INTRODUÇÃO
As práticas desportivas são das manifestações humanas mais antigas de que há registro na história da humanidade, tendo integrado várias culturas de povos ao redor do globo e em períodos de tempo diferentes, como os egípcios, os gregos, os maias e os chineses (MANDELL, 1986; TUBINO, 1987). Progressivamente, foram incorporadas às estruturas sociais das épocas vigentes, adaptando-se aos costumes e necessidades dos povos através dos séculos. Hoje, as práticas desportivas são perpetuadas e difundidas como nunca na história humana, superando pacientemente diversos conflitos sociais, políticos, bélicos, econômicos e religiosos. É sob essa guisa que Bento e Bento (2014, p.51) esclarecem sobre o desporto que este categórica e “Essencialmente pertence ao domínio do simbólico e ‘artístico’: cumpre objetivos educativos, sociais, filosóficos e culturais, éticos, estéticos e morais. Serve o processo civilizador, isto é, visa melhorar o índice de civilização”.
Assim, há tempos o desporto passa a ser inscrito como um meio educativo para a transmissão axiológica, ou seja, uma educação de valores (PATRICIO, 1993; BENTO, 1995; RUBIO, 2002). Dentre tais valores destacam-se aqui a ética e a estética, tidos como dois dos pilares do pensamento filosófico e educacional. A ética (considerando todas as suas possibilidades de extensão) talvez seja uma das temáticas mais discutidas, mesmo que informalmente, no século XXI. A busca por um comportamento ético coletivo (e não somente individual) nas diversas esferas da sociedade humana é algo desejado por praticamente todos. A base da educação de uma cultura é permeada desses princípios éticos e morais (KANT, 1996), sendo útil ainda para a busca do bem e a preservação da civilização (RIBEIRO; ZANCANARO, 2011). Já a estética anda de mãos dadas à ética e busca seu nome no sentir, na emoção, na experiência que aflora o prazer sensível (PERNIOLA, 1998), sendo ainda esclarecido por Townsend (1997, p.10) que “A estética nasce da tentativa de explicitar o papel que as sensações e as emoções desempenham no pensamento humano”.
No universo desportivo, as artes marciais são popularmente reconhecidas como práticas disciplinadoras e educativas, exigindo não só dedicação no treino físico, mas ainda respeito e zelo no comportamento diário para consigo mesmo e para com o próximo (LIMA, 2000; IEDWAB, STANDEFER, 2001; MOCARZEL, COLUMÁ, 2015). Antes mais difundidas no Oriente, hoje as artes marciais são propagadas mundo afora incluindo o Ocidente. Dentre as artes marciais mais antigas e tradicionais destaca-se aqui o Wushu, arte marcial chinesa mundialmente conhecida como Kung-Fu.
O Kung-Fu é uma arte marcial chinesa com registros datados de mais de dois milênios antes de Cristo, correspondendo a um dos mais antigos métodos de autodefesa da humanidade (TUBINO; TUBINO; GARRIDO, 2007; MOCARZEL, 2011). Ao decorrer dos tempos, o Kung-Fu foi absorvendo e enriqueceu seu conteúdo com diversos componentes da cultura chinesa, conglomerando elementos históricos, marciais, terapêuticos, folclóricos e filosóficos (LIMA, 2000; APOLLONI, 2004; ACEVEDO; GUTIÉRREZ; CHEUNG, 2011; MOCARZEL, 2011; CARNEIRO, 2013).
Ao que tange a compleição filosófica do Kung-Fu, pode-se afirmar que boa parte de sua natureza adveio de influência direta de pensamentos taoístas e confucionistas, filosofias extremamente presentes na história da China antiga e que ajudaram a alicerçar princípios da medicina tradicional chinesa ou MTC (MOCARZEL; COLUMÁ, 2015) e do budismo (APOLLONI, 2004; ILUNDÁIN-AGURRUZA, 2014). Tais influências também se fazem sentir no valor educativo do Kung-Fu, como pacifismo, harmonia, virtude e etocracia - princípio que prega os superiores serem exemplo vivo aos seus subordinados (MURAD, 2009).
