das imagens de infâncias para uma infância das imagens
Das inúmeras imagens que marcam os primeiros filmes da história do cinema, chamam-nos a atenção os registros de crianças. Um dos primeiros filmes dos irmãos Lumière é uma cena em que vemos um bebê - a filha de Auguste, Andrée - comendo ao lado de seu pai e de sua mãe. O almoço do bebê, com menos de um minuto de duração, estava no programa de demonstração do cinematógrafo Lumière no Grand Café de Paris, em 28 de dezembro de 1895. Dos dez filmes exibidos naquela noite histórica, quatro1 continham imagens de bebês ou crianças. Em muitos outros filmes dos irmãos Lumière produzidos entre 1895 e 1896, vemos bebês brincando, dando seus primeiros passos ou tomando banho; vemos também crianças maiores alimentando galinhas num canteiro, soprando bolhas de sabão ou correndo atrás de gatos e cachorros. Nos Estados Unidos, Edwin S. Porter, operador de câmera de Thomas Edison, também filmou o cotidiano de crianças em filmes como Pillow fight, de 1897, que mostra quatro meninas arremessando travesseiros. Na Inglaterra, George Albert Smith experimentava a criação de planos aproximados em Grandma’s looking glass e Sick Kitten. Em Rescued by Rover, filme de 1905 dirigido por Cecil M. Hepworth, um bebê é sequestrado por uma mulher e resgatado por um cachorro.
De volta à França, nos filmes da pioneira Alice Guy2 há desde bebês recém-nascidos, em A Fada do Repolho (1896), até crianças maiores em Madame a des envies (1906) e em Uma heroína de quatro anos (1907). Em Folhas caídas, de 1912, talvez tenhamos a primeira criança protagonista de uma narrativa. Já no Brasil, um dos filmes mais antigos de que se tem registro também é centrado em uma criança: Os óculos do vovô, realizado por Francisco Santos, em 1913, conta a história de um menino travesso que pinta os óculos do avô, que então pensa ter ficado cego. Esse filme3 é precursor de películas que somente iriam retratar a rebeldia e a irreverência da infância a partir da década de 1930, como em Zero de Conduta, de Jean Vigo.
As imagens de crianças presentes nestes e em outros filmes do início do cinema podem nos dizer diversas coisas. Podemos, a princípio, perguntar: o que o cinema quer olhar nas crianças? Segundo a autora Vicky Lebeau (2008), desde o início, o cinema teve uma verdadeira compulsão por representar a infância. De certa forma, havia na época um interesse científico em observar os comportamentos de crianças, levantado primeiro pela fotografia4 e potencializado em seguida pelo cinema: “O novo fenômeno das imagens em movimento se aproximou da criança: com seus filmes de ‘Vida Infantil’, um dos gêneros mais populares de filmes Vitorianos, o cinema proferiu suas primeiras contribuições para o projeto de visualizar a infância” (Lebeau, 2008, p. 8, tradução nossa5).
Estes breves filmes nos revelam imagens em movimento de crianças que andam, correm, brincam, brigam, gritam, choram, e que também aprontam travessuras e desafiam os olhares adultos. Contudo, se essas imagens estão relacionadas a uma observação naturalista de pessoas e situações reais, podemos então também pensar a partir delas sobre a história cultural da infância através dos comportamentos, gestos e ações representadas. O que estas imagens nos dizem sobre o que era ser uma criança no início do século XX? De qual infância estamos falando? De fato, se pensarmos que uma tal observação da infância em movimento só é possível a partir da tecnologia do cinema, “nossos compromissos modernos em relação à ideia do que é uma criança são inseparáveis de sua representação visual” (Lebeau, 2008, p. 10, tradução nossa6).
Neste trabalho, porém, desejamos tomar um outro caminho aberto por estas imagens. Não pretendemos falar sobre as imagens de infância contidas nos primórdios do cinema, mas sim falar a partir delas. Tais imagens nos provocam a pensar nas similaridades entre o estatuto da imagem no cinema dos primeiros tempos e na infância. Essas imagens de crianças nos fazem pensar, por exemplo, sobre uma possível correspondência entre a visualidade contida no cinema e a construção do sujeito através do olhar na infância. Seria possível pensar o olhar do cinema dos primeiros tempos como uma espécie de inscrição infantil no mundo? Podemos pensar na profusão de experiências dos primeiros dez a quinze anos do cinema (incluindo a criação de brinquedos ópticos que levaram ao desenvolvimento do cinematógrafo) como uma negociação constante, e nem sempre fácil, entre a obediência ao mundo institucionalizado, adulto, e a inovação de um olhar infantil curioso? Podemos pensar o desenvolvimento de múltiplas linguagens do cinema como formas de um estado latente, potente, de infância?
