Introdução
Muitos têm sido os esforços de pesquisadores brasileiros, reunidos em vários grupos de pesquisa, para divulgar, discutir e desenvolver um pensamento científico com base nas fecundas contribuições da Teoria Histórico-Cultural – THC1, desenvolvida por psicólogos soviéticos no século XX. É possível constatar que já se caminhou bastante no que se refere à apropriação das bases da THC e de outras nela fundamentadas, como a Teoria da Atividade de A. N. Leontiev e a Teoria da Atividade de Estudo de D. B. Elkonin e V. V. Davidov. Esses grupos de estudo e pesquisa, inclusive os ligados à Educação Matemática, muito têm realizado com o objetivo de propiciar o debate, a troca de experiências, a tradução e divulgação das obras dos precursores dessa teoria, de modo a promover a criação de uma base de sustentação para novas pesquisas e para promover os avanços que são requeridos para a sua aplicação à pesquisa em educação e ao ensino em nosso país, no século XXI. Porém há muito a caminhar e inúmeros são os desafios, decorrentes da densidade dessas teorias e da necessidade de aprofundar os fundamentos, os conceitos basilares, inclusive, para aprimorá-las e atualizá-las.
A Teoria Histórico-Cultural teve como principais referências, em seu início: Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934), Aleksei Nikolaevich Leontiev (1903-1979) e Aleksandr Romanovich Luria (1902-1977), na antiga União Soviética, na década de 1920. Vigotski, buscando estabelecer as bases de uma psicologia apoiada nos pressupostos marxistas do materialismo histórico dialético, explicou a constituição histórico-social do desenvolvimento humano a partir do mundo objetivo, das relações externas, num movimento interpessoal, para transformar-se em uma atividade regulada pela consciência, num movimento intrapessoal. A Teoria Histórico-Cultural do desenvolvimento psíquico da homem parte do pressuposto de que “as fontes e os determinantes deste desenvolvimento se encontram na cultura, historicamente constituída” (DAVYDOV, 1988, p. 247). No âmbito dessa teoria, a atividade é um conceito basilar, ligado aos conceitos de mediação e de consciência. A. N. Leontiev foi quem sistematizou esse conceito, desenvolvendo uma teoria psicológica geral da atividade - a chamada Teoria da Atividade.
Apoiando-se nos fundamentos dessas teorias psicológicas, inicia-se, em vários locais da antiga União Soviética, a partir da segunda metade do século XX, o desenvolvimento de sistemas didáticos, a partir de estudos e pesquisas, envolvendo filósofos, psicólogos, metodólogos e didatas, os quais estabeleceram as bases da didática desenvolvimental. Nessa conjuntura, abre-se o campo para a elaboração da Teoria da Atividade de Estudo, ligada a um desses sistemas didáticos, o sistema Elkonin-Davidov-Repkin. Esse trabalho é iniciado com D. B. Elkonin (1904 - 1984) e continuado por V. V. Davidov (1930-1998) e V. V. Repkin (1927-...). A Teoria da Atividade de Estudo foi se construindo ao longo de mais de 20 anos de investigação, com a implantação desse sistema em várias repúblicas soviéticas, num ambiente diverso, contraditório, dialético, o que promoveu uma rica produção de dados e explicações. (LONGAREZI, 2019).
Neste artigo, busca-se apresentar conceitos basilares presentes em contribuições teóricas de V. V. Davidov e caracterizar o pensamento empírico, o pensamento teórico e os processos de abstração e generalização substantivas, próprios da formação do pensamento teórico, tratados pelo autor em suas obras na perspectiva da aprendizagem desenvolvimental e, ainda, pensar em possibilidades e desafios para a Educação Matemática que essas teorias podem trazer.
Trata-se de um estudo bibliográfico que tem como referências principais duas obras clássicas de Davidov: La enseñanza escolar y El desarollo psíquico: investigación psicologia teórica e experimental, publicado pela Editoria Progreso, Moscou, 1988; e Tipos de generalización en la enseñanza, publicado pela Pueblo y Educación, Havana, 1982, além de outros textos do autor traduzidos para o português.
Após a seleção do material, procedeu-se à leitura compreensiva e reflexiva, buscando organizar e sumarizar as informações por meio de fichamento, tendo em vista o objeto do estudo, os conceitos basilares das contribuições teóricas de Davidov, com foco na abstração e generalização substantivas, essenciais à formação do pensamento teórico, que é o conteúdo essencial da Atividade de Estudo. Finalmente, produziu-se uma síntese teórica desses aspectos, cuja leitura poderá servir de ponto de partida para outros estudos, que, num movimento de ascensão do abstrato ao concreto, produzirão outras sínteses, fazendo avançar as compreensões e o levantamento de possibilidades e desafios dessas teorias para o campo da educação escolar.
Para orientar a identificação dos conceitos basilares e a reflexão, utilizou-se o software Nvivo11, ao qual foram submetidos os textos em língua portuguesa, o que permitiu levantar as palavras mais frequentes, que expressam conceitos basilares das teorias davidovianas. Com base nessa identificação, esses conceitos foram tratados à luz das obras clássicas já citadas e de outros textos do autor.
