Introdução1
O início do programa de monitoria tem como base o método monitoral, o qual tem como marco temporal o século XIX - período utilizado para atender um grande número de alunos. Esse método consistia em “utilizar” estudantes, instruídos por um mestre, em atividade de ensino e supervisão de outros estudantes. Embora a ideia de um aluno auxiliando o outro seja centenária, as maneiras, objetivos e níveis de ensino apresentam distinções com o passar dos anos (OLIVEIRA; FERENC, 2020).
É possível observar que a monitoria se insere no contexto dos cursos de formação inicial como uma das oportunidades de atividade a ser desenvolvida pelo estudante. Ela também pode ser considerada de grande relevância para a docência, quando se propõe a auxiliar na construção de conhecimentos próprios para esta profissão (HOMEM, 2014); auxiliar o estudante a se iniciar nesta profissão (NUNES, 2007; BEZERRA, 2012) e favorecer a construção de ambiente de aprendizagem entre monitor e estudantes, com menos tensões (FLORES, 2018).
O objetivo deste artigo é analisar as transformações históricas do programa de monitoria. Para tanto, foram mobilizados dados documentais, desde o ano de 1968, em uma pesquisa desenvolvida no contexto de um programa de pós-graduação em Educação, entre os anos de 2018 e 2020. Algumas questões orientadoras guiaram a reflexão: quais mudanças são apresentadas pelo programa, considerando o tempo passado e presente? O exercício desta atividade era/é considerado como uma possibilidade de aprendizagem da docência? Para compreender tais questões, utilizamos leis, resoluções e regimentos, analisando-os à luz de autores como Hypolitto (2000), Marcelo (2009) e Mizukami et al. (2002).
Procedimentos Metodológicos
No desenvolvimento da pesquisa, iniciamos pela organização temporal dos documentos encontrados, explorando a evolução da atividade de monitoria e o seu tratamento na Universidade desde 1968, mesclando o que a lei ditava e como a Universidade Federal de Viçosa (UFV) a aplicava, por meio de suas resoluções internas. Em seguida, aprofundamos na análise dos regimentos do programa de monitoria na UFV, indicando semelhanças e diferenças entre as primeiras resoluções e a que está em vigor.
Para auxiliar na compreensão das transformações da monitoria, realizamos um levantamento de documentos diversos, como leis, decretos nacionais, resoluções e regimentos da UFV. A análise foi baseada em orientações de Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009) e Cellard (2008). Inspiradas nesses autores, entendemos os documentos em questão como testemunhos da atividade de monitoria. Avaliamos sua credibilidade - a julgar que são textos legais e normativos - e sua representatividade - visto que realizamos uma consulta exaustiva no Arquivo Histórico da UFV e também na rede mundial de computadores, em busca de documentos e, diante disso, inferimos possuir um corpus satisfatório em relação ao que nos propusemos na pesquisa, composto por 6 documentos nacionais e 8 documentos da UFV, cobrindo um período de 51 anos - de 1968 a 2019.
Para estruturar este artigo, optamos por uma breve apresentação temporal dos documentos (quadro 1). Feito isso, analisamos os regimentos do programa de monitoria na UFV e exploramos, nos documentos nacionais e Ufevianos, a presença - ou não - da ideia da monitoria como referência para a docência.
Para tratarmos da monitoria no ensino superior, começaremos pela Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, que fixou normas de organização e funcionamento do ensino superior, um marco, pois é ela que previa a criação da função de monitor (BRASIL, 1968). Em 1969, por meio dos Decretos nº 64.086 e nº 65.610, foram criadas - e a elas delegadas funções - a Comissão Coordenadora de Regime de Tempo Integral e Dedicação Exclusiva (COMCRETIDE) e Comissão Permanente de Regime de Tempo Integral e Dedicação Exclusiva (COPERTIDE) (BRASIL, 1968; 1969a). Tais comissões estavam vinculadas ao programa de implantação do regime de tempo integral e dedicação exclusiva para o magistério superior, o qual tinha como um de seus objetivos a contratação de mil monitores. Cada universidade possuía a sua COPERTIDE e uma de suas funções era examinar a contratação de monitores, a qual, posteriormente, era apreciada pela COMCRETIDE (BRASIL, 1969a).