Estes questionamentos nos levam a propor uma possível ideia de infância do cinema. Pensamos essa analogia entre infância e cinema não a partir de uma perspectiva de desenvolvimento cronológico, de etapas sucessivas que são rapidamente superadas em direção ao futuro, mas sim a partir de um olhar mais voltado para as similaridades estruturais entre a infância e o cinema de atrações como fenômenos igualmente marcados pela forte presença da visualidade, pela experimentação e pelo processo de entrada no sistema simbólico da linguagem. Para tanto, partimos primeiramente de uma breve revisão histórica da gênese dos conceitos modernos de cinema e infância para, num segundo momento, ancoradas em autores e autoras de diferentes campos teóricos como a comunicação, a psicanálise e a psicologia cognitiva, traçar alguns paralelos entre o processo de entrada na linguagem da criança e do cinema.
uma infância do cinema?
A associação entre o surgimento do cinema e a infância não é, em si, uma novidade. Ao contrário, é bastante comum lermos referências à infância enquanto metáfora para os primeiros anos do cinema. Essa metáfora, no entanto, costuma estar carregada de pressuposições - tanto acerca da infância quanto do cinema - que gostaríamos de problematizar. A principal delas é a de que tanto a infância quanto o cinema são evoluções temporais lineares; ou seja, do mesmo modo que uma criança seria uma versão latente, rudimentar, daquilo que viria a ser o adulto, também o cinema dos primeiros tempos seria uma espécie de protocinema ou de cinema primitivo, versão precária do cinema do século XX.
Esse modo de explicação teleológica do cinema baseia-se em princípios como os de identidade e de evolução temporal. Ou seja, parte-se do princípio de que o cinema sempre foi o cinema (como o conhecemos hoje), e de que sua história corresponde a uma sucessão cronológica linear, na qual uma prática ou um modo de produção mais rudimentar evolui em direção a outro, mais sofisticado, e assim por diante. No entanto, historiadores do campo do cinema vêm propondo nos últimos anos uma revisão radical destes princípios7:
O ponto importante é que o cinema não é um objeto unificado, nem tampouco um meio homogêneo. Visto retrospectivamente, o cinema pode aparentar ter uma identidade estável tecnologicamente definida, mas considerado prospectivamente, o cinema adota uma série de identidades diferentes (Altman, 1994, p. 177, tradução nossa8).
A partir dessa perspectiva, torna-se possível dizer que o cinema não tem uma identidade única e estática, visto que desde os primeiros aparatos ópticos tal identidade esteve em constante processo de construção e revisão, principalmente em relação à sua interlocução com as linguagens existentes e outras tecnologias que estavam sendo desenvolvidas à época. Segundo Rick Altman (1994), o cinema poderia ser identificado enquanto fotografia, ciência, ópera, teatro, circo, brinquedo ou tudo isso ao mesmo tempo.
Em relação ao som, por exemplo, Altman demonstra que, embora som e imagem estivessem presentes nos programas dos teatros vaudeville na primeira década dos anos 1900, não necessariamente eram utilizados do modo como conhecemos nos dias de hoje. “As histórias do cinema normalmente tratam a conversão de Hollywood para o sistema sonoro como a culminância de uma longa caminhada em direção à tecnologia que temos hoje” (Altman, 1994, p. 175, tradução nossa9). No entanto, o autor aponta que essa história está longe de ser uma trajetória linear, e estaria mais perto de um ziguezague. O acompanhamento musical, geralmente feito ao vivo por uma pianista situada no palco, poderia acontecer de inúmeras formas: a música poderia aparecer nos intervalos entre os filmes, ou nos números ao vivo que se intercalavam às vistas animadas; poderia aparecer durante os filmes, criada de improviso; ou apenas em determinados filmes (como as ilustrações de canções populares), mas não em outros; ou até mesmo apenas do lado de fora dos teatros, para atrair o público. Dessa forma, torna-se impossível afirmar uma uniformidade ou padrão de identidade sonora do cinema dos primeiros tempos.
