Introdução
Este artigo foi escrito no espaço estranho da quarentena que enclaustra os fluxos de coexistência no primeiro semestre de 2020. Se o “estranho” reside entre o familiar e o insólito, a pandemia do Covid-191 coloca-nos diante do fantasma das pragas que há muito tempo deixaram de assolar populações, ao mesmo tempo em que põe à luz nossas sombras mais atuais e familiares. Quem não é suspeito, afinal? O perigo pode residir em qualquer um. A guerra contra o vírus tem como território o ar que respiramos e se estende virtualmente em cada corpo, cada organismo, cada epiderme. O vírus é invisível, incorpóreo; nós lhe damos corpos, nós somos seus hospedeiros. O vírus não se acumula como moedas, mas como créditos bancários. Não se faz ouvir de imediato, mas como uma notificação ou uma mensagem de voz. Não cresce como um bicho, mas como código, algoritmo.
Sem dúvida, é necessário se perguntar pelos rastros dessa estranha ameaça que apenas reproduz e intensifica nossos artifícios naturalizantes. Imunização? Talvez fosse melhor falar de “infiltração”, “simbiose” ou simplesmente de “somatização”. Pois, como bem pontuou Paul B. Preciado (2020, s. p.), “o vírus atua à nossa imagem e semelhança”.2 Nada inédito nem conspiratório: a Aids foi para a sociedade heteronormativa neoliberal do século XX o que a sífilis havia sido para a sociedade colonial, isto é, um modo eficaz de marginalizar, respectivamente, a homossexualidade e a prostituição.
Hoje, o Covid-19 serve como pretexto ideal para assinalar os desocupados, os vadios, os parasitas sociais. À diferença dos confinamentos de outrora – como o da peste bubônica, varíola, febre amarela e cólera3 –, a quarentena contemporânea implica o ápice de consumo de internet e de serviços on-line, deixando-nos menos reclusos do que conectados; por conseguinte, não basta continuar trabalhando remotamente, é preciso mostrar, disponibilizar ao vivo, interagir e dar depoimentos diários para “provar” que se está produzindo, sem se deixar contagiar pela ociosidade. Não basta lutar contra o vírus, é preciso se imunizar contra a indisciplina. Consolida-se assim a vinculação “necessária” que, numa época distante, Jeremy Bentham estabelecera entre a suposta regulação natural e espontânea do mercado, de um lado, e os mecanismos de correção e educação dos corpos inadequados às trocas mercantis, de outro.4
Isso sem falar, é claro, da grande massa de corpos que sempre estiveram de outro modo “reclusos”, seja porque não podem se dar ao luxo de trabalhar em casa ou por não terem sequer um teto sobre a cabeça. Sem falar também das comunidades periféricas, dos imigrantes, dos povos ancestrais e de tantos outros abandonados à própria sorte. Para todos estes, o temor do vírus não é maior que a ameaça diária de ser morto pela polícia ou de não ter o que comer no dia seguinte. É nesse abismo entre a “prevenção” de uns e o absoluto desamparo de tantos outros que reside, precisamente, a força do vírus. Um vírus que atua à imagem e semelhança de uma sociedade que, fazendo da exceção a regra, segue adotando a guerra como instrumento da paz, o totalitarismo como caução da democracia, a seletividade do direito à vida como cerne da economia. E, como Negri (2003, p. 188) já nos ensinava em meados deste século, “o inimigo não pode ser vencido ou, se for vencido, é preciso logo que haja outro, o inimigo é um perigo público, é o sintoma de uma desordem a ser ordenada”.
