Que Exu me conceda o dom da palavra! Que me dê as palavras certas para censurar esses racistas que estão no poder hà cinco séculos!
Abdias do Nascimento3
I.
Jean-Marc Lévy-Leblond, físico e professor da Universidade de Nice, França, em seu livro “O pensar e a prática da ciência: antinomias da razão”, ao se utilizar de uma analogia nada arbitrária, atestou a perspectiva etnocentrada europeia: “Se for preciso encontrar um deus para a epistemologia, que seja um Jano policéfalo” (LÉVY-LEBLOND, 2004, p. 397).
Ora, ao escolher Jano, deus das portas e das estradas, senhor dos caminhos, deus romano, Lévy-Leblond está forçosamente de um lado de uma fronteira epistêmica, fazendo valer certa verdade. A analogia utilizada constitui o supostamente natural como fonte de verdade, uma verdade perspectiva e estratégica que confirma um imaginário violento e lhe dá respaldo. Trata-se da violência epistêmica do Norte.
O físico francês não acionou apenas um lado. Exerceu seu poder de dizer “algo” e colocou em curso uma velha cantilena duvidosa de que os outros poderão um dia tornar-se feliz, desde que, sob a batuta de uma cultura europeia ilusoriamente superior. Deu voz a um desejo de domínio cognitivo que se expressa por meio de afirmações, aparentemente, neutras ou casuais, as quais devem ser colocadas em seu devido lugar por meio de uma problematização séria.
Uma epistemologia jânica está na batalha, têm adversários, luta por uma vitória, faz valer e reforça um direito, qual seja, “direito singular marcado por uma relação de conquista, de dominação, de antiguidade: direitos de raça, direitos de invasões triunfantes” (FOUCAULT, 1997, p. 74).
Lévy-Leblond nunca ouviu falar de Exu? Nunca foi apresentado a Seu Tranca-Ruas, Dona Maria Padilha, Viramundo? Não conhece o pensamento dos povos africanos, sua mitologia4 altamente complexa, atrelada à concepção do desenvolvimento da vida desses povos?
O ideal europeu, espelhado nas palavras de Lévy-Leblond, que valorava a pureza, a verdade, o desenvolvimento, precisa se abrir a um pensamento que denomino exuriano, cujas ambiguidades movediças nos convidam a uma epistême preta, aberta, fronteiriça, encruzilhada. E por quê? Porque apesar de produzir ganhos indiscutíveis, não é capaz de contextualizar, religar o que está separado, compreender as múltiplas faces de um problema e os efeitos rizomáticos não causais decorrentes.
Não se trata de reivindicar uma independência de pensamento frente a uma suposta metrópole, se não apostar em uma desconstrução de forças hierárquicas racistas como fizera a seu tempo o senador Abdias do Nascimento5, e em nosso tempo, denunciar o mito da democracia epistêmica. Esse trabalho é de alta envergadura porque confere humanidade a grupos excluídos6, logo, se utilizamos teóricos europeus não é para lhes lamber as botas ou bater-lhes continência, mas para travar um processo de interlocução, nunca de submissão diante de um normatizador.
Pensamentos arrogantes e reducionistas, parciais e duvidosos, espelhados na suposta supremacia do conhecimento científico europeu e estadunidense, especialmente depois da crise de 20087, demonstram-se carcomidos e frágeis conquanto o Ocidente prossegue demonizando o Outro, as culturas dos terreiros e os saberes das velhas zeladoras, sem englobar a vida com suas crises e desenvolvimentos, as sensações e o corpo, os erros, os acertos e a loucura.
O pensamento preto é uma possibilidade de mudança epistêmica para uma visão mais acolhedora, holística e ecológica. Respondendo por um lado a certa ingenuidade pós-colonial que desterritorializa o corpo negro, reconhece a contingência e a flexibilidade de seu ser e de sua identidade, e por outro lado, busca uma subversão, reafirmando certa personalidade africana, condição sine qua non para a emancipação de culturas violentadas.
