sociais Integrado das Edições Michalany recebeu parecer, em 21 de maio de 1973, “favorável a aprovação do trabalho, em quatro volumes, intitulado ENCICLOPÉDIA DO MEU BRASIL, de autoria dos professores DOUGLAS MICHALANY e CIRO DE MOURA RAMOS (Ficha n° 32/72 CNMC), do ponto de vista da moral e do civismo”. Documento assinado por Alma Albertina de Castro Figueiredo, Secretária Geral da CNMC. Como também o material teve que ser aprovado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, através de órgão especializado, Equipe Técnica do Livro e do Material Didático, homologada no processo n° 082/75, de 1° de abril de 1975.
A primeira aprovação citada evidencia a rede de censura e vigilância instituída durante os governos civis-militares brasileiros no âmbito da educação. O comando reivindicado por órgãos governamentais sobre o livro, e, nesse caso, o manual didático permite uma apreciação do modelo de comportamento e a cosmovisão que seriam consideradas lícitas aos cidadãos brasileiros. De acordo com Brigitte Morand (2012, p.70),
o manual escolar obedece antes de tudo, evidentemente, a uma demanda institucional, seja ela nacional, como na França, seja oriunda de uma estrutura mais descentralizada, como é o caso da Alemanha (RFA). O programa, assim, define o conteúdo de história a ser ensinado e, nesse sentido, “normaliza” o discurso escolar.
Dessa forma, incutir esses dispositivos nas crianças foi a maneira encontrada para um ensino que não admitia resistência ou questionamentos, apesar de se definir democrático. De qualquer modo, para além dessa censura, e, conforme Katia Abud, “ao não reconhecer História e Geografia como campos epistemológicos independentes”, e, principalmente, colocando-os no mesmo nível e grau de Educação Moral e Cívica e Organização Social do Trabalho, na grade curricular, “os órgãos públicos ligados à educação admitiam um sentido pragmático para as disciplinas, o de ajustar o individuo à sociedade e formar o cidadão pouco consciente (...) sua finalidade maior era preparar o individuo para o trabalho” (ABUD, 1999, p. 151).
Assim, a trajetória escolhida para esse remodelamento destituía a História de ser campo epistemológico, e disciplina escolar independente, e instituía um caminho de via única para uma educação moral e cívica (o que aparentava ser uma espécie de História em sentido prático). Tal estratégia estava bastante evidente nos produtos didáticos desse período, como o organograma de estudos na obra de Douglas Michalany.
Pelo organograma presente na figura, as disciplinas de História e Geografia foram conjugadas com a matéria de Organização Social e Política que se desdobrava em seis perspectivas. Nessa estratégia muito do conteúdo das disciplinas era relegado ao esquecimento. Definindo, dessa forma, uma história pragmática que corroborava única e simplesmente o ideário pretendido de nação e cidadão; uma vez que “os programas escolares constituem o instrumento mais poderoso de intervenção do Estado no ensino, o que significa impor à clientela escolar o exercício de cidadania que interessa aos grupos dominantes” (ABUD, 2002, p.28).
Nessa projeção da cidadania, que se entendia como ideal, os pontos chave são a Educação Moral e Cívica e os vultos da Pátria como os grandes exemplos a serem perseguidos. Em segundo plano, era pensada a disciplinarização do corpo e da mente, atividade que estaria pautada na educação física, artística, no ensino religioso e, finalmente, nos programas de saúde. Seguindo essa trilha, estava assim delineado um modelo para a nação brasileira que se pretendia forjar. Em seu editorial, no prefácio à primeira edição, de 1972, a obra de Michalany (1982, p. 10) reforça essa perspectiva, que demonstrou em forma de organograma, para a formação da população brasileira.
Os Estudos Sociais objetivam o ajustamento do homem em seu meio, situando-o em sua comunidade e cultivando em sua mente o indispensável senso de nacionalidade, com o que se forjará um cidadão responsável perante a Pátria e a Humanidade.
Anos mais tarde, no prefácio da edição aqui estudada, de 1982, o discurso ressurgia, como garantia do autor de estar “atendendo a evolução do processo educativo em seus múltiplos aspectos dentro da atual realidade nacional e, ao mesmo tempo, acompanhando a marcha de uma sociedade em constante mudança e desenvolvimento” (prefácio, p. 11). Assim, é “necessário verificar o grau de concretude do discurso político-educacional, traduzido no currículo e convertido em conhecimento escolar, ou o grau de adaptação do conhecimento científico- disciplina” (MAHAMUD-ANGULO, 2020, p. 10).
Ironicamente, ou não: em toda a obra, a democracia é usada como o argumento para a aceitação dos pressupostos abordados e divulgados no manual9. Mesmo num período marcado por uma Emenda Constitucional de 1969 outorgada, em que se destaca a concentração de poder no Executivo, além de eleições indiretas para presidente.
