Introdução
A compreensão dos rumos da educação matemática no Brasil envolve a análise de livros didáticos. Valente (2008), em texto bastante citado na área, destaca a ligação umbilical entre os livros didáticos de matemática e educação matemática. O autor, por meio de estudo histórico, mostra que a análise dessa relação é fundamental para compreender a trajetória da presença da matemática na escola e na formação de professores.
Este artigo analisa livros didáticos de matemática. Em específico, toma duas coleções de obras. Uma delas escrita para o antigo curso ginasial, e a outra, para todo o ensino que veio a se chamar ‘ensino de 1º grau’, na junção do curso primário com o ginásio, dando lugar à escola de oito anos.
A análise dessas duas coleções tem por finalidade discutir como é elaborada uma proposta para a matemática do 1º grau, que ganha oficialidade com os Guias Curriculares do estado de São Paulo, em 1975.
Os livros analisados das duas coleções mencionadas anteriormente são emblemáticos: têm autoria de personalidades marcantes da educação matemática brasileira: Lydia Condé Lamparelli e Maria Amábile Mansutti.
Lamparelli coordena a escrita da coleção para o ginásio (‘Matemática para o Ginásio’) e, posteriormente, junto com Amábile Mansutti, elabora a coleção para oito anos intitulada ‘Matemática - ensino do 1º Grau’.
A análise das duas coleções dá-nos elementos que revelam como se elabora uma matemática para um curso de oito anos, em tempos do que fica conhecido como Movimento da Matemática Moderna - MMM.
Para a análise das coleções desses livros didáticos, o texto serve-se de referências vindas da História Cultural, da História da Educação e mesmo de estudos mais recentes de História da educação matemática.
A mobilização da História Cultural liga-se, sobretudo, à perspectiva de dinâmicas da apropriação, representadas pelo consumo criativo, interpretativo, de bens culturais. Aqui, tal conceito - apropriação - é devedor dos estudos de Roger Chartier (1990, 2016). E, neste caso, sabe-se que a produção de livros didáticos é elaborada por uma série de apropriações que fazem seus autores, tendo em vista obras de outros autores, de orientações oficiais para o ensino, de perspectivas pedagógicas, dentre vários outros elementos.
Considerando-se ferramentas teórico-metodológicas vindas da História da Educação, lança-se mão dos estudos de Hofstetter e Schneuwly (2017) na caracterização dos conceitos de expert e expertise. Eles distinguem personagens envolvidos na produção curricular, por chamamento de autoridades educativas. Revelam que tais personagens sistematizam novos saberes de modo diferente da produção de saberes elaborada no meio acadêmico-universitário. Um expert, mesmo que tenha origem universitária, chamado pelo Estado em razão de seus estudos acadêmicos, não representa o meio universitário quando assume funções de expert. Coloca-se a serviço da autoridade educacional que o convocou para realizar uma determinada tarefa como, por exemplo, sistematizar uma proposta curricular.
Relativamente aos estudos vindos da História da educação matemática, cabe citar os trabalhos de Almeida (2021), Santos (2022), Gouveia (2023) e Silva (2023). Tais autores trazem-nos muitos dados e informações sobre a produção de livros didáticos e reformas curriculares, ao tempo das experiências profissionais de Lamparelli e Mansutti.
Para além dessas contribuições, mobiliza-se, sobretudo, a expressão ‘matemática a ensinar’, cunhada pelos estudos de Bertini, Morais e Valente (2017), representando o objeto com o qual trabalha o professor que ensina matemática. Trata-se da matemática que deverá ser ensinada por todos os professores, em uma dada época. E, neste ponto, cabe alongar um tanto mais a discussão.
Desde, pelo menos, os estudos de André Chervel, na década de 1980, assiste-se nas pesquisas a uma verdadeira revolução epistemológica. Chervel (1990), por meio de estudos históricos, mostra que os saberes veiculados na escola não constituem tão simplesmente vulgarizações do saber acadêmico-científico. Chervel (1990) insurge-se contra
[...] os esquemas explicativos que posicionavam o saber escolar como um saber inferior ou derivado dos saberes superiores, fundados pelas universidades; e a noção da escola como simples agente de transmissão de saberes elaborados fora dela, lugar portanto do conservadorismo, da rotina e da inércia [...] (Vidal, 2005, p. 93).
Assim, o meio escolar - a cultura escolar (Julia, 2001) -, ao longo do tempo, elabora saberes constituídos como referência de trabalho da docência: o que o professor deverá ensinar. Os saberes escolares, de outra parte, têm uma anatomia diversa daqueles saberes dos campos científicos. Organizam-se na forma de disciplinas escolares. Assim, no dizer desse historiador francês:
[...] A história das disciplinas escolares, colocando os conteúdos de ensino no centro de suas preocupações, renova as problemáticas educacionais. Se é verdade que a sociedade impõe à escola suas finalidades, estando a cargo dessa última buscar naquela apoio para criar suas próprias disciplinas, há toda razão em se pensar que é ao redor dessas finalidades que se elaboram as políticas educacionais, os programas e os planos de estudos, e que se realizam a construção e a transformação históricas da escola (Chervel, 1990, p. 219).
Os estudos de Chervel (1990), aliados àqueles de Julia (2001), possibilitam a realização de vários trabalhos com diferentes disciplinas escolares, trazendo para a pesquisa em História da Educação a caracterização dos saberes escolares1.