Este pensamento deve caminhar de braços dados com a libertação da África, dos povos negros em diáspora, dos sujeitos periferizados, relegados a uma produção subalterna do conhecimento. Deve colaborar com a construção de uma potência mundial, capaz de deliberar cooperativamente com outros povos, sobre os problemas vividos pelo mundo global e não se furtar a problematizar a escravização pós-moderna.
Sofisticado, deve sentar-se à mesa de negociações, colaborando com respostas à gestão coletiva dos assuntos do mundo moderno ou líquido-moderno produtor de refugos, superficialidade e abjeção, haja vista vivermos em um tempo assaltado pela lógica neoliberal, a qual considera a educação como um gasto e a assistência médica como um “suplemento” reservado apenas àqueles que podem pagar seus planos de saúde (BAUMAN, BORDONI, 2016, p. 76).
A despeito de uma possível acusação de etnocentrismo, alerto que utilizo o vocábulo pensamento preto, não porque exista um pensamento homogêneo africano ou porque o aparte do pensamento ocidental, branco e burguês. Interessa-me fazer emergir uma episteme preta que sempre esteve aí.
Este movimento é necessário ao menos enquanto ainda se acredita8, que todo o pensamento teria advindo de uma Grécia mítica a fornecer os subsídios ao Progresso e às Luzes. Mas, ora, não há nenhuma razão para se negar a existência de uma filosofia africana, a não ser para se efetivar e reiterar o poder epistemológico e político sobre os outros (RAMOSE, 2011, p. 14).
Mesmo com o violento processo de inculcação cultural, com a perversidade do Iluminismo evidenciado em diversas escritas9, p.ex., David Hume (1999) e Imanuel Kant (1974) para os quais os negros teriam uma inferioridade congênita, estes conseguiram viabilizar um conjunto de pensamentos e movimentos pretos, reelaborando e livrando-se de um enorme entulho ideológico, abrindo e construindo passagem para outras epistemologias capazes de abarcar um riquíssimo patrimônio civilizatório africano-brasileiro-diaspórico.
Conforme ensinou Frantz Fanon (2008, p. 39), todo idioma é um modo de pensar, logo, casas de santo tradicionais na Bahia, tais como, a Casa Branca do Engenho Velho, o Axé Opô Afonjá, e o Gantois, dentre outras, com suas rodas de candomblé, legam à sociedade um conjunto de textos e ritos que permanecem vivos no imaginário social, exercendo seus poderes de significação e ressignificação dentro e fora dos ritos sagrados. Estas casas têm muito a ensinar à logica binária e à filosofia cartesiana, mesmo que durante muito tempo tenham sido tratados como animismo10.
Ainda que fortemente reprimidas por uma perspectiva cêntrica ocidental que não compreendia o culto tradicional e o poder das entidades, estas casas sobreviveram à colonização, ou seja, reagiram à inculcação de um complexo de inferioridade que lhes agredia sua originalidade cultural11. Seus ritos não se assentam numa verdade transcendente, nem na dicotomia excludente, mas nas múltiplas possibilidades evocas pelos jogos como os da capoeira, da umbigada, pela música e pelo hálito das pretas velhas.
É difícil para uma episteme analítica, que separa mente de corpo, compreender terreiros de candomblé, xangôs, macumbas, tambor de mina, como verdadeiros polos de ricas epistemologias negras, atravessados por danças dramáticas como o maracatu, a chegança, o reisado, congada, bumba-meu-boi, que nem separam o corpo da magia nem apartam cantos e danças profanas de ritos sagrados. É que não se acreditou que os cultos afro-brasileiros, a musicalidade e as danças pudessem guardar em si, como uma estratégia de sobrevivência, a continuidade de um modo de existência e fortalecimento de outra epistemologia.
Geradores de padrões de organização social e conhecimento, terreiros, ritos, mitos, cantos invocam as energias a responder redistribuindo e fortalecendo o Axé.
Egocentrada demais, a Europa não foi capaz de compreender os orixás. Também não percebeu (e/ou privilegiou) o avanço atual da retórica política da extrema-direita em todo o mundo. Discursos políticos permeados pelo ódio exalam populismo, xenofobia, misoginia, homofobia e racimo. Recuamos ao início do século XX, cujos escombros remontam ao nazismo e à agressão fascista, emparedados por novos hitlers e seus mesquinhos discursos protecionistas e de pureza.