Ao observar o Kung-Fu sob um espectro mais amplo, o mesmo não é visto tão somente como um método de autodefesa, mas como prática de transmissão de valores educacionais e que direciona seus praticantes até mesmo para uma trajetória de busca espiritual e perpétua, em prol de uma evolução do próprio ser (BÄCK; KIM, 1979; ALLEN, 2013). Tal fato é o que faz o Kung-Fu ser reconhecido como arte marcial, pois este conceito denota técnicas marciais que por sua vez são alicerçadas em princípios educacionais sólidos e massivos, que pregam harmonia, qualidade de vida, mas acima de tudo o pacifismo por seus praticantes (MOCARZEL; COLUMÁ, 2015). Dando maior suporte a esse entendimento, Ilundáin-Agurruza (2014, p.464) traz sua reflexão sobre o referido conceito, destacando que o mesmo está imerso em valores, principalmente éticos e estéticos: “Estes caminhos [artes marciais] são formas práticas e normativas notáveis que dão ética, estética e princípios existenciais e valores”1.
Faz-se importante o seguinte esclarecimento. O entendimento ocidental sobre a ética é maioritariamente convergido em seus primórdios principalmente a Platão e Aristóteles, filósofos gregos que viveram no período clássico da Grécia antiga no século V a.C.; período esse extremamente próximo a Confúcio, filósofo ícone do pensamento antigo chinês e oriental que viveu poucas décadas antes na China antiga. Os aforismos e reflexões dos três filósofos aqui citados bebem de fontes humanistas, onde enaltecem a virtude, uma meta a ser almejada pelo indivíduo. Contudo, Confúcio se posta de maneira mais holística que seus colegas gregos. Enquanto Platão contemplava mais o imaterial e Aristóteles mais o material, Confúcio se posicionava em um patamar intermédio, afirmando que a busca pela harmonia e felicidade deveria ser encontrada no equilíbrio da saúde e paz física, mental e espiritual e que assim se perfazia o Tao - caminho de harmonia com o todo (BUENO, 2005) e algo objetivado por praticantes de Kung-Fu.
Já numa visão contemporânea, a ética também tem sido utilizada como lente temática para estudos sobre o universo da atividade física. Segundo Meinberg (1990), a atividade física tornou-se popularmente um meio de buscar uma “juventude prolongada”, todavia alerta que nem todas as formas práticas de atividade física e do desporto são benéficas à saúde, pois limites podem ser ultrapassados levando a mazelas e sequelas aos praticantes. Logo, constitui-se assim um interessante e atual campo de estudo da ética. Reconhece-se que a promoção da saúde do corpo e de sua beleza estético-cosmética sejam valores e que devem ser levados em consideração. Todavia, as principais preocupações de uma educação ético-estética vão para muito além da matéria ou mesmo da carne, buscando assim servir ao desenvolvimento da natureza humana em sua plenitude pura (ABE, 1986). É nessa guisa educativa filosófica que nas artes marciais se constitui o Homo Disciplinatus (MOCARZEL; MURAD, 2012).
Curiosamente, mesmo o Kung-Fu já sendo uma arte marcial milenar e ser praticado mundo afora, apresenta no Ocidente poucas referências bibliográficas que explanem de forma detalhada e profunda seus fundamentos filosóficos, principalmente a ética e a estética. Tal fato agrava-se quando em idioma português (MOCARZEL; QUEIRÓS; LACERDA, 2016). Boa parte dessa carência se respalda em motivos histórico-culturais, onde Lima (2000) aponta dois dos principais obstáculos que atrapalham o desenvolvimento de estudos mais profundos sobre esse tema. O primeiro mais distante, onde ocorriam ordens de destruição de registros culturais e documentais do povo vencido em batalha. O segundo cita a subjetividade cultural chinesa, rica em metáforas, filosofias, linguagens, dialetos, com ideogramas que podem ser traduzidos de diferentes formas. Por tais problemáticas, a transmissão oral passou a ser valorizada como forma de comunicação e perpetuação da informação na cultura chinesa (GRANET, 1997), tornando escritos de fontes confiáveis mais incomuns. No universo marcial, Ferreira (2005) diz que a transmissão oral tornou-se comum, sendo o ato de falar a verdade uma demonstração de nobreza e honradez. Contudo, não se pode deixar de ter o pensamento crítico, pois a relação “mestre-discípulo” é passível de falha tratando-se de uma comunicação entre seres humanos; ou seja, seres imperfeitos providos de ego, podendo manifestar arrogância, soberba e vaidade, para além de equívocos e desconhecimento de assuntos. Nesse entendimento, Luc Ferry (1997) já alertava não ser incomum o narcisismo (mesmo velado) sobrepor-se à ética.