A mobilização do conceito de ‘matemática a ensinar’ é devedora dos estudos de Chervel (1990). De outra parte, serve-se dos textos de Hofstetter e Schneuwly (2017), que indicam estarem presentes no ensino dois tipos de saberes: o saber a ensinar e o saber para ensinar, convivendo de modo articulado ao longo do tempo. A partir dessa contribuição desses autores da Universidade de Genebra, os estudos de Bertini et al. (2017) fazem uma apropriação que resulta no par de conceitos intitulados ‘matemática a ensinar’ e ‘matemática para ensinar’. No primeiro caso, estuda-se a trajetória de constituição do objeto de trabalho do professor: a ‘matemática a ensinar’. A constituição desse objeto leva em consideração as contribuições de Chervel (1990), como se disse, mas amplia o alcance delas na medida em que considera a articulação entre objeto e ferramenta, ou seja, entre ‘matemática a ensinar’ e ‘matemática para ensinar’. Associar a ‘matemática para ensinar’ à ferramenta de trabalho do professor que ensina matemática significa caracterizar que saberes deve o professor ter de modo que possa ministrar a ‘matemática a ensinar’.
Por fim, tendo em vista essa incursão às ferramentas teórico-metodológicas mobilizadas neste artigo, cabe destacar que os conceitos de ‘matemática a ensinar’ e ‘matemática para ensinar’ são tomados como saberes objetivados, nos termos de Valente (2019). Isso quer dizer que a caracterização dessas matemáticas é dada por sistematizações que levam em conta todo o arsenal de informações disponíveis em um dado tempo histórico sobre a escola. Importam, assim, todos os vestígios deixados pela cultura escolar do passado: cadernos de alunos, livros didáticos, rascunhos de aulas, provas, regulamentos oficiais, documentos curriculares, dentre tantos outros. No presente artigo, de modo privilegiado, tomam-se livros didáticos de matemática; no entorno deles, lança-se mão, ainda, de regulamentos, de guias curriculares, de documentos de arquivos e de depoimentos de antigos professores para compreensão do processo de sistematização ocorrido entre as décadas de 1960 e 1970, o qual resulta na constituição de uma ‘matemática a ensinar’ para o 1º grau.
Como é elaborada uma ‘matemática a ensinar’ para a escola de oito anos? Essa questão move o desenvolvimento deste artigo.
Um desafio: sistematizar uma matemática para a escola de oito anos
O antigo curso primário caracteriza-se por sua terminalidade. As matérias de sua grade curricular obedecem aos fins da escola dos primeiros anos escolares, em tempos em que o ensino obrigatório é de apenas quatro anos. Trata-se de uma escola que tem por finalidade “[...] elevar o nível dos conhecimentos úteis à vida na família, à defesa da saúde e à iniciação no trabalho” (Decreto-lei nº 8.529, 1946).
A relação entre o curso primário e o ensino ginasial ocorre em modo de ruptura: tem-se o Exame de Admissão. Tal avaliação mais considera temas do próprio ginásio, do que aquilo que o recém-saído do quarto ano primário aprende durante o curso. Tal exame é elaborado por instâncias do ensino secundário... (Machado, 2002). Não há, verdadeiramente, o sentido de continuidade. Acrescente-se, ainda, que a maioria da população não tem acesso ao ginásio, sendo barrada da continuidade de estudos pelo Exame de Admissão.
Relativamente à matemática a estar presente no curso primário, a matemática a ensinar deveria, para atender às normativas oficiais, constituir-se de rudimentos matemáticos que pudessem ser úteis à vida pós-escola. Na escrita de Fernando de Azevedo, como elaborador da reforma do ensino no Rio de Janeiro, então capital da República, é possível ler: “[...] a cultura científica adquirir-se-á na escola primária apenas nos seus rudimentos de ordem geral, a que se costuma chamar de iniciação, rudimentos esses que, visando utilidades de aplicação na vida, não podem ser considerados como ciência no sentido rigoroso da palavra” (Azevedo, 1930, p. 224).
Vinda a Lei de Diretrizes e Bases, cria-se o 1º grau: “Art. 17. O ensino de 1º grau destina-se à formação da criança e do pré-adolescente, variando em conteúdo e métodos segundo as fases de desenvolvimento dos alunos. Art. 18. O ensino de 1º grau terá a duração de oito anos letivos e compreenderá, anualmente, pelo menos 720 horas de atividades” (Lei nº 5.692, 1971).
Na emergência da escola de oito anos, há o desafio de estabelecer uma matemática a ensinar para as oito séries. Assim, fica posta, de modo imperativo, uma elaboração curricular que tenha em conta a continuidade dos estudos realizados nos primeiros quatro anos escolares.
Na nova elaboração curricular, não cabe uma simples junção do que é ensinado no primário com o que está presente no ginásio. Some-se a isso uma época em que ocorrem mudanças internacionais no ensino de matemática: tem-se o MMM. O que, evidentemente, deve ser levado em consideração no processo de sistematizar uma matemática para os primeiros anos escolares que tenha continuidade nos anos finais do 1º grau.
Como é elaborada uma ‘matemática a ensinar’ para a escola de oito anos? Busca-se mostrar que as duas coleções a serem analisadas neste artigo jogam papel fundamental na direção de vencer o desafio de sistematizar uma matemática para o 1º grau. Além disso, mostra-se que tais obras sedimentam uma base para que haja a oficialidade de uma ‘matemática a ensinar’, em termos do MMM, por meio dos ‘Guias Curriculares propostos para as matérias do Núcleo Comum do Ensino do 1º Grau’.
Lydia Lamparelli e a coleção ‘Matemática para o Ginásio’
A professora paulistana Lydia Condé Lamparelli, em tempos recentes, tem sido alvo de alguns estudos. É possível citar, por exemplo, os trabalhos de Souza (2005); Almeida (2021) e Santos (2022), dentre alguns outros. Tais produções possibilitam ao leitor acompanhar a trajetória profissional dessa professora e, por meio dela, compreender momentos importantes do ensino de matemática em São Paulo, e mesmo no Brasil. Ela própria escreveu, também, sobre sua trajetória em texto publicado na Revista HISTEMAT (Lamparelli, 2018).