Somos assaltados diariamente por uma “gestão racional”, baseada numa ética do lucro e da acumulação de capital, exercida por políticos, funcionários, experts, uma intelligentsia de gabinete capaz de reproduzir pequenas doses de “solução final”, nos moldes de um “problema judeu” nazista: violência contra refugiados, misogenia e sexismo, assassinatos de LGBTQ12, mortes de adolescentes negros nas comunidades pobres por bala “perdida”, atentados contra trabalhadores sem terra, seringueiros e ecologistas.
A barbárie diariamente nos constrange, envergonha e violenta fazendo rodopiar em nossas mentes questões que não cessam de gritar: Quem mandou matar Marielle e Anderson? Assassinados a mais de um ano, o crime aponta para uma rede complexa que envolve políticos, milícias, contrabando de armas.
Marielle Franco, mulher negra, lésbica, oriunda de comunidade pobre, foi uma vereadora carioca (pelo PSOL) que efetivamente trabalhava. Ligada às questões negras, LGBTQI+, das mulheres, encampou uma luta contra a retirada de direitos destes grupos, sendo barbaramente assassinada em 14 de Março de 2018.
As lutas das chamadas minorias por reconhecimento e legitimação, os jogos e os interesses pela inclusão, estão rasurando um legado de respostas excludentes e segregacionistas que respondia pela ordem e pela normalidade.
Foi o filósofo Michel Foucault (2001) que em “Os anormais”, problematizou a consciência moderna e as distinções produzidas para qualificar a dicotomia entre o normal e o patológico. Delimitando o que seria irregular, desviado, pouco razoável, ilícito e criminoso, traçou uma genealogia da anormalidade: o anormal é o monstro13 que abala, questiona, inquieta o direito, canônico e religioso, corrói as pedagogias e as disciplina, acionando mecanismos de vigilância e controle, penitências e punições, cujo objetivo é a produção de corpos dóceis e úteis. Tal engenharia desfere negação, exclusão e violência contra loucos, enfermos, negros, gays, pobres, mulheres, em suma, contra a diferença. Mas, que paradoxo, pois, o que difere guarda em si, estranhamente, uma igualdade,
O monstro é, por definição, uma exceção; o indivíduo a ser corrigido é um fenômeno corrente. É um fenômeno tão corrente que apresenta - e é esse seu primeiro paradoxo - a característica de ser, de certo modo, regular na sua regularidade (FOUCAULT, 2001, p. 49).
E os paradoxos, seguindo uma episteme eurocentrada prossegem sem que saibamos com eles lidar. Obtusos, não percebemos (ou não queremos perceber) que construímos prédios e pontes para facilitar nossas vidas, mesmo que o meio ambiente seja agredido; o desenvolvimento de uma nação e o crescimento interno de sua riqueza é produzido ao mesmo tempo em que favelas, subempregos e a marginalização são gerados. O conforto de mãos dadas com o desconforto e o mal estar dança na corda bamba de um pensamento binário, positivista, branco e europeu, o qual tem sérias restrições em conviver com aquilo que vaza, com o contraditório e paradoxal.
Acometido por fortes dores de ego ao se deparar com aporias, o pensamento ocidental demonstra-se esquizofrênico. Busca impor seu desejo grego de sempre querer saber e inadvertidamente estender seu domínio imperial (cultural e civilizatório) sobre o resto do mundo.
Ah... essa ânsia de dar sentido e controlar as coisas, como se todas elas estremecessem de sentidos, quando o excesso de nominação é ridículo e caolho. Ora, a Europa não detém primazia epistêmica, apesar de ainda acreditar nisso e se esforçar por prosseguir a colonização das mentalidades.
Fortalecidos pelos questionamentos das feministas pretas, acompanhando os avanços das reflexões decoloniais, dos Estudos Queer e Transviad@s14, temos rejeitado saberes racistas e sexistas, conhecimentos marcados por incursões, genocídios, submissão e roubos. E acolhemos saberes que não apartam teoria e prática, sobretudo, aqueles que subvertem velhas perspectivas:
(...) a máxima “penso, logo existo”, cunha por Descartes, vem a ser rasurada por outras trançadas nas esteiras das práticas dos terreiros. São elas, o “vibro, logo existo”, “danço, logo existo”, “toco, logo existo”, “incorpo, logo existo” e “sacrifico, logo existo” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 29).