Inicialmente é apresentado o conceito de atividade, fundamental nas teorias davidovianas; em seguida, a relação ensino-aprendizagem-desenvolvimento da criança. Discute-se, a seguir, o pensamento empírico e o teórico e os processos de abstração e generalização substantivas, consideradas teorias auxiliares. Ao final, apresentam-se possibilidades e desafios dessas teorias para o campo da Educação Matemática.
V. V. Davidov - as teorias da aprendizagem desenvolvimental e da atividade de estudo
Vasily Vasilyevich Davydov nasceu em Moscou, em 1930 e morreu em 1998. É pós-graduado em Filosofia e doutor em Psicologia. Ainda que não tenha formação específica no campo da Pedagogia, foi um grande pedagogo, com contribuições no campo da epistemologia e da teoria da educação, além de ter realizado estudos experimentais, envolvendo o ensino-aprendizagem escolar.
Por volta dos anos de 1960, Davidov, com a colaboração de Elkonin, iniciou a realização de experimentos de ensino que se prolongaram por mais de 25 anos, em várias partes da antiga União Soviética, após críticas ao ensino tradicional. Segundo Davidov, em um artigo de 1991, traduzido para o português2, o ensino tradicional foca no conteúdo empírico, apresentado na forma pronta e acabada e no método “explicativo-ilustrativo”, que se constitui num método passivo de ensino (DAVIDOV, 1991/2019, p. 238).
Na teoria do ensino desenvolvimental, que se contrapõe a esse ensino tradicional, têm papel fundamental os conhecimentos teóricos e os métodos de ensino orientados para a atividade criadora e produtiva, os quais conduzem o aluno ao desenvolvimento de generalizações e abstrações, que irão possibilitar a aplicação desses conhecimentos na solução de outras tarefas cognitivas.
Nas investigações empreendidas por volta do final dos anos de 1950, Davidov e Elkonin foram desafiados a pesquisar o que é a atividade de estudo. Constataram, após investigação, que, em boas escolas soviéticas e com bons professores, não havia Atividade de Estudo, pois os alunos não produziam transformações no material didático, o que os levou a realizar pesquisas na forma experimental.
A Teoria da Atividade de Estudo é, segundo Davidov e Márkova (1981/2019, p. 193), uma teoria da aprendizagem, no contexto da psicologia pedagógica, desenvolvida no século XX, na ex-União Soviética, que
[...] se realiza sobre a base da tese marxista, ao estabelecer a condicionalidade histórico-social do desenvolvimento psíquico da criança (L. S. Vigostski). Esse conceito se formou a partir de um dos princípios dialético-materialistas fundamentais da psicologia soviética, o princípio da unidade da psique e da atividade (Rubstein, Leontiev); no contexto da teoria psicológica da atividade (A. N. Leontiev) e em estreita vinculação com a teoria da formação por etapas das ações mentais e tipo de aprendizagem (P. Ya. Galperin, N. F. Talizina e outros).
Partindo do pressuposto de que o estudo não é apenas o domínio de conhecimentos e de modos de ação, a atividade de estudo é uma atividade de autotransformação, ou seja, aquela atividade cujo produto são as transformações que o aluno provoca em si mesmo, como já propusera Elkonin (1974).
Em busca dos conceitos essenciais da Teoria da Atividade de Estudo em Davidov
Com o objetivo de identificar os conceitos mais centrais das teorias davidovianas no material pesquisado traduzido para a língua portuguesa, submeteram-se ao software Nvivo11 quatro textos (Davydov, 1986; Davydov, 1997; Davydov, s/d; Davydov, 1999), na íntegra, e solicitou-se a elaboração da “nuvem de palavras”3 (Figura 1), organizada com base na frequência com que elas aparecem.
Para gerar a “nuvem de palavras”, após introduzir os textos referidos acima, estabeleceu-se como parâmetro o número de 55 palavras, porque, com um número inferior a esse, a palavra generalização, que interessava analisar, não aparecia na figura. Eliminaram-se as palavras com menos de cinco letras, o que permitiu excluir artigos, advérbios, conjunções, dentre outras.
A palavra atividade foi a mais frequente (1.145 vezes), como se pode constatar na Figura 1. Desse modo, pode-se afirmar que a atividade é o foco das Teorias de Davidov, ou melhor, a sua essência, assim como uma das categorias filosóficas fundamentais do materialismo histórico-dialético.
Segundo Damázio e Rosa (2016, p. 499), “As produções científicas e proposições para o ensino de Davýdov expressam fidelidade às bases essenciais da Psicologia Histórico-Cultural e da Teoria da Atividade e, consequentemente, das teses da matriz filosófica, o materialismo histórico e dialético”.
A atividade é, nessa perspectiva teórica, “a substância da consciência humana”, como o afirma o próprio Davidov (1988, p. 27). É, portanto, um modo de constituição do homem no mundo. Em oposição ao idealismo e ao materialismo mecanicista, a psicologia marxista se preocupa com a natureza histórico-social da atividade, da consciência e da personalidade do homem. Inicia-se na prática histórico-social e revela a universalidade do sujeito humano.