Entre um sem número de constrangimentos e os inspirados clamores de resistência que pedem passagem a partir de tal mirada, instaura-se nesta quarentena um intervalo entre o tempo do novamente e o do não ainda, uma fissura que merece ser cautelosamente analisada enquanto fecunda problematização da atualidade. Longe de uma postura apocalíptica ou resignada, tampouco utopicamente otimista, importa aqui dimensionar o que ainda não conseguimos deixar de ser. Nessa busca pelos rastros de um ser incorpóreo, cada vítima do Covid-19 encarna o rosto petrificado de Foucault (1995), o primeiro filósofo a morrer por efeito do vírus da imunodeficiência adquirida. Pensar no vírus que nos habita é insistir em peregrinar guiando-se por uma cartografia invisível e, na ausência de nortes, estranhar e reinventar o que somos – eis o que nos apelava Foucault:
Talvez o mais evidente dos problemas filosóficos seja a questão do tempo presente e daquilo que somos nesse exato momento. Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que podemos ser. [...] Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposta há vários séculos
(FOUCAULT, 1995, p. 239).
Enquadramento: a sombra do sol
Em Staying with the trouble, a bióloga e filósofa Donna Haraway (2016, p. 72) – autora do célebre Manifesto ciborgue, de 1985 – lembra que um dos principais fatores para a disseminação do conceito de Antropoceno,5 no início deste século, residiu no desaparecimento de ecossistemas inteiros em muitos recifes de coral, em decorrência do aquecimento e da acidificação dos mares. A autora destaca três outros fatores nisso implicados: os recifes de coral comportam a maior biodiversidade de ecossistemas marinhos, sobretudo em espécies de bactérias e vírus; os corais foram um dos primeiros casos de simbiose reconhecidos pelos biólogos; há uma interdependência direta entre os humanos e os ecossistemas existentes nos corais.
Com isso, Haraway sugere-nos que, embora o ser humano tenha se tornado o grande responsável pelo iminente colapso climático em curso, estamos longe de ser os agentes de um trajeto evolutivo que permanece à guisa do que a autora chama de critters: pequenas criaturas, como o vírus, que operam mutações cruciais para a subsistência da vida em geral. É algo muito similar ao que Burroughs (1994) já dizia, em 1971, sobre os vírus como agentes de mutação biológica, cultural e linguística. Mas, de todo modo, é uma forma sofisticada de dizer algo que não é nenhuma novidade: a espécie humana, como todas as outras, destina-se à extinção, sucedida por uma longa era em que protozoários e afins seguirão existindo até que o planeta exploda.
Bem, ainda estamos aqui e, como adverte o livro de Haraway, temos que lidar com certos problemas: do aquecimento global ao contágio pandêmico de um vírus. Porém, mais do que qualquer narrativa apocalíptica, o que prevalece no horizonte cosmopolita é o mito neoliberal segundo o qual tais eventos são meras anomalias passageiras, supondo a autorregulação de um sistema financeiro imune a imprevistos. Ocorre que, tal como a difundida imagem do entregador do Ifood tentando remar contra a correnteza da enchente, os mercados evidenciam-se como barcos de papel no meio da tempestade, e isso ao menos desde a crise de 2008 (que aliás não foi nenhuma anomalia). Claro que um modo de vida historicamente erigido não será facilmente abalado por uma pandemia – supondo-se que não ocorram outras. Mas um evento como este, sem falar do aquecimento global, recoloca muitas cartas sobre a mesa, tornando mais legíveis certos índices de um passado recente.
A começar pelo endurecimento das fronteiras, que desde o início deste século revigoram a velha prática colonial com vistas a uma “imunidade” europeia e norte-americana contra migrantes, então confinados nos maiores campos de refugiados a céu aberto da História. Ao mesmo tempo, países da Ásia, África e América Latina permanecem atuando como um grande armazém de suprimentos, fornecendo boa parte dos recursos energéticos e bens de consumo daqueles regimes neocoloniais. Mediante esse pano de fundo, as medidas de controle da disseminação do Covid-19 refletem, nos termos de Preciado (2020, s. p.), “as políticas de fronteiras e as medidas rigorosas de confinamento e imobilização que nós [...] temos aplicado nos últimos anos a migrantes e refugiados – a ponto de deixá-los fora de qualquer comunidade”.