Lydia Lamparelli, licenciada em matemática pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, formada em 1958, inicia sua carreira docente em escolas públicas. Em seus primeiros anos de docência, por intermédio de seu esposo, conhece o IBECC - Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, mostrando-se interessada no trabalho desenvolvido pelo Instituto sobre o ensino de ciências e matemática. Apresenta-se a esse órgão, recebendo, em seguida, convite para integrar a equipe de matemática, nos idos de 1963. Lá encontra-se com o Prof. Lafayette de Moraes, realizando uma parceria para a tradução de materiais estadunidenses ao público brasileiro. Em especial, ambos traduzem e adaptam os livros didáticos de matemática do SMSG - School Mathematics Study Group2. Essa atividade representa momento importante para Lamparelli, que pondera:
Havia livros dirigidos para a formação dos professores e livros didáticos para os cursos ginasial e colegial com os correspondentes guias para os professores. Esses livros permitiram que eu tivesse contato com um novo tipo de ensino da Matemática. Aliás, eles não usavam a expressão Matemática Moderna, mas sim Matemática Contemporânea. Tinham muita influência do Prof. Howard Fehr, que não era do S.M.S.G., mas sim do National Council of Teachers of Mathematics (N.C.T.M.). Esse material contribuiu de modo significativo para minha formação pois aprendi muita coisa que não havia visto na Faculdade (Lamparelli, 2018, p. 267).
O contato com os livros do SMSG leva Lydia a constatar que essas obras tratavam a chamada matemática moderna de modo diferente daquele que estava sendo tratado em livros didáticos brasileiros, sob a égide do MMM. Desde logo, Lamparelli verifica que os livros nacionais trazem sempre uma introdução à Teoria dos Conjuntos, sem que isso reorganizasse a matemática, deixando todos os demais temas do seu ensino a serem tratados da mesma maneira tradicional, apenas com mudanças na terminologia (Lamparelli, 2018). Com isso, Lydia Lamparelli adota uma posição de crítica à produção didática nacional, considerando que ela não atende àquilo que está sendo discutido internacionalmente sobre o ensino de matemática.
Do IBECC, Lamparelli é convocada, em 1966, pela Chefia do Ensino Primário da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo para realizar encontros de estudos com orientadores pedagógicos. Esses profissionais são responsáveis pela orientação dos professores da rede pública paulista a esse tempo. Essa possibilidade estreita, ainda mais, o conhecimento de Lamparelli sobre a rede escolar paulista.
A estada no IBECC e o contato com o que se passa nas escolas, à vista da ampla motivação com a matemática moderna, trazida por livros considerados ruins por Lamparelli, leva-a a propor ao Instituto a escrita de livros didáticos próprios. Diz Lamparelli (2018, p. 271): “Se os professores estão tão entusiasmados com a chamada Matemática Moderna, por que não lhes oferecer alguma coisa que realmente se assemelhe a esse movimento sem ficar restrito a uma mera mudança de terminologia?”.
O processo de elaboração dos livros é colocado em marcha. Lamparelli conta que, para o trabalho, monta uma equipe:
Convidei para participar da equipe a Profa. Dalva Fontes Indiani que tinha uma experiência didática enorme em escolas estaduais paulistas, o Prof. Adolpho Walter P. Canton, (eu o havia entrevistado e selecionado para trabalhar numa escola federal para superdotados que deveria ser instalada na Grande São Paulo, um projeto que o Dr. Isaias Raw estava promovendo, mas que não deu certo devido às contingências políticas da época) e o Prof. Pedro Alberto Morettin, colega do Prof. Canton, sendo ambos Instrutores do Departamento de Estatística da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. [...] Nós éramos quatro com contribuições diferentes que poderiam ser discutidas de modo a não prevalecer o ponto de vista de um único participante. Mas a maneira de trabalhar em conjunto é que resultaria em um trabalho de equipe. Depois de cada assunto ser discutido por todos, um de nós era encarregado de escrever um texto base o qual era levado à prática pedagógica pela Profa. Dalva. Ela então nos trazia dados sobre a reação e as dificuldades e ou compreensão dos alunos, elementos importantes para uma nova redação do texto (2018, p. 271).
Trata-se, como se observa, de um processo pouco usual de elaboração de livros didáticos àquela altura, no Brasil. Não se tem um dado autor consagrado por meio coleções de livros didáticos de matemática já elaboradas em décadas anteriores, que os obriga a uma adaptação dessas obras aos novos tempos do MMM. O processo coordenado por Lamparelli alinha professores universitários na elaboração de textos inéditos e uma dinâmica experimental de retorno de como o material era recebido no cotidiano escolar.
Lamparelli e equipe apostam na relação umbilical, mencionada ao início deste artigo, entre livros didáticos e educação matemática, haja vista que ponderam sobre a produção dessas obras do seguinte modo:
Era também nossa preocupação mudar a concepção de livro didático de tal maneira que por meio dessa mudança houvesse possibilidade de uma renovação pedagógica. Para atingir esse objetivo era preciso que os livros realmente se dirigissem aos alunos e que não fossem apenas livros de exercícios, os quais o professor mandava resolver após uma aula expositiva. Decidimos que o estudo da Geometria seria apresentado em todos os quatro volumes contrariando o fato de que a Geometria, via de regra, só aparecia nos 3º e 4º anos do Curso Ginasial. Não adotaríamos também apresentar um tópico sobre Teoria dos Conjuntos pois nesse estágio de aprendizagem teríamos que lançar mão de exemplos que certamente conteriam imprecisões. Adotaríamos sim a Linguagem da Teoria dos Conjuntos pois isso forneceria uma unidade de tratamento aos diversos ramos da Matemática. Foi por isso que a Geometria nos pareceu ser um campo extremamente fértil, pois à medida que novos conceitos geométricos surgiam, eles serviam para relacioná-los à linguagem supracitada. Exemplos: - Figura geométrica relacionada a Conjunto de Pontos, Elemento e Pertinência; - Reta e Plano relacionados a Subconjunto; - Ângulo relacionado à Reunião de Conjuntos etc. (Lamparelli, 2018, p. 271).