Traz-se também que o ego humano alimenta emoções tidas por filósofos como menores e inferiores, ferindo valores éticos e estéticos. Apesar do termo “estética” só ter sido cunhado por Alexander Baumgarten em 1750 (HERMANN, 2005), seu entendimento de busca da perfeição, dedicação genuína e zelo já eram enaltecidos séculos antes de Cristo. Os gregos em busca da Paidéia (NÓVOA, 1991) e povos orientais em busca da transcendência e iluminação (LIMA, 2000; ALLEN, 2013). Cada um ao seu modo, objetivando a aproximação do divino. Mais: soma-se a isso um famoso e profundo lamento de Confúcio onde disse não ter visto alguém que ame a virtude tanto quanto a beleza do corpo. Logo, demonstra-se aqui que a tensão entre virtude e vício está inscrita na “matriz humana”, sendo comum a todos os períodos da humanidade e locais do globo.
É importante aprofundar esta temática à luz do conhecimento produzido nas últimas décadas, pelo que se torna necessário identificar, analisar e compreender o aporte que a literatura (desde os anos de 1990 até dias atuais) traz relativamente ao valor educativo do Kung-Fu. Neste sentido, o objetivo deste estudo foi analisar os trabalhos publicados que incidem sobre os valores éticos e estéticos no contexto do Kung-Fu, sinalizando o seu potencial educativo. De forma específica, buscou-se destacar por meio das pesquisas encontradas como e em que proporções surgem enunciados que convocam o domínio da ética e da estética, convergindo para o valor educativo do Kung-Fu.
Justifica-se este estudo sob a argumentação que a maioria das pesquisas em português no campo das artes marciais não recai sobre a filosofia do desporto - que conglomera a ética e estética. Fato que se agrava quando convergido ao Kung-Fu pela carência em referências (CORREIA; FRANCHINI, 2010). Especificamente a estética ainda aparenta ser mais esquecida mesmo em um campo de pesquisa mais abrangente como o da educação física e desportos, supostamente a área mais indicada para pesquisas nas artes marciais (GRAÇA; LACERDA, 2012). Assim, espera-se que este estudo traga colaborações aos meios acadêmicos, desportivos e marciais, enriquecendo o entendimento da ética e estética no Kung-Fu.
MÉTODO
Este estudo é de natureza qualitativa e ainda sim se buscou não desprezar alguns dados quantitativos, que colaboraram com o enriquecimento de informações (THOMAS; NELSON; SILVERMAN, 2007).
Fez-se uso da revisão sistemática na vertente qualitativa (GOMES; CAMINHA, 2014). Tal método foi selecionado, pois Sampaio e Mancini (2007) defendem que a revisão sistemática norteia o desenvolvimento de pesquisas sobre uma temática conglomerando estudos diversos, tornando-se um recurso importante perante o crescimento acelerado da informação científica, ajudando a sintetizar evidências disponíveis na literatura mesmo que escassas. Mais; seus resultados passam a ser significativas referências para estudos futuros sobre as temáticas abordadas. Assim, realizou-se uma busca de estudos acadêmicos em bases de dados por meio do motor de busca “Descoberta”2, que faz uso das bases de dados Scopus, Ebsco, Web of Science (antiga Web of Knowledge), Pubmed e B-on.
Decidiu-se realizar a pesquisa para recolher estudos que atuassem amplamente sobre o Kung-Fu e especificamente explorassem suas questões éticas e estéticas. Dessa forma, foram efetuadas algumas buscas como ponto de partida do estudo fazendo uso das seguintes palavras-chave (em português, inglês e espanhol): "kung-fu" ou “kungfu” ou "kung fu" ou "wushu” e “estética” e “ética”, tendo as variações da escrita do nome da referida arte marcial alicerçadas pela pesquisa de Pérez-Gutiérrez, Gutiérrez-García e Escobar-Molina (2011). Inesperadamente, resultados emergiram de maneira muito discrepante e alternante, demonstrando muito ruído e excessos. Contudo, tendo retirado as expressões “estética” e “ética” e refazendo a pesquisa durante os primeiros dez dias de janeiro de 2018, objetivando, de tal modo, observar uma constância de resultados homogêneos, os números que surgiram foram concisos.