No caso particular do Brasil, conforme sublinhou Barbosa (2020), segue-se uma política não só de extermínio populacional, como também de apagamento de todo rastro. Se o presidente tanto insistiu em conclamar o retorno à “normalidade”, do mesmo modo que o empresariado que lhe dá suporte, convocou carreatas genocidas para que os pobres voltem ao trabalho, é porque aqui o estado de exceção é a normalidade: eles tinham plena ciência de que a pandemia levaria milhares brasileiros e brasileiras à morte. Tal sorte de normalização integra uma antiga tática de fazer desaparecer:
As técnicas de desaparecimento produzem uma “vida que não deixa rastros”. O desaparecido não é somente um corpo sujeito à punição de um soberano ou às disciplinas que o sujeitarão. O conceito de vida sem rastros expõe uma paradoxal contra-história da política no ocidente, possibilitando nela incluir desde a história silenciada dos mortos nos navios negreiros [...] no longo genocídio que atravessou o século XV até o XIX, aos desaparecidos políticos na ditaduras latino-americanas a partir dos anos 1960, passando pelos assassinados pelo narcotráfico ou por grupos policiais, militares ou paramilitares de extermínio. O conceito de desaparecimento é um critério de inteligibilidade da política governamental latinoamericana
(BARBOSA, 2020, s. p.).
De fato, um vírus nunca emerge ex nihilo, mas sob a atmosfera de certos hábitos e lógicas há muito já disseminados. Donde Butler (2020, s. p.) constata “a rapidez com que a desigualdade radical, o nacionalismo e a exploração capitalista encontram maneiras de se reproduzir e se fortalecer dentro das zonas de pandemia”. Isso é um apontamento necessário mediante perspectivas nebulosas como a de Nancy (2020, s. p.), para quem o Covid-19 “nos coloca em uma base de igualdade, unindo-nos na necessidade de tomar uma posição comum”. Ora, essa base de igualdade é, antes de tudo, aquela pela qual o vírus opera, confinando-nos em estado de vigília e catapultando nossa rendição ao individualismo preventivo: devemos nos prevenir a todo custo. Antes de nos solidarizar com os outros, é preciso vigiá-los. A distância, pois, uns dos outros, seguimos unidos não em torno de uma causa comum, mas em prol de uma máquina que não pode ser interrompida, a do capital, já incorporado como realidade última e lei geral da vida. É como se, enfim, o vírus viesse a pôr à prova antigos anticorpos, testando coisas como “desempenho”, “resiliência” e “responsabilidade individual”.
Estranhamento: anticorpos dos outros
Estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o domina. [...] O homem é estrangeiro no mundo
(FLUSSER, 2011, p. 52).
O filósofo italiano Esposito (2010, p. 81) mostra-nos como o paradigma da imunização envolve o horizonte semântico do vocábulo latim munus: “o significado mais incisivo de inmunitas se inscreve no reverso lógico de communitas – imune é o ‘não ser’ ou o ‘não ter’ nada em comum”. No direito romano, munus indicava tanto a função a ser exercida quanto o imposto a ser pago por todos que pertencem a uma comunidade; inmunitas, por sua vez, designava o privilégio que exonera alguém desses deveres comuns. Esposito argumenta, a partir disso, que toda communitas procede da razão imunológica que consiste em estabelecer uma hierarquia entre os indivíduos, desde aqueles que são isentos de encargos e impostos (os inmuni) até aqueles que devem ser excluídos (os demuni), por serem potencialmente perigosos à comunidade.
Deste modo, Esposito incrementa a noção foucaultiana de biopolítica com o seguinte paradoxo: a normatização da vida comunitária implica não só uma distinção valorativa entre os indivíduos, como também a autoridade de sacrificar algumas vidas em prol da proteção de todos. É somente a partir de 1772, com a invenção da vacina contra a varíola, que a noção de imunidade migraria da esfera legal para adquirir um significado médico. Acrescente-se o fato de que, até por volta de 1880, a observação microscópica ainda era considerada uma visão anedótica, isto é, sem qualquer função além de revelar detalhes inúteis.6 Para que pudesse existir, então, algo como a epidemiologia moderna, não bastava um aparelho que tornasse visível o invisível; foi preciso toda uma rede discursiva para tornar material o imaterial. Analogamente, e não por acaso, a fotografia emerge no século XIX não tanto como um “avanço” técnico (na esteira da câmera escura e demais aparatos de projeção), mas antes de modo a materializar uma emergente regularidade visual: para documentar patologias, registrar evidências criminais, distinguir anatomias normais e anormais, revelar o exotismo dos povos “nativos”, etc. A fotografia só se tornou possível, na medida em que ela própria tornava possível uma ampla gama de práticas de vigilância e categorização.