A citação acima sintetiza os elementos inovadores trazidos à matemática que deveria ser ensinada no ginásio. Desse modo, ao iniciar o primeiro volume da coleção, em seu Capítulo 1 - Geometria Intuitiva, os autores destacam, em linguagem direcionada aos leitores/alunos, que tratam de figuras geométricas planas. Longe de se pensar que isso seja feito em moldes tradicionais euclidianos, todo o tratamento das figuras geométricas é feito por meio da linguagem dos conjuntos, como menciona Lamparelli anteriormente. Veja-se, por exemplo: o que é uma reta? Resposta posta no Capítulo 1: ‘Uma reta é um subconjunto do espaço’ (p. 16). Note-se também um exemplo de exercício: ‘Considere a figura formada pelos três pontos a, b, c. É possível traçar uma reta R tal que: a ( R, b ( R e c ( R? Onde deve estar o ponto c para que isso aconteça?’ (p. 16). Assim, a coleção já tem em vista um dos referentes do MMM: mudar a geometria, trazê-la para a álgebra, para os exercícios de estabelecimento de relações, considerando a Teoria dos Conjuntos. Mas se pode notar que essa organização da ‘matemática a ensinar’ deve levar em consideração que o professor saiba que a linguagem de conjuntos é um expediente integrador do ensino, que o uso das figuras geométricas traz ganho em termos dos alunos poderem mobilizar essa linguagem em variadas situações, com diferentes conteúdos matemáticos. Isso mostra como a deliberação de ensino de um dado tema depende do saber que o professor tem sobre ele, o que nos leva a reiterar a articulação existente entre ‘matemática a ensinar’ e ‘matemática para ensinar’.
Para além de figuras geométricas, o Capítulo 1 leva o aluno a mobilizar vários outros elementos do seu cotidiano, mas sempre buscando o rigor no uso de símbolos matemáticos. Por exemplo, na discussão sobre o uso do sinal de ‘=’, destaca-se que, matematicamente, quando se diz que a=b, significa que a e b são a mesma coisa. De modo diferente, na vida cotidiana, ao se dizer que o vestido de Maria é igual ao de Joana, isso tem significado diverso, pois tratam-se de dois vestidos. Assim, a ideia em voga de utilizar o cotidiano do aluno como estratégia de ensino não desnaturaliza os conceitos matemáticos.
Em páginas posteriores do livro, já agora no Capítulo 2 - Relações e aplicações, os autores localizam a discussão sobre o conceito de número, lançando mão da linguagem dos conjuntos. Apresentam conjuntos equipotentes, no âmbito de uma coleção de conjuntos. Mostram uma coleção de conjuntos com dois elementos cada e inferem: “[...] logo, todos possuem o mesmo número de elementos que chamamos dois e representamos pelo símbolo 2” (p. 72)3. Este é um exemplo fundamental de tratamento do significado de número. Mas, novamente, isso se atrela à posse de um saber do professor. O docente tem que saber que, matematicamente, tem-se mudança na concepção de número. Que, em paralelo aos estudos piagetianos, número refere-se à indicação de conjuntos com a mesma cardinalidade. Outra vez, estão articulados o objeto de ensino e as ferramentas necessárias para ensiná-lo. Articulam-se a ‘matemática a ensinar’ e a ‘matemática para ensinar’.
Sem que seja necessário nos atermos a todos os livros, é possível dizer que a equipe coordenada por Lydia Lamparelli, por meio da coleção ‘Matemática para o ginásio’, elabora materiais que se mostram bastante diferentes daqueles que já circulam no país. Tais livros nacionais, como se menciona anteriormente, via de regra, têm compromisso com adaptações de obras já existentes de modo a que possam ser considerados modernos. Em boa parte deles - talvez não se cometa erro grande ao se afirmar que para a maioria das obras -, os autores constroem textos realizando um amálgama entre o já existente, livros pré-matemática moderna, e os elementos considerados modernos. Isso ocorre, sobretudo, com o capítulo sobre Teoria dos Conjuntos, tal como menciona Lamparelli (2018), colocado nos livros sem que seja possível, por meio de conjuntos, expressar os conteúdos matemáticos a serem ensinados na escola de oito anos. Assim, a linguagem de conjuntos, nas obras existentes até então, não é mobilizada para caracterizar a nova matemática. Nota-se a criação, sem significado, de um novo conteúdo: conjuntos4.
Lydia Lamparelli, Amábile Mansutti e a coleção ‘Matemática - ensino do 1º Grau’
A elaboração da coleção ‘Matemática para o ginásio’, como se descreve anteriormente, envolve um trabalho com autoria de figuras respeitadas no meio matemático. Professores universitários, formados em matemática na USP, reunidos em um processo de diálogo com a rede de ensino, buscando reelaborar toda a base de entendimento do MMM em São Paulo. De outra parte, o próprio título da coleção indica que o material é para ser utilizado no ginásio. Porém, logo se avizinha um novo contexto educacional, que deve obrigar a reorganização das obras didáticas, tendo em vista a ampliação do tempo de escolarização obrigatória.
As discussões sobre a criação da escola de oito anos, que vem em anos seguintes a se constituir como 1º grau, estão presentes, pelo menos, desde finais da década de 19605.
Em São Paulo, o desafio a ser enfrentado de elaborar uma nova configuração curricular, tendo em vista a escola de oito anos, dá passo fundamental com a criação do IMEP - Instituto Municipal de Educação e Pesquisas, por meio do Decreto nº 7.834 de 12 de dezembro de 1968.
