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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.38  Belo Horizonte  2022  Epub 15-Set-2022

https://doi.org/10.1590/0102-4698235883 

Artigos

LER NÃO TEM FIM1: UMA BREVE INCURSÃO POR ESTRATÉGIAS DE LEITURA NA SALA DE AULA

LA LECTURA NO TIENE FIN: UNA BREVE INCURSIÓN EN LAS ESTRATEGIAS DE LECTURA EN EL AULA

KARLA DANIELE DE SOUZA ARAUJO1 
http://orcid.org/0000-0003-4721-9715

EDVÂNEA MARIA DA SILVA1 
http://orcid.org/0000-0002-9364-191X

VIRGINIA CELIA PESSOA DE FREITAS1 
http://orcid.org/0000-0001-8269-6926

1 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco. Recife, Pernambuco (PE), Brasil.


RESUMO:

Neste artigo, partimos do relato de três experiências vividas no contexto do IFPE Campus Recife para pensar sobre o ensino de literatura no nível médio integrado. Nosso objetivo com esse trabalho é discutir como o ensino de literatura pode estimular a construção de conhecimentos numa perspectiva que convoque o estudante, como sujeito histórico, ao encontro com a (e pela) linguagem, principalmente com base no pensamento de Candido (1988), Freire (1989) e Manguel (1997). Podemos destacar algumas questões que se revelaram centrais nas nossas experiências: a importância de abrir espaço para as vozes que povoam a sala de aula; a urgência da dinâmica entre linguagem e realidade, no confronto e nos encontros da obra de arte com a vida vivida; e a valorização da autoria, da construção coletiva e das múltiplas estratégias de leitura como respostas possíveis a problemas como a apatia, os obstáculos do currículo e o tempo.

Palavras-chave: Ensino de literatura; Relato de experiência; Ensino médio integrado

RESUMEN:

En este artículo, partimos del informe de tres experiencias vividas en IFPE Campus Recife para reflexionar sobre la enseñanza de la literatura en el nivel intermedio integrado. Nuestro objetivo es discutir cómo la enseñanza de la literatura puede estimular la construcción del conocimiento en una perspectiva que llama al estudiante, como sujeto histórico, al encuentro con (y por) el idioma, principalmente basada en Candido's (1988) Freire (1989) e Manguel (1997). Podemos destacar algunos temas que fueron fundamentales para nuestras experiencias: la importancia de hacer espacio para las voces que pueblan el aula; la urgencia de la dinámica entre lenguaje y realidad, en la confrontación y en los encuentros de la obra de arte con la vida vivida; y la valorización de la autoría, la construcción colectiva y las múltiples estrategias de lectura como posibles respuestas a problemas como la apatía, los obstáculos curriculares y el tiempo.

Palabras clave: Enseñanza de la literatura; Relato de experiencias; Educación secundaria integrada

ABSTRACT:

In this article, we start from the report of three experiences lived in IFPE Campus Recife to think about the teaching of literature in the integrated secondary school system. Our objective with this work is to discuss how the teaching of literature can stimulate the construction of knowledge in a perspective that calls the student, as a historical subject, to the encounter with (and by) language, mainly based on the thought of Candido (1988), Freire (1989) e Manguel (1997). We can highlight some issues that were central to our experiences: the importance of making room for the voices that populate the classroom; the urgency of the dynamics between language and reality, in the confrontation and in the encounters of the work of art with the lived life; and the valorization of authorship and multiple reading strategies as possible responses to problems such as apathy, curricular obstacles and time.

Keywords: Literature teaching; Experience report; Integrated secondary education system

INTRODUÇÃO

Como professoras de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE)2, procuramos, continuamente, ressignificar nossas aulas de modo a nos aproximarmos cada vez mais da função social da Instituição: “promover uma educação pública de qualidade, gratuita e transformadora” (IFPE, 2012, p. 36). Esse é um processo contínuo, dinâmico e (re)construído a partir de cada encontro com uma nova turma, em toda sua singularidade. Neste artigo, partimos do relato de três experiências vividas no contexto do IFPE Campus Recife, em suas falhas e ganhos, buscando responder a seguinte pergunta: como estimular a leitura literária em sala de aula no contexto do ensino médio integrado? A partir dessa indagação, nosso objetivo com esse trabalho é apresentar algumas possibilidades de trabalho no ensino de literatura, numa perspectiva que convoque o estudante, como sujeito histórico, ao encontro com a (e pela) linguagem.