Dessa forma, a revisão sistemática foi realizada em etapas. Inicialmente, o uso do motor de busca foi concretizado no mês de janeiro de 2018. Elencaram-se as seguintes palavras: "kung-fu" ou “kungfu” ou "kung fu" ou "wushu”. Determinou-se os campos de pesquisa nas áreas disciplinares de “Antropologia”, “Artes Dramáticas e Teatro”, “Educação”, “Estudos Culturais Étnicos”, “Cinema”, “Saúde e Medicina”, “História”, “Ciência e História Militar”, “Nutrição e Dietética”, “Psicologia”, “Religião e Filosofia”, “Ciências Sociais e Humanas”, “Sociologia”, “Esporte e Lazer”, “Medicina Esportiva”. Na primeira etapa analisaram-se títulos, resumos e palavras-chave das publicações encontradas tendo como expansores assuntos equivalentes e pesquisas também no texto completo dos artigos. Como limitadores da pesquisa, definiu-se a procura de textos completos nos idiomas português, inglês e espanhol, que tenham sido publicados em periódicos com a avaliação de especialistas. Não foi determinado qualquer período temporal.
Como segunda etapa, verificou-se cada um dos textos recolhidos, retirando documentos destoantes da temática e parâmetros relatados que porventura tenham transpassado os filtros selecionados, assim como textos duplicados.
Por fim, como terceira e última etapa, efetuou-se a leitura completa dos textos de todos os artigos para que de maneira mais segura fosse possível trazer à luz através da análise de conteúdo de Bardin (2004) os trabalhos que ao menos minimamente abordassem de forma mais específica questões éticas e/ou estéticas do Kung-Fu, citando, por exemplo: superação, aprimoramento, beleza, zelo, respeito, virtude, paz, socialização, harmonia e afins.
RESULTADOS & DISCUSSÃO
Inicialmente os resultados acusavam 392 artigos. Após a aplicação de todos os critérios iniciais de inclusão e exclusão da pesquisa obteve-se o resultado de 36 artigos. Estes são aqui expostos em ordem alfabética pelos títulos dos estudos, pontuando seus autores e nomes das revistas com os anos de publicação.
TÍTULO DOS ESTUDOS | AUTOR(ES) | REVISTA (ANO) |
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A history of physical activity, health and medicine | Domhnall MacAuley | Journal of the Royal Society of Medicine (1994) |
Kung Fu fighting - The cultural pedagogy of the body in the Vovinam Overseas Vietnamese Martial Arts School | Ashley Carruthers | The Australian Journal of Anthropology (1998) |
Kung fu: negotiating Nationalism and modernity | Siu Leung Li | Cultural Studies (2001) |
Muslim Martial Arts in China: Tangping (Washing Cans) and Self-defense | Helena Hallenberg | Journal of Muslim Minority Affairs (2002) |
Crouching Tiger, Hidden Dragon: Kung Fu Diplomacy and the Dream of Cultural China | John R. Eperjesi | Asian Studies Review (2004) |
Martial arts - enactment of aggression or integrative space? | Viqui Rosenberg e Carlos Sapochnik | Psychodynamic Practice (2005) |
Virtual bodies, flying objects: the digital imaginary in contemporary martial arts films | Vivian Lee | Journal of Chinese Cinemas (2006) |
Goal profiles, mental toughness and its influence on performance outcomes among Wushu athletes | Garry Kuan e Jolly Roy | Journal of Sports Science and Medicine (2007) |
‘To Push the Actor-Training to its Extreme’: Training Process in Ingemar Lindh's Practice of Collective Improvisation | Frank Camilleri | Contemporary Theatre Review (2008) |
Health benefits of Kung Fu: A systematic review | Tracey Wai Man Tsang, Michael Kohn, Chin Moi Chow e Maria Fiatarone Singh | Journal of Sports Sciences (2008) |
A randomized placebo-exercise controlled trial of Kung Fu training for improvements in body composition in overweight/obese adolescents: the “Martial Fitness” study | Tracey W. Tsang, Michael Kohn, Chin Moi Chow e Fiatarone Singh M. | Journal of Sports Science and Medicine (2009) |
Being Aggressive: An interpretative phenomenological analysis of kung fu practitioners’ experience of aggression | Roly Fletcher e Martin Milton | Existential Analysis: Journal of the Society for Existential Analysis (2009) |
Literatura Wushia, Budismo, marcialidade e ascese - da arte da guerra à historiografia sobre o mosteiro de Shaolin | José Otávio Aguiar | Antíteses (2009) |
