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Revista Educação Especial (Online)

versión On-line ISSN 1984-686X

Rev. Educ. Espec. vol.36  Santa Maria  2023  Epub 25-Mar-2024

https://doi.org/10.5902/1984686x66706 

Artigo Demanda Contínua

Sala de aula inclusiva: de que forma os alunos sem deficiência compreendem as relações com um aluno com deficiência

Inclusive Classroom: how non-disabled students understand relationships with a student with disabilities

Aula inclusiva: cómo los estudiantes sin discapacidades entienden las relaciones con un estudiante con discapacidades

1 Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil; ametista33@hotmail.com


RESUMO

Muito se tem produzido sobre o impacto da inserção de um aluno com deficiência numa escola regular, entendendo suas especificidades educacionais, as adaptações pedagógicas e de materiais necessárias, formações de professores e políticas públicas que garantam este direito. Diante deste contexto, esta pesquisa procurou investigar de que maneira os alunos sem deficiência reagem e compreendem as relações da sala de aula com um aluno com deficiência, tendo como campo de pesquisa duas salas de aula de Ensino Fundamental I de uma escola pública localizada na Grande São Paulo. A fundamentação teórica escolhida para auxiliar neste caminho é a Teoria Sócio-Histórica Cultural, desenvolvida por L. S. Vygotsky (1924-1934), tendo como metodologia a Pesquisa Crítica de Colaboração (MAGALHÃES, 2006) que tem o intuito de organizar pesquisas que tenham atividades transformadoras e reflexivas, além de ser o pesquisador um participante ativo do processo de pesquisa. Para isso, foram usadas duas ferramentas: entrevistas semiestruturadas, e Sessões Reflexivas realizadas a partir de atividades norteadoras com os alunos de 6 a 11 anos. Os resultados da pesquisa ocorreram pela minuciosa escuta com alunos sem deficiência que apontaram os inúmeros benefícios que o convívio na diversidade oferece para todos os envolvidos, entre eles: os alunos se reconhecerem como mediadores dos processos de desenvolvimento dos colegas com deficiência, tornando-se seus pares mais experientes, colocando-os em situação de protagonismo. Fica evidente como os alunos são afetados pela convivência com a colega com deficiência, que os transforma e é transformada por eles.

Palavras-chave: Educação Inclusiva; Teoria Sócio-Histórico Cultural; Aluno com deficiência

ABSTRACT

Much has been produced about the impact of inserting a student with a disability in a regular school, understanding its educational specificities, the pedagogical adaptations and necessary materials, teacher training and public policies that guarantee this right. Given this context, this research sought to investigate how students without disabilities react and understand the relationships of the classroom with a student with a disability, having as research field two elementary school classrooms in a public school located in Grande Sao Paulo. The theoretical foundation chosen to assist in this path is the Socio-Historical Cultural Theory, developed by LS Vygotsky (1924-1934), having as methodology the Critical Collaboration Research (MAGALHÃES, 2006) which aims to organize research that has transformative activities and reflexive, in addition to the researcher being an active participant in the research process. For this, two tools were used: semi-structured interviews, and Reflective Sessions carried out from guiding activities with students aged 6 to 11 years. The results of the research occurred by carefully listening to students without disabilities, who pointed out the numerous benefits that coexistence in diversity offers to everyone involved, including: students recognizing themselves as mediators of the development processes of colleagues with disabilities, becoming their own more experienced peers, putting them in a leading position. It is evident how the students are affected by living with a colleague with a disability, who transforms them and is transformed by them.

Keywords Inclusive Education; Socio-Historical Cultural Theory; Student with a disability

RESUMEN

Mucho se ha producido sobre el impacto de la inserción de un alumno con discapacidad en una escuela regular, entendiendo sus especificidades educativas, las adaptaciones pedagógicas y materiales necesarios, la formación docente y las políticas públicas que garantizan este derecho. Diante deste contexto, esta pesquisa procurou investigar de que maneira os alunos sem deficiência reagem e compreendem as relações da sala de aula com um aluno com deficiência, tendo como campo de pesquisa duas salas de aula de Ensino Fundamental I de uma escola pública localizada na Grande San Pablo. El fundamento teórico elegido para asistir en este camino es la Teoría Cultural Socio-Histórica, desarrollada por LS Vygotsky (1924-1934), teniendo como metodología la Investigación de Colaboración Crítica (MAGALHÃES, 2006) que tiene como objetivo organizar investigaciones que tengan actividades transformadoras y reflexivas, además de que el investigador sea un participante activo en el proceso de investigación. Para ello se utilizaron dos herramientas: entrevistas semiestructuradas y Sesiones Reflexivas realizadas a partir de actividades de orientación con alumnos de 6 a 11 años. Los resultados de la investigación se dieron a través de la escucha atenta de los estudiantes no discapacitados que señalaron los innumerables beneficios que la vida en diversidad ofrece a todos los involucrados, entre ellos: que los estudiantes se reconozcan a sí mismos como mediadores de los procesos de desarrollo de los colegas discapacitados, convirtiéndose en sus propios pares más experimentados, poniéndolos en una posición de liderazgo. Es evidente cómo los alumnos se ven afectados por convivir con un colega con discapacidad, que los transforma y es transformado por ellos.

Palabras clave Educación inclusiva; Teoría Cultural Socio-Histórica; Estudiante con discapacidad

Introdução

Com o advento da Declaração de Salamanca, que data mais do que 25 anos, muito se discutiu e avançou sobre o tema das práticas dos alunos com deficiência na sala de aula bem como sobre a formação de professores e a elaboração de políticas públicas que promovessem igualdade de oportunidade para todos. No entanto, pouco foi produzido a respeito das percepções dos alunos sem deficiência em relação à sua interação com colegas com deficiência.O que estes alunos teriam a dizer sobre esta experiência? Como vivenciam as práticas e convivências a que a Educação Inclusiva se propõe?