No ano seguinte, foi publicado o Decreto nº 66.315, de 13 de março de 1970, o qual fixou ao programa de tempo integral dos docentes e ao orçamento disponível, harmonicamente, a COPERTIDE de cada universidade, a qual deveria implantar programas de monitoria, identificando as matérias, os critérios e as normas de seleção. Além disso, esse documento fixou que para atuar na monitoria os alunos deveriam estar nos dois últimos anos do curso, atuar em regime de 30 horas semanais e receber, no ano de 1970, bolsa de NC$ 300,00 cruzeiros novos, providenciados pelo Ministério da Educação (BRASIL, 1970). O Decreto nº 68.771, de 17 de junho de 1971, retirou a exigência de o monitor estar nos últimos dois anos de curso, vetou o estudante repetente a exercer monitoria, diminuiu o tempo de atuação para 12 horas semanais e fixou bolsa no valor de Cr$250,00 cruzeiros (BRASIL, 1971).
Conforme apontamos anteriormente (quadro 1), notamos, na década de 1970, uma produção frequente de documentos, como leis e decretos, em comparação às décadas seguintes. Inferimos que, após a criação da função de monitor, era necessário que os dirigentes pensassem na implantação do programa, seus critérios, remuneração, seleção e avaliação de monitores. Tal frequência vai diminuindo com o passar das décadas, o que pode representar a consolidação das regras referentes à monitoria no ensino superior.
De acordo com Oliven (2002), ainda que nesta época o Brasil vivesse um período de governo militar (de 1964 a 1985), a Lei nº 5.540/1968 trouxe inovações depois de vários anos de penumbra - anos esses em que a reforma universitária era discutida burocraticamente em gabinetes fechados. Em contrapartida, Durhan (1998) afirma que nos anos anteriores a esta lei houve debate público e movimentação dos estudantes. Tal lei configurava-se como um esforço para “acompanhar a tendência mundial de expansão acelerada do ensino superior” (DURHAN, 1998, p. 4) e que trouxe como modificação importante a ideia de uma universidade, pelo menos a pública, dedicada à pesquisa. Porém, a implantação desse modelo encontrou dificuldade, principalmente no que diz respeito à quantidade de professores qualificados para desenvolver a pesquisa - na década de 1990 este modelo estava em crise (DURHAN, 1998).
Dessa maneira, as leis implementadas durante a ditadura buscavam atender ao modelo capitalista vigente e, apesar de expandir o ensino superior e a pós-graduação, colocavam a educação a serviço desse modelo econômico que impunha a ela uma concepção tecnicista, priorizando produtividade, racionalização, fragmentação de conteúdo e focando no “aprender a fazer” (SILVA, 2016; FALLEIROS, PRONKO, OLIVEIRA, 2010). Assim, podemos dizer que tal pedagogia tecnicista orientava a política educacional; seus ecos podem ser percebidos no texto da legislação, como veremos na seção seguinte.
O Decreto nº 85.862, de 1981, atribuiu às instituições de ensino superior fixação de condições para o exercício das funções de monitoria, seguindo o artigo 41 da Lei nº 5.540/1968. O Decreto afirma, da mesma maneira que seus dois predecessores, que a monitoria não acarretava vínculo empregatício e que o Ministério da Educação e Cultura se responsabilizaria pelos seus custos (BRASIL, 1981).
Não localizamos documentos nacionais ou resoluções da UFV que se referiam à monitoria entre os anos de 1981 e 1991. Isso nos leva a inferir que, durante esses dez anos, nenhuma decisão legal de grande impacto foi tomada em relação ao programa de monitoria nas instituições de ensino superior e que a atividade continuou a ser desenvolvida conforme a legislação vigente. Os documentos que regiam a atividade no momento eram, em caráter nacional, o Decreto nº 85.862, de 1981 e a Lei nº 5.540, de 1968; e, localmente (UFV), a Resolução nº 3, de 1971.