Sem História, o Regime Militar era narrado como Democracia.
Democracia, entendida como conceito fundamental de formação dos cidadãos na obra de Michalany, é associada a uma ideia de liberdade do povo brasileiro. A primeira premissa apresentada como definição de um estado democrático enunciava que “o povo brasileiro, por tradição, é de formação democrática. Realmente, desde os princípios de nossa independência política, sempre demonstramos o maior respeito aos direitos e garantias individuais” (MICHALANY, 1982, p. 277).
É interessante observar que a noção de liberdade preconizada pelo autor nas páginas subsequentes excluía, desde o início, o princípio da pluralidade; ou mesmo a possibilidade de uma corrente de pensamento que se opusesse aos ditames do regime autoritário. Ficava relegado ao cidadão brasileiro a liberdade para obediência, o que lhe garantiria os benefícios da condição de cidadão. Nas ideias do autor a contradição se mostrava: o direito à liberdade era facilmente esquecido quando exercida qualquer resistência ao programa político vigente. Assim, em continuidade à citação acima transcrita, o autor apontou que:
Entretanto, a atual Democracia Brasileira é vigilante e enérgica, pois não pode permitir que a subversão e a corrupção destruam as nossas instituições. E não poderia ser de outra maneira, pois os sagrados interesses do País estão acima dos maus brasileiros (MICHALANY, 1982, 277).
De fato, o exercício da Democracia deve evitar ataques às suas instituições, como atitude de garantir sua existência. Porém, a transcrição do texto de Michalany é específico: ele trata da atual democracia, no Brasil da Ditadura civil-militar - sem eleições diretas para presidentes e governadores10, com restrição de partidos políticos e sem liberdade de imprensa. O discurso categórico já indicava também a fragilidade do seu caráter democrático: eram definidos quem aceitava os ditames administrativos e quem não os aceita, ou não se conforma completamente a ele, que são os bons e os maus brasileiros, respectivamente. A distinção entre bem e mal ainda foi reforçada pela compreensão dos ‘interesses da Pátria’ como sacralizados, numa tentativa de firmar uma legitimidade nos moldes ‘ame-o ou deixe-o’.
Tal referência, no entanto, ainda trazia em suas entrelinhas uma intenção mais inquietante: a ideia de que, para se ter um ‘bom’ brasileiro era necessário pautar a sua formação como indivíduo e cidadão com um rigoroso modelo de ensino-aprendizagem que alterava o currículo escolar, com a supressão do ensino de História no primeiro grau. Nesse processo, a História, enquanto disciplina, assumia um conceito enviesado, sendo entendida apenas como tradição. Pátria era tradição e tradição era História: “um povo sem tradição não vive a vida de sua Pátria, não sente o passado, nada espera do futuro”. Nesse sentido, conceitos como o de patriotismo e cidadania iam sendo articulados à noção de tradição e, consequentemente, a de história a partir da percepção de que era através dessas duas correntes que se instituiria o amor à Pátria e ao Povo brasileiro: pois, “conhecendo a História Pátria, aprende-se a amar a terra natal em sua Tradição” (MICHALANY, 1982, p. 255).
Tal compreensão sugere uma aproximação ao entendimento típico de um pensamento tradicional da História e do Tempo, como na chamada História Magistra Vitae, na qual o passado tem uma importância fundamental na percepção e compreensão do tempo histórico. Há nesse pensamento uma ideia de modelo exemplar, em que a tradição, que se confunde à própria História, não poderia ser questionada. Nesse sentido, se buscava os dogmas impetrados pelo passado através da tradição e da História num esforço de perpetuá-la, de preservar uma constância da natureza humana. Ou, conforme a definição de Reinhart Koselleck para essa compreensão da História: “A História pode conduzir ao relativo aperfeiçoamento moral ou intelectual de seus contemporâneos e pósteros, mas somente se e enquanto os pressupostos para tal forem basicamente os mesmos” (KOSELLECK, 2006, 43).
O entendimento de uma natureza imutável e de uma sequência histórica previsível, por consequência, é percebida como princípio norteador da estruturação das unidades no manual estudado. É evidente a noção de evolução natural da Humanidade expressa no sumário, sem maiores referências a rupturas, demonstrando uma evolução que é imutável e regida por leis naturais.
UNIDADES.
I - O Universo
II - A Terra - Nosso planeta
III - A Pessoa Humana - Deveres e Direitos
IV - O Cidadão e o Estado - Deveres e Direitos. O Cidadão Brasileiro
V - O Estado Brasileiro - Símbolos Nacionais. Monarquia e República
VI - O Brasil Geográfico - Formação Territorial e Aspectos Físicos
VII - A população Brasileira - Formação Étnica e Vida Cultural
VIII - O Brasil de Hoje - As regiões Brasileiras. Integração e Desenvolvimento (MICHALANY, 1982, p. 13).