No entanto, essa proposta traz em si uma questão anterior, implícita, da qual não podemos fugir: qual o papel do ensino de literatura no bojo de um curso técnico profissionalizante? Essa pergunta remete a um percurso histórico e, portanto, político, sobre o que se pretende em termos de ensino para o nível médio na modalidade integrada. As respostas, por sua vez, tornam manifesta não só uma proposta de trabalho com a literatura, mas movem nosso pensamento em direção às noções de ensino, trabalho, sujeito e dos caminhos para a construção de conhecimento. Há aqui, portanto, um questionamento ético e epistemológico sobre o desenvolvimento de um pensamento científico complexo, que conjugue saber e ética, superando o conhecer pelo conhecer, como postula Edgar Morin (2005). Partindo dessa ideia, propomos aqui um percurso que passa por uma breve discussão sobre o projeto de ensino que vem sendo construído dentro da Rede Federal de Educação, o que nos permite situar o contexto em que essas experiências são vivenciadas. Em seguida, buscamos discutir um pouco sobre o papel da leitura e da literatura na formação do indivíduo, principalmente com base no pensamento de Candido (1988), Freire (1989) e Manguel (1997), dentre outros.

Como já foi mencionado, optamos por analisar nossas próprias práticas pedagógicas através do relato de experiência, partindo de três atividades propostas para turmas do ensino médio integrado, vivenciadas no IFPE Campus Recife, que serão descritas e analisadas mais à frente. Trata-se, portanto, de um estudo de caso, voltado para a escuta, compreensão e interpretação conjunta dos eventos experimentados pelos participantes. Voltamos nosso olhar para o sujeito, indo além do ser acadêmico, e para a forma como ele experiencia sua realidade. Acompanhando essa perspectiva, o método de pesquisa é qualitativo, que, como lembra Flick (2004), é orientado para a análise de casos concretos em sua particularidade temporal e local, partindo das expressões e atividades das pessoas em seus contextos locais.

Essa é, portanto, uma reflexão que nasce da nossa prática pedagógica para, como num jogo de espelhos, podermos olhar para nós mesmas, para o outro, para o que estamos fazendo em nossas aulas, e pensarmos: que espaços de construção de conhecimento estamos abrindo dentro da escola, dentro da aula de literatura?

ANTES DA LITERATURA: DE QUE ENSINO MÉDIO ESTAMOS FALANDO?

Uma série de documentos circula em torno da construção da identidade do ensino médio integrado, e, mais do que documentos normativos, são a materialização dos discursos que direcionam (ou tentam) as ações dos governos e da comunidade escolar inserida nessa modalidade de ensino. Começamos observando o já citado Projeto Político Pedagógico Institucional (PPPI) do IFPE (2012), por ser o mais próximo do nosso dia-a-dia e por ter sido elaborado com a participação direta dos servidores do Instituto; seguimos de onde paramos, na exposição da função social desta Instituição:

A função social do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco é promover uma educação pública de qualidade, gratuita e transformadora, que atenda às demandas sociais e que impulsione o desenvolvimento socioeconômico da região, considerando a formação para o trabalho a partir de uma relação sustentável com o meio ambiente. Para tanto, deve proporcionar condições igualitárias de êxito a todos os cidadãos que constituem a comunidade do IFPE, visando à inserção qualitativa no mundo socioambiental e profissional, fundamentado em valores que respeitem a formação, a ética, a diversidade, a dignidade humana e a cultura de paz. (IFPE, 2012, p. 36)

A compreensão desse trecho do PPPI remete às bases da concepção de formação integrada. Essa ideia se revela na noção de educação “transformadora”, pensada para atender “às demandas sociais”, e impulsionar o “desenvolvimento socioeconômico da região”. No horizonte social em que esse texto circula, podemos ler a negação de outro discurso, um discurso que versa sobre a formação do estudante tendo em vista as demandas de mercado ou o protagonismo individual3. As escolhas que a comunidade escolar fez nesse documento são uma assinatura em torno de um compromisso, que emerge e se registra no discurso, mas que também precisa deslizar até a sala de aula, tornando-se ato responsável (BAKHTIN, 1997) na prática docente.