Em 1996, com a publicação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº 9.394, dessa vez contemplando a educação nacional em vários níveis e modalidades, fixou-se que os alunos do ensino superior poderiam “ser aproveitados em tarefas de ensino e pesquisa pelas respectivas instituições, exercendo funções de monitoria, de acordo com seu rendimento e seu plano de estudos” (BRASIL, 1996, art. 84º). No entanto, Souza e Silva (1997, p. 22) julgam este artigo que fala sobre a monitoria como “casuísmo desnecessário”, ou seja, uma obediência formal e engenhosa à lei. Os autores sugerem que se tratava de “um artigo de sabor experimental” e que seria mais adequado outra lei que fixasse regime de trabalho nas universidades.
Além da flexibilização, da ampliação do ensino superior e do aumento das instituições privadas (BITTAR; OLIVEIRA; MOROSINI, 2008), a LDB/1996 fixou como uma das formas de avaliação das instituições o percentual de professores com título de mestre e doutor - o que representa uma preocupação com a qualidade do ensino, mas que pode ser problematizado se pensarmos que o mestrado e doutorado têm se preocupado em formar pesquisadores e não professores (PIMENTA; ANASTASIOU, 2005; ALMEIDA, 2012).
No contexto da UFV, seu Estatuto (1999) e Regimento Geral (2000) afirmam que compete ao Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) da instituição o estabelecimento de qualificações, regulamentos para a atividade de monitoria e a seleção de monitores. São os membros do CEPE que deliberam sobre os regulamentos do programa de monitoria na UFV, seguindo a legislação vigente. Foi esse órgão que instituiu e regulamentou, por meio da Resolução nº 13/2018, a Comissão Permanente de Acompanhamento do Ensino de Graduação (COPEG), responsável por receber relatórios de desempenho de monitores encaminhados pelos orientadores, avaliar o programa, além de ter papel relevante no estabelecimento de número de vagas de monitores.
Um dos frutos da COPEG está no processo nº 23114.905405/2019-91, conforme registrado na Ata nº 552/2019 do CEPE, em que se apresenta um conjunto de resoluções específicas para reduzir a reprovação e a evasão na graduação da UFV. Dentre elas está a Resolução nº 16/2018, que altera o programa de monitoria, mas que foi substituída pela Resolução nº 03/2019. Assim, a resolução de 2019 configura-se como uma tentativa da instituição de melhorar o ensino de seus cursos de graduação.
Nos anos de 2003, 2018 e 2019, portanto, foram atualizados os regulamentos da monitoria na UFV. Tais documentos podem auxiliar nesse processo de compreensão da história da monitoria na instituição. Tendo isso em vista, na seção seguinte, eles serão analisados, comparados, em um esforço de se atribuir significados às suas modificações.
Regimentos do programa de monitoria na UFV: terminologias, direitos do monitor e objetivos da atividade
As quatro resoluções sobre o programa de monitoria na UFV foram publicadas no decorrer de quase cinquenta anos. Portanto, é previsível que apresentem mudanças entre si, visto que foram pensadas em contextos históricos diferentes, por comissões compostas por variados sujeitos e assinadas por diversos reitores.
Algumas terminologias foram modificadas, nomenclaturas foram sendo substituídas por outras. A resolução de 2019, por exemplo, substituiu a palavra treinamento (utilizada em resoluções anteriores) por capacitação, direito que só passou a ser explicitado na resolução de 1991. A inclusão do termo treinamento na resolução de 1991 como um dos direitos do monitor pode refletir a gênese de preocupação com a preparação do monitor para exercer tal função. No entanto, este termo reflete um paradigma específico: a racionalidade técnica. De acordo com Diniz-Pereira (2006, 2013, 2014), esse modelo pautado na instrumentalização técnica e alvo de pesquisas, a partir da década de 1970, defendia que o professor seria um aplicador dos conhecimentos científicos, aprendidos em sua formação, na sala de aula, em busca da eficiência. Baseado na racionalidade técnica2, esses professores, ou futuros professores, deveriam ser treinados.