Como se pode ver acima, o mundo é expresso como um sistema absolutamente compartimentado, em que, pretensamente, cada parte menor somada às demais culminam no todo, o universo. O homem é apenas parte dessa sistemática. Não por acaso, o autor afirmou “que as unidades eram perfeitamente correlatas e entrelaçadas entre si” (MICHALANY, 1982, p. 13). Sem nenhum espaço para a contradição, apenas há espaço para a tradição:
A tradição é imutável, revelando a todos os feitos, as glórias, os costumes, os usos, as cerimônias, os sacrifícios, as angústias de um povo. A tradição identifica um homem com sua pátria, revelando-lhe o valor moral e espiritual dos vultos históricos, dos heróis, dos bravos. A tradição revela a paisagem nacional, os lugares-comuns a todos, as regiões mais distantes, os lugares históricos onde se deram fatos importantes. A tradição é a irmã gêmea da História, contando os ideais do passado, relembrando os feitos, as datas, os ritos, os costumes, os perfis dos homens e das mulheres célebres. Como a língua, a História e a tradição devem ser imutáveis, conservadas por todas as gerações, pois constituem o substrato em que se apoia a nacionalidade. O respeito à História e à Tradição é um dever cívico a que deve sujeitar-se todo cidadão (MICHALANY, 1982, p. 255).
Desde pelo menos a década de 1970, mesmo período de produção da obra de Michalany, a escrita da História passava por modificações cruciais, sobretudo no próprio entendimento desta como disciplina escolar. Herdeira dos questionamentos colocados por Luciem Febvre e Marc Bloch, com a publicação dos “Annales d´Histoire Économique et Sociale”, na França de 1930, as novas percepções no Brasil começaram, à revelia dos propósitos do Regime civil-militar, a serem difundidos nos cursos de pós-graduação. Propunha-se uma história-problema, com uma escrita da história a contrapelo da narrativa política acerca dos grandes homens e seus feitos, da história-acontecimento a partir dos documentos escritos e entendidos como oficiais. De acordo com José D’Assunção Barros (2004), no Brasil, esses novos enfoques e a pesquisa sobre disciplinas escolares, sobretudo relacionada à História, só se estabeleceu após o fim do período ditatorial, entre a década de 1990 e a de 2000, contexto em que o ensino de História passa a ser um tema mais visitado pelos historiadores.
Até o fim da ditadura, contudo, havia um fosso proposital entre a academia e a escola.11 Nesta, o ideário da educação estava voltado à de um desenvolvimento econômico completamente vigiado pelo controle da Segurança Nacional.12 Para Selva Fonseca, existe, em primeiro lugar, uma razão política, com a intenção de controlar e reprimir a construção crítica dos cidadãos, para eliminar qualquer possibilidade de resistência ao regime (FONSECA, 1993, p. 25). Nesse sentido, ainda conforme a autora,
os anos 80 são marcados por discussões e propostas de mudanças no ensino de história. Resgatar o papel da História no currículo passa a ser tarefa primordial de vários anos em que o livro didático assumiu a forma curricular, tornando-se quase fonte ‘exclusiva’ e ‘indispensável’ para o processo de ensino-aprendizagem (FONSECA, 1993, p.86).
Alinhar a história com a tradição era, portanto, uma parte da estratégia política de educação no período do regime civil-militar. No entanto, esse posicionamento ia além da disciplinarização dos corpos e das mentes. Construía uma percepção de História que a descaracterizava de seu próprio sentido: a mudança e a ideia de processo. Se a História era a tradição, ela era o imutável de um tempo que não se encaixava no encadeamento de muitos acontecimentos vividos e ainda presentes na memória dos cidadãos brasileiros. Não se questionava o período civil-militar porque este ainda era considerado presente, não sendo ainda tradição ou História, mas primava-se pelo desenho de uma nação definida na lembrança dos feitos, as datas, os ritos, os costumes, os perfis dos homens e das mulheres considerados célebres.
História como o suporte para a cidadania
A relação da História e da tradição era, para os idealizadores dos planos de educação no regime civil-militar, o eixo sobre o qual se constituiria a ideia de nação e de cidadão. À História não era negado seu processo de construção, mas era um saber que uma vez considerado produzido se tornava imutável. Foi essa condução conceitual que deu espaço à construção voltada aos grandes nomes, responsáveis por grandes feitos que permitiam ao Brasil ser chamado de nação. Aí se tem um caminho em via dupla: um homem que se esforça pela sociedade e o reconhecimento desse nome (que não seria de uma pessoa comum) como o modelo a ser perpetuado.