Em relação à imagem, também não se pode interpretar a história do cinema como uma evolução gradual e linear em direção a uma linguagem narrativa-ficcional aos moldes que conhecemos hoje. “A história do cinema dos primórdios, assim como a história do cinema de forma geral, tem sido escrita e teorizada sob a hegemonia do cinema narrativo” (Gunning, 2006, p. 381, tradução nossa10). Pode parecer muito difícil para alguém hoje em dia ver as imagens dos primeiros filmes sem considerar que o cinema se tornou, ao longo do século XX, uma linguagem predominantemente narrativa. Porém, “se queremos entender como o cinema funciona, devemos evitar projetar a definição presente de cinema no passado. Ao invés disso, precisamos aprender com o passado uma lição sobre a identidade volátil e tênue do cinema” (Altman, 1994, p. 170, tradução nossa11). Para Gunning, é fundamental compreender que os primeiros filmes estavam marcados pela novidade da imagem em movimento e pelo seu chocante efeito de realidade. Esta fase, nomeada como “cinema de atrações”, via o cinema
[...] menos como um modo de contar histórias do que como um modo de apresentar uma série de vistas para uma audiência, que eram fascinantes devido ao seu poder de ilusão (seja uma ilusão de movimento realista como a oferecida por Lumière, ou uma ilusão mágica como a oferecida por Meliès) e exotismo (Gunning, 2006, p. 382, tradução nossa12).
Esse, portanto, é o princípio marcante do cinema de atrações: sua visualidade pura, ou seja, a capacidade (então inédita, precisamos sempre lembrar) de maravilhar o público através da exibição de imagens em movimento. Recordando a famosa história da exibição do filme Trem chegando à estação, dos irmãos Lumière, em 1895, quando as pessoas na plateia supostamente correram e gritaram em pânico diante da imagem do trem se aproximando, Gunning diz que, independentemente das especulações se a cena realmente ocorreu, o importante é ter em mente o poder de choque dessas imagens. Dessa forma, a perplexidade da audiência corresponde menos a uma crença ingênua de que o trem realmente estivesse ali e mais a uma surpresa com a capacidade da imagem de se transformar daquela forma diante de seus olhos. “O que é exibido para a audiência é menos a velocidade do trem que se aproxima do que a força do aparato cinematográfico” (Gunning, 1995, p. 118, tradução nossa13). Diante dessas imagens, o espectador não fica imerso num mundo ficcional, como ocorre com o cinema narrativo, mas tem plena consciência do ato de olhar.
Os próprios filmes também tinham essa consciência do olhar. Como exemplo, Gunning cita o frequente recurso de olhar para a câmera. Em praticamente todos os filmes dos primeiros anos, sejam as atualidades Lumière, os números de ilusionismo de Meliès ou os filmes narrativos de Alice Guy, as pessoas retratadas nas imagens não apenas olham diretamente para a câmera como também interagem com ela, gesticulando, sorrindo, sinalizando de algum modo. Tal fato, no cinema narrativo, vem a ser considerado um problema, uma quebra no efeito de construção do universo ficcional, ou diegese, do filme. No entanto, naquele momento não havia a intenção de criar um mundo ficcional, mas sim de solicitar ativamente a atenção - e participação - do espectador do teatro vaudeville, acostumado a ver atrações ao vivo. Os teatros vaudeville acrescentaram os filmes, ou vistas animadas, como eram conhecidos, aos números de entretenimento que já ocorriam, de modo que, para o público da época, não havia muita distinção entre um número de magia e uma projeção de imagens em movimento (Altman, 1994).
visualidades, entre infância e cinema
Do mesmo modo que acontece com a história do cinema, também há uma certa concepção da infância enquanto fase pré-histórica, incipiente e rudimentar numa linha de desenvolvimento humano. Também a história da infância é escrita e idealizada de acordo com padrões hegemônicos adultos, que tendem a imprimir seus valores e ideais como modelos diante dos quais a infância será sempre vista como incompleta, insuficiente. Cumpre salientar que estamos falando de teorias preocupadas com uma concepção predominantemente cronológica de infância, ou seja, de crianças situadas numa certa temporalidade de fases ou etapas da vida humana. A partir dessa perspectiva histórico-cronológica, pode-se dizer que de certo modo ainda predomina uma ideia de criança enquanto origem, uma espécie de marco zero antropológico, na qual “o infante humano - desamparado, dependente, sem linguagem: infans - nasce no mundo adulto da linguagem, do sentido e do desejo” (Lebeau, 2008, p. 64, tradução nossa14). Hoje em dia, no entanto, graças às contribuições de saberes da psicologia, da filosofia e da própria história, sabemos que não há uma definição única nem uma história linear da infância, mas sim uma heterogeneidade de experiências que depende de inúmeros fatores históricos, sociais, econômicos e ideológicos. Sabemos, através dos estudos de Philipe Ariès, por exemplo, que na Europa da Idade Média a ideia de criança sequer existia: “Na vida real, e não apenas na transposição artística, a infância era um período de transição que passava rapidamente e era igualmente rapidamente esquecido” (Ariès, 1962, p. 34, tradução nossa15). Saber a própria idade, assim como ter um sobrenome, era um privilégio de poucos indivíduos. No século XVII, aparecem com significativa importância novas terminologias para os diferentes estágios da vida, embora estas ainda difiram bastante das que temos hoje em dia. A ideia de infância estava, neste período, mais relacionada à falta de autonomia do que à idade propriamente dita, uma vez que as palavras “filhos” e “garotos” eram também usadas no vocabulário da subordinação feudal: “Só se saía da infância saindo de um estado de dependência, ou ao menos os graus mais baixos de dependência” (Ariès, 1962, p. 26, tradução nossa16). Assim que o indivíduo abandonava o estágio das fraldas, vestia-se de acordo não com a sua idade, mas sim com sua classe social (Ariès, 1962, p. 50).