A influência do paradigma da racionalidade técnica no pensamento educacional pode, ainda, ser relacionada aos interesses pró-capitalistas durante a Ditadura Militar (1964-1985). De acordo com Lira (2010), durante o período ditatorial, a educação brasileira, a legislação e a política foram tomadas por uma pedagogia tecnicista, que almejava um processo mecanizado, objetivado e racional. Apesar da ampliação do ensino superior, a política tecnicista inserida nas universidades buscava apenas “formar força de trabalho para o mercado, através de um adestramento pedagógico que atingiu tanto estudantes como educadores (LIRA, 2010, p. 336). A utilização do termo “treinamento” pode ser um dos ecos desse tecnicismo próprio da legislação educacional nesse período em que, enquanto meros executores e reprodutores, o educador teve seu trabalho controlado e seus saberes e iniciativa privados.
Diante do exposto, ainda que o termo treinamento apareça a partir da resolução de 1991 do Programa de Monitoria da UFV, conforme nos explicita Correia (2013), as reformas educacionais da década de 1990 prosseguem favoráveis à agenda capitalista e neoliberal. Thiengo (2018) complementa que a pedagogia tecnicista - ou neotecnicista3 - e a racionalidade técnica estão presentes na atualidade na medida em que a educação se pauta na produtividade, responsabilização, acriticidade, controle e valorização da técnica.
Hypolitto (2000) também nos auxilia no entendimento do uso dessas diferentes terminologias no contexto da monitoria4. Essa autora apresenta, semanticamente, os termos: “reciclagem”, treinamento, aperfeiçoamento, atualização e capacitação. Para ela, o termo “reciclagem” remete a cursos rápidos e descontextualizados, adequando-se mais a objetos e, ainda que tenha surgido na década de 1980, não é utilizado em nenhuma das resoluções. Para Garcia (1999apudHobold, 2018), o termo representa algo mais pontual, focando em um conteúdo e/ou disciplina específicos; a “reciclagem”5 é um dos aspectos do aperfeiçoamento docente.
Por sua vez, o termo aperfeiçoamento quer dizer tornar algo completo, perfeito - algo impossível. Já a palavra atualização significa tornar algo atual, por meio de cursos que tratem de técnicas e métodos, por exemplo (HYPOLITTO, 2000). O termo treinar remete à repetição, à ideia de fazer com que o outro seja apto a, por exemplo, desenvolver uma atividade muscular. Conforme pontua Imbernón (2016)6, o modelo de formação baseado em treinamento era visto como padronizado e teórico, não valorizando a prática e focando em desenvolver habilidades que levassem a resultados esperados. Por sua vez, o termo capacitação significa ações que busquem promover qualificação, não apenas técnica, mas de mudança de prática (FUSARI, 1988; HYPOLITTO, 2000).
Podemos nos apoiar, ainda, nas referências legais no campo da educação para compreender a mudança do termo treinamento para capacitação nas resoluções de monitoria da UFV. A Lei nº 9.394/1996, por exemplo, utiliza o termo capacitação, ao se referir à formação docente - embora utilize o termo treinamento ao tratar, em suas disposições transitórias, da admissão de professores “habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço” (BRASIL, 1996, Art. 87, § 4º).
As resoluções sobre a monitoria deixam implícito em que momento essa capacitação do monitor acontece, quem a oferece, como se organiza e quais conteúdos aborda. Caso aconteça enquanto os monitores já atuam, deparamo-nos com a possibilidade de outro termo, cuja utilização pode ser relevante nesse contexto, desde que adaptada. Esse é o termo desenvolvimento profissional, que remete à evolução e continuidade, pressupondo “caráter contextual, organizacional e orientado para a mudança” (GARCIA, 1999, p. 137).
Assim, o desenvolvimento profissional vai envolver alguém que aprende conhecimentos, ações e competências ligados a um contexto real e concreto, adequando-se à ideia de evolução e continuidade do processo individual e coletivo de formação docente (GARCIA, 1999; MARCELO, 2009).