Os capítulos que tratam da formação da nação brasileira, escritos por Michalany e seus colaboradores, apresentam os governantes brasileiros como protagonistas da nação. Na discussão acerca do impasse entre Portugal, com a Revolução do Porto, e Brasil, no que tange à independência da Metrópole, a questão realçada não foi a mudança político-estrutural que deveria ter sido processada, mas a capacidade de pai e filho serem governantes genuínos para o Brasil - o pai para o Brasil colonial e o filho para o Império do Brasil.
Está claro que Dom João VI, sendo um homem inteligente, percebia como estavam as coisas no Brasil. Por esse motivo, preferia ver filho no trono brasileiro, para que a Coroa não caísse nas mãos de um estranho. E foi o que sucedeu: D. Pedro soube entender os problemas do Brasil e fez a nossa Independência, tornando-se nosso Primeiro Imperador (MICHALANY, 1982, p. 349).
O primeiro Imperador soube entender os problemas pelos quais passava o Brasil naquele momento, conforme posto no relato histórico. De igual maneira, a definição de cidadania portada por Michalany na mesma obra corroborava a narrativa: o amor à Pátria. “Aí está todo o sentido do amor à Pátria, porque é nossa. Cada um ama a sua pátria porque é sua. Sendo sua é obrigação de todo cidadão defende-la; defender sua pátria contra os inimigos - internos e externos - mesmo que seja preciso o sacrifício da própria vida” (MICHALANY, 1982, p. 249). O exemplo de D. Pedro, de devotamento à causa do Brasil, deveria não apenas ser seguido, mas copiado. Todavia, não se tratava de entender a História, em seu processo e como construção, como um recurso à cidadania e, sim, pensa-la como o modelo de cidadania. Nesse caso, como ela deveria ser imutável, não se referiria ao processo de mudança de governo, mas à continuidade, que não era estranha à sociedade. Por tal razão é que a trama se fia nos personagens, a saber, os imperadores do Brasil.
D. Pedro I teve sua narrativa construída na coragem de enfrentar o inimigo externo, Portugal e a luta pela recolonização brasileira, e na escolha pelo Brasil. Em resposta ao decreto de 9 de dezembro de 1821, que reclamava seu retorno, declarou, um mês após, sua resposta: “após ler os manifestos onde todos lhe pediam que ficasse, o Regente proferiu a frase que se tornaria célebre: Como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto: diga ao povo que fico” (MICHALANY, 1982, p. 352).
O relato não apenas apontava a figura central do Regente, mas a própria criação da nação a partir de D. Pedro. Ao ser considerada, na frase a ele imputada, a ideia de Brasil como uma nação, lançava-se luz, ao mesmo tempo, para o protagonismo requerido pelo regime outorgado desde 1964: o reconhecimento do Brasil como uma nação, assim como se encontrava, e a percepção de pertencimento a ela a partir da subordinação aos seus governantes. É nesse sentido que na sequência do relato o autor reforça o ‘dia do fico’:
Perceberam a importância do Dia do Fico? Ele praticamente representa a nossa Independência; de fato, a partir do momento em que D. Pedro resolveu permanecer no Brasil passou a desobedecer frontalmente às ordens vindas de Portugal. Depois daquele dia, a marcha do Brasil para a sua emancipação política tornou-se cada vez mais rápida. (MICHALANY, 1982, p. 352).
Uma desobediência pelo bem do Brasil. Assim também se fazia acreditar sobre a implantação da Ditadura civil-militar. Contra inimigos internos e externos - sobretudo o comunismo - se tomou as rédeas da nação. Nesse sentido, ao proporem tal leitura para a História a entendiam como a mestra da vida. Entender a História somente como tradição ressalvava a sua condição de conhecimento exemplar e perpétuo, o subsídio ideal para a legitimação do regime de ditadura civil-militar no Brasil.
Por outro lado, o recurso à História não apenas devia reafirmar a própria ditadura como necessária. A ideia de um Brasil da tomada de poder - através de um golpe - não podia ser ressaltada como permanente para a nação, por isso a referência à abdicação - um momento de intensos movimentos sociais - na narrativa, para que a figura de Pedro II pudesse ser colocada em destaque. A parte biográfica a ele destinada teve o título “Dom Pedro II, o mais belo exemplo do verdadeiro cidadão”, a fim não apenas de demarcar sua vida como o modelo ideal de cidadania, como também de afastar o comportamento passional de seu pai.