A “formação para o trabalho” também aparece aqui, assumindo a ideia de trabalho como transformação sustentável do meio ambiente, em que deve haver uma inserção qualitativa e com condições de êxito igualitárias. Esse processo deve estar pautado “em valores que respeitem a formação, a ética, a diversidade, a dignidade humana e a cultura de paz”. Essa perspectiva assume o jovem estudante como sujeito histórico, superando um dualismo estrutural que o Ensino Médio sempre adotou no Brasil, de ser ou exclusivamente propedêutico, e, historicamente, elitista; ou de ter um caráter essencialmente tecnicista, espaço para a manutenção de uma classe trabalhadora pouco letrada (PILETTI, 2010).

Para não nos estendermos tanto, tomamos a função social anunciada no PPPI como marco da perspectiva assumida pelo IFPE, ainda que o documento seja bem mais amplo do que esse recorte. Mas, para nos aproximarmos da discussão sobre currículo e ensino de literatura, precisamos, ainda, compreender como trabalho (tal como aparece no PPPI), ciência e tecnologia (que dão nome ao Instituto) se articulam à cultura.

Recorremos, então, às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), que explicitam a convergência desses pilares, conforme desenvolvido no artigo 5º da Resolução CNE/CEB n. 02/2012, que versa sobre as bases para o ensino médio, em todas as suas formas de oferta e organização - e não só no chamado ensino profissionalizante. O inciso VIII destaca “integração entre educação e as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura como base da proposta e do desenvolvimento curricular”, e explica (BRASIL, 2012, p. 2):

§ 1º O trabalho é conceituado na sua perspectiva ontológica de transformação da natureza, como realização inerente ao ser humano e como mediação no processo de produção da sua existência.

§ 2º A ciência é conceituada como o conjunto de conhecimentos sistematizados, produzidos socialmente ao longo da história, na busca da compreensão e transformação da natureza e da sociedade.

§ 3º A tecnologia é conceituada como a transformação da ciência em força produtiva ou mediação do conhecimento científico e a produção, marcada, desde sua origem, pelas relações sociais que a levaram a ser produzida.

§ 4º A cultura é conceituada como o processo de produção de expressões materiais, símbolos, representações e significados que correspondem a valores éticos, políticos e estéticos que orientam as normas de conduta de uma sociedade.

Trabalho, ciência, tecnologia e cultura são, portanto, dimensões da vida humana que devem ser integradas ao currículo e no currículo, compreendidos no processo histórico de que derivam e que ajudam a construir, interligados como parte de um princípio educativo que inclui o trabalho (e não apenas “prepara” para o trabalho) no processo de construção pessoal e coletiva. Nenhum desses conceitos se reveste de um sentido isolado, como um fim em si mesmo, mas são compreendidos de modo orgânico dentro do processo social. Para isso é necessário que a educação promova o pensamento crítico-reflexivo, para que o sujeito se perceba capaz de analisar os problemas e as soluções no contexto em que se apresentam, e, principalmente de se presentificar, contribuir, comprometer-se.

Em tempos em que o acesso à educação gratuita e universal é posto em xeque e a reformulação do ensino médio retrocede no tocante à formação integral4, reforçamos a necessidade e a urgência de compreender e assumir que ensino médio queremos construir, como fazê-lo e com que consequências.