Portanto, inferimos que o termo capacitação, utilizado na resolução de 2019, é adequado ao contexto atual e exprime a ideia de qualificação técnica e crítica. No entanto, a explicitação de aspectos desta capacitação nas resoluções poderia auxiliar a nossa reflexão sobre outros termos, como é o caso do desenvolvimento profissional.
Outra substituição relevante em termos de nomenclatura, que podemos observar na resolução de 2019, é a troca da palavra aluno pela palavra estudante, embora em alguns artigos do documento a palavra aluno ainda seja utilizada. Ao contrário do que difunde o senso comum, a palavra aluno não quer dizer aquele sem luz. Essa palavra tem sua origem no latim alumnu, que significa “criança de peito, lactente, menino, aluno, discípulo” (HOUAISS, VILLAR, FRANCO, 2009, p. 106). O significado da palavra remete àquela pessoa que recebe instrução, educação, que tem pouco conhecimento sobre determinado conteúdo (HOUAISS, VILLAR, FRANCO, 2009; FERREIRA, 1986).
Já o termo estudante refere-se àquela pessoa que frequenta algum curso regularmente, por meio do qual adquire habilidades e conhecimentos. Sua etimologia nos revela que se trata da junção do termo estudar com o sufixo “-nte” (HOUAISS, VILLAR, FRANCO, 2009), ou seja, o agente do processo de estudar, que pratica a ação do estudo (HOUAISS, VILLAR, FRANCO, 2009; PORTAL SÃO FRANCISCO, s./d.).
No entanto, para entender a utilização de tais terminologias, precisamos ir além de sua etimologia. Chervel (1990), ao refletir sobre a história das disciplinas escolares, traz considerações relevantes sobre a utilização do termo aluno. Para o autor em questão, no ensino primário e secundário era necessário não apenas ensinar aos alunos os conteúdos das disciplinas, mas transmitir a eles a cultura. No entanto, no ensino superior, cujo intuito seria transmissão direta de um saber sem a necessidade de adaptar esse conteúdo à faixa etária do sujeito, “o que se solicita ao aluno é ‘estudar’ esta matéria para dominá-la e assimilá-la: é um ‘estudante’” (CHERVEL, 1990, p. 185).
Além dos termos citados anteriormente, outro que figura nas resoluções é o termo discente, que remete ao ato de estudar, saber, aprender, sendo o antônimo de docente (HOUAISS, VILLAR, FRANCO, 2009; FERREIRA, 1986) - termo também bastante utilizado no contexto acadêmico (HOUAISS, VILLAR, FRANCO, 2009).
Como pudemos observar, as diferentes terminologias utilizadas para representar aqueles sujeitos que frequentam o ensino superior remetem ao aprender, construir conhecimentos. Embora possam ser considerados sinônimos, os termos encontrados nas resoluções sobre a monitoria: aluno, estudante e discente remetem a significados diferentes, evocando, ou não, a passividade do sujeito matriculado em um curso do ensino superior.
Além das transformações nas terminologias, outro aspecto que percebemos nas resoluções do programa de monitoria da UFV diz respeito às mudanças nos direitos do monitor, como: a comprovação de atuação na monitoria; direito à bolsa - exceto os monitores voluntários, acrescentados na resolução de 2019; horário para planejamento e exercício da monitoria; além de capacitação para realizar a monitoria. Todos esses direitos são garantidos desde a resolução de 1991. Já a resolução de 1971 explicita apenas dois destes direitos: recebimento de bolsa e certificado de exercício, sendo o último apontado como título para posterior ingresso na carreira docente no ensino superior.
Outra transformação de destaque nos regimentos da monitoria na UFV é, sem dúvida, referente aos objetivos da monitoria. Estes são explicitados na resolução do programa de monitoria da UFV pela primeira vez na resolução de 19917 e mantiveram-se os mesmos na resolução de 2003. Porém, tais objetivos foram consideravelmente modificados na resolução de 2019, como podemos verificar no quadro 2, a seguir.