Para Davydov (1988, p. 27), “A categoria filosófica de atividade é a abstração teórica de toda a prática humana universal, que tem um caráter histórico-social. [...] Na atividade se põe à mostra a universalidade do sujeito humano”. Essa afirmação expõe a dimensão dessa categoria, como fundamento, para a THC e as teorias a ela correlatas. Considerada como categoria filosófica, constitui-se, portanto, numa abstração teórica, gerada a partir da prática sensorial e que dá origem à prática histórico-social.
O conceito de atividade não pode ser separado do conceito de consciência, já que esta surge da atividade, mas também a mediatiza. Isso distingue a atividade humana do fazer dos animais, uma vez que a “consciência é a forma superior da psique e é própria só do homem” (DAVYDOV, 1988, p. 33). O homem sabe o que busca e sabe o porquê. O processo de busca envolve contradição, porque se busca o que não existe, porém é possível e dado ao sujeito como finalidade, embora não ainda como realidade. “O caráter paradoxal da busca consiste em que combina em si o possível e o real” (ibidem, p. 33). Assim, a previsão é a visão da possibilidade. A finalidade é a imagem do futuro, a imagem do que deve ser, e determina o presente, porque define a ação do sujeito em busca de realizar a finalidade.
A atividade tem sempre, nessa perspectiva teórica, um caráter objetal. Objeto, aqui, não compreendido como algo que tem uma existência independente. É aquilo para o qual se dirige o ato, aquilo com que o sujeito se relaciona como objeto de sua atividade, interna ou externa. Desse modo, a atividade está sempre ligada a uma necessidade, sendo esta a expressão da carência de algo, experimentada pelo sujeito. A necessidade provoca a busca e se objetiva, converte-se no motivo concreto da atividade. Um motivo estimula o homem a realizar uma tarefa, ou seja, a colocar de manifesto uma finalidade que, estando assentada em determinadas condições, requer o cumprimento da ação direcionada a criar ou obter o objeto que responde aos motivos e satisfaz a necessidade. Os procedimentos de cumprimento da ação estão determinados pelas finalidades, enquanto suas condições determinam as operações concretas, segundo Davidov (1988).
Continuando a análise da Figura 1, é possível perceber que se destacam, nos textos investigados, as palavras crianças (921 vezes) e desenvolvimento (694 vezes). Davidov considera que a atividade de estudo é a atividade principal das crianças em idade escolar e é ela a base do seu desenvolvimento. Assim, ele afirma que:
Em primeiro lugar, toda atividade de estudo plena, sendo a atividade principal de crianças em idade escolar, pode constituir a base de seu desenvolvimento omnilateral. Em segundo lugar, as habilidades e hábitos perfeitos de leitura compreensiva e expressiva, de escritura e cálculo corretos, são formados nas crianças que possuem determinados conhecimentos teóricos. Em terceiro lugar, uma atitude consciente das crianças em relação ao estudo se apoia em sua necessidade, desejo e capacidade de estudar, os quais surgem no processo de realização real da atividade de estudo. (DAVYDOV, 1988, p. 163, grifos nossos).
A relação entre o ensino-aprendizagem e o desenvolvimento, base da teoria da Atividade de Estudo de Davidov, tem os seus fundamentos nos estudos de L.S Vigostski, uma contribuição que constituiu um marco importante na educação escolar, dando-lhe, de fato, o caráter de meio de humanização do homem. Nessa perspectiva, a aprendizagem é considerada como alavanca desse processo, visto que ela deve se antecipar ao desenvolvimento, e não vir na esteira deste, como propuseram outras teorias psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento.
Educação, ensino e desenvolvimento psíquico não são processos idênticos, porém “o ensino da criança corretamente organizado – escreve L. S. Vigotski – acarreta desenvolvimento mental infantil, desperta na vida uma série de processos de desenvolvimento que fora do ensino seriam, em geral, impossíveis. O ensino é, por conseguinte, o aspecto internamente necessário e universal no processo de desenvolvimento, na criança, não das peculiaridades naturais senão que históricas do homem” (VIGOTSKI apud DAVYDOV, 1988, p. 55, grifos do autor).
Nesse sentido, esses autores colocam a aprendizagem como condição para o desenvolvimento da criança pela apropriação dos conhecimentos produzidos historicamente pela humanidade. É nesse processo que ocorre, não apenas a apropriação dos objetos materiais e/ou imateriais, mas também a reprodução das capacidades psíquicas superiores, processo que somente se dá na vida conjunta com os adultos e sob a sua orientação e, também, com outras crianças.
Ao sintetizar as posições de Vigotski e de Leontiev em relação ao desenvolvimento psíquico, Davidov destaca os processos de apropriação e reprodução das capacidades dadas socialmente como finalidades da educação e do ensino e afirma que esses processos não são independentes em relação ao desenvolvimento psíquico humano:
Em primeiro lugar, a educação e a aprendizagem do homem, no sentido amplo, não é outra coisa que a ‘apropriação’, a ‘reprodução’ por ele das capacidades dadas históricas e socialmente. Em segundo lugar, a educação e a aprendizagem (‘apropriação’) são formas universais do desenvolvimento psíquico do homem. Em terceiro lugar, a ‘apropriação’ e o desenvolvimento não podem atuar como dois processos independentes, porque se correlacionam como a forma e o conteúdo do processo único de desenvolvimento psíquico humano. (DAVYDOV, 1988, p. 57).
