Introdução
A educação, em seu conceito mais abrangente e histórico, pode ser entendida como o processo de aculturação e aprendizagem dos sujeitos no mundo. Isto é, educar consiste na mais fundamental atividade social humana, em que os mais velhos transmitirem aos mais novos conhecimentos necessários para lidar com a realidade, para se conhecerem e para conhecerem sua condição nessa realidade (FREIRE, 1996; 2008). Sem isso, seria inviável a nossa existência como sujeitos pertencentes a uma sociedade humana.
Por muitos séculos coube exclusivamente a própria família (ou grupo de convivência) educar suas crianças e adolescentes. Porém, a partir do século XXI, ao menos no ocidente, o papel da educação foi aos poucos sendo transferido estruturalmente das famílias para as organizações. Essas organizações, enviesadas por um ideal de que as crianças deveriam ter acesso universal e gratuito a educação, se consolidaram na forma das escolas as quais conhecemos na contemporaneidade. Com o tempo, essas escolas passaram para a tutela dos Estados, e foram agrupadas na forma de um sistema de ensino formal público. (SAVIANI, 2013; BRESSAN; 2013)
Em conjunto com esse processo de desenvolvimento dos sistemas de ensino, surgiram muitas perspectivas teóricas que abordaram como o contexto socioeconômico dos alunos influencia, ou até mesmo determina, o nível de aprendizagem que a escola é capaz de fornecer. Em outras palavras, essas teorias, de um modo geral, visam explicar como o desempenho dos estudantes se relaciona com fatores socioeconômicos dos estudantes. Essas abordagens podem ser classificadas em dois grandes grupos: uma corrente pessimista e outra otimista.
Do lado dos pessimistas, Bourdieu e Passerson (1975) propuseram a ideia de que o papel da escola seria apenas o de perpetuar a estrutura de classe vigente. Por sua vez, o estudo de Coleman (1966) foi interpretado como uma revelação de que a escola seria incapaz de transpor as barreias socioeconômicas.
Contra a corrente pessimista, a teoria do efeito escola passou a contar com pesquisadores que trouxeram um olhar positivo sobre o papel da escola. Observando o desempenho das escolas e contextualizando-as pelos seus fatores socioeconômicos, mesmo entendendo que esses fatores tivessem grande impacto sobre o ensino, os teóricos do efeito escola sinalizaram que somente por meio de uma educação de qualidade seria possível transpor os problemas sociais (HANUSHEK, 1986; MENEZES, 2018; MENEZES, MORAES e DIAS, 2020). Ainda do lado dos otimistas, temos o professor Paulo Freire, com sua proposta crítico-social dos conteúdos, que defende um ativismo pedagógico emancipador.
Colocando-se do lado das propostas otimistas, este artigo tem como objetivo defender a possibilidade de que as escolas atuais como organizações capazes de transmitir os conhecimentos necessários para que os indivíduos exerçam com primazia as competências necessárias para uma vida adulta plena e emancipada. Para isso, trazemos nesse texto a discussão, na forma de um diálogo histórico-teórico, de algumas das principais construções teóricas surgidas a partir da década de 1960 sobre o efeito escola, contextualizando o debate com a realidade educacional brasileira.
Quatro autores são colocados de lado opostos nesse debate. De um lado, confrontamos os estudos de Coleman com os de Hanushek, dois pesquisadores seminais que abordam de forma quantitativa o efeito escola, utilizando este último para defesa do efeito escola, a partir dos apontamentos sobre os problemas da abordagem utilizada pelo primeiro. Na sequência, rivalizamos as concepções sociológicas da escola por meio do otimismo freiriano para confrontar o pessimismo engendrado pelas teorias reproducionistas, principalmente, as concepções propostas por Bourdieu.