Esse conjunto de elementos parece-me útil para compreendermos o que Foucault chamava de “biopolítica”, que não se resume a um tipo de governo “preocupado” com a vida da população. Entre 1975 e 1976 – respectivamente em Vigiar e punir e no primeiro volume da História da Sexualidade –, Foucault passou a se debruçar sobre todo um arranjo de técnicas disciplinares que vigoraram do século XVIII ao XIX e que ultrapassavam a esfera legal ou punitiva em direção a um nível “somatopolítico”: o adestramento dos corpos, a divisão temporal trabalhodescanso-lazer, a distribuição do espaço conforme funções produtivas, a normatização de uma individualidade disciplinada. Assim, como sintetiza Preciado (2020, s. p.), a biopolítica se incumbe de “fabricar um corpo, pô-lo funcionar, definir os seus modos de reprodução, prefigurar os modos de discurso através dos quais esse corpo se ficcionaliza até ser capaz de dizer ‘eu’”.
Equivoca-se, portanto, a leitura que contrapõe biopolítica à necropolítica – mesmo Mbembe, que cunhou o último conceito, não o define desse modo.7 O biopoder é aquele que se exerce tanto sobre a vida quanto sobre a morte das populações. Se em Vigiar e punir Foucault parecia restringir as práticas disciplinares ao domínio corporal, é porque os corpos eram os primeiros “dados” levados em conta na lógica utilitária oitocentista, em seus cálculos para intensificar a produtividade e minimizar os gastos da produção. Já no curso Em defesa da sociedade, Foucault (2005, p. 306) discorre que o racismo funciona como uma “condição de aceitabilidade de tirar a vida”, uma vez que “assegura a função de morte na economia do biopoder, segundo o princípio de que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela é membro de uma raça ou de uma população” (p. 308). Lorenzini abrevia apuradamente a questão em Biopolitics in the time of Coronavirus:
Em suma, a biopolítica é sempre uma política de vulnerabilidade desigual. Longe de ser uma política que apaga as desigualdades sociais e raciais ao nos lembrar de nosso pertencimento comum a uma mesma espécie biológica, é uma política que depende estruturalmente do estabelecimento de hierarquias no valor da vida, produzindo e multiplicando a vulnerabilidade como meio de governar pessoas. [...] O vírus não nos coloca em uma base de igualdade. Pelo contrário, revela descaradamente que nossa sociedade depende estruturalmente da produção incessante da vulnerabilidade desigual e de desigualdades sociais
(LORENZINI, 2020, s. p.).
Noutros termos, o que o Covid-19 põe a funcionar é uma regulação mais acirrada dos modos de vida, sobretudo em termos de responsabilização individual, hierarquização dos corpos (o chamado “isolamento vertical”) e distribuição das mortes iminentes. Porque, quando o discurso estatal toma a “prevenção” como objeto de urgência, trata-se menos de saúde pública do que de uma guerra pela inmunitas. Considerando que a política é a continuação da guerra por outros meios (FOUCAULT, 2005, p. 22), o trabalho de prevenção sempre começa pela contenção do pânico e da desordem, e isso por meio de cálculos estatísticos que permitem o diagnóstico dinâmico da situação e a manutenção dos riscos em níveis “aceitáveis”, ou seja, mediante as mortes já registradas. Mas todo esse aparato técnico só existe para dar conta de uma população desde sempre já sujeita ao descontrole, seja a partir de uma epidemia, seja por uma crise de abastecimento, ou mesmo na esteira de uma revolta popular. A guerra, portanto, embora nunca declarada, não é de hoje e tem como alvo a violência iminente da população, de modo que “a paz, na menor de suas engrenagens, faz surdamente a guerra” (2005, p. 59).