Objetivos na resolução nº 5/2003 | Objetivos na resolução nº 3/2019 |
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I - melhorar o nível de aprendizado dos alunos, promovendo contato mais estreito entre discentes e docentes e com o conteúdo das matérias da(s) disciplina(s) envolvida(s); II - propiciar ao monitor a oportunidade de enriquecimento didático-científico, capacitando-o a desenvolver melhor as atividades de ensino, pesquisa e extensão; III - propiciar ao monitor a oportunidade de desenvolvimento científico e cultural; permitindo-lhe ampliar a convivência com pessoas de interesses diversificados; IV - tornar a monitoria parte integrante do processo educativo dos estudantes que a exerce. |
I - elevar o nível de aprendizado dos estudantes de graduação; II - reduzir as taxas de reprovação em disciplinas e de evasão do curso, da instituição e do sistema de educação superior; III - propiciar ao monitor formação didático-científico e capacitá-lo à docência. |
Fonte: Resoluções sobre o programa de monitoria da UFV (UFV, 2003; 2019).
Pode-se notar que alguns termos foram modificados; por exemplo: a palavra melhorar foi substituída por elevar e o termo alunos foi substituído por estudantes - conforme já apontado anteriormente neste artigo. Alguns termos foram suprimidos, como a promoção de “contato mais estreito entre discentes e docentes e com o conteúdo das matérias da(s) disciplina(s) envolvida(s)” (UFV, 2013, art. 1º), bem como a oportunidade de desenvolvimento cultural e convivência com pessoas com diferentes interesses. Outros termos foram acrescentados: a possibilidade de redução de taxas de reprovação e evasão por meio da monitoria e a capacitação do monitor para a docência.
De acordo com a Ata nº 552/2019 do CEPE, o programa de monitoria faz parte de uma das ações para reter a reprovação e evasão nos cursos de graduação da UFV, o que fica explícito como um de seus objetivos na resolução de 2019. A preocupação da administração superior da instituição com melhorias no ensino da graduação, com o auxílio da monitoria, fica, atualmente, explícita na resolução de 2019. Quanto à capacitação para a docência por meio da monitoria, trataremos dos aspectos diretamente relacionados a este assunto na próxima seção deste artigo.
De acordo com estudo comparativo entre os objetivos da monitoria, realizado por Oliveira e Ferenc (2020), utilizando regulamentos dos programas de monitoria em 10 instituições de Minas Gerais, dentre elas a UFV, nota-se que a iniciação à docência e o contato e cooperação entre docentes e discentes têm sido aspectos relevantes e contemplados nestes objetivos. Outros aspectos figuram nos objetivos, dentre eles: suporte às atividades acadêmicas, buscando a melhoria na aprendizagem; enriquecimento do monitor, seja no ensino, pesquisa e extensão, em aspectos culturais, técnicos e científicos ou em atitudes de responsabilidade e liderança; e cooperação entre os discentes (OLIVEIRA; FERENC, 2020).
Nesse contexto, a UFV se encontra alinhada às demais universidades, levando em consideração a importância da iniciação à docência - na perspectiva do monitor - e a melhoria da aprendizagem - na perspectiva daqueles que frequentam a monitoria.
A aprendizagem da docência nos documentos que regem a monitoria no ensino superior
A aprendizagem da docência tem sido objeto de pesquisas desde a década de 1980, (MIZUKAMI et al., 2002). Aprender a ser professor envolve conteúdos, metodologias, habilidades e pode acontecer por meio de exemplos de outros professores, por leituras, teorias ou experiência, por meio da reflexão (FERENC, 2005; SARAIVA, 2005; NEVES, 2014). Nesse sentido, analisamos se os documentos que fixavam ou fixam normas e regulamentos sobre a monitoria explicitavam/explicitam relação entre o exercício desta atividade e a possibilidade de aprender a ser professor.
Tomando como ponto de partida a Lei nº 5.540, de novembro de 1968, que fixava normas de organização e funcionamento do ensino superior brasileiro, observamos que no documento se afirmava que os estudantes de graduação que demonstrassem capacidade poderiam exercer a função de monitor e que tal exercício seria considerado título para ingressar na carreira de magistério. A resolução nº 4/71 da Coordenação de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFV, que regulamentava as atividades de monitoria da instituição, também trazia que o exercício da função de monitor seria considerado título para ingresso na docência (ou outras atividades profissionais), o que pode demonstrar a valorização da monitoria como uma experiência relevante ao exercício futuro da docência.