Em defesa de um olhar otimista sobre as organizações escolares
A escola, entendida do ponto de vista organizacional, consiste num conjunto de pessoas e recursos organizados para um fim comum, sendo, assim, um dos campos a que se dedicam os pesquisadores das ciências das organizações (MISOCZKY e MORAES, 2011). Entretanto, ressalta-se que a escola não é meramente uma simples organização, a ela pode ser impelido diversos papeis. De fato, poderíamos até, afirmar que a escola é a mais importante das organizações, pois cabe a ela preparar para o mundo da vida, desenvolvendo competências e gerando reflexividade sobre ações presentes e futuras (GULLAR, 1983; SAVIANI, 2013; PARO, 2017; FREIRE, 2008; DA SILVA e MESQUIDA, 2022)
Especificamente, aos estudos organizacionais cabem a análise da eficiência, eficácia e efetividade das práticas organizacionais que ocorrem na escola (MORAES et al., 2020), sem se adentrarem no campo das ciências pedagógicas - “o campo do conhecimento que se ocupa do estudo sistemático da educação” (LIBÂNEO, 2001, p. 6). Isso se dá principalmente pela investigação da utilização correta dos recursos disponíveis e pela aplicação de práticas organizacionais de alto nível (LEITHWOOD, 2009; DAY et al., 2011a; DAY et al., 2011b; DAY et al., 2016).
Ocorre que nem sempre esse entendimento foi aceito, pois os primeiros grandes estudos que se debruçaram a entender a relação entre a escola e o desempenho dos estudantes chegaram a conclusões fáticas de que a escola seria incapaz de transpor as barreiras socioeconômicas. Ou seja, essas propostas teóricas pessimistas afirmavam que independentemente da qualidade do serviço educacional ofertado, um determinado aluno teria o mesmo desempenho. Pois, de fato, o que seria capaz de determinar o desempenho do estudante seria apenas sua conjectura socioeconômica (COLEMAN, 1966; BOURDIEU e PASSERON, 1975, 2012; BOURDIEU, 1989, 1998, 2005, 2007). Em linhas gerais, seria a escola, então, sem efeito e determinada pela sociedade, como ilustrado na Figura 8.
Essa idealização pessimista da escola foi fortemente defendida nos Estados Unidos por teóricos do campo da economia e da administração, tendo o estudo de Coleman (1966) papel central no fomento a essa concepção. Coleman (1966) elaborou um relatório que fora encomendado pelo governo dos Estados Unidos, com o objetivo de investigar as desigualdades do sistema de ensino daquele país. Os principais achados do relatório tiveram significativa repercussão, pois concluiu-se que os recursos aplicados na escola tinham poucos efeitos sobre o desempenho escolar. Por outro lado, o fator que mais explicaria os resultados alcançados pelos estudantes era determinado pelas características socioeconômicas das famílias a que pertenciam esses alunos (COLEMAN, 1966; SALEJ; 2005; SILVA, 2021).
De fato, o relatório de Coleman (1966) foi de grande importância para o campo. Indo muito além dos estudos anteriores, Coleman correlacionou as características da escola, dos estudantes e seus familiares com o desempenho acadêmico dos alunos. Assim, variáveis que antes costumavam ser ignoradas - como o nível educacional dos pais, atenção dos pais aos alunos, tempo gasto com lições de casa - foram consideradas no modelo que avaliou os preditores de desempenho estudantil (KANTOR e LOWE, 2017). Nesse sentido, a grande contribuição de Coleman (1996) foi enfatizar a questão socioeconômica dos alunos como algo que tem significativa importância. Em outros termos, após os achados do seu estudo, ficou praticamente impossível analisar o desempenho educacional, sem considerar o contexto em que se estão inseridos a escola e os alunos (DOWNEY e CONDRON, 2016; KANTOR e LOWE, 2017).
Apesar de o principal achado do estudo de Coleman (1966) ter sido a afirmação do alto impacto que os fatores socioeconômicos tinham sobre o desempenho estudantil, seu relatório trazia uma inúmera série de questões relacionadas a escola que seriam capazes de fazer a diferença. Entre elas, a qualidade do corpo docente, que foi apontada pelo pesquisador como a principal característica intraescolar capaz de afetar significativamente o aprendizado. Porém, esses achados e outros que enfatizavam que a escola tinha certa importância foram praticamente ignorados pelos interpretes do meio acadêmico (HOXBY, 2016; KANTOR e LOWE, 2017).