Os mecanismos de segurança, ademais, são diariamente aperfeiçoados à guisa dos chamados aparelhos smart, que tornam a vigilância e o rastreamento da população uma realidade sem precedentes na História. Em vez de causar o mínimo de constrangimento, essa vigilância é amplamente assimilada como “qualidade de vida”, de tal forma que nos apavoramos quando nos encontramos off-line ou quando não conseguimos recuperar uma senha. Logo, antes de nos isolarmos em quarentena face à pandemia, já estávamos voluntariamente confinados à (in)segurança de uma comunidade global, cada vez mais autoimune. Isso porque não é a eliminação do inimigo o que garante a inmunitas, mas a própria permanência da guerra em nome da proteção/ prevenção/regulação. A questão que sempre esteve em jogo, portanto, se enuncia hoje com clareza: às custas de quais vidas a serem sacrificadas continuamos dispostos a nos proteger?
Confinamento: espelho disciplinar
De um lado, nunca tivemos à disposição tanta tecnologia para viver em segurança: radares, câmeras, cartões de crédito, dispositivos móveis, etc. De outro, nunca sentimos tanto medo: da pandemia, do desemprego, da criminalidade, da catástrofe ambiental, do colapso econômico, etc. No meio de tantas comodidades e ameaças, somos impelidos a conduzir nossa vida de acordo com a normalidade, isto é, evitando o perigo de ficarmos à margem das normas. O biopoder se exerce precisamente nesse policiamento normativo, seja de uns sobre os outros, seja pelo autoexame de si, sustentando assim os dispositivos de prevenção/repressão que sempre se valem do discurso do combate ao risco.8 Em tempos, ademais, de disseminação virulenta da xenofobia e dos genocídios contra imigrantes, transexuais, negros, etc., não é difícil perceber a insidiosa ambiguidade das medidas de segurança que não cessam de derramar sangue.
É com vistas a tal sorte de ambivalência que devemos pensar neste imperativo que se espalha aos quatro ventos: “fique em casa”. Por mais que se trate claramente de um toque de recolher, de certo modo já não há lado “de dentro”, uma vez que a guerra contra o vírus atravessa paredes (ou, mais precisamente, telas) e nos convoca ao posto de informantes em alerta, com o dever de evitar o caos por meio da manutenção da ordem. Ao mesmo tempo, o lado “de fora” segue em franca e caótica expansão, lá onde as exceções sobrepujam toda regra no horizonte daqueles para quem ficar em casa não é sequer uma opção. O que hoje se evidencia, embora se insista em não querer vê-lo, é que o lado de dentro sempre dependeu do lado de fora: o confinamento não seria possível, se a maioria dos trabalhadores não continuassem a sair de casa. É preciso que alguém esteja lá fora para que exista o home office. Outra coisa também se evidencia: trabalhar em casa não nos torna menos peões. Pois há uma imobilidade intrínseca a todo trabalho, mesmo no caso de quem passa a vida se deslocando para limpar as ruas ou a casa dos outros, tanto quanto no caso de diplomatas e dos “empreendedores de si”.
Em Vigiar e punir, Foucault (1999, p. 138) explica como a tecnologia disciplinar, vinculada aos saberes médico, militar e criminalístico, segue o modelo dos conventos,9 como configuração ideal de sua aplicação: “É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração”. Por isso a imobilidade não é exclusiva da quarentena: o trabalho moderno já implica a repartição dos corpos e sua circulação controlada. E, no primeiro volume de História da sexualidade, Foucault (2014, p. 30) mostra como, desde o século XVIII, “todos os detentores de uma parcela de autoridade se colocam num estado de alerta perpétuo: reafirmado sem trégua pelas disposições, pelas precauções tomadas, e pelo jogo das punições e responsabilidades”. De sorte que a ascese do “sacrifício coletivo” não se restringe à conjuntura pandêmica, embora esta forneça um espelho simétrico à tecnologia disciplinar – e nisso Foucault chega a parecer premonitório:
Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos “contágios”, da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem. […] No fundo dos esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens; assim como a imagem da lepra, do contato a ser cortado, está no fundo do esquema de exclusão. […] A divisão constante do normal e do anormal, a que todo indivíduo é submetido, leva até nós, e aplicando-os a objetos totalmente diversos, a marcação binária e o exílio dos leprosos; a existência de todo um conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir, controlar e corrigir os anormais, faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava
(FOUCAULT, 1999, p. 164).