Um dos indícios de que a monitoria tem relação com a carreira docente pode ser notado pelo fato de que, ao examinar as funções da COPERTIDE, que incluíam estabelecer normas para o estágio probatório, fiscalizar atividades dos professores e avaliá-los, examinar a conveniência da extensão ou suspensão da dedicação exclusiva de docente, também se encontrava contratar estudantes monitores (BRASIL,1969a, 1969b). Assim, os Departamentos poderiam levantar a carga de trabalho dos professores e, diante desta, solicitar monitores. Inferimos que, ao estabelecer que uma Comissão sobre carreira docente tenha decisões que envolvam a monitoria, admite-se uma estreita relação entre essas atividades.
O Decreto nº 66.315 de 1970 fixava que os monitores seriam aqueles que demonstrassem conhecimento da matéria e capacidade de auxiliar o professor em “aulas, pesquisas e outras atividades técnico-didáticas” (BRASIL, 1970, Artº 1º). Afirmava que os programas de monitoria deveriam acontecer nas áreas prioritárias da saúde, tecnologia e formação de professores para atuação no nível médio. Portanto, inferimos que a monitoria tinha relação com a docência no ensino superior, uma vez que era estabelecido que o monitor auxiliasse nas atividades docentes da universidade e estabelecesse uma ligação com o nível médio.
Além disso, a ideia de monitoria como um “despertar o gosto pela carreira docente e pela pesquisa” aparece explicitamente na resolução nº 2 de 1971 (COMCRETIDE, 1971, item 1.1), que fixava critérios para implantação do programa nas instituições de ensino superior. Atualmente, no contexto da UFV, o regulamento da monitoria explicita como objetivo, em relação aos monitores, “capacitá-los para a docência” (UFV, 2019, Art. 1º).
Já no regulamento anterior, de 1991, um dos objetivos era capacitar o monitor a desenvolver atividades de ensino, pesquisa e extensão (UFV, 1991). Observamos, assim, que este documento não remetia, ainda, a uma ligação explícita entre docência e monitoria, o que foi modificado em seu sucessor, a resolução de 2019, em que deliberadamente opta-se por expor a palavra “docência”.
Ainda que, atualmente, os objetivos da atividade de monitoria na UFV foquem mais na perspectiva do estudante que frequenta a monitoria - melhoria do aprendizado, diminuição da evasão e reprovação - leva-se em consideração a perspectiva daquele que exerce a atividade, ou seja, as vantagens para o monitor, em forma de uma capacitação para exercer a docência. Percebemos uma via de mão dupla nos caminhos da monitoria, sendo essa uma atividade de apoio ao ensino da graduação e uma possibilidade formativa para o monitor.
Nota-se, portanto, que alguns documentos que tratam da monitoria a consideram, desde a criação da função de monitor, uma atividade que pode possibilitar a aprendizagem da docência. Mas o que os estudiosos, para os quais esse tema é objeto de estudo, têm realizado de achados científicos sobre sua relação com a docência?
De acordo com estudo realizado por Homem (2014)8, a atividade do estudante de exercer a função de monitor pode gerar “diversas possibilidades de aprendizagem para a sua formação como discentes de modo geral, e como futuros docentes em particular” (HOMEM, 2014, p. 137). Os sujeitos que participaram da pesquisa de Homem (2014) evidenciaram os saberes necessários ao professor, que foram construídos durante sua atuação como monitores, tais como ampliar os conhecimentos sobre a disciplina, auxiliar na preparação de atividades didáticas, planejar, buscar estratégias para sanar dúvidas. Além disso, a monitoria também envolve interações entre alunos e entre o professor e o aluno - aspecto este também presente na vida docente (HOMEM, 2014).