Ao contrário de seu pai, que agia às vezes impulsivamente, D. Pedro II mostrou ser um homem sereno e ponderado, que somente tomava decisões depois de muita reflexão. Por outro lado, procurava sempre ouvir as opiniões do Conselho de Estado, formados por homens de larga experiência e cuja função era aconselhar o Imperador. Graças a essa atitude prudente, conseguiu pôr fim às agitações revolucionárias, dando ao país 40 anos de paz interna (MICHALANY, 1982, p. 245)
O modelo idealizado para a cidadania brasileira estava na constituição de uma pátria que fosse um coletivo de cidadãos com marcas de pertencimento a essa nação pela sua História. Pensar a nação e o melhor para ela era um dever cívico de cada cidadão brasileiro. Tal perspectiva não apenas inundou a História escrita nesse momento, como era a perspectiva para todo o ensino. No documento intitulado Contribuição para o desenvolvimento de Educação Moral e Cívica e de Organização Social e Política do Brasil nos currículos de 1° e 2º graus essa percepção é evidente13: “o chão do mundo de cada homem é sua Pátria. E uma Pátria, é, em última análise, uma personalidade moral. Ela tem um corpo e uma alma. Ela é um território, um povo, uma língua (ou mais de uma), uma religião (ou mais de uma), uma tradição espiritual portada pela História” (Contribuição..., 1984, p. 97) - citado por Douglas Michalany (1982, p. 97). Essa percepção está em Michalany não por percepção própria, mas porque faz parte da ideologia civil-militar dos governos de 1964 a 1985, a qual faz uma leitura de cidadania, pátria e História de modo que corroborem sua percepção e com tons democráticos. É a visão também indicada em outros documentos produzidos pelo regime civil-militar, como por exemplo no Manual Básico da Escola Superior de Guerra, em sua edição de 1975. Documentação que foi produzida por diversos órgãos do sistema de controle atuantes no campo da educação superior e aponta para as mesmas percepções que perpassavam as disposições do ensino básico. Como sintetizou Jaime Valim Mansan (2017, p. 841), as noções de Estado e nação utilizadas no manual reforçavam a ideia de uma noção universal para a nação e o Estado. “Nação era definida como ‘uma entidade social originária ou imutável’, ‘a sociedade já sedimentada pelo longo cultivo de tradições, costumes, língua, ideias, vocações, vinculada a determinado espaço de terra e unida pela solidariedade criada pelas lutas e vicissitudes comuns’”. E o “Estado seria ‘a entidade de natureza política, instituída em uma nação, sobre a qual exerce controle jurisdicional, e cujos recursos ordena para promover a conquista e a manutenção dos Objetivos Nacionais’”.
O cidadão ideal na democracia da Ditadura civil-militar
Ensinar sobre a nação brasileira por meio de uma literatura didática escolar e reforçar o sentimento patriótico, através das comemorações de datas consideradas especiais para a história do Brasil, tinha uma finalidade bem definida ao governo civil-militar: esculpir o cidadão ideal para habitar e defender esse país. No entanto, tal estratégia não se restringia ao ensino de disciplinas que privilegiassem o território e os grandes vultos que ‘construíram’ a nação, posto que a própria existência do regime ditatorial desnudava a fragilidade desta assertiva, sobretudo em se tratando dos conceitos de cidadania e democracia. Com essa percepção, foi entendido como necessário acrescer outro viés de doutrinação, que fosse particularmente incisivo quanto aos interesses do governo em exercício. Nesse processo, o ensino de História, já fundido ao de Geografia, foi associado com o de educação moral e cívica, e, como objetivo principal, optou-se, convenientemente, por um discurso que destacasse o ‘aperfeiçoamento’ do caráter da criança, do adolescente e dos jovens para que fossem ‘bons cidadãos, livres e democratas’, sabendo perfeitamente quais são os seus deveres e os seus direitos para com os homens e a Pátria.
Numa explicação de método progressivo, típica da produção didática e do ensino de caráter técnico preconizado pelos poderes militares, o autor expôs a definição de Educação e de Educação Moral antes de, finalmente, definir Educação Moral e Cívica de forma mais detida. Logo no início do texto, chama a atenção o cuidado de Douglas Michalany (1982, p. 218) em destacar o fato de que “em boa hora o Governo Brasileiro resolveu instituir a Educação Moral e Cívica como matéria obrigatória em todos os níveis do ensino, através do Decreto n° 869, datado de 12 de setembro de 1969”. Importante destacar que a citação foi convenientemente seguida da transcrição da definição desse ‘campo do saber’ no decreto aludido, que reverberava e reforçava o modelo de cidadão ideal, à medida que apregoava:
a Educação Moral e Cívica visa levar o educando a adquirir hábitos morais e cívicos, através da consciência de princípios e do desenvolvimento da vontade, para a prática constante dos hábitos decorrentes, fazendo-o feliz e útil à comunidade (MICHALANY, 1982, p. 218).