Ao que tudo indica, Coleman, que foi um dos maiores pesquisadores contemporâneos e que realizou a segunda maior pesquisa do campo de todos os tempos, foi vítima de uma má interpretação. Ou melhor, teve seu estudo interpretado tendenciosamente por aqueles que rogam pelo pessimismo. A principal ideia que lhe é atribuída - “a de que o financiamento escolar não importa para o desempenho” - jamais foi dita por Coleman (CHICAGO, 1995). Leitura interessante aos admiradores do pesquisador, o título do seu obituário no jornal Washington Post, expressa com clareza esse sentimento: “Coleman, um pesquisador que não foi entendido” (CHICAGO, 1995).
Alguns anos após o estudo de Coleman, mais precisamente no início dos anos de 1980, do outro lado do oceano atlântico, dá-se, mais uma vez, agora no campo da sociologia, um grande reforço ao pensamento pessimista no campo educacional. Surge, nesse espaço-tempo, um conjunto de pesquisas que vão se consolidar sob a égide de uma teoria que passa a ser denominada de teoria crítico-reprodutivista. Essa proposta teórica, franco-europeia, tem como ideia central o pessimismo pedagógico, ou pessimismo ingênuo da educação (FREITAS, 1995; CORTELLA, 1998; SAVIANI, 2020).
Semelhante a interpretação de que a escola não tem importância atribuída a Coleman (1966), para os crítico-reprodutivistas a escola apenas reproduz as desigualdades do meio à qual pertence (DA SILVA NETO e SAVIANI, 2021). Três teóricos crítico-reprodutivistas ganharam notoriedade com a defesa dessa ideia: Baudelot e R. Establet, com a Teoria da escola dualista; Althusser, com a teoria da escola enquanto aparelho ideológico; e Bourdieu e Passeron, com a teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica (SAVIANI, 2020).
Em linhas gerais, a teoria da escola dualista tem como principal obra o livro intitulado L´École Capitaliste, de 1971, dos franceses C. Baudelot e R. Establet. Seu pensamento dialético negativo tem como pressuposto que existem duas escolas, uma para os burgueses e outra para os proletariados, por isso, a advento de seu nome dual. Nesse sentido, o papel da escola é o de reproduzir as desigualdades sociais por meio de fornecimento de conteúdos curriculares que privilegiam a classe burguesa em detrimento dos proletariados (BAUDELOT e ESTABLET, 1971, 1975). No Brasil, segundo Saviani (2020), o caráter dualista da escola, supostamente, pode ser observado a partir do momento em que o ensino para os pobres é orientado para a formação da mão de obra, enquanto os ricos recebem um conteúdo que preserva a abstração e voltado para a cultura superior.
Em análise aos currículos escolares, para tentar reafirmar sua tese sobre o caráter dualista das escolas, Gadotti (2016) apresenta que as disciplinas voltadas para a linguagem são um dos exemplos dos aparatos de reprodução das desigualdades, pois, para ele, os currículos tendem a ensinar a língua formal, que é burguesa, ao invés de ensinar a linguagem informal, do proletariado, como cita o autor “A linguagem desempenha um papel importante na divisão e na discriminação. São os alunos das classes populares que têm maiores problemas na leitura e escrita, logo na primeira série. A escola reforça apenas a linguagem burguesa, a norma culta, desconsiderando as práticas linguísticas das crianças e pobres.” (GADOTTI, 2016 p. 190).