Face ao exposto, escolheu-se ampliar as reflexões sobre o tema em pauta, considerando a narrativa daqueles que raramente são ouvidos quando o assunto é Educação Inclusiva, quais sejam, os alunos sem deficiência.

No sentido de apoiar a ideia de que o espaço escolar pode ser lugar de transformação de todos os que nele estão inseridos, o presente trabalho objetivou verificar de que maneira os alunos sem deficiência reagem e compreendem as relações da sala de aula com um aluno com deficiência, tendo como campo de pesquisa duas salas de aula de Ensino Fundamental I de uma escola pública localizada na Grande São Paulo.

Os documentos gerais e internacionais sobre Educação Inclusiva foram determinantes para o estabelecimento de políticas de inclusão que estivessem em consonância com o desenvolvimento interpessoal das pessoas com deficiência, no que se refere às flexibilizações necessárias para o seu pleno desenvolvimento. Os mesmos pressupõem, nesse sentido, a adequação de atitudes menos discriminatórias e mais voltadas para a aceitação e compreensão das diferenças como algo natural da humanidade, e da construção de uma sociedade mais justa, igualitária e que ofereça as mesmas oportunidades para todos.

A mais recente lei específica e muito aguardada no Brasil foi promulgada em 06 de julho de 2015 sob o número 13.146 e foi intitulada Lei Brasileira de Inclusão que, em seu §1º, afirma:

É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania (BRASIL, 2015).

A lei traz diversos dispositivos para a garantia de uma sociedade mais inclusiva em vários aspectos como saúde, lazer, moradia, direito à habilitação e à reabilitação e, o que mais nos interessa neste trabalho, sobre a educação. Porém, para a nossa surpresa, mesmo em 2015, passados mais de vinte anos da indicação de uma política voltada para a inclusão - como indicado em 1994, na Declaração de Salamanca -, a lei específica sobre inclusão no Brasil não traz nenhuma citação sobre as benfeitorias que a relação entre alunos com e sem deficiência trazem para o crescimento do coletivo educacional, atendo-se a garantias educacionais para os alunos com deficiência, formação dos professores, indicações sobre o atendimento educacional especializado, entre outras indicações.

Para se debruçar sobre as relações entre os alunos de uma sala inclusiva, buscou-se a perspectiva da Teoria Sócio-Histórico Cultural, fundamentada pelos estudos de L. S. Vygotsky, autor que apresenta subsídios para o entendimento dos fenômenos investigados, tais como: Mediação, Zona de Desenvolvimento Proximal, Par Mais Experiente, Emoções, compreendendo que o sujeito é um ser histórico, atuante e transformador do contexto em que vive sendo, por consequência, afetado por ele. Além disso, desta perspectiva, compreende-se que o convívio entre os alunos é constituído de interações sociais, inseridas num contexto cultural, arraigado na história.

A escola, para este trabalho, é entendida como lugar de excelência da transmissão dos conhecimentos científicos e como promotora das interações sociais. Estas, segundo Vygotsky (2004), possibilitam trocas entre os sujeitos, fornecem e determinam formas mais complexas de pensamento, colaborando para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Nesse sentido, uma vez que o ser humano, compreendido como sujeito histórico, se humaniza a partir do desenvolvimento das suas potencialidades, se apropriando do conhecimento através de suas interações, a escola se estabelece como lugar essencial ao desenvolvimento.

Para Vygotsky (2004), o desenvolvimento do psiquismo humano deveria ser estudado a partir da história do desenvolvimento humano, ou seja, de maneira sócio-histórica, pois este ocorre a partir das suas interações com o meio, recebendo, portanto, direta influência dos aspectos culturais (conhecimento elaborado historicamente) em que o ser humano está inserido, tendo a escola como um dos fundamentais mediadores deste processo, cabendo acrescentar:

É por meio de outros (...) que a criança se envolve em suas atividades. Absolutamente, tudo no comportamento da criança está fundido, enraizado no social. (...). Assim, as relações da criança com a realidade são, desde o início, relações sociais. (VYGOTSKY,2004, p. 281)

Levando em consideração as influências do meio, a Teoria Sócio-Histórico Cultural tem como tese central a socialização como elemento determinante no processo de humanização”, como salientado por Bernardes (2010, p. 300). Desta premissa decorre que ‘socializar’ ultrapassa o ato de estar com o outro, incorporando-se, ao seu significado, as interações com os artefatos culturais, a exemplo da leitura de um livro, da apreciação de um vídeo, etc.

Uma das premissas de Vygotsky que mais representa sua teoria é a de que “[...] o verdadeiro curso do desenvolvimento do pensamento não vai do individual para o socializado, mas do social para o individual” (VYGOTSKY,2009, p.18).

Entende-se, destarte, que as relações sociais que o sujeito estabelece com o mundo social em que está inserido (exterior) constituem processos interpessoais e interpsicológicos (entre as pessoas), que vão se transformar em intrapessoais e intrapsicológicos (no interior do sujeito), ou seja, as funções cognitivas aparecem duas vezes no desenvolvimento cultural: primeiro no nível social (entre as pessoas, interpsicológico), e depois no nível individual (intrapsicológico). É na dinâmica do movimento interpessoal para o intrapessoal que ocorre a internalização (ou interiorização), na qual é realizada uma reconstrução interna de uma atividade externa, de tal forma que ocorra um movimento que leve à aprendizagem de Funções Psicológicas Superiores, como: a atenção voluntária, a memória lógica e a formação de conceitos.

Desta forma, é perceptível a real importância dos processos educacionais para o desenvolvimento comportamental das crianças, já que as funções psicológicas ocorrem de duas formas: a primeira ocorre no plano interpsicológico, e a segunda acontece no plano intrapsicológico, aparecendo no comportamento individual da criança, como uma apropriação individual (VYGOTSKY, 2004).

O real sentido da escola, além de ser espaço propício à reconstrução de conhecimentos com os alunos para acesso aos artefatos culturais (conteúdos acadêmicos, conceitos científicos), está na criação de oportunidades para que ocorram experiências de aprendizagens.