LEITURA E LITERATURA EM SALA DE AULA

Leitura e literatura estão devidamente imbricadas: sem aquela, esta sequer existiria. Na sala de aula, quando há a identificação com determinada narrativa e/ou personagem, é comum ouvir relatos que reforçam a importância da leitura do texto literário na vida dos nossos jovens leitores. A título de exemplo, apresentamos a resposta de um aluno do 9º Ano do Ensino Fundamental, quando indagado acerca da relevância de ler Dom Casmurro, de Machado de Assis, na versão HQ:

A19: Porque ler história em quadrinhos dentro da escola é como quando a professora traz livros de contos de fadas quando somos crianças e imaginamos coisas e passamos a aprender ler por que queremos ler o que tá escrito e quando aprendemos ficamos muito felizes (OLIVEIRA, 2018, p. 108).5

Imaginar coisas e ficar feliz com o que leu vão ao encontro de viver uma experiência compartida. Nessa perspectiva, e ao contrário do que pregam os donos do poder, não há “dicotomia entre vida e literatura” (MANGUEL, 1997, p. 35). Percorrer outras “terras”, realizar viagens impensadas - inclusive de si a si mesmo - é possível ao adentrar tanto no mundo do “Era uma vez” dos contos de fadas, quanto no universo da escrita clariceana:

Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina (LISPECTOR, 1999, p.12)

O “sentimento de perdição” de que fala Rodrigo S. M., narrador de A hora da estrela (LISPECTOR, 1999), não é muito diverso do que sente o leitor ao se deparar com um livro que esteve em mãos predecessoras. Para Manguel (1997, p. 29), e alargando o conceito de paratexto6 pensado por Genette, somos afetados pelo leitor que nos antecedeu, dialogamos com ele, defendemos “essa ou aquela posição [dele]”. Em A audácia dessa mulher (MACHADO, 1999, p. 33), a protagonista faz uma análise do livro/diário/caderno de receitas, que chegou às suas mãos, cujas experiências relatadas estão em sintonia com sua postura de mulher livre dos estereótipos: Bia é senhora de si.

Tem cada coisa fantástica! Descobri que houve algumas mulheres viajantes que também escreveram. E fizeram anotações interessantíssimas, em cartas e diários. Não só porque muitas vezes tinham acesso a uma intimidade doméstica vetada aos outros visitantes, mas também porque elas eram uma espécie de vanguarda do pensamento - ou do comportamento - em seus próprios países. Mulheres que resolveram ganhar a vida por conta própria, com seu trabalho, sem depender de pai ou marido. Na certa, isso fazia com que ficassem muito atentas e sensíveis para observar a cultura alheia. Afinal de contas, naquele tempo, uma mulher que atravessava o Atlântico sozinha, e vinha trabalhar por sua conta e risco num país considerado selvagem, só podia ser alguém muito especial.

Em nossas análises no exercício da profissão e como leitoras que também somos, interessa-nos a importância crítica do ato de ler numa relação dinâmica entre linguagem e realidade (FREIRE, 1989); dizendo de outro modo, entre o texto e seu contexto. Nesse sentido, a leitura de mundo precede a leitura (e a escrita, permitam-nos dizer) da palavra. Processo similar é o vivenciado por uma aluna do 4º Período do curso Técnico em Eletrotécnica (ELE), do campus Recife, após uma aula acerca da construção de um objeto artístico a partir da compreensão das estéticas literárias, a exemplo do Realismo, Naturalismo, Parnasianismo e Simbolismo, e do diálogo com outras expressões artísticas:

Com o objetivo de nos ajudar na escolha do tema, tivemos uma aula com a apresentação de um dos trabalhos feitos no semestre passado. Era um documentário que falava sobre o Recife visto na visão de Bandeira e na de Chico Science. Depois dessa aula, percebi que queria falar sobre Recife. O tema do meu trabalho é “O Recife mascarado pela mídia” e nele vou relacionar as duas diferentes formas de ver o Recife: a [visão] romântica, idealizada pela mídia que só tem o objetivo de vender um Recife bonito, capital do frevo, igual, alegre, da praia de Boa Viagem, das pontes, Veneza Brasileira. O Recife retratado nas memórias de Cícero Dias, na infância de Manoel Bandeira. Recife ideal. E a forma natural que mostra o verdadeiro Recife [...], ele é também o Recife das palafitas, Veneza brasileira dos rios entupidos de lixo (G. M., 16 anos).