Pode-se dizer que é somente a partir da passagem do século XIX para o século XX que se passa a teorizar a respeito da infância, compreendendo não apenas que há particularidades que diferem a criança do adulto, mas também que estas particularidades são dignas de estudo sério e comprometido por parte das diversas ciências.
Demorou muito tempo até que se desse conta que as crianças não são homens ou mulheres em dimensões reduzidas […]. Foi o século XIX que levou isso a cabo. Pode parecer às vezes que o nosso século tenha dado um passo adiante e, longe de querer ver nas crianças pequenos homens ou mulheres, reluta inclusive em aceitá-las como pequenos seres humanos. (Benjamin, 2009, p. 86).
Desse modo, o próprio conceito de infância é visto como uma construção social típica da cultura moderna - assim como o cinema. Segundo Vicky Lebeau, é fundamental pensar que o acesso a uma ideia moderna a respeito da infância coincide com a emergência de uma “sensibilidade Romântica que informa nossa compreensão da cultura visual” (Lebeau, 2008, p. 68, tradução nossa17). Não é por acaso que muitos autores irão pensar a convergência entre o lugar privilegiado da visualidade no cinema com o mesmo dado na infância.
A psicanálise, por exemplo, irá refletir amplamente sobre o lugar da percepção visual, do olhar e da imagem no processo de descoberta do mundo, salientando que a formação de consciência de si passa pelo binômio olhar e ser olhado, revelando “as coincidências estruturais entre a fascinação, o charme da imagem e a emergência da mente humana, sua criatividade, através do jogo, e da ansiedade, provocada pelo olhar” (Lebeau, 2008, p. 69, tradução nossa18). O cinema é um espetáculo fortemente centrado na visualidade, uma instituição descrita por Lebeau como pertencente ao campo do desejo libidinal, algo que move nossa relação com as imagens projetadas na tela (Lebeau, 2008, p. 68). Ou seja: algo no ato de olhar as imagens do cinema evoca estruturalmente o processo de formação do eu na criança.
Um dos autores a fazer avançar essa associação é o francês Jean-Pierre Meunier, que fez parte do grupo de pesquisadores que provocou uma significativa renovação no campo da teoria do cinema a partir da década de 1970, com estudos voltados para a espectatorialidade. Tais estudos, a exemplo do seminal artigo de Laura Mulvey (1983) a respeito dos atravessamentos de gênero no cinema clássico narrativo, estruturam-se fortemente no então emergente campo da psicanálise para dar conta das complexas relações que se estabelecem entre o olhar do/a espectador/a e as imagens do cinema. Buscando ultrapassar uma visão reducionista da posição do espectador, tida até então como essencialmente passiva diante do aparato ideológico do cinema, tais estudos buscaram revelar, com o aporte da psicanálise, que as relações entre sujeito e objeto do olhar são múltiplas, maleáveis e complexas.
Em seu livro As estruturas da experiência fílmica, publicado em 1969, Meunier aborda o fenômeno da identificação fílmica através de conceitos oriundos de campos distintos como a fenomenologia, a psicologia cognitiva e a psicanálise. Para analisar a forma como nos relacionamos afetivamente com as imagens do cinema, o autor sinaliza a importância da teoria freudiana sobre os processos de identificação como elemento fundamental no desenvolvimento psíquico humano:
Primeiramente, a identificação é a forma original de ligação emocional com um objeto; em segundo lugar, num estágio de regressão ela se torna substituta do objeto-ligação libidinal, através da introjeção do objeto no próprio ego; em terceiro lugar, ela pode emergir com qualquer nova percepção de uma qualidade em comum compartilhada com outra pessoa que não seja objeto de instinto sexual. Quanto mais importante for essa qualidade em comum, mais bem sucedida essa identificação parcial se torna, e pode desta forma representar o início de uma nova ligação (Freud, 1981, p. 139, tradução nossa19).