Para Vygotsky, a aprendizagem acontece quando há interação entre duas ou mais pessoas com níveis diferentes de habilidades e conhecimento. Isto é, há o par mais experiente (que sabe mais daquele determinado tópico), que auxilia o aprendiz (que sabe menos daquele determinado tópico). Através desta experiência, a Zona de Desenvolvimento Proximal do aprendiz se move, de forma a ocorrer o percurso da própria construção do conhecimento. Desta forma, Vygotsky (2009, p. 113) conclui que: o que a criança pode fazer hoje com o auxílio dos adultos, poderá fazê-lo amanhã por si só”.

Desta maneira, acredita-se que o espaço escolar que promova a inclusão de alunos com deficiência, propiciando a interação entre alunos com e sem deficiência, tem a potencialidade de fornecer possibilidades para que todos os alunos internalizem estas vivências, atingindo novas zonas de desenvolvimento, através da internalização de conceitos.

O estudo sobre o comportamento de crianças com deficiência constituiu um campo importante das investigações de Vygotsky, apresentando uma crítica ao olhar tradicional da Psicologia, que considerava a deficiência como falha, ou fator limitante: toda a Psicologia da criança anormal1 foi construída, em geral, pelo método da subtração das funções perdidas em relação à Psicologia da criança normal” (VYGOTSKY, 2012,² p.187).

Em síntese, sob o ponto de vista da educação tradicional, a criança com deficiência era percebida pela falta, o que estreitava seu desenvolvimento. Em contrapartida, o olhar proposto, segundo os estudos em pauta, é o de que a limitação exerce uma dupla influência no desenvolvimento da criança: se, por um lado, produz falhas e obstáculos, por outro lado, serve de estímulo à elaboração de caminhos alternativos à sobreposição da limitação. Desta forma, o desenvolvimento da criança não se alicerça na deficiência orgânica, ao contrário, considera-se que “Onde não é possível avançar no desenvolvimento orgânico, abre-se um caminho sem limites para o desenvolvimento cultural” (VYGOTSKY, 2012, p. 187, tradução nossa). O autor ainda prossegue, afirmando:

A educação da criança deficiente (do cego, do surdo) é um processo exatamente igual ao da criança “normal”, no que diz respeito à elaboração de novas formas de comportamento, à criação de reações. Consequentemente, os problemas da educação das crianças com deficiência só podem ser resolvidos como um problema de pedagogia social. A educação social da criança com deficiência, baseada nos métodos de compensação social de sua deficiência natural, é o único caminho cientificamente válido e ideias corretas. A educação especial3 deve ser subordinada ao social, deve estar ligada a isto e, além disso, deve funcionar organicamente com ela, incorporada como te componente (VYGOTSKY,2012 4, p.81. Tradução nossa).

Os primeiros textos de Vygotsky sobre o conceito de compensação datam de 1924, época em que se criticava as duas visões vigentes acerca do assunto. A primeira delas tem como cerne a visão mística da compensação (força de origem divina em determinado órgão); já na visão biológica, postulava-se que a perda de um órgão seria compensada pelo funcionamento de outros.

A partir desta crítica, Vygotsky elabora o conceito de compensação social, trazendo o foco não para o defeito, mas para a pessoa como um todo, concebendo também suas potencialidades no âmbito educacional, com foco nos processos sociais de desenvolvimento e de formação da personalidade (DAINEZ; SMOLKA, 2014)

Segundo os autores, Vygotsky estava preocupado com:

As exigências sociais produzidas no e pelo meio social no qual a pessoa está inserida, e afetam o curso de seu desenvolvimento, impactam no funcionamento psicológico, fazem o cérebro operar; tornam possível antecipar, programar, planejar uma ação, uma atividade humana (DAINEZ; SMOLKA, 2014, p. 1101).

Além da compreensão do movimento compensatório no qual Vygotsky insere os alunos com deficiência - não somente olhando sob o prisma da limitação -, atribui-se a essencialidade da instância social no desenvolvimento da criança, reforçando a diferença que há em seu desenvolvimento, que ao invés de servir à comparação, deve ser estudada com vistas a oportunizar flexibilizações diferenciadas para o acesso aos mesmos aparatos culturais.

A partir das concepções e reflexões apresentadas, é possível, portanto, considerar que aqueles que estudam com colegas com deficiência podem ter uma experiência emocionalmente transformadora. Nesse sentido, tem-se que a interação os caracteriza como sujeitos-sociais, uma vez que se inserem em uma situação social de desenvolvimento (a escola) que lhes fornece, por sua vez, maneiras de pensar e funcionar específicas. Assim, transformando, através das suas relações interpessoais, suas funções psicológicas superiores, os estudantes transformam a si mesmos e, consequentemente, seu entorno.

Diante do exposto, consideramos importante investigar de que forma as crianças sem deficiência compreendem as relações da sala de aula com um aluno com deficiência.

Metodologia

Apoiado da Teoria Sócio-Histórico-Cultural de Vygotsky, este estudo parte de uma pesquisa de doutorado e conta com a abordagem metodológica da Pesquisa Crítica de Colaboração - PCcol, que permite

Organizar pesquisas apoiadas em uma práxis crítica como atividade transformadora e criativa, em que as relações entre teoria e prática são entendidas dialeticamente, em sua autonomia e dependência mútua (MAGALHÃES, 2010, p. 28).

Nesse sentido, para Magalhães (2006a), a transformação emerge da negociação estabelecida no decorrer da investigação, a partir da compreensão do conflito e das tensões nela gerados. Neste momento, permite a criação de zonas de desenvolvimento proximal (ZDPs) para que sejam, então, elaborados novos sentidos: olhar, compreender criticamente e analisar os sentidos de suas ações, bem como por que e como agir [propicia] desenvolvimento em si e a outros” (MAGALHÃES, 2011, p.15).