O desenvolvimento das crianças é objeto de preocupação da Teoria Histórico-Cultural nos experimentos realizados pelos precursores dessa teoria, assim como para Davidov, na busca de explicar esse desenvolvimento na educação escolar.
Continuando a análise da “nuvem de palavras” (Figura 1) e da frequência das palavras (Tabela 1), há algumas delas que foram identificadas nos textos com praticamente a mesma ocorrência. São elas: processo (479 vezes), conceito (451 vezes), objeto (444 vezes), pensamento (432 vezes), aprendizagem (422 vezes) e ensino (401 vezes). É importante observar que um recurso aparentemente quantitativo, a “nuvem de palavras”, indica a lógica do pensar de Davidov no conjunto dos textos pesquisados. Em primeiro lugar, enfatiza aquilo que é essência da sua teoria, a atividade, como condição para o desenvolvimento das crianças. Agora, depara-se com um conjunto de palavras que está nos fundamentos da sua teoria e que, de certo modo, a distingue das demais. Segundo ele, a atividade de estudo, considerada a principal dentre as desenvolvidas pelas crianças em idade escolar, é realizada pelos alunos, no contexto da atividade de ensino, pela assimilação dos conhecimentos teóricos e pelo desenvolvimento da consciência, do pensamento teórico e das capacidades psíquicas a eles vinculadas (reflexão, análise, planejamento) (DAVYDOV, 1988).
Outra palavra presente nesse grupo é “processo”, que se pode compreender como movimento, elemento fundamental das teorias dialéticas. Esse movimento, segundo Kopnin (1978), traduz-se na relação entre o concreto e o abstrato, entre o fenômeno e a essência, entre o singular e o universal, constituintes da realidade dialética da natureza. Como afirma ele, “O materialismo dialético considera o conceito uma ‘forma original de reflexo dos objetos, das coisas do mundo material e das leis do movimento destes’”. (KOPNIN, 1978, p. 204, grifos do autor).
Voltando à “nuvem de palavras”, a palavra generalização (127 vezes) não aparece com maior frequência, pois não é o conceito de maior abrangência na teoria davidoviana, mas é um conceito importante na estruturação do pensamento e elemento de discussão neste artigo. Ao buscar conhecer o mundo nas suas manifestações naturais e culturais por meio das relações sociais, o homem busca as sínteses, a comunalidade, a essência, porém essa busca tem níveis e formas de operar diferentes.
Sintetizando, os conceitos basilares: atividade, desenvolvimento, crianças, processo, conceito, pensamento, dentre outros, são coerentes com os fundamentos das teorias davidovianas, que têm, ainda, foco no pensamento teórico, tratado a seguir
O pensamento empírico e o pensamento teórico
Alguns pressupostos fundamentam a teoria davidoviana com relação ao desenvolvimento do pensamento e às questões psicodidáticas que interferem nos processos de ensino-aprendizagem na escola: 1) o pensamento e a consciência, e, sobretudo, a abstração, a generalização e os conceitos constituem premissas essenciais para a organização das disciplinas escolares;2) a generalização e as formas como se considera a relação entre o sensorial e o racional, as imagens e o abstrato, o concreto e o abstrato constituem a base para os tipos de pensamento humano, empírico ou teórico; 3) a atividade prática-objetiva produtiva (o trabalho) é a base do pensamento humano. (DAVIDOV, 1988, p. 99-100)
Apoiando-se em Engels, Davidov afirma que a base do pensamento não é a natureza em si mesma, mas a “modificação da natureza pelo homem” (ibidem, p. 294). Ele esclarece, afirmando que
Os objetos e a realidade foram fornecidos ao homem social não através da contemplação passiva, mas apenas nas formas de sua atividade prática, objetiva e sensorial. Nisto reside a fonte da faceta ativa do trabalho como ‘teórico-sensorial’ e como as formas superiores do conhecimento científico-teórico. (DAVIDOV, 1988, p. 292).
Fica claro que, na perspectiva da dialética materialista, a atividade laboral do homem e não a contemplação sensorial passiva é a fonte de assimilação da realidade. A atividade perceptiva acha-se ligada à prática, e as representações dela surgidas tornam-se objeto da atividade do homem, sem relação direta com as próprias coisas. Assim, surge a capacidade reflexiva que modifica as imagens ideais das coisas, isto é, dá-se origem ao pensamento.
Desse modo, a atividade reflexiva permite modificar as imagens ideais ou os “projetos das coisas”, e a essa modificação é que se chama de pensamento. Na transformação da imagem, têm papel essencial os “meios de expressão simbólica”, “padrões discursivos e materiais que representam e descrevem os objetos e os métodos de produção deles” (DAVIDOV, 1988, p. 295). Pode-se inferir que o autor aponta aqui para a questão da linguagem, dialeticamente relacionada ao pensamento, pois, para Vigotski (2001), a relação do homem com os objetos é sempre mediada pelos instrumentos ou pelos signos, dentre os quais se coloca a linguagem.
O processo de compreensão racional, que se instala quando o objeto se converte em objeto da atividade, é, segundo o autor, complexo e contraditório, tanto podendo conduzir ao pensamento empírico, o aspecto direto e externo da atividade, como reproduzir o ser interno dos objetos, a sua essência, conduzindo ao pensamento teórico.