‘It can be a religion if you want’ - Wing Chun Kung Fu as a secular religion | George Jennings, David Brown e Andrew C. Sparkes | Ethnography (2010) |
Effects of martial arts on health status - a systematic review | Bin Bu, Han Haijun, Liu Yong, Zhang Chaohui, Yang Xiaoyuan e Maria Fiatarone Singh | Journal of Evidence-Based Medicine (2010) |
An Obsessive’s Guide to Tea Obsession | Alexis Littlefield | Southeast Review of Asian Studies (2011) |
Illustration of Cultural Attributes in China Wushu Routine | Shiliang Yan | Asian Social Science (2011) |
Os primórdios da prática do wu-shu / kung fu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul (décadas de 1970-1990) | Tiago Oviedo Frosi, Wagner Maidana e Janice Zarpellon Mazo | Revista da Educação Física/UEM (2011) |
Walk in Balance: Training Crisis Intervention Team Police Officers as Compassionate Warriors | Brian A. Chopko | Journal of Creativity in Mental Health (2011) |
Wushu's Transformation from the Local Boxing Ring to the World Stage | Zheng Shuai | Journal of Asian Martial Arts (2011) |
Chinese wushu texts: function and translation | Yongzhou Luo | Perspectives: Studies in Translatology (2012) |
Contribution to the study of religious and philosophical basis of the far east martial arts | Aleksandar Filipović e Srećko Jovanović | Physical Culture (2012) |
Don’t think, feel: Mediatization of Chinese masculinities through martial arts films | Mie Hiramoto | Language & Communication (2012) |
Traditional Asian martial arts and youth: Experiences of young Chinese wushu athletes | Marc Theeboom, Zhu Dong e Jikkemien Vertonghen | Archives of Budo (2012) |
Self-Perception and Attitude Toward Physical Activity in Overweight / Obese Adolescents: The “Martial Fitness” Study | Tracey W. Tsang, Michael R. Kohn, Chin Moi Chow e Maria Fiatarone Singh | Research in Sports Medicine (2013) |
The Martial Arts and Buddhist Philosophy | Graham Priest | Royal Institute of Philosophy Supplement (2013) |
I Am the Invincible Sword Goddess: Mediatization of Chinese Gender Ideology through Female Kung-Fu Practitioners in Films | Mie Hiramoto e Cherise Shi Ling Teo | Societies (2014) |
Projecting the ‘Chineseness’: Nationalism, Identity and Chinese Martial Arts Films | Lu Zhouxiang, Qi Zhang e Fan Hong | The International Journal of the History of Sport (2014) |
Tai Ji Quan: An overview of its history, health benefits, and cultural value | Yucheng Guo, Pixiang Qiu e Taoguang Liu | Journal of Sport and Health Science (2014) |
Transmitting Health Philosophies through the Traditionalist Chinese Martial Arts in the UK | George Jennings | Societies (2014) |
A comparison of spectators’ motives at Wushu and amateur mixed martial arts events in Poland | Paweł Zembura | IDO MOVEMENT FOR CULTURE. Journal of Martial Arts Anthropology (2015) |
Mindful Fitness - Guidelines for Prenatal Practice | Kimberlee Bethany Bonura, Nina Ida Marie Spadaro e Rives Whittle Thornton | International Journal of Childbirth Education (2016) |
Tradição no kung fu: mestres brasileiros entre permanências e transformações | Marcio Antonio Tralci Filho | Movimento (2016) |
‘Wushu belongs to the world’ But the gold goes to China | Marc Theeboom, Dong Zhu e Jikkemien Vertonghen | International Review for the Sociology of Sport (2017) |
O wushu como uma ferramenta para o desenvolvimento motor, cognitivo e socioafetivo na escola - um estudo exploratório | Everton de Souza da Silva, Diego Pereira Alves, Lucas Ribeiro dos Santos, Marcelo Augusto P. dos Santos, Sumara Brito Soares e Bianca Miarka | Revista de Artes Marciales Asiáticas (2017) |
The journey to the cradle of martial arts: a case study of martial arts’ tourism | Wojciech J. Cynarski e Pawel Swider | IDO MOVEMENT FOR CULTURE. Journal of Martial Arts Anthropology (2017) |
Posterior à captação dos dados, iniciou-se a análise de conteúdo, buscando identificar predominâncias e padrões consistentes expressados nos trabalhos sobre aspectos éticos e estéticos no Kung-Fu. Como informações complementares foram observadas algumas questões, como: áreas acadêmicas específicas dos periódicos, idiomas publicados e anos das publicações. Após o fim da leitura de todas as pesquisas foi possível observar se a temática foi abordada de forma genérica superficial ou de forma específica aprofundada. Assim, deram-se os seguintes resultados expostos abaixo.