A Pesquisa Crítica de Colaboração possibilita que o pesquisador realize uma observação videogravada de trechos de aulas, assistir a filmagem com o professor e, posteriormente, organizar a Sessão Reflexiva (MAGALHÃES, 2006b), com trechos que deverão ser mediados através de contradições sobre sua prática. A Sessão Reflexiva (SR) tem como objetivo organizar a argumentação, além de promover a reflexão crítica:

;A sessão reflexiva tem um duplo papel de prover a(o)s professore(a)s um programa de educação contínua, bem como um contexto que permita a constituição de professores reflexivos e críticos quanto às suas práticas didáticas e quanto à aprendizagem dos alunos. O foco está em possibilitar a análise e discussão crítica - desconstrução - de discursos, em contextos particulares de ação. (MAGALHÃES, ( 2006b, p. 136)

Neste contexto de pesquisa, o papel da Sessão Reflexiva é permitir que os alunos se tornem mais reflexivos quanto à interação que vivenciam na escola.

De acordo com o descrito, o estudo propôs, especificamente, possibilitar um espaço de reflexão crítica-colaborativa, de modo a permitir aos participantes entenderem suas ações e sentimentos em relação a ter um colega com deficiência na sala de aula e a perceber quais as transformações e significações5 que a relação entre os mesmos oferece para todos os envolvidos.

Para a produção dos dados, aplicamos inicialmente uma entrevista semiestruturada com os 63 alunos participantes. Posteriormente realizamos a observação videogravada de algumas atividades norteadoras que serviram como disparadoras da discussão. A pesquisa foi realizada em duas salas de aula de 1º. e 3º. Ano do Ensino Fundamental, numa escola municipal da Prefeitura de Santo André no ano de 2018. Denominamos, de forma fictícia, a primeira sala como A e a segunda sala como B. Nas salas de aula em que esta pesquisa ocorreu, estavam matriculados pelo menos um aluno com deficiência (hidrocefalia e síndrome de West, respectivamente). É importante destacar que todos os nomes utilizados neste trabalho são fictícios, de modo a proteger a identidade dos participantes. Depois da gravação das atividades, os alunos foram convidados a participar de Sessões Reflexivas (SR), sendo todas as entrevistas, atividades e SR gravadas e transcritas.

Como categorias de análise, foi realizada a análise do discurso de alunos sem deficiência inseridos na vivência com alunos com deficiência. No entanto, de todas as possibilidades de análise de elementos referentes ao discurso, foram selecionadas: (1) algumas análises das modalizações; características linguístico-discursivas dos textos, sendo o conteúdo temático, proposto por Bronckart (1999); (2) as tipologias de discurso, especialmente as referências ao grau de autônomo e implicado; (3) referências como Koch (2000), para análises de modalizações diretas (sem metaverbos), em que os elementos modalizadores denotam o grau de engajamento do falante em relação ao exposto.

Um exemplo de como a análise foi desenvolvida encontra-se no quadro 1, a seguir:

Quadro 1 Exemplo de conteúdo temático - entrevista do aluno Carlos (C) - Turma B 

Tema Significação Exemplo
Promovem sentimentos e emoções nos alunos Propiciar inclusão do aluno com deficiência promove bem-estar nos alunos sem deficiência M35: Tá. Oh, Carlos, você já foi alguma vez ajudante do dia? C35: Já. M36: Quais foram as suas tarefas? C36: É::, escrever meninos e meninas6, e o total, e levar a Lucinha também. M37: E levar a Lucinha aonde? C37: No almoço e no café. M38: E o que você achou disso? C38: Legal também. M39: Você levou? C39: Levei. M40: E o que você sentiu? C40: Ah, felicidade ((risos)). M41: Você sentiu felicidade? C41:((movimenta a cabeça positivamente)) M42: Por quê? C42: Não sei. M43: Não, mas me explica, como que foi? C43: É, foi legal né, mas eu não sei o porquê.

Fonte: Elaborado pela pesquisadora (2021)

Observa-se que os quadros de conteúdos temáticos são divididos em três colunas: Tema; Significação; Exemplo. Na primeira coluna figura o campo Tema, retirado de uma das perguntas de pesquisa (FIDALGO, 2006). A segunda coluna comporta o campo Significação, que se refere à interpretação da pesquisadora, incluindo-se o sentido e o significado atrelados à fala do participante. A terceira coluna comporta o campo Exemplo, no qual se inscreve a fala do participante.

Nestes termos, Significação “remete à dialética que configura a relação entre sentidos e significados constituídos pelo sujeito frente à realidade na qual atua” (AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2015), cabendo acrescentar que a significação se refere aos valores, interpretações e crenças da pesquisadora sendo, portanto, resultado da interpretação da mesma. Fidalgo (2006), ao comentar o assunto, afirma que é preciso não se ter “[...] a ilusão de que nossas análises e interpretações são verdades - logo replicáveis, objetivas, claras, etc.” (FIDALGO, 2006, p. 79).

Resultados e discussão

Segundo o Estatuto da Pessoa com Deficiência (também conhecido como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência nº13.146/2015), em seu parágrafo único do art. 27: “É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação”.

Destarte, temos que todos devem estar envolvidos na inclusão de alunos com deficiência: o Estado, o qual abarca as responsabilidades legais da inserção, matrícula e qualidade no ensino de alunos com deficiência; a família, que tem a obrigação de ser parceira na escola na busca de melhores condições de permanência de seus filhos; a comunidade escolar, que deve entender que o aluno com deficiência não é somente responsabilidade de determinado professor, mas de todos os envolvidos na escola (gestores, professores, funcionários, alunos sem deficiência); e o entorno da escola, que também tem uma obrigação social de promover a inclusão deste aluno de forma que suas necessidades sejam atendidas.

Desta forma, não só o professor da sala de aula deveria ser responsabilizado pelos sucessos ou fracassos destes alunos, mas todos os inseridos na sociedade, como encontrado na Declaração de Salamanca (1994):

Cada escola deveria ser uma comunidade coletivamente responsável pelo sucesso ou fracasso de cada estudante. O grupo de educadores, ao invés de professores individualmente, deveria dividir a responsabilidade pela educação de crianças com necessidades especiais. Pais e voluntários deveriam ser convidados a assumir participação ativa no trabalho da escola. Professores, no entanto, possuem um papel fundamental enquanto administradores do processo educacional, apoiando as crianças através do uso de recursos disponíveis, tanto dentro como fora da sala de aula (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994, p. 10).