Apesar da pouca idade, G.M já demonstra a compreensão crítica do ato de ler que vai constituindo-a enquanto leitora (FREIRE, 1989). Tal compreensão está em consonância com a experiência vivenciada pelos enroladores de charuto no final dos anos 20 do século passado e, embora o seu “lugar” fosse o de ouvinte, a atividade mecânica que ora desempenhavam revestia-se de “aventuras a seguir, ideias a levar em consideração, reflexões das quais se apropriar” (MANGUEL, 1997, p. 136).

Não por acaso, essa atividade surgida no final do Séc. XIX - e vista como “um passo gigantesco na marcha do progresso e do avanço geral dos trabalhadores”, em sua maioria analfabetos - ganhou logo o epíteto de “subversiva” por parte dos donos do poder e foi proibida por distrair os trabalhadores com discussões estranhas ao trabalho (MANGUEL, 1997, p. 133, 134). A suposta dicotomia entre vida e leitura, ou vida e literatura, é artificial e serve à classe dominante, para quem “os livros são “como luxos supérfluos; os regimes totalitários exigem que não pensemos” (MANGUEL, 1997, p. 35).

Negar esse “luxo” é ir na contramão dos Direitos Humanos. De acordo com Candido (1988, p. 174), a literatura, no seu sentido mais amplo, “é uma manifestação de todos os homens em todos os tempos e não há povo ou homem que possa viver sem ela”. A assertiva de Candido coloca a fabulação como algo imprescindível ao homem, trata-se de um bem incompressível.

Partindo da leitura do sociólogo francês (e padre dominicano) Louis-Foseph Lebret, que atuou muito no Brasil entre os anos de 1940 e 1960, Candido define os bens incompressíveis como alimento, casa, roupa, etc, e os compressíveis como objetos supérfluos, a exemplo de enfeites e defende que não há ser humano que viva um único dia sem se entregar ao universo fabulado (CANDIDO, 2011, p. 174). A literatura nos ensina “tanto sobre a condição humana tanto quanto os sociólogos e psicólogos”, é o que nos lembra Todorov (2009, p. 77). Isso posto, a literatura é um bem incompressível, é um direito humano.

Parece óbvio, então, que a aula de literatura precisa priorizar a leitura de textos literários como momento de encontro do estudante com a obra. Vemos em Voloshinov e Bakhtin (1976) que é justamente na interação com o contemplador que a obra de arte exerce seu potencial artístico e sociológico.

O artístico é uma forma especial de interrelação entre criador e contemplador fixada em uma obra de arte. A comunicação artística deriva da base comum a ela e a outras formas sociais, mas, ao mesmo tempo, ela retém, como todas as outras formas, sua própria singularidade; ela é um tipo especial de comunicação, possuindo uma forma própria peculiar. (...) Uma obra de arte, vista do lado de fora desta comunicação e independentemente dela, é simplesmente um artefato físico ou um exercício linguístico. Ela se torna arte apenas no processo de interação entre criador e contemplador, como o fator essencial nessa interação. (grifo do autor) (VOLÓCHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 3)

Quando se desconsidera essa interação, o que resta é ou uma fetichização da obra, vista como artefato fechado em si mesmo, ou uma abordagem psicologizante, seja na direção do autor, seja na direção do contemplador, o que coloca em segundo plano a obra em si. Reafirmamos, então, que a literatura assume sua potência criadora quando encarada como abertura para o leitor, em cada relação singular estabelecida entre leitor e livro. No entanto, vários são os desafios para que isso aconteça: a dificuldade de acesso às obras por parte dos alunos, as exigências do currículo, o desinteresse pela leitura, os gostos pessoais de leitura, o tempo que demanda, etc. Os relatos que virão a seguir tentam contornar algumas dessas questões e compreender a dinâmica de interação e construção de sentidos que a leitura propicia.