Deslocando nosso olhar para uma crítica severa ao projeto de civilização europeia e a partir de outra perspectiva, é possível colaborar para a elaboração de epistemologias para a próxima revolução15, num movimento ético-político que se tece como conhecimento contra hegemônico.
Trata-se de uma estratégia interessada em se contrapor à dimensão eurocêntrica que enviesa o pensamento, o que não tem a ver com um conhecimento de academias desplugado da vida cotidiana, um “tipo de ignorância de que as raças civilizadas e altamente escolarizadas gostam”. Não se trata de um conhecimento para as tecnologias mercantilizadas, “cujo tipo de ignorância se dá o nome específico de informação” (LARROSA, 2014, p. 97).
Importa provincializar a Europa e toda forma de pensamento racista que de modo arrogante e ignorante advogue para si o direito à universalidade, dando visibilidade a uma “ciência encantada” (SIMAS, RUFINO, 2018).
E por quê? Ora, porque o desejo do “um” europeu já se demonstrou frágil diante das problemáticas do nosso tempo; é signatário de uma história de horrores assentada sobre a violência colonial, patriarcal, cristã, moderna; formou o eurocentrismo ou ocidentalismo, a perspectiva científica positivista, abertamente racista cujo imaginário dominante - nós/civilizados, outros/bárbaros, sem lei, sem rei, sem alma, sem escrita, sem história, sem democracia, sem filosofia, sem epistemologia, ou seja, atrasados pouco ou nada humanos - legitimou (para o “nós” do par hierárquico) a exploração das terras e dos corpos, a dominação das mentalidades.
II.
O processo desastroso de diáspora forçada e escravização, não fomentou apenas o capitalismo, o progresso e a riqueza da civilização europeia. Os mais de 20 milhões de exilados da África viabilizaram o acúmulo de capital europeu, assim como, com sua sabedoria e poder de resistência espalharam contas e cantos sagrados, colocando em curso transatlântico toda uma filosofia baseada no axé de Exu.
Na contramão de uma visão reducionista novecentista, que chegou a afirmar que o culto aos orixás, com o tempo, deixaria de existir16, estudos como os de Juana Elbein dos Santos (1986), Ordep Serra (2006), Stefania Capone (2004), Síkírù Sàlámì (1991) e Ronilda Iyakemi Ribeiro (1996), Liana Trindade (2006), Vagner Gonçalves da Silva (2012), guardadas as devidas aproximações e limites, compreendem Exu como aquele que não tolera a passividade e a desordem, promovendo constante desarranjo necessário à evolução humana.
Senhor da ordem, conhecedor dos caminhos da desordem, manipulador do Axé que, em seu movimento transformador, desestrutura/harmoniza, desarmoniza/estrutura, Exu engole Eros e Tânatos, fracas porções gregas de vida e morte, como a um ebó - uma oferenda nagô17 - e os pari fortes como yang a alcançar o máximo ponto para eclodir de dentro de si o yin18.
Um dentro do outro - é o pensamento exuriano -, num processo de organizar/desorganizar não excludente, eis o caráter, muitas vezes “esquecido” pelas tecnoburocracias, as mesmas que não aceitam bem Carl G. Jung, a perguntar a seus pacientes “que mito está vivendo hoje?”.
Viver mitos não é uma propriedade da psiquê apenas, muito menos de grupos religiosos. Lembro que a modernidade se manifesta por meio de três grandes histórias: o mito de domínio do universo (Descartes, Buffon, Marx), o mito do progresso, o mito da felicidade (MORIN, 2011). Esses mitos assim como as grandes narrativas não estão mortos como atestou a pós-modernidade. Essas histórias têm sido atravessadas por outros discursos, o que aponta para uma disputa pela centralidade epistêmica.
III.