Claro que não há premonição alguma; Foucault não chegou nem perto de imaginar nossa atual amálgama de escravidão e “autoempreedimento”, abate coletivo e coworking – a ponto de o empresariado brasileiro admitir, sem nenhum pudor, que as “baixas” serão um efeito colateral do bom funcionamento necessário da economia.10 O engenho, afinal, não pode parar. O importante é “lavar as mãos”, ainda mais quando pelo menos um terço da população segue aplaudindo os seus próprios algozes, da Casa Grande à Senzala. E enquanto muitos intelectuais seguem sonhando com a derradeira revolução (sempre do “dia seguinte”), vemos nascer uma forma mais perigosa, senão do vírus, da biopolítica neoliberal, aperfeiçoando-se na “imunização” das populações.
Não se pode perder de vista que o lockdown sinaliza, de fato, uma circunstância emergencial em que a vida de todos está em risco. O que costuma suceder a esse tipo de situação é outra pior, ainda que escamoteada sob a velha máscara do bem-estar social. Como bem lembrou Berardi (2020, s./p.), a tecnologia da internet propagou-se no exato momento em que a Aids começava ser contida, de modo que a pandemia atual poderia desencadear “uma condição de isolamento permanente dos indivíduos, e a nova geração poderia internalizar o terror do corpo dos outros”. Analogamente, Greiner (2020) sustenta que o desempenho “exemplar” do Japão no combate ao Covid-19 vai muito além do estereótipo de um povo que cultiva a higiene e a disciplina. Ela argumenta que a experiência da clausura é historicamente arraigada na vida japonesa, o que remonta desde as bonecas sexuais consumidas abertamente desde o século XVII até a recente aproximação entre budismo e robótica – donde a autora vislumbra um “devir otaku” a emergir com a pandemia, numa espécie de misoginia zen.
Preciado (2020) mostra-nos como esse tipo de imagem já transpôs a esfera da distopia. O filósofo retoma sua tese de doutorado acerca da mansão Playboy11 para argumentar que a cama giratória de Hugh Hefner, fundador e editor-chefe da corporação erótica, foi uma espécie de protótipo para o sujeito confinado e ultraconectado que hoje ganha corpo no que Preciado denomina “regime farmacopornográfico”. Hefner, afinal, dirigiu por quatro décadas a revista mais importante dos Estados Unidos, sem sequer sair da cama, vestindo pijama e com a companhia das Playmates que habitavam a mansão. Sua cama era ao mesmo tempo o seu escritório, um lugar para fazer sexo e um palco para ensaios fotográficos e programas televisivos. Só não era usada para dormir, uma vez que Hefner vivia à base de anfetaminas que eliminam a fadiga e o sono. De fato, sua vida era literalmente farmacopornográfica: seu hedonismo extremo era indissociável do trabalho full time, conjunção alimentada por um coquetel diário de pílulas contraceptivas e medicamentos para manter o nível de produção elevado.
A silenciosa revolução biopolítica que a Playboy conduziu significou, além da transformação da pornografia heterossexual em cultura de massa, o questionamento da divisão que tinha fundado a sociedade industrial do século XIX: a separação das esferas de produção e reprodução, a diferença entre fábrica e casa e com ela a distinção patriarcal entre masculinidade e feminilidade. A Playboy abordou essa diferença propondo a criação de um novo enclave de vida: o apartamento do solteiro totalmente ligado às novas tecnologias de comunicação das quais o novo produtor semiótico não precisa sair nem para trabalhar nem para fazer sexo – atividades que, além do mais, tinham se tornado indistinguíveis. [...] A Playboy antecipou os discursos contemporâneos sobre home office e a produção imaterial que a gestão da crise do Covid-19 transformou em dever do cidadão. Hefner chamou a este novo produtor social de “trabalhador horizontal”. O vetor de inovação social que a Playboy colocou em marcha foi a erosão (senão a destruição) da distância entre o trabalho e o lazer, entre a produção e o sexo. A vida do playboy, constantemente filmada e transmitida através da revista e da mídia televisiva, era totalmente pública, mesmo que o playboy não deixasse sua casa ou mesmo sua cama
(PRECIADO, 2020, s. p.).