Como interação, a leitura sugere alteridade (BAKHTIN, 1997), ou seja, que o sujeito, no movimento de compreender o outro, vá até ele e volte ao seu lugar, numa dinâmica que é constitutiva do próprio homem. Isso nos leva a pensar que, no caso da literatura, provavelmente a leitura mais produtiva não é aquela em que o olhar do leitor coincide com o olhar do autor. A leitura que desestabiliza, que coloca em diálogo ideias diferentes é a que trabalha sobre a possibilidade de acréscimo de visão e de consciência, uma nova perspectiva de mundo que o livro pode suscitar no leitor, justamente por estar em um lugar diferente do dele. A frase de Merleau-Ponty (1995), de que não somos nunca “luz para nós mesmos”, pode ser uma outra forma de entender esse mesmo processo.

Pensaremos o estudante/leitor nessa perspectiva, do sujeito histórico capaz de dar resposta ao outro; e a obra de arte em sua vocação sociológica, ou seja, que é vivificada na interação com o leitor, no diálogo com o mundo a sua volta. Esses e outros fios compõem as três experiências que relatamos a seguir, na voz das três professoras-pesquisadoras que teceram este trabalho.

LENDO COM A CÂMERA7

“Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos.”

(MANGUEL, 1997, p. 20)

Algumas páginas acima, citamos a justificativa dada por G.M., aluna de ELE IV, ao escolher desconstruir a visão romantizada da cidade do Recife, oferecida pela Prefeitura da cidade na atual gestão. Tal justificativa diz muito da trajetória da jovem leitora, cujas escolhas pessoais refletem a identidade de uma leitora crítica e, adoravelmente, parcial.

Em uma época em que o cerceamento ronda a liberdade de expressão, as escolhas literárias e temáticas na construção de um novo objeto artístico revelaram-nos leitores curiosos, singulares, e é sobre uma dessas experiências vivenciadas em uma turma de 5º período do curso de Eletrônica, do IFPE campus Recife, que passaremos a relatar a seguir.

Ao assumir a disciplina de Português V, em 2017.2, vimo-nos diante de um desafio: trabalhar um conteúdo extenso em uma turma com pouco mais de 40 alunos, formada em sua maioria pelos chamados “alunos pagantes”. Explicamos: originalmente, apenas 20 por cento dos alunos era de fato de Eletrônica (ELN), os demais eram dos cursos de Química, Eletrotécnica, Segurança do Trabalho, Saneamento e Eletrotécnica, algo que só “descobrimos” na segunda unidade do referido semestre.

Tal diversidade pode, às vezes, soar como empecilho, uma vez que os alunos pagantes cursam a(s) disciplina(s) pendente(s) no contra-horário de seu curso8 - o que pode ser bastante cansativo -, ocasionando desistência da disciplina (alguns repetem a disciplina já pela terceira vez) ou falta de interesse nas aulas. A apatia, nesses casos, é uma “aluna” indesejada. Felizmente, tivemos sorte, muita sorte.

Logo nas primeiras aulas, acordamos como trabalharíamos os conteúdos e o processo avaliativo. No que se referia às aulas de Literatura - nesse período o aluno vê do Pré-Modernismo à Segunda Geração do Modernismo; o leitor há de convir que é muito conteúdo para pouco tempo - sugerimos a criação de um objeto artístico que contaria, inclusive, com a crítica/contribuição dos demais alunos da turma.

Inicialmente, trabalhamos o diálogo entre os textos literários e expressões artísticas, a saber: cinema, pintura, música, dentre outras, independentes de ordem cronológica: era preciso que se apaixonassem por determinadas obras, autores, estéticas literárias. O “flerte” durou cerca de 2/3 da primeira Unidade. Nesse ínterim, alguns “namoros” foram desfeitos para dar lugar a outros encontros, a novas descobertas estéticas e temáticas.