Meunier relaciona esse conceito à fenomenologia de Merleau-Ponty, para quem na base do fenômeno da identificação está a capacidade humana da intersubjetividade, “uma espécie de coexistência genérica de múltiplas consciências” (Hanich; Fairfax, 2019, p. 48, tradução nossa20). Essa intersubjetividade básica, universal, anônima, que marca o encontro com o outro, seria algo inerente à condição humana. Ela parte de uma ideia do sujeito não como algo encerrado em si mas, ao contrário, como algo em aberto, que se forma ao passo em que é formado pelo encontro com o outro. “Supor a pessoa pré-formada como uma entidade distinta antes de sua interação com outros […] é tão absurdo quanto conceber a existência de um lado direito sem nenhuma referência ao lado esquerdo” (Hanich; Fairfax, 2019, p. 46, tradução nossa21).
Essa intersubjetividade pode ser comprovada por estudos de psicologia infantil que demonstram que, no estágio de desenvolvimento no qual a criança não tem ainda uma consciência de si enquanto ser singular, diferente do outro, ela vive numa espécie de “sociabilidade sincrética”. É na base dessa intersubjetividade sincrética, ainda indistinta, que a consciência de si se estrutura: “Ademais, é extraordinário que o reconhecimento do outro sempre preceda a consciência de si como ser singular” (Hanich; Fairfax, 2019, p. 45, tradução nossa22). Embora não desenvolva muito esse tema específico, Meunier aponta que o estudo sobre a formação da consciência infantil tem muito a contribuir para a compreensão sobre o modo como o cinema solicita a identificação através da percepção visual.
Um outro autor irá desenvolver um pouco mais essa abordagem. Jean Louis Baudry, em seu livro Efeito Cinema (1978), parte das teorias de Freud e Lacan para compreender o processo de identificação com as imagens do cinema. A partir da concepção freudiana da identificação como mecanismo de base da constituição do sujeito, Lacan identifica que há dois estágios de identificação. A identificação primária, conhecida como a fase do espelho, dá continuidade ao que Meunier chamaria de sociabilidade sincrética, ou seja, etapa na qual a criança encontra-se fusionada com seus cuidadores. No início da vida, o bebê encontra-se num estágio de fragmentação e impotência motora, não sabendo, por exemplo, onde termina o seu corpo e começa o da mãe. Como diria Winnicott, “o precursor do espelho é o rosto da mãe” (2005, p. 149, tradução nossa23).
A partir dos seis até os dezoito meses de idade, a criança começa a identificar sua própria imagem no espelho, o que “provoca, pela visualização especular da unidade de seu corpo, a constituição, ou ao menos um primeiro rascunho do ‘eu’ como formação imaginária” (Baudry, 1978, p. 23, tradução nossa24). Baudry ressalta que, para que isso aconteça, são necessários dois fatores: por um lado a imaturidade motora do corpo e, por outro, a maturidade visual. Nesse momento, enquanto ainda está num estágio de relativa impotência motora, é através do olhar que a criança irá constituir consciência de sua unidade corporal. A imagem do reflexo de seu próprio corpo como algo externo, dotado de forma e de unidade, cria a primeira representação simbólica do “ego” na criança.
O autor então argumenta que há um forte paralelo entre a posição que ocupamos enquanto espectadores no cinema e a posição subjetiva descrita pela fase do espelho: “Se consideramos que essas duas condições se repetem no momento da projeção fílmica - suspensão da motricidade e predominância da função visual - talvez possamos supor que há mais do que uma simples analogia aqui” (Baudry, 1978, p. 24, tradução nossa25). Embora, evidentemente, o espectador do filme não seja um bebê, mas sim um sujeito adulto, para o autor a escolha de entrar numa sala escura de cinema constituiria uma espécie de regressão consentida, onde o espectador, sentado na poltrona, experimenta um retorno à posição de impotência motora onde tudo se dá pelo olhar.
Dessa forma, antes mesmo de qualquer identificação no sentido narrativo, haveria uma identificação primária no cinema, identificação com o ato de olhar a partir de uma posição infantil. “O espectador se identifica, portanto, menos com o representado, com o espetáculo mesmo, do que com aquele que produz ou projeta o espetáculo” (Baudry, 1978, p. 25, tradução nossa26). Diante da tela-espelho, há o sujeito-olho.
entrando na linguagem
“Ver vem antes das palavras. A criança olha e reconhece antes de poder falar” (Berger, 1972, p. 7).
Como pudemos constatar, há algo no próprio gesto de olhar que aproxima a infância dos primórdios do cinema, fundado principalmente a partir do fascínio e do prazer visual. No entanto, vale notar que, a despeito da preponderância da atração visual dos primeiros anos, no cinema, aos poucos, foi se tornando dominante um modo particular de encadear as imagens. Procedimentos utilizados para atrair o olhar do espectador, como movimentos de câmera, enquadramentos e montagem, foram se tornando códigos institucionalizados à medida em que passaram a ser utilizados em função do que viria a se chamar de decupagem clássica ou narrativa (Xavier, 2005). Ou seja, há uma passagem importante do olhar puro até a entrada no campo simbólico da linguagem instituída enquanto narrativa. Avançando em nossa analogia entre cinema e infância, pensaremos agora sobre a natureza dessa passagem, a partir do processo de entrada na linguagem.