Com base nestes pressupostos, observamos o quadro 2:

Quadro 2 Aluno é só da sala de aula - dados da Sessão Reflexiva referente ao curta-metragem “Cordas” do aluno Gustavo (G) - Turma B 

Tema Significação Exemplo
Compreensão das relações envolvendo os alunos A responsabilidade deveria ser de todas as pessoas Ajudar é bom M20: Você já viu algo parecido, alguém que tenha feito alguma coisa assim pra ajudar uma pessoa que tenha deficiência, alguém que tenha cadeira de rodas, você já viu alguém ajudando? G20: Hum::... é... eu só vi... o... eu num... eu só vi a... alguém ajudandoa Lucinha... é hum... eu só vi nós ajudando, mas eu não vi mais ninguém não. M21: Ah, vocês da sala? G21: Só. Mas eu não vi mais ninguém assim ajudando assim. M22: E o que você acha disso? G22: Ah, hum... disso? M23: É, que só vocês que ajudam? G23: Bom. M24: É bom que só vocês ajudam? G24: Eles também. M25: Eles poderiam ajudar? G25: Hru hru. ((movimenta a cabeça positivamente)) M26: Outras pessoas ajudar a Lucinha. Como que poderia ser? G26: Outras pessoas ajudar a Lucinha? ((fala num tom de voz mais baixo do que o habitual)) M27: Outras crianças de outras salas poderiam ajudar? G27: Sim. M28: Como que eles poderiam fazer? G28: Ajudar ela... a desenhar que ela não sabe.

Fonte: Elaborado pela pesquisadora (2021).

No excerto do quadro 2, Gustavo relata que só percebe que os alunos da sua sala de aula ajudam a aluna com deficiência e que demais pessoas da escola também poderiam ajudar: “Mas eu não vi mais ninguém assim ajudando assim”, estabelecendo um discurso implicado (BRONCKART 1999): “eu só vi nós ajudando, mas eu não vi mais ninguém não”.

O discurso estabelecido por Gustavo é um assunto que permeia muitas reuniões de professores por se tratar da responsabilidade de ter um aluno com deficiência na escola regular. Afinal, este aluno é da escola ou da professora? Todos temos implicações e responsabilidades com este aluno ou esta é uma tarefa da sua professora?

O questionamento do aluno Gustavo, de 8 anos de idade, sobre seu estranhamento de que somente os alunos da sua sala ajudam a aluna com deficiência nos alerta para esta discussão: o aluno com deficiência é um aluno da escola ou da professora que o recebeu?

Para o aluno Gustavo, de oito anos, a responsabilidade para com os alunos com deficiência deveria ser de todos.

Outra discussão que permeou este estudo, encontra-se em um grandes postulados da teoria socio-histórico cultural está alicercado na compreensão de que as Funções Psicológicas Superiores (aquelas que não são herdadas pelo biológico) tem sua origem a partir do desenvolvimento social, ou seja, a partir das interações sociais. Para Vygotsky ; todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e, depois no nível individual; primeiro entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica)” (VYGOTSKY,(2004), p. 64).

A escola regular que tem alunos com deficiência matriculados torna-se o espaço de interação no qual os alunos sem deficiência criam relações de amizade, cuidado e afeto com o aluno com deficiência, sendo primeiro no nível social e depois no nível individual.

Nas palavras de Vygotsky (2010):

As funções psicológicas superiores da criança, as propriedades superiores específicas ao homem, surgem a princípio como formas de comportamento coletivo da criança, como formas de cooperação com outras pessoas, e apenas posteriormente elas se tornam funções interiores individuais da própria criança (p.699).

Uma das formas de cooperação com outras pessoas, está exemplificada no quadro 3:

Quadro 3 Uma forma de cooperação - dados da Sessão Reflexiva referente à entrevista do aluno Antonio (AT) - Turma A 

Tema Significação Exemplo
Compreensão das relações envolvendo os alunos Ao estudar junto, todos aprendem M59: O que acontece se estudar alunos que sabem junto com alunos que não sabem? O que acontece? AT59: Mas não tem problema isso, porque o aluno que sabe vai ensinar o outro aluno. M60: E o que isso tem de bom? AT60: Aí os outros alunos têm que aprender com, aprender com ele, junto. M61: Isso é bom? AT61: É. M62: E o que isso tem de ruim? AT62: Tem nada de ruim.

Fonte: Elaborado pela pesquisadora (2021).

No excerto do quadro 3, Antonio utiliza-se de um discurso autônomo (BRONCKART, 1999) quando escolhe: “o aluno que sabe vai ensinar o outro aluno” eos outros alunos têm que aprender com, aprender com ele”, preferindo distanciamento nesta ação, não se implicando, dando a entender que a ação vai acontecer com “os outros” com “o aluno”, não com ele, usando uma generalização. Antonio também se utiliza de uma modalização deôntica (BRONCKART,1999;) FIDALGO, 2018) quando diz: “os outros alunos têm que aprender”, atribuindo a obrigação social e razões para o agir.

O aluno não coloca os professores como os únicos detentores dos saberes/mediadores, mas focaliza os próprios alunos como mediadores de sua Zona de Desenvolvimento Proximal que, segundo Vygotsky (2009), estabelece-se como um processo de colaboração que aproxima os aprendizados, fazendo com haja uma intervenção entre aquele que ainda não sabe (aprendiz) e o par mais experiente para aquela tarefa (VYGOTSKY, 2009).

Desta forma, Antonio não atribui esta demanda ou responsabilidade para os professores (como os únicos que podem ser mediadores num espaço de aprendizagem), pois acredita que existem trocas entre colegas da mesma idade que podem ser benéficas para o aprendizado de alunos que estejam em fases de aprendizado ou desenvolvimento diferentes.