O que se percebe, por outro lado, é que nas fímbrias de uma Educação Moral e Cívica, há uma perspectiva de supressão das individualidades em favor da coletividade, ou ainda, de uma compreensão de vida restrita e limitada a direitos e deveres para a população. Perspectiva que, conforme Alexandre Tavares do Nascimento Lira (2010, p. 281), “representava uma composição entre o pensamento conservador católico e a doutrina da segurança nacional”. Esses objetivos eram perseguidos através de um ensino primário (estendido de quatro para oito anos pela Lei de Diretrizes e Bases de 1971, art 18), em que se destacava a ideia de comunidade, que era seguido por um ensino médio (reduzido de sete para três anos), com conteúdo acentuadamente ideológico, cujos temas versavam sobre “o trabalho como um direito do homem e um dever social; as principais características do governo brasileiro; a defesa das instituições, da propriedade privada e das tradições cristãs; a responsabilidade do cidadão para com a segurança nacional”.
O ensino desta disciplina resultava de uma proposta da Escola Superior de Guerra, feita no âmbito do Concelho Federal de Educação - CFE, e que na realidade era uma imposição. A referida proposta teve resistência de Anísio Teixeira e Dumerval Trigueiro Mendes, enquanto membros do CFE, mas transcorreu livremente após a saída de ambos dessa instância. Dumerval Trigueiro Mendes, inclusive, exerceu sua oposição na produção “de pareceres normativos e doutrinários, comunicações e seminários do Conselho, em conferências e aulas inaugurais por todo o país”. Ainda escreveu sobre o tema em artigos e ensaios na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos e na Revista de Cultura Vozes, assim como divulgou suas ideias “nas cadeiras de História do Pensamento Econômico e de Sociologia, da UEG (Universidade do Estado da Guanabara) desde 1965, e como professor de Fundamentos Sociológicos da Educação, a partir de sua transferência da Universidade Federal da Paraíba, em 1968, para a Faculdade de Educação da UFRJ”. Em represália à sua atuação, Dumerval Trigueiro Mendes foi informado de sua aposentadoria em função do Ato Institucional n° 5 através de notícia veiculada em programa televisivo (LIRA, 2010, p. 239).
Compreende-se, a partir da experiência do professor Dumerval Trigueiro Mendes, que havia duas possibilidades aos brasileiros do período ditatorial: se posicionar contra ou a favor das imposições do governo civil-militar, principalmente após a promulgação do AI5, ato que ficou conhecido como “o golpe dentro do golpe”14. Os escritos e citações do texto transcrito do manual didático, aqui analisado, sugerem o estreito envolvimento do próprio autor do encarte com o governo militar, e, nesse sentido, Douglas Michalany se constituía um cidadão exemplar, ao contrário do professor Dumerval Trigueiro Mendes. E, portanto, Michalany estava apto não apenas a produzir a obra, mas a tê-la como referência para o ensino em todo o Brasil; sobretudo porque seguia ‘à risca’ todas as disposições indicadas nos documentos destinados a reger o ensino produzido pelo órgão responsável pela administração da educação no aparato civil-militar.
Tal perspectiva, que apoia a escrita deste autor, figurava evidente na Parte doutrinária do Parecer n° 94, de 04 de fevereiro de 1971, da Comissão Especial de Educação Moral e Cívica, de relatoria do reverendo D. Luciano Cabral Duarte, no qual já havia sido indicado o projeto de um cidadão ideal, forjado através dessa Educação, para contribuir num processo de produção da nação nos moldes preconizados naquela conjuntura. Nesse parecer, Dom Luciano concluiu:
a Educação Moral e Cívica no Brasil, portanto, inspirada nas grandes linhas da Constituição Nacional, terá como objetivo a formação de cidadãos conscientes, solidários, responsáveis e livres, chamados a participar no imenso esforço de desenvolvimento integral que nossa Pátria empreende, atualmente, para construção de uma sociedade democrática, que realiza seu próprio progresso, mediante o crês-cimento humano, moral, econômico e cultural das pessoas que a compõem.
Importa perceber que a proposta de construção de uma sociedade democrática é a justificativa que perpassa as disposições da Educação Moral e Cívica, como também em todo o manual de Michalany, mas seu aprendizado não era uma escolha livre e seu ensino foi diligentemente organizado. A sistematização dos conteúdos de Educação Moral e Cívica no Brasil foi lançada no ano de 1984 “com o objetivo de oferecer mais um subsídio àqueles que, nas escolas, desenvolvem a Educação Moral e Cívica” (Contribuição..., 1984, p. 07). Esse documento contribuía para o desenvolvimento do projeto de formação psicossociológica dos homens da nação, ao mesmo tempo em que reforçava o caráter dogmático de tal projeto. É, assim como nos documentos anteriores, evidente a pretensão de uma doutrinação em todo o conteúdo da Contribuição para o desenvolvimento de Educação Moral e Cívica e de Organização Social e Política no Brasil nos currículos de 1° e 2° graus.