ÁREAS ACADÊMICAS | N°. DE PUBLICAÇÕES |
---|---|
Humana (história, cultura, sociedade, antropologia e religião) | 10 |
Educação física, desportos e medicina esportiva | 10 |
Lutas, artes marciais e desportos de combate | 5 |
Medicina | 3 |
Psicologia | 3 |
Artes cênicas e cinema | 2 |
Linguística | 2 |
Filosofia | 1 |
Em relação ao quantitativo de publicações por ano, nota-se (figura 1) que de fato houve uma razoável crescente a partir da segunda década do séc. XXI. Contudo, ainda aparenta ser um quantitativo muito abaixo do esperado de uma prática já milenar e famosa por seus fundamentos filosóficos popularmente conhecidos. O fato se agrava quando comparado às outras atividades físicas, esportes e mesmo artes marciais, ficando à margem. Foi notória a maioria das publicações em inglês com 32 estudos, tendo apenas quatro em português e nenhum em espanhol.
Destrinçando os artigos que surgiram nesta revisão sistemática, foi possível notar que a maioria dos estudos constituiu-se de ensaios que abordaram as temáticas filosóficas da ética e/ou estética de maneira superficial, dando maior foco ao que o meio acadêmico chama mais amplamente de “área humana”, havendo mistura e sincretismo nos campos da história, cultura, sociedade, antropologia e religião. Ali puderam ser analisadas questões que se mesclam aos ensinamentos perpetuados pelos pilares filosófico-religiosos do Oriente (taoísmo, confucionismo e budismo) até dias atuais, sendo um de seus principais difusores as artes marciais, incluindo aqui o Kung-Fu, mesmo que indiretamente (FILIPOVIĆ; JOVANOVIĆ, 2012). Por exemplo, Littlefield (2011) apresenta em sua publicação uma detalhada pesquisa sobre a famosa cerimônia do chá, evento tradicionalíssimo na cultura oriental, ocorrendo inclusive em festividades do Kung-Fu como demonstração de respeito e zelo aos antepassados ou como rito de passagem de graduações e/ou titulações.
Já de forma mais direta às práticas marciais, Aguiar (2009) aborda a ascese por meio das práticas ancestrais do Kung-Fu pelos monges de Shaolin (importantíssimo centro budista de difusão do Kung-Fu), que poderia ser entendida como uma forma de pensamento ou de fé que considera a disciplina e o autocontrole estritos do corpo e do espírito por um caminho imprescindível em direção ao divino, à verdade e virtude. Por tal entendimento que a ascese é estudada tanto por uma visão religiosa quanto filosófica, indo ao encontro e somando-se aos pensamentos éticos e estéticos para sua incorporação no dia a dia dos praticantes. Sabidamente, um tradicional método de treinamento e busca de uma prática virtuosa se dá através da prática de rotinas coreográficas do Kung-Fu chamadas taolus (MOCARZEL, 2011). Por meio delas os praticantes buscam não apenas o ensaio, erro e repetição da técnica, mas em muitas das vezes uma “incorporação mimética” da fonte inspiradora (como a águia, o tigre, o dragão, a flor de cerejeira, dentre outros) (Lima, 2000; ACEVEDO; GUTIÉRREZ; CHEUNG, 2011), objetivando criar uma execução em uma área convergente à funcionalidade marcial, promoção da saúde e qualidade de vida e beleza do movimento. Tal questão foi significativamente abordada no estudo de Yan (2011), onde também detalhou descritivamente algumas visões de cunho ético e estético da prática das rotinas no Kung-Fu, gerando sensibilização não apenas em seus praticantes, mas também em seus espectadores, característica essa singular e marcante da estética desportiva, como: fluidez de movimento, harmonia, expressão corporal e ritmo (MARQUES; LACERDA, 2012).