Essas duas formas de pensamento têm pontos de partida distintos, modos de se realizar distintos, conteúdos e finalidades distintas, como bem estabeleceu Davidov. Desse modo, pode-se pensar que não há passagem de um ao outro. Vigotski (2001) já afirmava, com base em seus experimentos, que os conceitos científicos e os cotidianos seguem caminhos diferentes em seu desenvolvimento, embora estejam estreitamente relacionados. Sob a perspectiva de Davidov, traça-se a seguir um paralelo entre os dois: o pensamento empírico e o teórico.
O pensamento empírico tem o seu lugar na prática social do homem, por exemplo, na aprendizagem das crianças pequenas em fase pré-escolar. Entretanto, na educação escolar, o que se busca é a formação do pensamento teórico.
Trabalhos realizados por pesquisadores brasileiros no campo da Educação Matemática, sobretudo os que se fundamentam teórica e metodologicamente na perspectiva davidoviana, têm apontado que ainda prevalecem no ensino de matemática processos de resolução mecânica de algoritmos, que se baseiam no pensamento empírico, na observação de elementos externos, isto é, na esfera da aparência. Rosa e Hobold (2016, p. 144) afirmam que muitas das dificuldades e problemas encontrados pelos professores estão atrelados à “falta de compreensão e apropriação teórica de conceitos essenciais, como adição, subtração, multiplicação, tabuada, resolução de problemas, divisão, equações, entre outros.”
Na constituição do pensamento, quer empírico ou teórico, intervêm processos de abstração, de generalização e de formação de conceitos que serão tratados a seguir.
Abstração substantiva, abstração teórica ou “célula”
A abstração teórica consiste em se obter um novo objeto por um processo de elucidação da caracterização da dependência e da interdependência de fatores que caracterizam a existência do objeto. Consiste na criação de modelos que, sendo submetidos a um trabalho sucessivo, vão se tornando independentes de determinados fatores, transformando-se num objeto idealizado. Nesse processo, o homem busca reproduzir e revelar as propriedades dos objetos por meio de suas mútuas relações e conexões. Tanto no pensamento teórico como no pensamento empírico, está presente a abstração, porém com características e finalidades diferentes.
A abstração substantiva é, por sua natureza contraditória, o “começo não desenvolvido do todo desenvolvido” (DAVÝDOV, 1982, p. 145), pois ela está na base do concreto. Ela reflete não só a conexão simples, mas também a essencial do sistema estudado, enfim, ela traduz a relação do particular com o universal, pois tem características da forma universal. “As propriedades da abstração [substantiva] podem ser resumidamente definidas assim: é a conexão historicamente simples, contraditória e essencial do concreto reproduzido” (DAVYDOV, 1988, p. 145)
Na abstração, têm papel fundamental os símbolos, materiais e gráficos, e os signos, que são meios de idealização e de padronização dos objetos, ou seja, de transferência deles ao plano mental. Segundo Davidov (1982, p. 303), “Revelar e expressar em símbolos o ser mediatizado das coisas, sua generalidade, é efetuar o trânsito à reprodução teórica da realidade”, isto é, os símbolos se constituem em meio para elucidar a essência da coisa. É possível pensar que quanto melhor a qualidade desse símbolo, com níveis mais gerais, pode-se atingir a abstração, haja vista a matemática, cuja linguagem simbólica da álgebra permitiu atingir níveis mais amplos de abstração e generalização.
Os símbolos e os signos são sócio historicamente constituídos com o fim de permitir a idealização, a estruturação, a consolidação e a transformação dos objetos. Os símbolos têm semelhança com os objetos que representam, enquanto os signos em sua forma sensorial não têm semelhança física com eles. Dentre os signos, estão a linguagem natural e a linguagem matemática.
Na idealização, ao fazer uso de símbolos, o pensamento teórico busca construir modelos. “Por modelo se entende um sistema concebido mentalmente ou realizado em forma material, que, refletindo ou reproduzindo o objeto da investigação, é capaz de substituí-lo de modo que seu estudo nos dê nova informação sobre o dito objeto”. (SHTOFF, 1966, apud DAVÝDOV,1982, p. 313). Os símbolos constituem uma forma de abstração científica na qual estão destacadas as relações essenciais, a unidade do singular e do geral, daí a busca das ciências por modelos.
Na perspectiva materialista dialética, o método de ascensão do abstrato ao concreto é o único que reproduz teoricamente o real concreto. Citando Marx, Davidov postula que esse método é o modo que ajuda o “pensamento a assimilar o concreto e o reproduz como espiritualmente concreto” (DAVÝDOV, 1982, p. 331).
Esse real concreto, de início, “aparece ante o homem como o sensorial dado. Em suas formas especiais de contemplação e representação, a atividade sensorial é capaz de perceber a integridade do objeto e a existência nele de conexões que levam à generalidade” (ibidem, p. 331). Aparece também como resultado mental da associação de abstrações, em relação com sua essência, com a fonte geral. O concreto, assim, é resultado de um processo de síntese, e não apenas ponto de partida. O autor afirma que, no pensamento teórico, o concreto aparece duas vezes – como ponto inicial e como resultado, em processos de análise e síntese que atuam em unidade.