Os alunos escolheram seus pares, textos, estéticas, temas; nosso trabalho era orientar a criação do objeto artístico que poderia ir da construção de um poema a produção de um texto audiovisual. O curta-metragem intitulado “OVERDRIVE, DE MANUEL BANDEIRA A CHICO SCIENCE: A DICOTOMIA DA CIDADE QUE NÃO PARA” é o trabalho a que aluna G.M. se referiu.

A leitura do poema “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, foi ao/de encontro à imagem que um grupo de alunos tinha da capital pernambucana, imagem ratificada pela poesia/canções de Chico Science. Some-se a isso seu interesse por questões sociais discutidas nas aulas de Geografia, História, Sociologia. Logo nas primeiras rodas de conversa com toda a turma, observamos que a leitura que ora o grupo fazia era mais sociológica e menos estética.

Fonte: As autoras, 2019

Imagem 1 Primeira versão de apresentação feita pelos alunos a partir do poema “Evocação do Recife” 

Aproveitamos tal interesse e sugerimos que assistissem ao espetáculo “Homens e Caranguejos” (disponível no YouTube)9, produzidos pelo Grupo Arte em Movimento do IFPE e apresentado no 5º Festival Estudantil de Teatro e Dança, no Teatro Apolo, Recife/PE, sob a direção de Higor Tenório.

Havíamos assistido ao espetáculo alguns meses antes e ficamos encantadas não só com a força do texto homônimo do geógrafo Josué de Castro - leitura que nos é cara -, mas também de ver a atuação de jovens que foram nossos alunos em semestres anteriores. Essa sugestão foi uma forma de exemplificar a construção de um objeto artístico. Embora não tenham tido a oportunidade de ver o espetáculo no teatro, a experiência de assistir a ele em uma plataforma de compartilhamento proporcionou ao grupo a compreensão de que, para criar o objeto artístico a partir dos textos de Bandeira e de Science, era preciso “trair as obras”, subverter o que haviam lido, criando algo diferente.

O curta-metragem10 é fruto de entrevistas realizadas com cinco moradoras da capital pernambucana e traz diferentes percepções sobre a cidade do Recife. As memórias das entrevistadas aproximam-se ora do saudosismo do eu lírico de Bandeira, ora das preocupações com o caos urbano e questões sociais. Tal aproximação problematiza o caráter social e interativo da memória, uma vez que todas as lembranças se relacionam com a vida material e moral das sociedades (HALBWACHS, 1990).

(Fonte: As autoras, 2019)

Imagem 2 Cenas do curta-metragem “Overdrives”, produzido por alunos da disciplina Português V (2017.2) 

As experiências relatadas pelas entrevistadas estão em consonância com o pensamento de Halbwachs (1990). Nesse sentido, questões como degradação ambiental, diversidade cultural, caos urbano e liberdade sexual dão o tom das narrativas imbuídas de um sentimento de pertencimento que ajudam a fomentar o pensamento crítico e criativo dos alunos-autores-criadores.

Se, como afirma Manguel (apud CUNHA e OLIVEIRA, 2013, p. 107), “nossos livros testemunharão contra nós ou a nosso favor”, não temos dúvida que a escolha de nossos alunos “refletem quem somos e quem fomos”, refletem quem foi/é a Veneza Brasileira. Foi olhando o Recife, a partir do olho/da lente das entrevistadas, que eles continuaram aprendendo a ler o que não estava à vista. Caetano Veloso (2012) diria que é “Assim que se nasce um comunista”. Esperamos que nasçam muitos deles.

A MENINA QUE DANÇAVA LIVROS11

“A linguagem é a casa do ser” (Heidegger, 2003, pg.38)

O relato do tópico anterior, “Lendo com a câmera”, traz à tona reflexões sobre a abordagem do texto literário em sala de aula. Volto a esse assunto discutindo algumas dificuldades que cercam esse momento de leitura e que me fizeram buscar alternativas, assim como as pesquisadoras parceiras desse trabalho: a) nem todos os alunos têm acesso ao livro indicado, especialmente na rede pública; b) o livro indicado pode ser simples demais para leitores maduros ou complexo demais para leitores iniciantes, considerando que as turmas são heterogêneas em suas experiências de leitura; c) a leitura de uma mesma obra geralmente está atrelada a um mesmo instrumento avaliativo, o que traz o desafio sobre como abrir espaço para a pluralidade de leituras e a singularidade dos leitores.