Neste ensaio, retomo o mito do deus brincalhão, Exu, senhor da ordem e do caos, também conhecido como Odara, o bondoso, com vistas a destacar uma epistemologia atravessada pelo Axé conduzido por Exu, princípio nagô de retroalimentação e troca.
O axé “se deixa conduzir pelas palavras e pelo som ritualizado” (SODRÉ, 1998, p.67), o que não se faz sem Exu, estrutura dinâmica em que se assenta toda a cosmogonia, os mitos, os ritos e o imaginário dos Orixás. O axé assim como Exu, não pode ser compreendido binariamente. Não é sinônimo de “bem”, “bondade”, “paz”. É palavra que atravessa o culto e rasura a lógica maniqueísta cristã, europeia e positivista, porque marca em cada par de opostos o ato, a cena constrangedora em que “um” é determinado em relação ao outro, sempre deslocado no ato da sua utilização.
Exu é aquele que transforma o caótico mundo mítico na criação ordenada dos tempos atuais e dinamiza o mundo à medida que harmoniza/desarmoniza; mantém/restitui; desorganiza para organizar e desorganizar novamente; moeda “falsa” de Jacques Derrida e Charles Baudelaire (GLENADEL, 2005), o mal que contém o bem e vice-versa, o deus que dança de Friedrich Nietzsche e, em seu princípio “psiquiátrico” lacaniano nos diz, não há tratamento possível sem o caos.
Exu evoca uma epistemologia preta, aberta a outras maneiras de ser humano, porque não exclui a diversidade e a diferença, sendo elas fatores e não obstáculo para o crescimento. Colhe o vai e vem de conhecimentos que circulam, retroalimentando-se na vida que existe em todos os ambientes, nos movimentos sociais, na luta dos camponeses e operários, nas favelas e nos bairros distantes das prefeituras.
Distanciando-se do agronegócio, da Bancada da Bíblia e da Bala que representam setores tradicionais das classes dominantes brasileiras, a exemplo das oligarquias rurais, da alta burguesia industrial, dos conglomerados religiosos, dos donos de bancos, ações e canais de rádio/televisão, alinhados ao grande capital internacional (SOUZA, 2016), a epistemologia preta coaduna-se com os pajés e os ancestrais dos terreiros. Estabelece uma relação entre saber/conhecer, entre parte e todo, que se multiplica ampliando os diálogos planetários, compreendendo que a ideia de “crise” não se aparta do desenvolvimento, pois, ora,
o universo africano é como uma imensa teia de aranha, da qual não se pode tocar o menor elemento sem fazer vibrar o conjunto. Tudo ligado a tudo. Cada parte, solidária com o todo, contribui para formar uma unidade. Uma vez adotado esse ponto de vista, torna-se impossível permanecer indiferente ante as questões ecológicas e o bem-estar alheio. A árvore abatida desnecessariamente e tantos outros atos de crueldade contra os mundos mineral, vegetal ou animal passam a serem reconhecidos como gestos de agressão contra si mesmo (RIBEIRO;SÀLÁMÌ, 2008, p. 181).
Percebe-se que numa filosofia preta, destruição/morte, erros/acertos se evocam e não são antitéticos. Tudo está interligado. A crise é a forma como se dá o desenvolvimento. Eros e Tânatos, deuses gregos, se dobram em Exu, deus negro e fálico. A boca que a tudo come engole o deus Jano, para demover, devorar e devolver, viabilizando a existência da vida e não a exaurindo, mas a exuriando. Não se trata de abater, dominar, controlar, mas promover o equilíbrio.
O conhecimento preto não é da ordem da escrita, daquilo que pode ser revelado por meio das palavras com seus signos e gramática, mas tem a ver com uma “prática iniciática” que atravessa todo o corpo, esta casa do mistério, um verdadeiro conhecimento místico e um envolvimento, não necessariamente religioso, muito menos expansionista, evangelizador e proselitista. Trata-se do refinamento de uma malandragem exuriana, um jogo de corpo, um movimento e uma bricolagem, um jogo em que não se deve dar luz ao invisível19.