Essa interação através do par mais experiente também é perceptível no discurso de Juliana no quadro 4:

Quadro 4 Interação prazerosa - dados da Sessão Reflexiva referente à entrevista da aluna Juliana (J) - Turma B 

Tema Significação Exemplo
A compreensão das relações envolvendo os alunos É prazeroso brincar e conversar com a criança com deficiência É importante brincar e conversar com a criança com deficiência M13: A gente se sente melhor quando ajuda a Lúcia? J14: MUI - TO. M14: Muito melhor? J15: Hru, hru (movimenta a cabeça positivamente). Porque assim, eu sempre, tem vezes que eu peço para a Luciana ((cuidadora da Lúcia)), deixar ela do meu lado, assim eu quero brincar com ela, assim, conversar com ela, assim, tentar fazer algumas coisas legais. Teve uma vez que eu li um livrinho pra ela, eu dei atenção pra ela, eu BRINQUEI, eu empurrei, eu mandei a Luciana deixar ela do meu lado. Foi muito delicioso. M15: Ela é muito importante pra você né Juliana, você fala dela com muito carinho, parece que ela é muito importante pra você. J16: É. Porque assim, é importante pra mim porque ela é uma menina diferente:: e muito boa assim. Eu NUNCA deixei de dar atenção, de brincar, assim, às vezes eu não faço isso porque eu tenho que fazer muita lição e... M17: Eu sei como é. J17: E eu fico atrasada. (...) J39: E aí, também eu me sinto um pouco responsável por ela, porque eu leio história, quando, não toda hora, mas eu vou lá brincar com ela, porque eu tenho muitas lições para fazer, certo? Quando acabo o meu dever, vou ler um livro, e se ela está lá, sozinha, eu vou lá, brinco com ela, leio uma história, mostro algum objeto bom para ela ficar lá vendo, observando, sentindo, sabe, é bem gostoso isso.

Fonte: Elaborado pela pesquisadora (2021).

No excerto do quadro 4, Juliana utiliza-se de um discurso implicado (BRONCKART,1999) quando escolhe: “eu peço para a Luciana”, “eu quero brincar com ela”, “eu li um livrinho pra ela”, indicando estar envolvida com a ação de maneira próxima. Juliana também faz uso de modalizações deônticas (BRONCKART, 1999;) FIDALGO, 2018): “eu tenho muitas lições para fazer”, demonstrando sua obrigação social referindo-se ao mundo social. Porém, também faz uso de modulações pragmáticas (FIDALGO, 2018):“eu quero brincar com ela, (...) tentar fazer algumas coisas legais”, atribuindo razões para o agir.

No seu discurso, Juliana compactua com a Declaração sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 9 de dezembro de 1975:

As pessoas deficientes têm o direito inerente de respeito por sua dignidade humana. As pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quanto possível (ONU, 1975, p. 1).

Através da sua interação com Lúcia (nas falas da aluna) “ela tenta” incluir a aluna com deficiência no ambiente escolar (lendo um livro, brincando, mostrando um objeto) sem deixar de lado suas obrigações como aluna.

A interação prazerosa apontada por Juliana é percebida em muitos outros discursos na Turma B, como no apontado do quadro 5:

Quadro 5  Interação traz felicidade - dados da Sessão Reflexiva referente à entrevista do aluno Leonardo H. (LH) - Turma B 

Tema Significação Exemplo
A compreensão das relações envolvendo os alunos Interagir com a colega com deficiência traz felicidade M6: Hum, o que mais que é a tarefa do ajudante do dia? LH6: Ajudar a Lúcia, também. M7: Ah, ajudar a Lúcia. Quem é Lúcia? LH7: A Lúcia é da minha sala. M8: Quem é essa menina? LH8: A que anda de cadeira. M9: Ah, ela vai de cadeira de rodas? LH9: Hru hru. ((movimenta a cabeça positivamente)) M10: Ah, tá. E ajudante do dia tem que fazer o que com a Lúcia? LH10: Ajudar. M11: Fazer o que? Ajudar a fazer o que? LH11: Ah::... É::... fazer brincadeiras com ela. M12: Fazer brincadeiras como? Me explica, não sei. LH12: Fazer um show de fantoche... M13: Brincar de fantoche com ela. O que mais? LH13: É... ler um livro. M14: Ler um livro... você já foi ajudante do dia, e você fez essas coisas? LH14: Fiz. M15: Como foi? LH15: Foi legal, e eu me senti muito feliz... (...) M19: E por que você ficou feliz ao ajudar a Lúcia? LH19: Que eu::... eu gosto de ajudar pessoas.

Fonte: Elaborado pela pesquisadora (2021).

No excerto do quadro 5, Leonardo utiliza-se de um discurso implicado (BRONCKART,1999) quando escolhe: “eu me senti” e “eu gosto”, demonstrando envolvimento e proximidade na ação. Leonardo também se utiliza de modalizações apreciativas “eu gosto de ajudar pessoas”, referindo-se ao mundo subjetivo (FIDALGO, 2018).

Neste excerto, Leonardo atribui ao ajudar as pessoas um sentimento de felicidade. Vygotsky (2009) acreditava que:

O pensamento não nasce de si mesmo, nem de outro pensamento, mas da esfera motivadora de nossa consciência, que abarca nossas inclinações e nossas necessidades, nossos interesses e impulsos, nossos afetos e emoções (p. 343).

Portanto, a emoção relatada por Leonardo se manifesta mediante a interação com a aluna Lúcia no seu convívio social e não somente por vias biológicas (orgânicas) sentidas por ele, mas ocorrem na interação (e por causa desta) entre ele e alguém que precisa de ajuda. E, para isso, escolhemos citar Spinoza, quando nos alerta: “Devemos notar que ao ordenar os nossos pensamentos e as nossas imagens, devemos sempre atender ao que há de bom em cada coisa, para que sejamos sempre determinados a agir por um afeto de alegria” (SPINOZA, 2007, 7 p. 309).