Contudo, de maneira em parte conflitante com tal abordagem histórico-filosófica descrita anteriormente, vê-se a temática desportivo-competitiva ganhando extrema atenção nas publicações, onde são majoritariamente exploradas questões direcionadas ao universo competitivo que é por sua vez apenas uma das faces de atuação das práticas marciais. Importante dizer que essa situação é conflitante, pois tal face desportivo-competitiva não é explorada ou mesmo é repudiada por alguns praticantes mais conservadores e rígidos. Mesmo assim ela surge cada vez mais forte no universo das publicações acadêmicas em uma crescente volumosa. Ao entrevistar vários Mestres tradicionais do Kung-Fu no Brasil, Tralci Filho (2016) se deparou com algumas questões aparentemente inesperadas. Em seu estudo ele abordaria questões tradicionais da filosofia do Kung-Fu, contudo acabou explorando mais os aspectos competitivos atuais da prática por conta da condução dos discursos dos Mestres em suas entrevistas (instrumento utilizado em sua pesquisa). É exatamente nessa guisa que é discorrido o estudo de Zheng Shuai (2011), onde o pesquisador traça as transformações do Kung-Fu para pouco a pouco ser adaptado e convergido de uma prática nacional para global (da China para o mundo). Ali ele defende tópicos de cunho ético e estético, deixando claro que estes podem ser parcialmente preservados quando o Kung-Fu deixa as mãos da sua nação-mãe e ganha novos horizontes, incluindo sua difusão desportivo-competitiva, tais como: beleza do movimento, superação, aprimoramento técnico, respeito e hierarquia. Já Theeboom, Dong e Vertonghen (2012) concordam com o pensamento anterior, contudo observam mesmo modestamente um menor foco pedagógico na transmissão teórica de valores (éticos e estéticos) para enfatizar treinos físicos ginásticos com foco competitivo, objetivando veementemente premiações e títulos.
Destacam-se também os diversos estudos que exploraram temáticas voltadas à promoção da saúde e qualidade de vida dos praticantes. Inclusive as duas únicas revisões sistemáticas que surgiram nessa pesquisa abordam pontualmente esse foco (TSANG ET AL., 2008; BU ET AL., 2010). As questões discutidas nos estudos citam a prática do Kung-Fu em sua visão holística, objetivando atingir para além de um corpo saudável, mas sim uma harmonia maior que vai além do corpo material adentrando em campos sociais, psicológicos, emocionais, alimentares e energéticos (SILVA ET Al., 2017), todos já preconizados na milenar MTC (MACIOCIA, 1996; LIMA, 2000). Enfim, uma prática de valor histórico, salutar, cultural, desportivo e marcial (GUO; QIU; LIU, 2014).
Por fim, diversos estudos abordam a busca pela transformação da ação do praticante para uma ação de não violência. Dentre eles, Fletcher e Milton (2009) expõem a mudança comportamental do praticante tendo seu foco na intenção das técnicas durante o treinamento, objetivando uma postura pacífica no dia a dia do praticante. Já Kuan e Roy (2007) exploram a premissa da autoconfiança, mostrando que desenvolvendo uma maior tenacidade mental os praticantes expressam suas personalidades com mais coragem e iniciativa. Essa mescla de uma personalidade de ação pacífica, determinada e confiante é utilizada para instrução a policiais e militares como relata Chopko (2011), usando os princípios educativos do Kung-Fu como exemplos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa buscou a identificação de estudos que fizessem uso do Kung-Fu como forma de transmissão de valores éticos e estéticos. Contudo ficou claro que suas narrativas eram em maioria pouco profundas e não exploraram suficientemente a temática. Os artigos sugerem a presença de importantes aspectos filosóficos enraizados às práticas e ensinamentos das artes marciais e, principalmente, do Kung-Fu, tais como respeito às hierarquias, dedicação constante, zelo ao fazer algo, conhecer e perpassar suas limitações respeitando sua mente e corpo, sabedoria para efetuar boas escolhas, liderar e saber ser liderado, adaptar-se aos tempos e dificuldades buscando harmonia, serenidade emocional em prol de um autocontrole e pacifismo. Todavia, detalhamentos mais extensos sobre as práticas foram escassos, sendo muitas vezes citados genérica e superficialmente. Além disso, demonstrou-se que a carência de estudos publicados na língua portuguesa sobre tal temática ainda se faz fortemente presente, mesmo com o razoável aumento de publicações nos últimos anos.