A natureza das abstrações encontra-se vinculada às definições de concreto e de abstrato. “A lógica dialética considera que fora da mente do homem consciente existem coisas e fenômenos singulares e particulares, que aparecem como produtos e momentos no desenvolvimento de uma certa entidade concreta” (ibidem, p. 343). O caráter de concreto ou abstrato não depende da proximidade em relação às representações sensoriais, mas de seu conteúdo.
Nesse tipo de lógica, há casos particulares que, ao mesmo tempo, são gerais, pois nela o geral se caracteriza pela função específica dentro do todo. Aliás, o geral existe em conexão com as formas do singular, como tal se constituindo no nexo destas e na redução de uma à outra. Por sua vez, o singular existe na conexão que o leva ao geral. São contrapostos, cuja existência ocorre na conexão de uma com a outra. Davidov (1982), tratando dessa questão, traz um exemplo da álgebra. Utilizando a linguagem algébrica, representam-se os números por letras, a, b, c etc., de forma geral. Entretanto, quando se representam os números racionais por a/b, b/c, as letras a, b e c indicam números, porém inteiros, caso particular de um número qualquer. É um caso geral dentro de outro de maior generalidade.
Cabe perguntar: Como chegar ao geral, ou seja, à essência? Para Davidov (1982, p. 347), por um processo de análise das relações particulares, buscando apreender aquela que tem “caráter de generalidade e que apareça como base genética do todo a estudar”. Assim, a tarefa principal da análise é reduzir o concreto, ou seja, as diferenças existentes, ao abstrato, que, por um processo de ascensão, permite chegar ao concreto como finalidade. Nesse processo não se desprezam os dados fáticos, porém está presente a reflexão com base nos conceitos já existentes formulados pela ciência, o que é tarefa do pensamento teórico. Davidov (1982) reitera que a redução dos fenômenos particulares à essência não ocorre por comparação e indução apenas, pois estas se baseiam nas semelhanças externas.
Quando com base na análise se destacou a ‘célula’ de um certo todo, com isso se criou a base de sua dedução genética mediante a ascensão e reprodução de todo o sistema de conexões que reflete o desenvolvimento da essência, do lugar universal do concreto. [...] se trata de um processo de síntese por excelência, dentro do qual se efetua uma constante análise para obter as necessárias abstrações. (DAVÝDOV, 1982, p. 349, grifos do autor)
No processo de ascensão está presente a revelação das contradições. Partindo da relação mais simples e básica, busca-se a “célula” por um processo de análise que revela as contradições presentes no objeto. O geral que se obtém não corresponde de modo idêntico e claro aos fenômenos particulares. São necessários elementos mediadores para explicar essa correspondência. O concreto mental contém somente os nexos e as relações que podem ser deduzidos da essência.
Vejamos um exemplo em matemática. Ao estabelecer a “lei” para uma função polinomial de primeiro grau, f(x) = ax + b, a essência, que está relacionada à variação proporcional entre x e y, expressa pela letra a na lei dada, não está aparente. São necessários elementos mediadores para relacionar essa lei geral a um caso particular, por exemplo, f(x) = - x + 2, que traduz uma variação inversa entre x e y, enquanto para f(x) = x + 2, há uma variação direta entre x e y. Nesse sentido, o geral não coincide de pronto com o particular, pois não traduz os detalhes marginais, como o fato de ser uma proporcionalidade direta ou inversa.
Outro elemento importante que o autor traz com relação à ascensão do abstrato ao concreto é a imaginação, que diz respeito mais precisamente à capacidade de captar o todo antes de suas partes. Essa possibilidade é imprescindível para o pensamento substantivo criativo.
Generalização substantiva ou essencial e a formação de conceitos
A abstração e a generalização essenciais são dois aspectos únicos da ascensão do abstrato ao concreto, ou seja, do pensamento teórico. Pela abstração, o homem busca reter mentalmente aquilo que é geral, a relação real entre as coisas, que permite a unidade de diversos fenômenos. Pela generalização, estabelecem-se os “nexos reais” da relação geral com os fenômenos ou objetos particulares. Sem esse movimento, ou seja, sem o estabelecimento desses nexos, uma relação não pode ser considerada geral. “O geral substantivo é inseparável do especial e singular: eles se expressam um através do outro” (DAVÝDOV, 1982, p. 353, grifos do autor).
Dessa forma, fica claro que há um movimento de um concreto real a um abstrato, que pretende ser geral, concreto pensado, mas que só se concretiza como tal na medida em que expressa o particular em sua singularidade, o que mostra um movimento do concreto pensado com o concreto real. Pode-se falar, assim, em dois tipos de generalizações: aquela que, por um processo de análise da forma simples e geral de um sistema, permite chegar à essência; e a outra, que consiste em descobrir a forma simples a que se reduzem os fenômenos complexos.
A generalização substantiva revela, assim, a essência dos objetos ou dos fenômenos, a condição necessária, que se expressa numa lei.