Se hoje, em meio à quarentena, é fácil reconhecer-se nesse “trabalho horizontal” preconizado por Hefner, obviamente não é com base num estilo de vida hedonista, mas de modo a alimentar outra modalidade de pornografia, talvez sadomasoquista, que agora conta com um aparato tecnológico bem mais avançado do que aquela cama giratória. Nossos governantes e chefes nos convocaram não somente ao confinamento, mas também a um novo ritual de trabalho. Eis a chave da “imunidade”: isolamento social e aumento da produtividade. Uma vez imunes às interações e idiossincrasias coletivas, sobra-nos mais tempo para vender não apenas a nossa força de trabalho, mas também o nosso corpo, que deve ser efusivamente exposto em teleconferências. Precisamos ver os rostos e ouvir as vozes daqueles que gozam de nossos esforços.
É isso o que sustenta, ao menos na atmosfera acadêmica em que eu me situo, a defesa do EaD (ensino a distância) enquanto horizonte necessário e indiscutível. Note-se como, em primeiro lugar, há sempre a premissa de que quem tem mais experiência com EaD tem mais “propriedade” para falar a respeito – como se o professorado em geral não pudesse mais falar sobre educação, ou como se o EaD fosse outra coisa, que não educação. Em segundo lugar, há certo consenso em tratar o EaD como uma ferramenta que não deve substituir, ao menos por enquanto, o ensino presencial. Mas para que serve essa ferramenta? De imediato, e sobretudo, para acentuar as disparidades do alunado, posto que seu acesso sempre foi desigual, inclusive, para as aulas presenciais. Também serve para, mais do que complementar atividades de sala de aula, deslocá-las para outros espaços físicos e temporais que não o da sala de aula. Por conseguinte, o EaD é orientado ao engajamento individual e ao autodidatismo. Ora, e quanto aos estudantes que não têm esse perfil? Nesse caso a ferramenta não serve muito – o que, no limite, equivale a dizer que esse perfil de estudante é que “não serve muito”.
Eis o que, em tempos de Covid-19, vem a se tornar rapidamente o parâmetro, o diapasão, das políticas educacionais. Exatamente como na pornografia do “trabalho horizontal”, o estudante vê-se obrigado a se entregar de corpo e alma aos estudos. Se até ontem a maior parte do alunado não possuía esse perfil, agora, com a adoção do EaD enquanto mera ferramenta emergencial e provisória para não interromper os estudos, tal perfil torna-se uma questão peremptória para se pertencer ou não ao alunado. Sem falar, evidentemente, de como o EaD sempre foi, no fundo, uma excelente ferramenta para multiplicar o lucro das IES privadas – o que, nas públicas, em suas condições há muito precarizadas, reduz-se a um modo cogente de manter-se no mesmo patamar competitivo das privadas. Sobreviver como estudante ou como trabalhador é, em suma, como tentar sobreviver ao vírus: imunizando-nos para que, mesmo a distância, nosso corpo possa continuar sendo vorazmente consumido numa grande cama giratória.
Desaparecendo: à nossa imagem e semelhança
Toda peste se dissemina em três etapas: na primeira, ela parece longe e neutra, matando apenas desconhecidos que soam, em nossos ouvidos, como simples dados estatísticos (nessa etapa, insistimos em não acreditar em sua existência); na segunda, a sentimos perto e ameaçadora, matando pessoas notórias, celebridades, conhecidos, amigos, parentes e entes queridos (é nessa etapa que começamos a acreditar em sua existência); e na terceira, quando ela está dentro de nós, já é tarde para lamentarmos o fato de não termos aprendido nada com as duas etapas anteriores (é nessa etapa que ela sobrevive a nós)
(CAMPOS, 2019, p. 12).