As autoridades educacionais paulistas, tendo por sustentação uma Lei de 1967, que prevê “[...] a implantação do ensino municipal em diversos níveis e o interesse dos cursos primário, ginasial e colegial experimentais, destinados à formação de jovens com pendores para o trabalho científico [...]”, criam o Instituto, de modo pioneiro, para além do ensino regular, atribuindo a ele, também, a formação de professores que ensinam ciências e matemática:
O Instituto Municipal de Educação e Pesquisas, a par de suas atividades de ensino, manterá um Centro para treinamento de Professores Primários da Prefeitura, no setor de ciências e matemática, realizando pesquisas educacionais objetivando a melhoria do ensino, para aplicação em outras escolas da rede municipal e secundárias em geral (Decreto-lei nº 7.834, 1968).
Como integrante da equipe de matemática do IBECC, então centro de referência para a elaboração de materiais para o ensino de ciências e matemática, Lydia Lamparelli é chamada para coordenar o trabalho de matemática a ser realizado no IMEP. Lamparelli assim descreve esse momento:
No segundo semestre de 1969 surgiu uma nova possibilidade de trabalho. A Prefeitura de São Paulo iria em 1970 fazer funcionar a primeira escola de Ensino de 1º Grau composta por oito séries, o Instituto Municipal de Educação e Pesquisa - IMEP -, no bairro da Bela Vista. Os objetivos gerais desta experiência anteciparam em dois anos o que veio a constar na reforma do ensino posteriormente realizada. Eles voltavam-se para a eliminação das diferenças que o primário e o ginásio guardavam entre si com a exclusão do exame de admissão, adotando currículo, métodos e objetivos que também pudessem reduzir a evasão escolar. Se os resultados esperados fossem promissores esse esquema seria implantado nas demais escolas do município. A Profa. Iracilda Robert de Carvalho, que tinha contatos com o IBECC, seria a diretora dessa nova escola. Como era necessário compor o corpo docente, foi organizado um curso para selecionar professores primários da rede municipal que iriam trabalhar no IMEP, realizado de agosto a dezembro de 1969, denominado ‘Preparação Pedagógica para a Escola Integrada’. Os demais professores das séries seguintes foram contratados, entre os quais eu (Lamparelli, 2018, p. 278, grifo do autor).
A partir da criação do IMEP, o cotidiano de trabalho nesse Instituto revela-se como terreno fértil para a realização de experiências educativas com vistas a uma escola obrigatória de duração ampliada. De uma parte, o acolhimento de professores da rede de ensino em cursos de formação; de outra, o Instituto constituindo-se em um laboratório para experimentar junto às práticas pedagógicas de seus professores uma nova proposta.
O trabalho no IMEP visa a uma proposta para tratamento da matemática a ensinar que busca atender à futura escola de oito anos. Para os dirigentes, tal escola, ao tempo de criação do Instituto, já está no horizonte do que vem posteriormente com a LDB 5.692, na criação do 1º grau.
Como é elaborada uma ‘matemática a ensinar’ para a escola de oito anos? Para responder a essa questão, é necessário penetrar nos bastidores do trabalho do IMEP. Nesse Instituto, o processo de elaboração de uma matemática a ensinar em oito anos passa pelas experiências e práticas pedagógicas de professores e cursos de formação ali ministrados, como mencionado anteriormente. Tem-se processos e dinâmicas que se mostram fundamentais para a criação dessa nova matemática. De outra parte, estar presente nos bastidores do IMEP levam-nos a seguir a trajetória profissional de duas professoras: Lydia Condé Lamparelli e Maria Amábile Mansutti.
De Lydia Lamparelli, as linhas anteriores traçam o seu perfil e atuação profissional. Quanto à Maria Amábile Mansutti, sabe-se que é Licenciada em Pedagogia pela USP. Inicia sua atuação como docente com apenas dezenove anos. Tem sua trajetória como professora dos anos iniciais, mas também exerce papel de gestora e formadora de professores, atuando nas redes municipal e estadual de ensino, em São Paulo. Mansutti, em fins da década de 1960, integra o corpo docente do IMEP. Nesse Instituto, realiza um trabalho conjunto com Lydia Lamparelli relativo ao ensino de matemática nos primeiros anos escolares. Lamparelli recorda:
No IMEP conheci Maria Amábile Mansutti, que era professora do 2º ano e além de ser professora primária era também na época estudante de Pedagogia da USP. Resolvemos, então, que nossa experiência merecia ser difundida em quatro livros didáticos para essas séries. Assim nós duas trabalhamos na elaboração de quatro volumes cujo título era: MATEMÁTICA Ensino do 1º Grau, publicados pela EDART/MEC em 1973/1974 (Lamparelli, 2018, p. 280).
Assim, Mansutti e Lamparelli trabalham de modo integrado nas experiências e análises da matemática a estar presente no ensino de oito anos, o que resulta na produção de uma nova coleção de livros didáticos de matemática.
Durante esse período de trabalho no IMEP, Lamparelli municia Mansutti com textos específicos para o ensino de matemática com base em propostas do Movimento da Matemática Moderna (MMM) e explicita que há um duplo desafio para as professoras: “[...] construir um trabalho para uma escola integrada de oito anos e incorporar as referências do MMM” (Valente, Almeida e Silva, 2020, p. 73).