Este mesmo sentimento está presente no discurso de André, no quadro 6:

Quadro 6 Ajudar quem é diferente é um ato solidário - dados da Sessão Reflexiva referente ao curta-metragem “Cordas” do aluno André (AN) - Turma B 

Tema Significação Exemplo
Compreensão das relações envolvendo os alunos Ajudar a colega com deficiência é bom Ajudar as pessoas com deficiência a fazerem o que não conseguem sozinhas M52: E o que tem de igual entre os meninos lá da escola, os meninos que não queriam ser amigos, e você? O que vocês têm de igual, você e aqueles meninos? AN52: Ah, não... nada... nada... porque eu não sei, eufaria... eu... eu ia... se perguntasse quem era ele também ia ajudar ele, fazer algumas coisas. M53: Então você não tem nada de igual dos meninos? AN53: Não. M54: E o que você tem de diferente? AN54: É que eu gosto, eu gosto das pessoas e também acho legal ajudar alguém diferente. M55: O que você tem de igual da Maria? AN55: Ah, ser carinho e também ajudar os outros a fazer as coisas que não conseguem. M56: A única diferença é que você é menino e ela é menina. Porque você é igualzinho a Maria, sabia? Você também é carinhoso, você também ajuda... André, no filme, a Maria faz coisas junto com o menino, né? Várias coisas. O que você faz junto com a Lúcia? AN56: Ah, eu ajudo ela a fazer algumas coisas, tipo, brincar de fantoche, fazer... pegar um... brinquedo. ((fala num tom de voz mais baixo do que o habitual)) M57: Tem alguém na sua sala que você conhece, que é igual aqueles meninos do filme, que não querem ser amigo da Lúcia? AN57: Eu não conheço... ninguém...

Fonte: Elaborado pela pesquisadora (2021).

No excerto do quadro 6, André aponta um discurso implicado (BRONCKART, 1999) quando escolhe: “eu não sei, eu faria...eu... eu ia”,“eu gosto”, “eu ajudo ela”, demonstrando estar inserido na ação. André também utiliza de modalizações apreciativas (FIDALGO, 2018) “eu gosto das pessoas” que se referem à metaverbos ligados ao mundo subjetivo.

Para refletir sobre a influência das relações nas emoções sentidas pelos alunos dos excertos acima,

Toda emoção é um chamamento à ação ou uma renúncia a ela. Nenhum sentimento pode permanecer indiferente e infrutífero no comportamento. Ao sermos afetados, se alteram as conexões iniciais entre mente e corpo, pois os componentes psíquicos e orgânicos da reação emocional se estendem a todas as funções psicológicas superiores iniciais em que se produziram, surgindo uma nova ordem e novas conexões. (VYGOTSKY,2003, p. 139)

A emoção gerada (felicidade) na interação que Leonardo e André têm com Lúcia promove um estímulo em direção à reação de ajudar, partindo do coletivo para uma ação individual e intrapsicológica. Para estes alunos, interagir com Lúcia é um ato prazeroso, que lhes promove felicidade e gosto por poder ajudar; assim, esta experiência poderá refletir positivamente na construção social destas crianças em adultos mais solidários e que se importem com o próximo, o que aparece na fala do aluno André: “Ah, ser carinho e também ajudar os outros a fazer as coisas que não conseguem”.

Notamos, nos discursos dos alunos que compõem este conteúdo temático, - tendo como proposta discutir a interação entre os alunos:a) que a heterogeneidade deste ambiente escolar é significativa nas suas relações;b) que a concepção de deficiência é percebida como diferença (e não como diminuição); c) a diferença notada necessita de alguns cuidados como, por exemplo, uma atenção dirigida na sua especificidade. Por fim, encontramos também um discurso recheado de afeto e responsabilidade.

Para finalizar nossas discussões, trouxemos um fato que ocorreu na Turma A (1º Ano - alunos de 6 e 7 anos): todos os alunos, exceto Ema, indicaram que na sala de aula deles não havia aluno diferente. Alguns atribuíram a diferença a um cabelo mais crespo ou a um estojo diferente e outros atribuíram como diferente aqueles alunos novos que eles ainda não conheciam. No entanto, Ema foi a única a perceber a diferença entre ela e seu colega com deficiência, como podemos perceber no quadro 7, que compõe parte do título deste trabalho:

Quadro 7 Todo mundo tem um probleminha - dados da entrevista da aluna Ema (EM) - Turma A 

Tema Significação Exemplo
Compreensão das relações envolvendo os alunos Reconhecimento das diferenças e dificuldades de todos M35: Ah, mas por que ele é diferente Ema, me explica. EM35: Ele disse assim ó: “Ema, você gosta mesmo, assim de mim, mesmo com esse, o meu olho assim fechado”. Aí... M37: E o que você respondeu? EM37: Eu disse assim: “Fábio, eu gosto sim, isso é normal e eu que tenho uma hérnia. M38: Mas o que você achou disso que ele te perguntou? EM38: Eu achei meio estranho que ele pergunta isso sendo que eu tenho uma hérnia que também é estranho o meu, aí, eu achei bem esquisito quando o Fábio perguntou isso. M42: Mas ele é diferente ou não? M44: Ele não é diferente? EM44: Não. Todo mundo tem um probleminha. M45: Ah, todo mundo tem um probleminha? EM45: ((movimenta a cabeça positivamente)) Que nem uma professora, que a minha professora teve que fazer um curso aqui, ai, veio outra e ela tinha sobrancelha de uma cor e cabelo de outra. Todo mundo tem um probleminha. M46: E o problema do Fábio é qual? EM46: Ele acha que o problema dele, ELE ACHA não é, ele acha que o problema dele é o olho. M47: Ah, ele acha. E você acha? EM47: ... *2 segundos* não sei se é o olho ou se ele tem outros problemas também.

Fonte: Elaborado pela pesquisadora (2021).