De origem também francesa, a teoria da escola enquanto aparelho ideológico de Althusser defende que o Estado constitui a escola como meramente um instrumento de dominação das forças dominantes, isto é, da burguesia (ALTHUSSER, 1970, p. 21). Nesse sentido, o teórico afirma que
Ora, o que se aprende na Escola? Vai-se mais ou menos longe nos estudos, mas de qualquer maneira, aprende-se a ler, a escrever, a contar; portanto algumas técnicas, e ainda muito mais coisas, inclusive elementos (que podem ser rudimentares ou pelo contrário aprofundados) de cultura cientifica ou literária diretamente utilizáveis nos diferentes lugares da produção (uma instrução para os operários, outra para os técnicos, uma terceira para os engenheiros, uma outra para os quadros superiores, etc.). Aprendem-se, portanto, saberes práticos. (ALTHUSSER, 1970, p. 21)
Para Althusser (1970) a escola é o espaço que oprime e legitima as classes dominantes por meio do ensino, consequentemente, ampliando as desigualdades sociais. Cabendo aos professores, papel central nesse processo de opressão, como destaca “a maioria não têm sequer o vislumbre de dúvida quanto ao trabalho que o sistema (que ultrapassa e esmaga) os obriga a fazer, pior, dedicam-se inteiramente e em toda a consciência à realização desse trabalho” (ALTHUSSER, 1970, p.67-68)
No Brasil, as ideias críticas-reprodutivistas vieram a ganhar força e notoriedade a partir dos estudos de Bourdieu e Passeron, a partir de 1990 (MICELI, 2021). Para os autores, o papel da escola é o de reproduzir as desigualdades sociais, através da reprodução cultural. Isso ocorre, pois a escola é entendida por eles como um dos “fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural” (BOURDIEU e PASSERON 2012, p. 45).
Como afirma Menezes (2018, p. 24), para Bourdieu “o papel da escola é legitimar o processo de eliminação das crianças das classes mais desfavorecidas providenciando o caráter da meritocracia aos não eliminados das classes mais favorecidas, garantindo, assim, a “reprodução” do que está socialmente posto e definido”. Saviani (1999), também, traça linhas gerais sobre o pensamento de Bourdieu e as escolas brasileiras, afirmando que
Os grupos ou classes dominadas são marginalizados socialmente porque não possuem força material (capital econômico) e marginalizados culturalmente porque não possuem força simbólica (capital cultural). E a educação não é um elemento de superação da marginalidade, mas seu reforçador. O que se julga ser um fracasso é, em princípio, o êxito da escola, em virtude do que se julga uma disfunção, uma patologia, etc. é a função própria da escola. Daí o caráter segregador e marginalizador da escola. (SAVIANI, 1999, p. 32)
Nessa perspectiva, os professores têm papel de destaque, pois, por possuírem alto grau de notoriedade, são tidos por Bourdieu e Passeron como os operadores de uma farsa estruturada na forma de um sistema de ensino, que nas palavras dos autores, “os docentes constituem os produtos mais acabados do sistema de reprodução” (BOURDIEU e PASSERON, 2012, p. 206). Detalhando essa visão, é afirmado que
É neste sentido que se estabelece uma relação tácita entre o professor e a instituição que o mesmo representa: a instituição só existe enquanto agente social pelas práticas de seus profissionais (APs), ao mesmo tempo tais profissionais retiram da instituição o que necessitam para assegurar sua posição social: Concedendo ao docente o direto e o poder de desviar em proveito de sua pessoa a autoridade da instituição, o sistema escolar assegura-se o mais seguro meio de obter do funcionário que ele coloque todos os recursos e todo seu selo pessoal a serviço da instituição e, por isso, da função social da instituição (BOURDIEU e PASSERON, 2012, p.159).