De acordo com Davidov, com base em Vigotski, não se pode tornar absoluto qualquer tipo de generalização, pois há uma busca por formas mais gerais, superiores ou, em outras palavras, por generalizações mais “completas”. “Ele sustenta a pluralidade qualitativa e a metodologia genética das comunalidades” (DAVÝDOV, 1982, p. 7). A existência de uma generalização absoluta, no nosso entender, não seria coerente com a ideia de movimento, de vir a ser, e com as próprias bases do desenvolvimento que permeiam a perspectiva dialética do conhecer. O conhecimento do geral é contraditório: é inerte, é incompleto, segundo Lenin (1977), citado por Davidov (1982), pois ele é descoberto como geral no processo de desenvolvimento e movimento ao concreto, atuando como base para fenômenos particulares.
Mas, em síntese, como ocorre a generalização substantiva? 1) o investigador, por meio da análise, separa aquilo que tem caráter de universalidade, que se revela como base genética do todo, ou seja, a essência. A análise é necessária para chegar à forma universal ou a essência do todo; 2) separada a “célula”, passa-se à formação do concreto, que ocorre com a recriação (reconstituição) do sistema de relações que reflete o desenvolvimento da essência, inclusive aquelas que foram deixadas no movimento de apreensão da essência. Trata-se de um processo de síntese, ainda que nele se faça permanentemente a análise (DAVIDOV, 1988, p. 148).
Como já afirmado anteriormente, a abstração e a generalização substantivas estão na base da formação do conceito teórico. E este serve de “procedimento de conexão” no processo de trânsito da essência ao fenômeno pelo método dedutivo. (DAVÝDOV, 1982, p. 356). Nesse sentido, pode-se afirmar que é um instrumento mediador.
Essas contribuições de Davidov sobre o pensamento teórico, a abstração e a generalização substantivas e a formação de conceitos são valiosas para pensar a pesquisa e o ensino da matemática.
As teorias de V. V. Davidov na pesquisa e no ensino-aprendizagem da matemática: possibilidades e desafios
Inicialmente, cabe refletir sobre uma questão: por que muitos dos pesquisadores brasileiros do campo da Educação Matemática têm buscado apoiar as suas investigações, tanto do ponto de vista teórico quanto metodológico, na Teoria Histórico-Cultural, na Teoria da Atividade e na Teoria da Atividade de Estudo? Conjectura-se que se trata de uma opção cujos motivos estão alicerçados em aspectos que dizem respeito à natureza do conhecimento matemático científico e ao seu valor formativo, por um lado, e, por outro, às possibilidades de organização da atividade de ensino na escola.
A matemática é um campo do conhecimento que, no seu percurso histórico e lógico, partiu das necessidades humanas, não apenas as ligadas à sobrevivência, mas também ao prazer, ao lúdico, à resolução de problemas de diferentes naturezas, enfim, a seus desafios internos e externos. Historicamente, foi se constituindo à medida que as relações sociais foram se intensificando. Constituiu-se, e ainda se constitui, como uma fonte de ferramentas, de instrumentos, de elementos mediadores para o desenvolvimento do conhecimento científico em outros campos.
A matemática, pela natureza de seus objetos, que não são tangíveis, tem na abstração e na generalização os seus alicerces. Na sua história, caminhou para a generalização substantiva e a formação de conceitos em suas diversas áreas: números, geometria, cálculo, álgebra, dentre outras. À medida que pôde contar com uma linguagem simbólica, que é, também, fruto histórico do pensamento humano, avançou teoricamente, atingindo níveis cada vez mais altos de generalização e de formalização, nos quais estiveram presentes movimentos de indução e dedução. Essa natureza da matemática exige para o seu ensino uma organização que a leve em conta. Os conceitos basilares das teorias davidovianas oferecem subsídios consistentes para a pesquisa e para a organização do ensino, pois se voltam para a discussão e o desenvolvimento da abstração e da generalização por meio da atividade de estudo, numa perspectiva desenvolvimental, que valoriza a formação do pensamento teórico e, consequentemente, o desenvolvimento das capacidades psíquicas superiores do homem
Esses fundamentos se contrapõem à ênfase na abordagem pragmática e empírica tão presente na educação escolar brasileira na atualidade, sobretudo nas políticas educacionais. Esse é o caso da Reforma do Ensino Médio, proposta pela Lei N.º 13.415/2017 (BRASIL, 2017), e da Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio (BRASIL, 2018), que têm na sua essência o desenvolvimento de competências. Neste sentido, é preciso ter em conta que o ensino das disciplinas escolares deve ultrapassar essa visão reducionista.
Em relação ao ensino da matemática, defende-se que ele tem objetivos que vão além do seu valor utilitário. Não se pode negar que a matemática tem um valor formativo reconhecido. Os objetivos estabelecidos para o seu ensino sempre tiveram como foco o desenvolvimento das capacidades psíquicas superiores, a atenção, a memória, a capacidade de análise e de síntese. Entretanto esse objetivo de formação teórica, conforme caraterizado anteriormente, só se concretiza pela devida organização da atividade de ensino. Para isso, a Teoria da Atividade de Estudo tem muito a contribuir.
A estrutura da atividade de estudo compreende: 1) a compreensão pelo estudante das tarefas de estudo, que devem estar estreitamente relacionadas com a generalização substantiva, de modo que ele se transforme em sujeito da atividade; 2) a realização das ações de estudo, que conduzem os alunos às relações gerais, à modelação das relações gerais, à passagem do modelo ao objeto e vice-versa; 3) a realização pelos alunos das ações de controle e avaliação.