No excerto do quadro 7, Ema apresenta um discurso implicado (BRONCKART, 1999), como indica na série de “eu gosto sim”, “e eu que tenho uma hérnia”, “eu achei bem esquisito”. Através desta escolha, Ema demonstra que está próxima do que acontece, envolvida neste processo que a faz refletir que a diferença é o que nos caracteriza, indicando que “Todo mundo tem um probleminha”: o do seu colega com deficiência é o olho fechado, o dela é a hérnia, o da professora substituta era a cor da sobrancelha e, assim, entende que o ser humano apresenta diferenças, o que atribui como “probleminhas”. Todavia, quando questionado se o olho de Fábio é um problema, indica que não, incluindo seu colega com deficiência em seu convívio, não estipulando distinções ou exclusões.

O discurso de Ema é carregado de verbos de atitude proposicional (KOCH, 2000) tanto quando se refere a ela mesma: “eu achei”, como também quando se refere ao Fábio: “ele acha”, atribuindo a este discurso um mundo subjetivo, que denota as afirmações do que acredita e pensa, de maneira individual.

Outro ponto a destacar é quanto à afirmação enfática de Ema sobre o fato de que quem atribui um problema ao olho do colega não é ela, e sim o próprio aluno com deficiência: “Ele acha que o problema dele, ELE ACHA não é, ele acha que o problema dele é o olho”. O aluno Fábio não apresenta cegueira - ainda não possui um diagnóstico sobre a sua visão -, contudo, apoiamo-nos em Vygotsky, que destaca: “É importante que a educação vise à realização plena do potencial social e considere que esse é um alvo real e definido. A educação não deve nutrir o pensamento de que uma criança cega está condenada à inferioridade social” (VYGOTSKY, 2012, p. 63).

O que se destaca no discurso de Ema é a noção de que Fábio (apesar de ela achar o contrário) está preocupado com a sua limitação, com a sua falta, no sentido de perceber que a sua deficiência é socialmente construída, apresentando uma “consciência social do defeito”: “toda a Psicologia da criança anormal foi construída, em geral, pelo método da subtração das funções perdidas em relação à Psicologia da criança normal” (VYGOTSKY, 2012, p.187). O que nos chama a atenção no excerto da entrevista de Ema é que a aluna ressalta novamente que quem estipulou a limitação foi a própria criança com deficiência, pois ela não o percebe pelo viés da falta, da limitação.

A mesma visão que Ema nos expõe - percebendo a diferença, não a inferiorizando - deveria ser compartilhada nas escolas inclusivas para atender a todos os alunos, respeitando-se suas singularidades, especificidades e diferenças, rompendo com a ideia de um ensino igualitário, em que todos são vistos e considerados com as mesmas potencialidades.

Conclusão

O objetivo desta subseção era responder à pergunta: de que forma as crianças sem deficiência compreendem as relações da sala de aula com um aluno com deficiência?

Certos alunos denunciaram que a aluna com deficiência deveria ser responsabilidade de todos, e não apenas de alguns colegas da escola, ratificando uma discussão antiga na Educação Inclusiva, intitulada “Este aluno é de quem?”, sendo que poucos se envolvem com as ações relativas à inclusão. Segundo esta “denúncia”, encontra-se, na Declaração de Salamanca, indicações feitas às escolas para que a responsabilidade de alunos com deficiência não ficasse somente depositada em um professor, e como ainda relatado pelos alunos, nem somente na responsabilidade deste grupo de colegas, indo ao encontro do postulado no documento internacional:

Cada escola deveria ser uma comunidade coletivamente responsável pelo sucesso ou fracasso de cada estudante. O grupo de educadores, ao invés de professores individualmente, deveria dividir a responsabilidade pela educação de crianças com necessidades especiais. Pais e voluntários deveriam ser convidados a assumir participação ativa no trabalho da escola (ONU, 1994, p. 10).

Observou-se muitos relatos que evidenciaram os benefícios que a interação trouxe para muitos deles, com sentimentos de bem-estar e felicidade pela presença da aluna com deficiência, que foram propiciados pela participação efetiva nas tarefas que envolvem a aluna. E, finalmente, entramos em contato com o relato de Ema, que contém a frase que deu título a esta pesquisa: “todo mundo tem um probleminha”, reforçando a ideia de que todos somos diferentes e devemos ser entendidos e aceitos por esta característica.

Dessa forma, adentrar no universo infantil, tendo como base metodológica a possibilidade de ouvir crianças, permitindo-lhes ser reflexivos e críticos - no rompimento de barreiras de silenciamento que fazem parte do cotidiano escolar - fez com que esta pesquisadora estivesse frente ao inusitado, ao encantado, ao espontâneo, a cada vez que uma pergunta lhe era dirigida. Este processo tornou impossível a pesquisadora-participante não ser modificada, abalada e contaminada pelas falas e significações das crianças.

Referências

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Recebido: 13 de Junho de 2021; Aceito: 21 de Fevereiro de 2022; Publicado: 09 de Agosto de 2023

1

O termo criança anormal, utilizado neste trabalho, foi mantido por corresponder à terminologia utilizada no início do século XX, quando Vygotsky produziu seus textos. Atualmente, seria equivalente à expressão criança com deficiência.

2

Retirado de “La defectologia y la teoria del desarrollo y la educación del niño anormal” - Escritos sem data.

3

Ao indicar a Educação Especial para esta função, entendemos como fundamental observar o momento histórico em que esta teoria se insere

4

Retirado de “La defectologia y la teoria del desarrollo y La educación del niño anormal” - Escritos sem data

5

Segundo Aguiar, Soares e Machado (2015, p. 27) “A ideia de significação (...) remete à dialética que configura a relação entre sentidos e significados constituídos pelo sujeito frente à realidade na qual atua”.

6

A professora pede para o ajudante do dia fazer a chamada dos alunos na lousa, colocando o número de meninos e meninas, e o total de alunos

7

A grafia Espinoza também é utilizada, porém, neste trabalho, adotaremos Spinoza

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