Desde o ingresso de Lamparelli no IMEP, tem-se cursos ofertados a professores que, sistematizados, também dão base a novas sistematizações rumo à escrita da coleção ‘Matemática - ensino de 1º Grau’. A pesquisadora Denise França menciona que, no IMEP, os cursos para professores deram origem a três apostilas, as quais
[...] tinham como objetivo imprimir uma linha comum de renovação pedagógica à rede municipal de ensino. Foram usadas nos cursos de capacitação de professores ocorridos em fevereiro e agosto de 1969. Na parte específica de Matemática, foram divulgadas as experiências realizadas nas classes-piloto, com atividades que utilizavam a teoria de conjuntos e a introdução do conceito de números por essa abordagem, apresentando sugestões de tarefas, sem comentários sobre metodologia (França, 2012, p. 188).
Por certo, todo esse processo de formação de professores é devedor do trabalho anterior coordenado por Lamparelli. A elaboração da coleção ‘Matemática para o ginásio’, descrita anteriormente, sistematizou uma proposta para o ensino de matemática - uma matemática a ensinar - que tem papel fundamental no trabalho conjunto realizado por Lamparelli e Mansutti. Isso é corroborado por Lamparelli, responsável, no IMEP, pelo planejamento anual de matemática em todos os níveis:
Adotei nessa escola os livros didáticos de Matemática que foram redigidos anteriormente no IBECC. Eles não eram usados apenas para fazer os seus exercícios: os alunos eram organizados em grupos para que seus textos fossem lidos, e depois as dúvidas surgidas eram discutidas com toda a classe (Lamparelli, 2018, p. 279).
O estudo de Santos (2022) apresenta os planejamentos do trabalho pedagógico para o ensino de matemática, realizados no IMEP, sob coordenação de Lamparelli. A Figura 2, apresentada no estudo dessa autora, reproduz parte do Planejamento sobre o conteúdo ‘Relações de Equivalência e Aplicação’. Nela é possível ler indicações ao trabalho dos professores:
Domínio do Conteúdo: a) Estudo do texto que começa da página 63 do livro “Matemática para o ginásio”, do IBECC, e resolução de exercício que lhe segue, assim como os do final do capítulo 2 do mesmo livro; b) estudo dirigido extraído do texto acima (avaliação); c) Projeção de transferências relativas ao assunto (Planejamento por unidade do IMEP apud Santos, 2022).
Assim, as referências para as séries finais da escola de oito anos tomam a coleção para o ginásio. E, a partir da ‘matemática a ensinar’ no antigo ginásio, tem-se o desafio de elaborar uma matemática para uma escola que integre o primário e o ginásio. Tal tarefa passa por elaborar qual seria, tendo em vista o MMM, a matemática a fazer parte do ensino nas primeiras séries. Daí a relevância do trabalho conjunto de Lamparelli e Mansutti. A primeira, além de coordenadora, foi professora nas séries finais; já a segunda teve experiência com as primeiras séries.
Cursos para professores, análises da coleção ‘Matemática para o ginásio’, experiências pedagógicas realizadas por Mansutti nas séries iniciais, tendo por referência os estudos matemáticos realizados em conjunto com Lamparelli, propiciam um acúmulo de dados que, sistematizados, dão origem à organização da matemática das primeiras séries, materializando-se com uma nova coleção: ‘Matemática - ensino de 1º Grau’.
A análise comparativa das duas coleções mencionadas - a coordenada por Lydia Lamparelli para o ginásio e a nova coleção para o 1º grau - mostra existir um processo de sistematização da matemática dos primeiros anos escolares, herdeiro do antigo grupo escolar, a partir da matemática dos anos finais do 1º grau.
Na constituição dessa nova coleção, é possível verificar o papel decisivo que a coleção para o ginásio tem na nova organização de uma matemática para a escola de oito anos.
Tome-se, por exemplo, o volume 4 da coleção ‘Matemática - ensino do 1º Grau’. Logo em sua primeira parte, o que se encontra para o tema ‘Conjuntos e relações’ é um trabalho de utilização da geometria, pelas formas geométricas, na resolução de variados problemas referenciados no cotidiano dos alunos, de modo a ser possível o aprendizado da linguagem dos conjuntos. Diferentemente de apresentar de forma isolada o tema ‘conjuntos’, as autoras lançam mão do uso de sua linguagem para expressar problemas e fatos matemáticos. Ora, essa é exatamente a proposta contida na coleção ‘Matemática para o ginásio’, na qual se tem como primeiro assunto a geometria intuitiva. Recorde-se, neste ponto, o que diz Lydia Lamparelli, em suas explicações sobre a elaboração da coleção para o ginásio, em especial, no tratamento inicial de conjuntos pela via da geometria:
[...] a Geometria nos pareceu ser um campo extremamente fértil, pois à medida que novos conceitos geométricos surgiam, eles serviam para relacioná-los à linguagem supracitada. Exemplos: - Figura geométrica relacionada a Conjunto de Pontos, Elemento e Pertinência; - Reta e Plano relacionados a Subconjunto; - Ângulo relacionado à Reunião de Conjuntos etc. (Lamparelli, 2018, p. 271).
Não se está aqui a dizer, por certo, que há cópia do tratamento de conjuntos na coleção para o 1º grau vinda da coleção do ginásio. O que se tem é a permanência da mesma organização didática, da mesma estruturação construída para o ginásio, agora tratada em termos das possibilidades e experiências vivenciadas pelos alunos dos primeiros anos escolares. Assim, o volume para a 4ª série já introduz, por meio de vários exemplos cotidianos e, ainda, utilizando figuras geométricas, o uso da linguagem dos conjuntos. Isso tem continuidade no volume destinado à 5ª série, agora de modo a serem utilizados problemas de nível, digamos, mais avançado.
A visão mais ampla de organização da matemática a ensinar para o 1º grau mostra uma estrutura já utilizada na coleção ‘Matemática para o ginásio’, elaborada sob os auspícios do IBECC. Os capítulos seguem a lógica de tratamento de temas ligados à ampliação dos conjuntos numéricos: conjunto dos números naturais, conjunto dos números racionais, entremeados com capítulos de geometria tratada por meio da linguagem dos conjuntos. Está, assim, constituída uma ‘matemática a ensinar’ no 1º Grau, sistematizada na coleção escrita por Lamparelli e Mansutti.