Há quem diga que o isolamento coercivo face ao Covid-19 tem, na verdade, nos reaproximado, favorecendo o diálogo e a solidariedade. Pode até ser, mas apenas entre aqueles que têm o privilégio de ficar em casa. Neste momento, em todas as penitenciárias de São Paulo os detentos estão produzindo milhares de máscaras – certamente não para a sua própria proteção. Eles estão isolados há muito tempo, e isso nunca os reaproximou de seus familiares e de uma vida em comunidade. Pois a sociedade não apenas persiste em imunizar-se de seus “maus elementos”, como também os coloca a serviço de uma nova campanha imunizante. Não são processos diferentes: só estamos isolados em casa porque ainda não foi possível isolar este novo mau elemento.
Mas será que o vírus pode ser realmente isolado? Não me refiro aqui ao Covid-19. A questão é que, conforme o mecanismo virótico, qualquer um pode se tornar, de uma hora para a outra, um vírus propriamente: estar dentro ou fora da normalidade, ser ou não um risco é uma fronteira cada vez mais tênue num estado de vigília permanente. Lembremos que, logo após o 11 de setembro, não eram raras as comparações entre o terrorista e o vírus: ambos são inimigos “sem rosto”, irrompendo súbita e dispersamente em qualquer lugar, à espera de um momento oportuno para explodir de maneira implacável. O limiar desse fantasma foi gradualmente dilatado ao estigma do imigrante. Paralelamente, vimos crescer vertiginosamente a subcultura dos trolls e dos incels,12 passando pelo extremismo da alt-right até culminar nos atuais tweets presidenciais, que funcionam como verdadeiros aparelhos explosivos.
Ou seja, à medida que o inimigo foi assumindo muitas feições (do terrorista ao imigrante, e deste aos chineses, aos comunistas, aos climatologistas, etc.), o Covid-19 veio providenciar uma imagem mais definida do medo coletivo.
Trata-se daquela criatura peculiar que, infestando o nosso feed de notícias, tem a forma de um planeta com pequenos cogumelos (ou seriam nuvens radioativas?) distribuídos em sua superfície. De fato, o inimigo universal foi finalmente “descoberto”: um micro-organismo que espelha o nosso mundo. O paradoxo não reside tanto nessa imagem, mas no imperativo neoliberal segundo o qual, para sobrevivermos ao “vírus”, devemos sacrificar nossas vidas. Para além de um confinamento assimétrico, afinal, somos instruídos a não nos deixar levar por algo tão minúsculo e passageiro – “não podemos tornar a cura pior que a doença”, nas palavras do presidente Trump.13 Ou, como afirmou o tenente Dan Patrick (governador do Texas), os mais vulneráveis devem se preparar heroicamente para o autossacrifício em nome da economia.14 Esses senhores estão flertando abertamente com a eugenia. Após o teste de Guantánamo,15 Auschwitz nunca esteve tão perto.
Logo, quando se fala em solidariedade e ensejo revolucionário, ouço apenas um bonito canto humanitário para morrermos menos aflitos. Bella ciao. Mas isso porque talvez eu já esteja “infectado”. Se for o caso, posso dizer que o contágio não se dá apenas pela atmosfera do medo, mas também pela frieza da racionalidade: o número de mortes cresce exponencialmente, num extermínio irrefreável. É como poder visualizar-se morto enquanto ainda se está vivo. E, mesmo sob esse prisma, a ontologia do vírus permanece intrigante: um vírus não é exatamente um “ser”. Não se pode facilmente pensar que ele está vivo como um inseto, nem morto como uma pedra. Ele só pode existir dentro de um hospedeiro. Fora do nosso corpo, o vírus é inerte. Mas o que significa ser “inerte”? Certamente é algo que escapa a dicotomias como vivo-morto, natural-artificial, eu-outro. O vírus é o espelho de corpos desaparecendo.