De certo modo, o que se observa nas teorias crítico-reprodutivistas é uma dialética negativa, sem apresentarem, porém, uma proposta pedagógica para os problemas por elas elencados. De fato, esses teóricos pessimistas constroem uma teoria determinística da educação, cabendo então aos pesquisadores a tarefa de apenas observar a tragédia do ensino e tecer críticas a ela. Como destacado,
a angústia torna-se maior nos professores pelo fato de ser a escola uma instituição que atende diretamente aos requisitos da dominação, produzindo e reforçando as diferenças ao invés de promover a igualdade e a liberdade prometida. Nesse sentido, os professores, imbuídos inicialmente de um sentimento de mudança e transformação social, inquietam-se perante o desmascaramento da realidade, questionando sobre o que resta a fazer se a escola contribui eficazmente para a reprodução desse sistema. Crescem o descontentamento e a inquietação no exercício da compreensão dos esquemas de dominação e reprodução; porém, seguidamente, a acomodação apresenta-se como única realidade possível, distanciando-se assim as possibilidades de contestação e transformação dos esquemas sociais estabelecidos. (ALMEIDA, 2005, p. 140)
Nesse sentido, Snyders (1977, p. 287), sabiamente, descreve as consequências das teorias críticas-reprodutivistas: “ou Bourdieu e Passeron ou a luta de classes”.
Curioso ao fato e merecedor de destaque é que as teorias crítico-reprodutivistas costumam, em certo grau, serem usadas em conjunto com pensamento de Marx. Porém, as suas acepções contrapõem-se, significativamente, até mesmo a noção mais básica do pensamento marxista. Isto é, enquanto o pensamento crítico negativo que constituem essas teorias limita-se ao mundo das ideias, Marx sempre defendeu que somente através da prática que os indivíduos podem se libertar do processo de opressão. Nas suas próprias palavras:
A revolução, e não a crítica é a verdadeira força motriz da história, da religião, da filosofia e de qualquer outra teoria. Esta concepção mostra que o fim da história não se acaba resolvendo em “consciência de si”, como “espírito do espírito”, mas sim que a cada estágio são dados um resultado material, uma soma de forças produtivas, uma relação com a natureza e entre os indivíduos, criados historicamente e transmitidos a cada geração por aquela que a precede, uma massa de forças produtivas, de capitais e de circunstâncias, que, por um lado, são bastante modificadas pela nova geração, mas que, por outro lado, ditam a ela suas próprias condições de existência e lhe imprimem um determinado desenvolvimento, um caráter especifico; por conseguinte as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias (ENGELS e MARX, 2001, p. 36)
Em suma, nestas visões pessimistas da escola, ainda bastante defendidas no Brasil, o nível socioeconômico da família influenciaria de forma fatal na aprendizagem, independentemente do tipo de ensino ofertado pela própria escola. O apego ao inatismo em todas as suas formas, existente no meio acadêmico (DIAS e BALOG, 2021), pode explicar o motivo de que esse pensamento ainda permanece vivo no espaço acadêmico brasileiro. De um modo geral, muitos pesquisadores adotam a concepção de que basta criticar o mundo para que tudo, num passe de mágica, se solucione (DELEUZE, 1992; CAVALCANTI e ALCADIPAN, 2011). Nesse sentido, infere-se que para eles é melhor que a escola continue, assim, ruim - pois, desse modo, terão sempre o que criticar.