Medeiros (2018)9 reforça as contribuições da monitoria ao afirmar que esta pode contribuir para a construção de saberes que envolvem o planejamento, execução e avaliação, aprofundamento no conteúdo da disciplina, socialização de conhecimento em eventos, bem como a vivência com outros alunos e professor orientador. Para além da docência do ensino superior, a monitoria pode contribuir para a formação do professor em outros níveis de ensino (MEDEIROS, 2018).
No entanto, ainda que a monitoria seja vista pelas instituições como uma atividade capaz de promover a identificação com a carreira docente, algumas destas têm reproduzido ideias questionáveis, como é o caso apontado por Oliveira e Ferenc (2020), de dois sites institucionais, que citam o despertar para a “vocação” à docência e a oportunidade de trabalhar como docente.
Conforme apontam as autoras, a compreensão da docência como vocação data do século XVI, quando não era necessária uma formação para exercer a atividade (NÓVOA, 1992; TEDESCO; FANFANI, 2004; TARDIF, 2013). Já quanto à ideia da monitoria como trabalho, as autoras inferem que seria mais adequado pensá-la como oportunidade de aprender a ser professor, visto que a docência passou a ser vista como um ofício para o qual é necessária uma formação específica, ainda no século XIX (NÓVOA, 1992; TARDIF, 2013; OLIVEIRA; FERENC, 2020).
Além disso, mesmo que os regimentos sinalizem para a possibilidade de aprendizagem da docência, o programa de monitoria vai muito além do que está estabelecido em documentos. Neves e Ferenc (2016), ao investigarem estudantes participantes do Programa de Iniciação à Docência (PIBID), apontam para as divergências que podem acontecer entre proposições contidas em um projeto e ações realizadas na prática. Essas modificações são esperadas em virtude de influências temporais, contextuais e pessoais. Neste sentido, as autoras trazem aspectos que podem impactar a implementação de um projeto, como imprevisibilidade da prática cotidiana, demandas impostas aos estudantes no dia a dia, necessidade de maior orientação daqueles envolvidos no processo, caráter relacional das atividades e dependência dos estudantes às autoridades a que eles se submetem. Elas constataram em sua pesquisa que a aprendizagem da docência pode acontecer, ainda que haja modificações entre o que está posto no projeto e as ações que de fato são implementadas (NEVES; FERENC, 2016).
Considerações finais
A realização da pesquisa documental nos permitiu compreender a trajetória do programa de monitoria, desde suas origens, com o método monitoral, até como o conhecemos, atualmente, nas instituições de ensino superior. Percebemos que houve, ao longo do percurso histórico, algumas transformações, semelhanças e diferenças, como é o caso do nível de escolaridade atendido.
No que diz respeito aos regulamentos do programa de monitoria na UFV, percebemos a modificação de determinadas terminologias, como é o caso da substituição do termo treinamento por capacitação e aluno por estudante, o que pode significar a influência de determinados paradigmas da formação docente, bem como de modelos políticos e econômicos - a exemplo de ideais capitalistas que figuram a partir da Ditadura Militar e que permeiam a educação até os dias de hoje. No entanto, a substituição dos termos com o passar das décadas pode também significar um esforço daqueles que pensam tais documentos na valorização de uma postura mais ativa e crítica dos sujeitos envolvidos na monitoria.
Quanto aos objetivos da atividade, vimos que o método monitoral foi criado para atender um grande número de alunos, auxiliar no progresso destes e no trabalho dos professores. No entanto, a monitoria no ensino superior tem apresentado, regimentalmente, diferentes finalidades, dentre elas a diminuição da evasão e reprovação, o auxílio na relação entre estudantes e entre professor e estudante, bem como a aprendizagem da docência.
Por meio da pesquisa documental e bibliográfica realizada para este trabalho, foi possível observar que a monitoria no ensino superior tem sido, regimentalmente, considerada uma atividade que possibilita a aprendizagem da docência. Autores que se dedicaram ao estudo da monitoria, principalmente os que foram mencionados neste trabalho - em especial os apresentados na seção anterior - corroboram essa possibilidade, ao afirmarem que a monitoria, na prática, tem auxiliado os estudantes monitores a construírem saberes necessários à profissão docente.