Etimologicamente, o termo infansrefere-se justamente àquele que não fala. Desse modo, pensar uma infância do cinema poderia perfeitamente equivaler a pensar seu período mudo, anterior ao cinema sonoro. Segundo André Gaudreault, o período a partir do qual se começa a falar em linguagem cinematográfica (no singular) corresponde precisamente à sua institucionalização a partir da sincronia entre som e imagem.
Antes da institucionalização, as várias práticas envolvendo o cinematógrafo tinham pouco em comum umas com as outras; são os historiadores do cinema que as uniram, artificial e idealisticamente, em seu discurso: “o” primeiro cinema, “o” cinema dos primeiros tempos. Mas não havia apenas um cinema antes de 1910, havia dezenas, e nenhuma era realmente dominante, porque o cinema, precisamente, não havia ainda sido institucionalizado (Gaudreault, 2006, p. 92, tradução nossa28).
A partir do processo de institucionalização do cinema, portanto, torna-se dominante a linguagem de função narrativa, em que o sentido produzido pelos diversos componentes da expressividade do meio passou a ser utilizado de forma padronizada, codificada em função de uma mensagem narrativa. Não é por acaso que a institucionalização do cinema está relacionada ao período de desenvolvimento das técnicas de sincronização sonora, uma vez que o som sincrônico possibilitou um grande avanço nas formas narrativas de produção e de recepção das imagens, assim como uma padronização de práticas de produção e de recepção que, antes, eram muito diversas e heterogêneas. É como se, somente ao se tornar falante, o cinema até então infante, mudo, finalmente entrasse no campo simbólico da linguagem.
No entanto, como defende Gaudreault, não se pode dizer que o cinema possua uma linguagem, mas sim diversas linguagens experimentadas desde os primeiros tempos. Falando sobre a verdadeira revelação que foi a revisão de mais de quinhentos filmes durante a conferência de Brighton em 1978, Gaudreault diz que, ao contrário do que diziam todos os livros de história do cinema que existiam até então, descobriu-se que “planos-sequência, close-ups, montagem paralela e outros elementos fundamentais da linguagem do cinema não esperaram por D. W. Griffith para fazer sua aparição” (2006, p. 85, tradução nossa29). Isso significa dizer que algumas práticas que, mais tarde, viriam a ser identificadas como específicas da linguagem do cinema narrativo, tais como a montagem, a escala de planos, o movimento de câmera, entre outras, já existiam no cinema de atrações. Tais recursos de linguagem não apenas eram conhecidos como também amplamente praticados nos primeiros filmes.
Tomando como exemplo o filme The Gay Shoe Clerk, de Edwin S. Porter, Tom Gunning demonstra como o uso do close-up não é um procedimento exclusivo do cinema narrativo-ficcional. Nesse filme de 1903, vemos uma mulher experimentando sapatos e, num close-up, um plano aproximado de seu tornozelo. Gunning diz que, embora tal plano certamente tenha um papel narrativo em focar a atenção num detalhe importante da cena, ele também serve indiscutivelmente ao princípio de deleitar-se num prazer voyeurista (da audiência tanto quanto do personagem do vendedor de sapatos no filme) (Gunning, 2006, p. 396). O plano aproximado tinha certamente como função a atração visual - seja para chamar a atenção do espectador para ver um objeto mais de perto, seja simplesmente para demonstrar que a câmera podia fazer aquilo. Em outras palavras: não é como se os primeiros filmes não tivessem os recursos necessários para se contar uma história; eles simplesmente tinham outras linguagens que, como vimos, eram muito mais próximas das artes ao vivo, dos números de mágica e contorcionismo, dos musicais e das performances variadas da tradição vaudeville do que das artes narrativas do teatro e da literatura.
Desta forma, não se deve pensar a história do cinema como um antes e depois da linguagem, pois o cinema está mergulhado em linguagem desde o seu princípio, assim como a criança já está “mergulhada num banho de linguagem desde a vida intra-uterina” (Queiroz, 2003, p. 14). Antes do processo formal de aquisição da língua materna, a criança já está inscrita na linguagem: antes mesmo de nascer o bebê já é falado, nomeado. Imediatamente após o nascimento, seus primeiros choros e gritos são decodificados e investidos de sentido por seus cuidadores (Queiroz, 2003). Decisivamente, a fala e o olhar estão vinculados desde que somos concebidos, desde que chegamos ao mundo. Segundo Bakhtin (2003), mal a pessoa começa a vivenciar a si mesma, de dentro, já se depara imediatamente com atos de reconhecimento e amor vindos de pessoas íntimas, sobretudo da mãe, que partem de fora ao encontro dela: dos lábios da mãe e de pessoas próximas a criança recebe as primeiras definições de si própria. É dos lábios delas que a criança escuta e começa a reconhecer seu nome, a denominação de tudo o que esteja vinculado ao seu corpo.