Dinâmicas e processos de oficialização da matemática para o 1º grau: a elaboração do ‘Verdão’
O aparecimento dos experts em tempos do MMM ocorre tardiamente. O que implica dizer que a oficialização de um documento curricular norteador das ações dos professores, em termos desses novos tempos de matemática moderna, iniciados na década de 1960, tarda a chegar às escolas. Durante mais de uma década de existência do MMM, prevalecem como referência para os docentes os livros didáticos de matemática. Não há oficialmente um currículo de matemática. O Movimento se alastra no Brasil por meio dos livros didáticos. E, como se mostra em linhas anteriores, os especialistas sediados no IBECC, em especial Lydia Lamparelli, têm posição bastante crítica relativamente a essa produção nacional de obras didáticas de matemática moderna. O que leva à elaboração da coleção ‘Matemática para o ginásio’, desdobrando-se, posteriormente, na coleção ‘Matemática - ensino de 1º Grau’.
Se, em mais de uma década, o ensino tem referências oficiosas - os livros didáticos -, tudo muda com criação da nova Lei de Diretrizes e Bases - Lei 5.692/71. Há, neste caso, o chamamento de personagens a quem a autoridade educacional deve atribuir a tarefa de sistematizar novos saberes para o ensino e para a formação de professores, agora com o MMM em vigência - os experts. E aqui se trata de oficializar um documento curricular que possa ser referência para o ensino de todas as escolas paulistas.
A Lei de Diretrizes e Bases de 1971 (Lei nº 5.692) cria a escola de 1º grau, até então chamada ensino primário, que passa a ser denominada de ensino de primeiro grau, com a duração de oito anos. A nova lei procura garantir também a obrigatoriedade da matrícula das crianças com sete anos de idade nesse nível de ensino (Lei nº 5.692, 1971).
A LDB 5.692/71 busca superar o problema da descontinuidade entre o nível primário e ginasial, que até então não é enfrentado. Com o ensino de primeiro grau obrigatório, de oito anos, é trazida à baila a necessidade de alterações curriculares. Isso fomentou a elaboração dos Guias Curriculares para o Ensino de 1º grau (São Paulo, 1975).
A organização do currículo de oito anos surge, pela primeira vez, da prática experimental no IMEP. Tal trabalho ganhará novas sistematizações, novos níveis de objetivação, de modo a poder alastrar-se, a partir de São Paulo, como referência para todo o Brasil.
Nascem os ‘Guias Curriculares para o ensino de 1º Grau’ do estado de São Paulo, no contexto educacional após a aprovação da LDB 5692/71, apelidado pelos professores de ‘Verdão’, em razão da cor de uma de suas capas.
O Centro de Recursos Humanos e Pesquisas Educacionais “Prof. Laerte Ramos de Carvalho” - CERHUPE, órgão criado em 1973, assume então essa tarefa de produção das novas referências para o ensino e para a formação de professores.
De acordo com texto introdutório dos Guias Curriculares, escrito pela Prof.ª Therezinha Fram, então diretora do CERHUPE, há uma demanda de recrutamento de professores especialistas - experts - para a produção de tais guias:
Caracterizada a escola de 1º grau, mais definidamente puderam ser estabelecidas as diretrizes gerais para a construção do currículo. Em seguida, procedia-se ao recrutamento de especialistas para realizá-la. A constituição das equipes traduzia a preocupação de ver assegurada uma visão total do processo escolar: seus membros somavam experiências, abrangendo todos os graus de ensino vigente - primário, secundário - ginasial e colegial - e superior (São Paulo, 1975).
O excerto acima menciona o critério de seleção de experts. Personagens capazes de resolver um problema prático: a construção de um currículo para a escola de oito anos. Para tal atividade, foram recrutados para a equipe de Matemática os experts Almerindo Marques Bastos, do Colégio Macedo Soares; Anna Franchi, da Escola Experimental da Lapa, e Lydia Condé Lamparelli, do Instituto Brasileiro de Educação, Cultura e Ciências - IBECC.
No caso de Lydia Lamparelli, chefiando a equipe designada para elaboração desse currículo, a expertise a ela atribuída se dá mediante sua atuação no Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC). E, também, nas experiências vindas do IMEP, com a organização da matemática para a escola de oito anos para a rede municipal.
O ‘Verdão’ traz a sistematização das experiências vindas da elaboração das coleções ‘Matemática para o ginásio’ e ‘Matemática - ensino do 1º Grau’. Por exemplo: anteriormente, na análise da primeira coleção, chama-se a atenção para o trabalho introdutório com a Teoria dos Conjuntos feita de modo integrado, com o uso da Geometria, a partir de figuras geométricas, sem que isso constitua um apêndice não mobilizado em todo desenvolvimento do ensino de matemática. Isso está posto no ‘Verdão’ por meio das seguintes orientações:
[...] a utilização da linguagem da Teoria dos Conjuntos no tratamento de todos os temas contribui, como fator unificador, para a obtenção desse objetivo. Cabe apenas alertar o professor no sentido de não transformar essa linguagem auxiliar em objetivo principal do ensino da disciplina. Devemos por isso usar de todo o cuidado, a fim de não exagerar na sua utilização (São Paulo, 1975, p. 210).
Tais orientações são complementadas com os seguintes dizeres: “As noções relativas a conjuntos devem ser introduzidas, como um meio auxiliar, simultaneamente com algum outro conceito, procurando integrar os dois assuntos. A Geometria, por exemplo, é bastante indicada para isso” (São Paulo, 1975, p. 215).