O trabalho de Moraes, Menezes e Dias (2019) revela, após uma análise aprofundada do sistema de ensino público brasileiro, que a perspectiva crítico-reprodutivista não se verifica verdadeira ao tentar explicar os problemas do sistema de ensino brasileiro. Pois a maior parte dos problemas decorre de variáveis sob responsabilidade da escola, como escrevem os autores em outro texto correlato:
Estas são variáveis definidoras do sucesso escolar dos estudantes, mas não como sugere a abordagem bourdieusiana, porque não são variáveis que fazem parte da herança cultural ou social dos educandos, tampouco são anteriores à sua entrada na escola. São variáveis próprias das escolas. Portanto, seus resultados não podem ser imputados ao background familiar dos educandos que, na perspectiva bourdieusiana, poderia determinar seu fracasso ou sucesso escolar. (MENEZES, MORAES e DIAS, 2020, p. 130)
Na verdade, podemos presumir que essas ideias determinísticas estão alinhadas com os interesses dos dominantes, uma vez que tentar uma mudança, pode até não resultar na transformação desejada, mas não fazer nada, certamente não irá mudar a situação atual. Nessas linhas, respaldando essa afirmação pode-se citar que
portanto, negar as exigências e transformações da sociedade contemporânea, não ajuda em nada no processo educacional de ensino aprendizagem. A globalização, o capitalismo, as revoluções tecnológicas e a alta competitividade revolucionaram as relações sociais e principalmente o mercado de trabalho, afetando diretamente o trabalho dos professores na prática docente. (DE JESUS, 2021)
Em contraponto aos críticos fatalistas, outra corrente de pensamento, combatendo a inação teórica-reprodutivista, foi formulada por gestores, sociólogos, e educadores que passaram a suscitar uma nova questão: é possível que a escola possa fazer a diferença na vida dos alunos, como uma organização capaz de transpor as barreiras socioeconômicas? Essa inquietação deu origem a uma perspectiva otimista, com duas importantes correntes teóricas: na economia e administração, a denominada teoria do efeito escola; na sociologia educacional, a referenciada teoria crítico-social dos conteúdos escolares (SAVIANI, 2013). Essas teorias, orientadas pela prática, partem da premissa que o que de fato ocorre na escola, quando bem articulado, permite que a escola seja o agente orientador de uma transformação social, transpondo, assim, as limitações socioeconômicas (MORAES, DIAS e MARIANO, 2021).
Especificamente, a Teoria do efeito escola tem como principais idealizadores os estudos de Rutter (1979) e Hanushek (1986, 1989), que trazem uma visão positiva das ações escolares e sua capacidade de transformar a realidade. Basicamente, o efeito-escola pode ser bem entendido como “o quanto uma organização escolar, pelas suas políticas e práticas internas, acrescenta ao aprendizado do aluno” (BROOKE, CUNHA e FALEIROS, 2011, p. 10).
Contrapondo as concepções atribuídas à Coleman, os teóricos do efeito escola argumentam que a principal limitação contida na metodologia de Coleman (1966) foi a de considerar como input, em seu modelo estatístico, variáveis de fora da escola (características socioeconômicas) e de dentro da escola (recursos intraescolares) como iguais. Desse modo, o nível socioeconômico era tido apenas como mais uma variável de input do modelo de investigação da escola. Ao tratar alunos de níveis socioeconômicos distintos como iguais, o modelo de Coleman (1966) foi incapaz de observar o papel da escola do desempenho do estudante. Para superar esse problema metodológico, os teóricos do efeito escola propuseram uma abordagem que considerasse a eficácia da escola a partir do nível socioeconômico, e não por ele (HANUSHEK, 1986, 1989, 1994, 2005, 2007, 2013, 2016; HANUSHEK, RIVKIN, TAYLOR, 1996; HANUSHEK e WÖßMANN, 2011, 2012). Em outras palavras, a metodologia do efeito escola, foi formulada considerando que a eficácia da escola é o resultado da subtração entre o ponto de partida e o de chegada do aluno.
Por isso, o efeito escola, também, considera que os fatores socioculturais, hereditários e econômicos sejam variáveis com grande capacidade influenciadora do nível de desempenho de estudante. Porém, ele não se limita a afirmar que somente essas variáveis determinam o aprendizado do estudante. Em linhas gerais, o efeito escola sinaliza “quais seriam os fatores preponderantes das escolas eficazes, ou seja, a parcela de responsabilidade exclusiva do estabelecimento de ensino no desempenho do aluno” (PENA, 2011, p. 58). Isto é, trata-se de uma abordagem que coloca a escola como unidade de análise, que a partir de suas variáveis internas, investigando quanto eficaz é a escola para a aprendizagem do estudante.
A partir das propostas formuladas por Rutter (1979) e Hanushek (1986, 1989), diversos novos estudos sobre a efetividade da escola passaram a sugerir o oposto do estudo de Coleman (1966). Ferguson (1991), por exemplo, ao analisar apenas as escolas de nível socioeconômicas mais vulneráveis, consegui identificar um impacto significativo na melhoria do desempenho dos estudantes de níveis socioeconômicos associado a maiores níveis de recursos financeiros aplicados na escola. Goldhaber e Brewer (1997) e Payne e Biddle (1999), isolando as variáveis socioeconômicas, observaram que somente as variáveis relacionadas a formação dos professores impactam em até 25% no desempenho do aluno.