A criança começa a ver-se, pela primeira vez, pelos olhos da mãe, é no seu tom que ela começa também a falar de si mesma, como que se acariciando na primeira palavra pela qual expressa a si mesma; assim ela emprega, para falar da sua vida, das suas sensações internas, os hipocorísticos que lhe vêm da mãe: tem sua “babá”, faz sua “naninha”, tem “dodói”, etc. (Bakhtin, 2003, p. 46-47).
Nessa experiência de linguagem da forma hipocorística, só é possível falar de si em relação ao outro e é dessa linguagem que o corpo interior vai ganhando consistência. A alteridade dessa experiência consiste no valor que somente outra pessoa pode realizar. É a relação com o Outro que instaura uma percepção do “eu” enquanto sujeito de desejo e de falta. “É a voz da mãe ou do pai, que profere o nome próprio, e é também pela voz que o sujeito é referido ao desejo do Outro” (Queiroz, 2003, p.15). Acoplada ao corpo da mãe num primeiro momento, a criança aos poucos substitui a simbiose do corpo pelas palavras, preenche a ausência da materialidade materna pela linguagem, pelos símbolos. A criança fala primeiramente a partir de um lugar indissociável da mãe, até que passa a falar de si na primeira pessoa. Parafraseando Lacan (1966), a psicanalista Telma Queiroz (2003, p. 28) diz: “Somente um sujeito pode compreender um sentido, de maneira que todo fenômeno de sentido implicaria um sujeito”.
De todo modo, para a perspectiva adotada neste artigo, interessa-nos menos pensar no tipo de linguagem acessada e mais nas formas de acesso a ela, ou seja, na infância do cinema como uma possibilidade de invenção da própria linguagem. Seguimos, para esta reflexão, uma provocação do filósofo Giorgio Agamben: se considerarmos a existência de uma in-fância enquanto origem muda de toda a experiência humana, seria a criança algo anterior ao humano? Para Agamben, porém, “uma tal in-fância não é algo que possa ser buscado, antes e independentemente da linguagem” (Agamben, 2005, p. 58), uma vez que é somente através da linguagem que o ser humano se constitui como sujeito. “É na linguagem que o sujeito tem a sua origem e o seu lugar próprio, e que apenas na linguagem e através da linguagem é possível configurar a percepção transcendental como um ‘eu penso’” (Agamben, 2005, p. 56). Desse modo, conclui-se que não existe propriamente um fora da linguagem, uma vez que “a infância é a origem da linguagem e a linguagem é a origem da infância” (Agamben, 2005, p. 59).
Ainda segundo Agamben, a infância não deve ser localizada como um período primitivo que, cronologicamente, precede o desenvolvimento da linguagem humana como um simples antes e depois. Isso não significa dizer que não se deva considerar a infância cronológica, ou que não exista o processo de aquisição da língua materna - afinal, não nascemos falando, nem tampouco permanecemos sem palavras (no sentido da comunicação). O problema, segundo Agamben, não está propriamente na ideia de infância enquanto origem, mas na ideia de origem enquanto marco zero, tábula rasa da vida. Segundo o autor, as próprias ciências da natureza já abandonaram esse modelo teleológico (Agamben, 2005, p. 60). Ao invés disso, a infância corresponde a um processo que o filósofo nomeia como experiência. A infância, portanto, não corresponde a uma origem transcendental, mística e absoluta do homem, mas sim à experiência. “Que o homem não seja sempre falante, que ele tenha sido e seja ainda in-fante, isto é a experiência” (Agamben, 2005, p. 62).
Deste modo, distanciamo-nos cada vez mais de uma concepção literal e histórica de infância em direção a algo que Walter Kohan nomeia como um mistério que nos habita e que, nas palavras do filósofo, “não nos abandona, mesmo na forma do silêncio de uma presença imperceptível, até que abandonamos o mundo” (2015, p. 217). Kohan se refere ao pensamento de um outro filósofo preocupado com os mistérios da infância, Jean-François Lyotard, para quem a infância se configura como um estado latente, infinita potência do pensamento e da linguagem em qualquer ser humano. “Ela habita, sem ser percebida, toda palavra como sua condição, como uma sombra, como um resto, como uma diferença não percebida” (2010, p. 133 apudKohan, 2015).