Em nagô se diz: Ògbèri Nko Mo Màrìwò, o não iniciado não pode conhecer o mistério do Màrìwò (SODRÉ, 2005, p. 138). Não se trata aqui de um veto proibitivo, mas da indicação de que o conhecer passa pela ordem do afeto e do afetado, do simbólico e do ritualístico, do sentir e não da razão a produzir um “terceiro excluído”. Nesse esquema não há o terceiro excluído porque não há síntese, não há dialética que se amenize em tese, antítese e síntese.
Exu não se confina à visão dialética porque não é um que está para dois, mas um que se dá num sistema de diferenças, diferindo-se e deixando suas marcas em cada um dos termos, assombrando-os.
Em termos linguísticos e pós-estruturalistas, o significante não nos revela o significado como se este estivesse aguardando ardentemente por ser apresentado num salão, mas circula em sua duplicação e deslocamento, não permitindo nenhuma divisão que pressuponha uma ontologia, um ente, uma série harmoniosa de correspondências entre significante e significado.
Exu rasura a lógica maniqueísta porque não é dado a separações. Evoca a ambivalência e o antagonismo, sem qualquer censura e, por outro lado, não pretende um sentido homogêneo e monolítico. Escorregadio e intraduzível, mesmo que possa ser “traduzido”, mantem-se muito mais ligado ao sentido imprevisível e às afecções do afeto, ou seja, a tudo aquilo que nos afeta, constrange, maravilha, dói ou alivia, do que a um enunciado autoexplicativo.
É da ordem do afeto e não da razão positiva cujo modelo hegeliano20 vê a história como progresso, que trato aqui. É da desordem e do constrangimento da Poesia de Exu. É o Inefável expressando-se inefavelmente.
O sentido é esticado e uma tensão extrema deixa entrever o indizível. Diz-se tudo e nada ao mesmo tempo, promove-se a luta do sentido que não se resolve na tradução, mas na poética luta entre mar e rocha, razão e afeto, abraçando os contrários sem aniquilá-los. Estas afirmações convidam à necessária conquista de outro tipo de prática de pensamento.
Exu convoca a uma abertura à ótica planetária, afetiva, afetada e afetando, segundo os múltiplos modos das afecções e da alteridade, alegre, triste ou melancólico, vibrando caos/ordem num turbilhão de vidas (e contra vidas) agenciadas no contato com as forças do Outro, com o jogo da vida e do destino.
A vida intensa que produz intensidades canalizadas, rotas engendradas de agenciamentos heterogêneos, caminhos de fluxos de energia, zonas em que espaços de fronteira oscilam. Ora, a vida é um absurdo e não a regularidade matemática que se tentou defender com Galileu Galilei, Francis Bacon e Isaac Newton.
Talvez soubéssemos muito mais das complexidades da vida se nos aplicássemos a estudar com afinco e delicadeza as suas contradições, como por exemplo, uma metacontradição, algo assim como um branco como eu falando de Exu, deus negro (sem nos perdermos em veredas de identidades fixas e coerências mastigadinhas, que essas, meus caros, têm obrigação de se explicar por si mesmas).
O sentido da vida - e não é esta toda a pergunta da filosofia? - dá-se a ver e a (des)entender, (des)dobrando-se, por meio de processos de simbiose e afecção, contato e contágio, supressão e acréscimo em que se misturam deuses e humanos, saberes tradicionais e novos conhecimentos, mito e rito.
IV.
Interessado por multiplicar a vida, nômade, errante, lócus de potência, numa multiplicidade de forças e energias intervalares, o saber exuriano nos coloca a caminhar para bem longe da fragmentação artificiosa e empobrecedora da antítese colonial.
Não há um “ente” a ser descoberto, nada de subsistente e atemporal. Estamos longe de encontrar um resultado de essências, mas sim atravessados por acontecimentos e aberturas de horizontes, temporalizações encruzilhadas de (des)ordens provisórias.
Trata-se muito mais de expressar do que representar a vida, porque esta age por metonímia e bloqueia sentidos, enquanto aquela alcança elementos para além da dicotomia ficção/realidade21.