Desse modo, o efeito escola permitiu, no final da década de 1980, uma reconciliação do campo dos estudos organizacionais com a ideia de que a escola era capaz de fazer significativa diferença na vida dos estudantes, independentemente do background socioeconômico a que ele viesse a possuir (DANIEL, 2018).
Por trazer uma análise contextualizada do desempenho dos estudantes, o efeito escola se tornou, a partir da década de 1990, uma das principais ferramentas de comparabilidade dos sistemas de ensino. Isso se tornou possível porque, “os resultados contextualizados podem providenciar, de modo mais efetivo, que o poder público apoie de maneira focalizada as escolas com mais dificuldades e promova a disseminação de experiências organizacionais (administrativas) e pedagógicas que se revelaram exitosas” (DANIEL, 2018). Desde então, o uso dessa metodologia está permitindo investigações aprofundadas sobre os problemas que impactam na qualidade do ensino e, assim, promover políticas públicas capazes de engajar soluções a melhoria do ensino como um todo.
No Brasil, os estudos recentes sobre o efeito escola indicam para achados similares aos estudos internacionais. Por exemplo, Dias (2017) conclui em sua investigação que alunos de perfis socioeconômicos semelhantes alcançam níveis de aprendizagem distintos, a depender da escola em que eles estão inseridos. Do mesmo modo, se vem observando nos estudos nacionais que, para além dos fatores econômicos, diversos achados vêm apontando significativa capacidade de fatores relacionados a gestão, infraestrutura e qualidade do corpo docente como fatores determinantes da aprendizagem docente (BERNARDO e DE ALMEIDA GARCIA, 2020; GARCIA, RIOS-NETO e MIRANDA-RIBEIRO, 2021; ESPINOZA FREIRE, LÓPEZ CRESPO e RAD CAMAYD, 2021).
Ainda, do lado das propostas otimistas, no campo sociológico-educacional, temos a Teoria crítico-social dos conteúdos, cujo principal representante nacional, com notoriedade internacional, é o professor Paulo Freire. Ao contrário do determinismo fático do pensamento crítico-reprodutivista, os defensores da teoria crítica-social dos conteúdos, reconhecem que a sociedade possui grande influência na escola, mas a escola também tem a capacidade de transformar essa sociedade. Em outras palavras, por mais que as desigualdades sociais possam ser reproduzidas no âmbito do sistema de ensino, é justamente uma educação de qualidade que seria capaz de transcende-las (FREIRE, 1996; SAVIANI, 2020).
Subindo o tom contra os teóricos pessimistas, Freire (1996, p. 19-20) descreve com clareza que se opõe a essa visão determinística, passiva e ingênua de se teorizar a escola:
Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar “quase natural”. Frases como “a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?” ou “o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século” expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora.
Em outra forte afirmação, reitera e esmiuça os fatos que o levam a se opor ao pensamento crítico-determinístico:
A luta, hoje tão atual, contra os alarmantes índices de reprovação que geram a expulsão de um escandaloso número de crianças de nossas escolas, fenômeno que a ingenuidade ou a malícia de muitos educadores e educadoras chama de evasão escolar, dentro do capítulo do não menos ingênuo ou malicioso conceito de fracasso escolar. No fundo, esses conceitos todos são expressões da ideologia dominante que leva a instâncias de poder, antes mesmo de certificar-se das verdadeiras causas do chamado “fracasso escolar”, a imputar a culpa aos educandos. Eles (os educandos) é que são responsáveis por sua deficiência de aprendizagem. O sistema, nunca! É sempre assim, os pobres são os culpados por seu estado precário. (FREIRE, 2008, p. 106)
Cabe dizer também que na proposta ativa pedagógica de Freire, o professor de sala de aula não é um agente que age em defesa dos interesses das forças dominantes, como defende Bourdieu, mas ao contrário, é ele um ator do diálogo, que por meio de sua autoridade induz ao aluno a conhecer o mundo, se conhecer, e conhecer sua condição no mundo. Isto é, o professor é aquele que busca ampliar a capacidade do aluno, de modo que ele se perceba como um sujeito pertencente a uma determinada realidade social. Assim, explicitado “uma das bonitezas de estar no mundo, como seres históricos, é a capacidade de intervindo no mundo, conhecer o mundo” (FREIRE, 1996, p.28).