Deslocando essa ideia de infância-experiência ou infância-potência para o cinema dos primeiros tempos, vemos que ele tampouco pode ser visto como um simples antes e depois histórico, uma fase de desenvolvimento que é superada e esquecida com o tempo. O cinema de atrações é uma infância do cinema não por seu aspecto cronológico, mas sim pelo que carrega de potência, de possibilidade de inventar o cinema de novo a cada gesto puro de olhar, a cada possibilidade de inventar uma nova linguagem. Desse modo, torna-se importante considerar que mesmo após a predominância do cinema narrativo a partir dos anos 1910, o cinema de atrações continua existindo de diversas formas até os dias de hoje, seja nas imagens visualmente apelativas dos filmes hollywoodianos, nos cinemas experimentais e vídeo-performances, nos videoclipes, nos filmes caseiros, vídeos amadores e nas imagens animadas (gifs, memes, vídeos curtos de redes sociais) que circulam abundantemente pelas redes digitais30.
considerações finais
Para finalizar este artigo, retornamos às imagens de crianças do cinema dos primeiros tempos. Desta vez, porém, as reflexões surgem a partir de uma outra imagem da infância produzida no período da infância do cinema. Trata-se do filme Enfants annamites ramassant des sapèques devant la pagode des dames, realizado por Gabriel Veyre, um dos operadores de Lumière que veio para as Américas (México, Venezuela, Guianas e as Antilhas) e para alguns locais da Ásia, como o Vietnã, com a missão de fazer filmes de atualidades destas localidades. Neste filme de poucos segundos, Veyre filma crianças vietnamitas coletando moedas antigas e pequenas chamadas qian que são jogadas ao chão pela esposa e pela filha do Governador Geral da Indochina, em frente ao templo Lang. O filme, rodado entre 1899 e 1900 em uma zona da Indochina francesa, atual Vietnã, foi projetado na França em 1901.
As moedas são arremessadas pelas mulheres como se fossem pedaços de pão jogados aos pombos. As crianças, grandes, pequenas e até alguns bebês de colo, amontoam-se para catar as moedas que caem ao chão. Estas crianças não têm fala, não têm dignidade, foram filmadas num gesto humilhante - são um inteiramente Outro nesta imagem. O enquadramento, ressaltando ainda mais as diferenças de poder entre os grupos, é imoral, parafraseando a Jacques Rivette (1961) que, ao se referir ao travelling31 em Kapò (1960), de Gillo Pontecorvo, o definiu como uma “questão moral”. A primeira consideração que insurge destas imagens é a importância de se considerar a pluralidade das infâncias, assim como a pluralidade dos olhares sobre elas. Como os diferentes autores e autoras com os quais dialogamos nesse texto apontam, não é possível se referir à infância em um singular universalizante que desconhece as diversidades de modos de apropriação da linguagem em contextos socioculturais diversos, com condições afetivas, econômicas e históricas que fazem de cada criança um ser radicalmente diferente.
Para além disso, o que tais imagens nos fazem lembrar é que, assim como as palavras, elas trazem um problema ético, além de estético e político: “É uma imagem que constitui a matriz do imaginário, do reconhecimento/falso reconhecimento e da identificação” (Mulvey, 1983, p. 442). De acordo com Mulvey, se o ato de olhar é capaz de criar um sujeito da imagem, aquele que vê, ele também é responsável por criar um objeto da imagem, aquele que é visto. As imagens do cinema não representam nem simplesmente apresentam o mundo, mas o produzem, o inventam. Desta forma, sinalizamos a importância de questionar as imagens, principalmente as imagens de crianças. Naturalizar uma imagem como essa de Veyre significa naturalizar e validar um gesto de desrespeito tanto ao cinema quanto à infância, e sobretudo à própria infância do cinema.
Neste artigo procuramos associar alguns aspectos do desenvolvimento do cinema e alguns aspectos filosóficos e psicanalíticos a respeito da infância, aproximando ambos da ideia de experiência, de um momento a-histórico e acronológico marcado pelas relações entre o olhar e a linguagem. Procuramos, sobretudo, argumentar que se torna essencial continuar a pesquisar o cinema dos primeiros tempos, as infâncias e a entrada na linguagem, como uma aposta na construção de um mundo sempre infante pelo estado de pergunta, pelo caráter da experiência que caracteriza a infância, pela abertura de possibilidades, pela capacidade de subverter hierarquias e ordens pré-estabelecidas, e não pela negação da fala ou pela objetificação das imagens das crianças pelos olhares adultos. Compartilhamos, por fim, a necessidade de acompanhamento e cuidado de quem começa a falar, assim como de quem toma uma câmera pela primeira vez - de um celular ou de qualquer dispositivo móvel de comunicação - para inventar o cinema de novo a cada vez.