Essa forma de conceber o ensino com tais pressupostos é uma perspectiva que se abre para o ensino de matemática, no sentido de não só promover a assimilação dos conhecimentos historicamente acumulados, mas de transformar o aluno, tornando-o mais sujeito de suas ações. Assim, é possível pensar que esse é um dos motivos que aproxima pesquisadores da educação matemática desse referencial teórico.
As possibilidades das teorias davidovianas para a pesquisa e o ensino-aprendizagem têm-se materializado em um número expressivo de dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas nos programas de pós-graduação no Brasil, sobretudo relacionadas ao ensino da matemática. Em levantamento realizado no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, em abril de 2020, usando os descritores “Davydov” e “Davidov”, pode-se constatar com o primeiro descritor, a existência de 93 títulos, e, com o segundo, eliminados os comuns, 69 títulos, totalizando, assim, 162. Desse total, 58 (35,8%) estão relacionados à educação matemática, sendo 47 dissertações e 11 teses. Abordam diferentes temas, sendo que o maior número de trabalhos sobre ensino-aprendizagem se situa no campo dos “Números” (25%), seguido pelo da “Geometria” (15,5%) e o da “Álgebra” (13,7%).
Esse levantamento permitiu, ainda, identificar onde estão os pesquisadores e grupos de pesquisa brasileiros que têm se dedicado a estudar as obras de Davidov e a realizar pesquisas nelas fundamentadas. A materialização das possibilidades das teorias davidovianas está, também, nos artigos científicos publicados, livros, capítulos de livros e projetos de pesquisa
Entretanto, a realização de experimentos de ensino, envolvendo pesquisadores e professores, tem permitido constatar que há desafios a serem enfrentados para um trabalho na perspectiva das teorias davidovianas. No que se refere aos desafios no ensino, destacam-se:
1) a dificuldade de compreensão da teoria, pois é uma forma de pensar densa, dialética, que envolve contradições e movimento. Essa é uma forma que se contrapõe a outras formas mais lineares, mais próximas do empírico, com a qual se está mais familiarizado. Há que se fazer um esforço para a construção teórica de muitos conceitos e das teorias envolvidas. A isso se acresce a dificuldade de acesso às obras desses teóricos, que ainda são pouco conhecidas no Brasil, especialmente pelos professores; 2) a formação para a docência e para a pesquisa que não deu/dá destaque aos conceitos teóricos; 3) a ênfase do ensino brasileiro na generalização empírica, que predomina nas práticas pedagógicas dos professores desde os anos iniciais até ao ensino superior, assim como nos documentos legais; 4) a ênfase no “saber-fazer”, ou seja, nas competências e habilidades, que tem marcado os documentos orientadores dos programas, a elaboração dos livros didáticos, as avaliações sistêmicas.
No que diz respeito à pesquisa, podem-se enumerar: 1) o pouco tempo para a formação dos pós-graduandos, sobretudo dos mestrandos; 2) a dificuldade para a realização dos experimentos didáticos formativos, método de pesquisa utilizado por Davidov, ao desenvolver a teoria da Atividade de Estudo, o que requer apropriação dos conceitos teóricos e o desenvolvimento de uma prática, num movimento de práxis. Além disso, requer condições objetivas para sua realização, como disponibilidade das escolas e dos alunos, o que tem levado à realização de experimentos didático-formativos de pequena duração; 3) o pouco investimento na busca da essência do objeto pesquisado. Há pouca análise e quase nenhuma síntese; 4) a aceitação da dialética como método geral do conhecimento científico, embora a tecnologia (os procedimentos metodológicos) esteja assentada em princípios do pensamento discursivo empírico, aspecto já apontado por Davidov (1982).
Considerações finais
Os conceitos desenvolvidos neste artigo, basilares nas teorias davidovianas, constituem um arcabouço teórico fecundo para pensar o ensino em outras bases, que considerem o momento histórico do século XXI e da educação brasileira, mas que avance contra um discurso hegemônico marcado pelo pragmatismo e pelo empirismo presente nos documentos legais, nas políticas públicas e nas práticas pedagógicas.
O próprio Davidov (1999) já indicava novas abordagens para as teorias clássicas, principalmente para a Teoria da Atividade, incluindo o desejo como um elemento da estrutura psicológica da atividade, e já anunciava uma perspectiva interdisciplinar. Apontava, também, para a vontade, que é um elemento que ajuda um indivíduo em atividade a atingir os seus objetivos.
O desenvolvimento do pensamento teórico, com base na abstração e generalização substantivas e na formação de conceitos, na perspectiva de Davidov, é possível e desejável na educação matemática, porém outros elementos devem ser considerados, de modo especial no campo da pesquisa e do ensino. Dentre eles, a criança e o jovem do século XXI, a quem cabe ensinar os conhecimentos historicamente acumulados, que, certamente, não são as crianças e os jovens do século XX. As condições de realização das práticas pedagógicas são outras, inclusive com o avanço tecnológico que transforma a sociedade de modo avassalador. Neste sentido, a perspectiva interdisciplinar entre os vários campos do conhecimento – psicologia, didática, sociologia, filosofia, educação matemática – é imprescindível se se quer pensar o ensino histórica e dialeticamente, numa perspectiva desenvolvimental, visando à humanização do homem do século XXI, em nosso país.