O pensamento colonial serve à exploração que desagrega a cultura do Outro, facilitando a expropriação das terras e a inculcação da inferioridade, impingindo ao subalternizado a hierarquia, o medo, o tremor, a prostração, o desespero, o servilismo22. O pensamento europeu, a sanha esquizofrênica a dizer-nos que só é possível filosofar em alemão23, deve dar lugar a uma diversalidade radical.
Ao invés de um pensamento carcomido e mofado, mentiroso e cínico24, cego e infantil a arrotar universalidade, importa a justiça cognitiva, a pluralidade de pensamentos, uma ecologia de saberes pluriversal e ética, fertilizada pelas vinte e uma faces de Exu (SOARES, 2016), encantadas pela epistemologia das macumbas (SIMAS; RUFINO, 2018). Atravessada pelas encruzilhadas de Exu, objetivando contrapor-se à cena armada pelo cogito sempre interessada em fazer emergir o pensamento da ordem dominante, como matriz de todo pensamento, uma ecologia de saberes coloca a pêlo a ideia da ciência positivista/cartesiana como a única forma de produção de conhecimentos válidos. Outras formas, regidas por outras regras, estão dispostas nas encruzilhadas da vida, tão capazes quanto de nos apontar caminhos.
Que tal nos inspirarmos em Lélia Gonzáles, Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro, em poetas como Lívia Natália e Esmeralda Ribeiro, na literatura visceral de Cuti e na escrita periférica de Sérgio Vaz e Ferréz, no som potente de Karol ConKa, Criolo, Emicida, no estilo livre - e é de liberdade e justiça epistêmica que trato aqui - desenvolvido nas ruas e vielas paulistanas, com seus labirintos místicos “onde os grafites gritam (...) Os bares estão cheios de almas tão vazias / A ganancia vibra, a vaidade excita” 25?
Em SP, na Avenida Paulista, centro cobiçado e ambicioso, o medo capitalista e o desejo colonial - cuja maldade irônica deu voz a um pato amarelo manipulado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) - acabam tendo de conviver com o rolê das minas e dos manos nos saraus e nas rodas de rap. Às sextas - feiras, as pessoas se reúnem para rimar e, por meio de sua poesia, questionar o sistema capitalista genocida e higienista.
As chamadas “Sextas Free - Batalha Racional” são uma metonímia de um amplo movimento que envolve desde o Slam Resistência, o rock, o rap, o funk, o afro reggae, o skate, a poesia das quebradas e a pichação, na contramão do monoteísmo cristão e do humanismo cínico da ilustração.
Atenta a palavra poética de Lucas Kóka26 denuncia as mentiras do sistema, suas mazelas e hipocrisias:
Ei senhor, calma senhor, calma senhor / não sou bandido / Não atira, eu sou artista, poeta, cantor / Dona Maria ainda sente dor toda vez que lava sem ser usado meu cobertor / Foi com ele que ela me encontrou / No testemunho, o fardado disse que me desarmou / Não, senhor / Eu ainda tô armado até os dentes / Me tiraram a paciência, a consciência / Sua bala me deu deficiência / Mas eu ainda sou linha de frente / Olha ali, ali, aquele neguinho ali disse que é cantor, ator, poeta, MC / Ué, se ele pagá de pá / bate nele fi / foi mal, não consegui / é que de Pepê e Nenê, ele virou muito rápido Muhammad Ali / Cuidado chegado / O capital, ele mente / vem com as roupas mais caras pra gente / Pra que todos se vistamos iguais / E não sejamos diferentes / (...) Aê, vai pra pátria que pariu / E lá você pode parar / Já que meu cabelo é bombril / Eu vou lavar essa vergonha na sua cara / E penetrar / a sua mente com as minhas palavras / até você gritar para / Já que várias delas gritavam e não adiantava / E pra iluminar vou tacar fogo na sua bancada religiosa da bala / Porque minha metralhadora tá carregada / como eu já disse / de palavra (...).
O conhecimento enunciado por Lucas Kóka fere de morte, faz tremer os discursos engendrados pelo discurso moderno. Ele desarticula a confiança na racionalidade absoluta linear e objetiva e nos convida a uma mudança que é, antes de tudo, sociopolítica. Só que esta não se sustenta sem uma mudança epistemológica.