A obrigatoriedade da ministração da disciplina em discussão em pelo menos duas séries (atualmente, anos) do ensino primário já sugeria um método sistemático de ensino, que ganhava, pela repetição de valores e princípios entendidos como ideais, tons de dogmatização. Em mais de um momento da Contribuição..., foi lembrado o artigo 7° do Decreto n° 68.065/71, que determinava que “a disciplina Educação Moral e Cívica deverá integrar o currículo de, ao menos, uma das séries de cada ciclo do ensino de grau médio e de uma série do curso primário”15, na tentativa de legitimação desse projeto. Mais adiante, na Disposição Curricular da disciplina foi determinado que “A Educação Moral e Cívica, como disciplina, será ministrada em caráter obrigatório em pelo menos duas séries do 1º grau e em uma do 2º grau” (Contribuição..., 1984, p. 33).
Contudo, é o caráter doutrinador desse projeto que importa destacar. Não como uma perspectiva que se insinuava nas entrelinhas dos manuais didáticos aprovados pela Comissão de Educação Moral e Cívica, mas como estratégia consciente, assentada na própria composição de uma comissão, na imposição do ensino e de inclusão da matéria na produção do texto didático por força de leis e decretos e na vigilância e reforço desse projeto através da publicação da Contribuição..., em 1984. Muito embora era, sobretudo no texto que a compunha, que a necessidade de uma doutrinação moral e cívica era destacada.
Em sessão específica, a Contribuição... veiculava as “Diretrizes básicas para o ensino de Educação Moral e Cívica, nos cursos de 1° e 2º graus. Princípios doutrinários”, as quais eram determinadas em dois pontos, como transcrito abaixo.
1 - A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas tradições nacionais, tem como finalidade;
a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus;
b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade;
c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana;
d) o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua história;
e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à comunidade e à família, buscando-se o fortalecimento desta como núcleo natural e fundamental da sociedade, a preparação para o casamento e a preservação do vínculo que o constitui.
f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o reconhecimento da organização sociopolítico-econômica do País;
g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas, com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem comum;
h) o culto da obediência à Lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade.
2 - As bases filosóficas, de que trata o item acima, deverão motivar:
a) a ação nas respectivas disciplinas de todos os titulares do magistério nacional, público ou privado, tendo em vista a formação da consciência do aluno;
b) a prática educativa da moral e do civismo nos estabelecimentos de ensino, através de todas as atividades escolares, inclusive quanto ao desenvolvimento de hábitos democráticos, movimentos de juventude, estudos de problemas brasileiros, atos cívicos, promoções extraescolares e orientação dos pais".
Num discurso contraditório, a defesa do regime ditatorial, e de seus ditames para o cidadão e o povo brasileiro, é formulada a partir de uma justificativa democrática e de uma obrigação pela democracia. Ela se torna a palavra-chave para a definição do governo ditatorial. Autointitulado democrático, sem dúvida. Não por acaso a primeira finalidade da Educação Moral e Cívica é apontada como a defesa do princípio democrático, mas que vem seguido de um discurso que entrelaça culto à Pátria, liberdade com responsabilidade, atividades cívicas, fundamento moral, entre outros aspectos que indicam a limitação dessa democracia. Também no item Educação Cívica Popular do manual didático estudado é identificada a referência à democracia como sendo parte do regime civil-militar, num trecho não menos cáustico:
Mas a grande escola do civismo é a nação, representada pelos seus governantes. Estes devem ensinar a todos o que é democracia, o valor do voto, a responsabilidade de votar bem, a importância de cada um para o desenvolvimento da pátria, os direitos e os deveres de cada cidadão (MICHALANY, 1982, p. 220).
Os direitos e deveres de cada cidadão diziam respeito a um ensino moral, indicando, assim, como o texto assume o caráter de um manual, ensinando a professores e alunos sobre a historicidade da disciplina e suas quatro áreas de abrangência - Educação cívica familiar, escolar, militar e popular -, como também estabelece uma relação dessa Educação com o trabalho. Nesse âmbito, o autor do manual é taxativo:
o trabalho é um grande dever social, exigência imperiosa da sociedade e necessidade vital dela. Ninguém pode viver sem trabalhar, porque o trabalho é a própria razão de ser da vida, um dever. A verdadeira grandeza do homem não consiste em procurar prazeres, ou celebridade, ou honrarias, mas em cumprir o seu dever, trabalhando (MICHALANY, 1982, p. 220).