Outro exemplo de organização dos Guias de Matemática mostra o quanto essa produção é devedora dos trabalhos anteriores coordenados por Lamparelli. A anotação sobre a necessidade do rigor no ensino de matemática, tema caro ao MMM. Na orientação aos professores, o ‘Verdão’ distingue o trato diferente a ser dado para a matemática para o 1º grau, mas pondera em seguida que
Isto não significa, entretanto, um abandono do rigor que caracteriza o raciocínio matemático. Esse rigor deve estar presente em todo o desenvolvimento do programa. Parece-nos, apenas, que devemos procurar obter os conceitos com base nas atividades do aluno, na manipulação de instrumentos e materiais didáticos adequados, em situações tão próximas do concreto e da experiência do aluno quanto seja possível (São Paulo, 1975 p. 209).
Recorde-se, neste ponto, a coleção ‘Matemática para o ginásio’, sobre o cuidado em distinguir o significado matemático para o sinal de ‘=’. Destaca-se o uso cotidiano e o significado matemático que devem ser ensinados. Igualdade em matemática significa ‘a mesma coisa’; igualdade na vida cotidiana pode significar os mesmos atributos, mas para coisas diferentes.
Outra observação digna de nota, relativa às heranças utilizadas na elaboração dos Guias, refere-se à estrutura utilizada para a ‘matemática a ensinar’ seguindo a lógica de apresentação dos campos numéricos, já desenvolvida desde a coleção ‘Matemática para o ginásio’. Na escrita da documentação curricular, os experts sistematizam tal encaminhamento justificando o seguinte:
Consideramos importante destacar no estudo dos campos numéricos o fato de que a introdução de um novo campo está ligada ao problema da impossibilidade de certas operações serem efetuadas, sem restrições, no campo anterior. Assim, o fato da subtração não ser possível em N, quando o segundo termo é maior que o primeiro, origina a criação dos inteiros. O mesmo acontece com a divisão, quando passamos dos racionais para os reais. Nas séries iniciais as propriedades das operações devem, em nossa opinião, apenas serem exploradas, preparando o aluno para que na 5ª série as mesmas possam ser explicitadas (São Paulo, 1975, p. 216).
A organização da ‘matemática a ensinar’ colocada na citação acima, do mesmo modo que a passagem da 4ª para a 5ª série, segue a sistematização posta na coleção organizada para o 1º grau com autoria de Lamparelli e Mansutti.
Considerações finais
As décadas de 1960-1970, na educação, marcam um período de reorganização dos saberes escolares. O meio social, cultural e político mostra um tempo de afirmação do ensino de ciências e matemática no contraponto com o ensino de humanidades, aí presentes a Filosofia, o Latim, as letras antigas etc. Alteram-se as disciplinas, algumas desaparecem, outras surgem. Amplia-se o tempo curricular para o ensino de ciências. Esse é um fenômeno mundial, que pode ser analisado a partir da matemática, considerando o MMM.
A breve história que se narra neste artigo faz emergir vários elementos que permitem melhor compreender como, em tempos do MMM, é caracterizada oficialmente uma ‘matemática a ensinar’ no estado de São Paulo, uma matemática para a escola de 1º grau.
Deve-se atentar para todo o processo que esteve presente ao longo do tempo, de maneira a que seja possível entender a sistematização de saberes posta no ‘Verdão’.
Ao contrário do que se pode imaginar, tendo por pano de fundo o período de ditadura militar, a elaboração do ‘Verdão’ não é fruto de ação política direta sobre a escola e sobre o que ela tem que ensinar. Não se trata de um documento curricular imposto, sem discussões e debates. Por certo, os anos são de chumbo, mas optar por caracterizar os Guias Curriculares como fruto autoritário tão simplesmente deixa de fora e pouco explica a natureza da ‘matemática a ensinar’ sistematizada pelos experts.
Como se nota nas linhas anteriores deste artigo, há um longo processo que passa por experiências e práticas pedagógicas, por apropriações do MMM, por validação ou não de documentos preliminares testados no âmbito escolar. Isso resulta em uma primeira sistematização posta nos livros didáticos das coleções analisadas. Tal produção incrementa as expertises de Lydia Lamparelli e Amábile Mansutti, o que leva Lamparelli a coordenar equipe de experts chamados para elaborarem o ‘Verdão’. A elaboração desse Guia Curricular é fruto de história anterior vinda do IMEP, das coleções de livros dessas autoras. Há um processo contínuo de sistematização de saberes com vistas ao atendimento da rede escolar. Em tempo algum, tem-se notícia de constrangimento dos autores por parte do poder político em mãos dos militares. O que se conhece, com a história aqui brevemente narrada, refere-se a uma autonomia, mesmo que relativa, dos experts na produção curricular.
Tal autonomia é exercida em trabalhos coletivos vindos desde o IMEP, resultando, anos mais tarde, nos Guias Curriculares de Matemática para o 1º Grau. Acrescente-se que o texto, antes de sua sistematização final, recebe análises críticas solicitadas pelos experts de vários outros personagens de destaque no ensino de matemática, como: Antonieta Moreira Leite, Elza Babá, Lourdes de La Rosa Onuchic, Lucília Bechara, Maria Helena Roxo, Benedito Antonio da Silva, Ubiratan D’Ambrosio, dentre outros, conforme se lê ao final dos Guias, à página 279, sob o título ‘Colaboradores da Análise Crítica’.
Em novas produções curriculares vindas após o período de vigência dos Guias, é possível ler críticas que se alinham em duas direções, como consta na Proposta Curricular do estado de São Paulo, na década de 1980. A primeira refere-se ao rechaço do MMM presente nos Guias Curriculares. Outra direção é aquela que indica, de modo simplista, que tal referência curricular é tão somente fruto do regime militar. Esta segunda objeção ao ‘Verdão’ parece não se sustentar a julgar pelo exposto neste texto.