Há que se destacar, que mesmo após décadas de sua proposição, a ideia de uma educação para a transformação de Paulo Freire, ainda é o exato clamor por aquilo que o ensino público brasileiro mais necessita atualmente:
a educação humanizadora e libertadora, no pensamento freireano, é um processo de esclarecimento reflexivo e de amor ao mundo. Nessa perspectiva, expressa-se no ato de cuidado, isto é, na relação ética com os seres humanos e no reconhecimento de sua humanidade como sujeitos de ação no e com o mundo. É uma educação baseada na vida, na esperança, no diálogo, na problematização, na consciência crítica do sujeito, na humanidade e na amorosidade ao mundo. Por isso, Freire continua presente na luta pela dignidade humana, e seu pensamento alimenta a esperança, sobretudo no ano de seu centenário, de construção de uma sociedade acolhedora e de uma ética universal, ou seja, do amor à vida. (DA SILVA e MESQUIDA, 2022, p. 16)
Por fim, não há dúvida que defendemos fortemente neste estudo a perspectiva otimista das teorias educacionais, por acreditar que não basta pensar e criticar o mundo, também é necessário transformá-lo. E como via a essa transformação se faz necessário uma visão de mundo capaz de criar uma intimidade com o mundo real das organizações, sem privilegiar a teoria ou a prática, alinhada com a proposta crítica-pragmática defendida por Böhm (2002, p. 350) “Somente se a teoria, e prática, cumprir esse desafio, poderá fazer parte das lutas sociais por um mundo diferente”.
Considerações finais
Cremos que o debate teórico em defesa do efeito escola que realizamos nesse texto se faz de extrema necessidade, ainda mais em tempos de grande desacreditação dos sistemas de ensino público nacional. Por isso, para defendermos nossa tese, nos valemos das teorias otimistas sobre a capacidade da escola em melhorar as condições de vida dos estudantes. A maturidade dessas abordagens, está justamente no fato delas considerarem que o meio socioeconômico é um dos fatores que mais influenciam o desempenho escolar, sem, porém, negar a capacidade da escola em transpô-lo.
Entendemos, também, que o desafio de acreditar no papel da escola se passa por uma episteme, necessariamente, otimista, mas jamais ingênua. De fato, contrapomos os exageros interpretativos que levam ao fatalismo, mas não podemos negar que as proposições de Bourdieu e Coleman são importantíssimas. Seria ingênuo acreditar que a escola sozinha seria capaz de conciliar e solucionar todos os problemas sociais. Não há como negar que não é possível a existência de qualquer nível de aprendizado quando há fome, quando há violência, muito menos, quando o contexto socioeconômico obriga o aluno a evadir da escola para auxiliar no sustento familiar.
De certo modo polêmico, concluímos esse debate teórico em defesa de que a escola é importante, ou seja, existe, de fato, o efeito escola. Sem porém, ingenuamente, finalizar uma ideia de que a escola possui, atualmente, efeito sempre positivo na sociedade capitalista. Mas, sim, com o propósito de denunciar a extrapolação de uma dialética finalística que leva a um pensamento inatista de que a escola é incapaz de transpor as barreiras socioeconômicas. Em outras palavras, em nenhum momento negamos a atual incapacidade dos sistemas de ensino em ofertar uma educação emancipadora. Porém, argumentamos no sentido de que somente por meio de uma acreditação no papel da escola que iremos alcançar esses ideais.