Nesse ínterim, o comportamento que não se encaixasse nessa lógica do trabalho era imediatamente condenado. Nas palavras do autor: “ninguém mais condenável do que aqueles que não trabalham, por comodismo ou preguiça. Assim, eles estão fugindo às suas obrigações e deveres, tornando-se parasitas voluntários de uma sociedade” (MICHALANY, 1982, p. 220).
Além desse discurso, mais direto e sistemático, sobre o comportamento e disciplina considerada ideal ao cidadão brasileiro, era inserido nas páginas do manual didático outro discurso menos sistemático, apesar de frequente, que se utilizava de imagens e pequenas asseverações que tanto ensinava princípios e valores nacionalistas, como indicava aquilo que era considerado um comportamento indesejado. Como pode ser visto nas imagens abaixo.
Se “uma imagem fala mais que mil palavras”, as figuras abundantemente utilizadas no manual de Douglas Michalany cumpriam um papel estratégico no processo de ensino e aprendizagem.16 As imagens eram utilizadas como tática para informar um discurso mais rapidamente a quem tivesse acesso breve ao manual, além de servir também como reforço dos temas que eram trabalhados ao longo da obra. Em todas elas não há indicação de qualquer possiblidade ou variedade de comportamentos e perfis aceitáveis para os cidadãos brasileiros. Tudo se restringe à exaltação de um comportamento considerado ideal, do nacionalista, exemplar pela obediência a deveres e com sua máxima no cidadão que está nas forças armadas, e outro, que é rigidamente rechaçado, associado a vícios e vida dissoluta, e narrado como fracasso17. Nesse sentido, havia somente um cidadão ideal que, por reprimir violentamente variações e diferenças na formação do caráter e do comportamento do cidadão brasileiro, corria o risco de ser irremediavelmente conservador.
Essa compreensão, contudo, implica numa inquietante reflexão sobre até que ponto poderia chegar a influência das ações do Estado sobre a população, uma vez que essa perspectiva conservadora e autoritária de Brasil, nação, cidadania - ensinada a crianças, adolescentes e jovens nos anos escolares -, provavelmente não desapareceria com o fim da ditadura civil-militar e a realização de votação direta para eleger o presidente da República.
Esse tipo de condicionamento, por outro lado, explica o fato de que muitos brasileiros saíram da ditadura civil-militar dotados de uma compreensão conservadora de mundo que, escondidas as primeiras repreensões dos crimes cometidos naquele período, poderia ressurgir em contextos de afrouxamento das mesmas com os processos de Anistia18, por exemplo. Assim, os recentes apelos pelo retorno da ditadura estão calcados numa doutrinação de que uma nação ideal pode ser constituída através de uma ‘cartilha’ básica de cidadania, como uma simples receita de bolo. E, mais grave ainda, como se a construção do período democrático experimentado após o fim da ditadura fosse dele depositário.
Considerações finais
Todas estas compreensões implicam na inquietante reflexão de até que ponto o período ditatorial no Brasil foi, de fato, entendido pela população escolar como uma experiência democrática. É mister perceber que as ações do Estado sobre a população, através do ensino de História, travestido em Estudos Sociais, contribuiu para forjar uma perspectiva conservadora e autoritária de Brasil, nação e cidadania - ensinada a crianças, adolescentes e jovens em pelo menos três anos escolares durante o regime. Esta compreensão, pelo visto, não desapareceu somente com o fim da ditadura militar e a realização de eleição direta para eleger o presidente da República.
Dessa forma, cada geração, conforme aponta Escolano Benito (2012, p. 37), é identificada, neste sentido, pelos manuais compartilhados, e não apenas isso, mas ensinados a partir de uma definição escolar; ou seja, por um tipo de ensino escolhido para ser propagado. Os escritos e imagens desses textos são construídos como parte do imaginário social de uma geração e a identidade narrativa dos sujeitos que pertencem a ela. Assim, é plausível considerar que o pensamento conservador de extrema direita que solicita, inclusive, o retorno do regime autoritário civil-militar no Brasil, em cartazes, discursos e manifestações desde os movimentos de 2013, mantém uma relação com o ensino e a concepção de História (os Estudos Sociais) ministrados na ditadura. Há entre a população (sobretudo de classe média) os que foram educados nas escolas da ditadura civil-militar, com suas lições de Educação Moral e Cívica, que entendem a experiência da ditadura militar como uma experiência de democracia. E enxergam no retorno aos anos de repressão a volta à construção de uma democracia.
Esse engodo poderá custar muito caro ao Brasil, em sua frágil experiência democrática, se disciplinas como História, e as demais da área de Humanas, continuarem ameaçadas pelo avanço de um pensamento técnico e profissionalizante, projetados no desmantelamento proposto na lei de reforma do Ensino Médio. Ou na banalização do ofício do historiador por youtubers e blogueiros que dão aula de História em vídeos, podcasts e twiter, mesmo não tendo formação para isso.