A experiência que relato a seguir nasceu da tentativa de contornar esses entraves e vem sendo aplicada sistematicamente nas minhas turmas de Língua Portuguesa no Ensino Médio integrado. Logo na primeira semana de aula apresento aos alunos uma lista de livros selecionados de acordo com o período e os interesses da turma; de diferentes autores (e épocas, se o foco não for um recorte temporal), estilos, etc. Com essa lista em mente, que pode receber indicações e mudar de turma para turma, cada estudante escolhe o livro que quer ler, tendo por base uma síntese da obra.

A proposta é simples e confronta os problemas listados acima da seguinte forma: o acesso aos livros fica mais fácil do que se todos os alunos tivessem que conseguir um exemplar da mesma obra; em segundo lugar, essa proposta contempla a heterogeneidade das turmas: seria pouco estratégico e, para alguns, frustrante, pedir que uma turma inteira lesse Dostoiévski, por exemplo. Talvez essa seja uma das razões (junto com a dificuldade de acesso à obra completa e o desinteresse pela leitura proposta) para que muitos alunos recorram a resumos de internet, apenas para dar conta da avaliação. Por fim, uma vantagem, que é, ao mesmo tempo, outro desafio: abre-se espaço para a diversidade de leituras, que culminam em diferentes instrumentos de avaliação.

Mas como avaliar tantos livros dentro de um mesmo grupo? Nas experiências vivenciadas, propus aos alunos três alternativas de culminância da leitura: eles poderiam apresentar uma análise escrita da obra, realizada em sala de aula, a partir de questões gerais e específicas que eu lançava ao grupo. A segunda possibilidade era um seminário, e a terceira (que se aproxima das propostas dos relatos anteriores) era uma apresentação alternativa, com formato livre, que trouxesse a leitura do grupo para a turma e fizesse a turma vivenciar um pouco do livro. É sobre esse tipo de trabalho que falarei mais adiante.

Usar três instrumentos de avaliação para uma mesma atividade pode parecer trabalhoso em turmas de mais ou menos 40 alunos, mas tem suas vantagens: deixa o estudante à vontade para escolher como compartilhar sua compreensão e análise. Lembro-me perfeitamente do caso de D., então estudante do 1º período do curso de Segurança, que na primeira leitura optou por uma análise escrita, pois tinha verdadeiro pavor de se apresentar em público. Na segunda leitura, percebendo que a avaliação não era senão um momento de compartilhamento e diálogo, escolheu o seminário. Diferentes instrumentos de avaliação são diferentes formas de observar o que, de fato, é plural: os caminhos da leitura e da construção de sentidos.

Para este artigo, vou retomar as obras trabalhadas no contexto de 2º e de 3º período do ensino médio12. Para a turma de 2º período optei por apresentar aos alunos livros que dificilmente leríamos ao longo do curso de literatura, dessa forma, entraram na lista livros como:

Fonte: As autoras, 2019)

Quadro 1 Lista de livros sugeridos para leitura na disciplina Português II 

A lista propositalmente contempla diferentes estilos: ficção científica, quadrinhos, biografia, realismo fantástico, distopias, etc. Dos trabalhos apresentados nas turmas de 2º período, destaco uma leitura de O velho e o mar, de Hemingway. A aluna I., do curso de Edificações, escolheu esse livro e optou por apresentar sua leitura em forma de dança. Bailarina clássica, desenvolveu uma coreografia que representasse a narrativa e a apresentou para os colegas na própria sala de aula. Pela dança, ela interpretou o livro em outra linguagem; ao final, pudemos conversar sobre a música, os movimentos, o figurino escolhido (uma camisa cáqui rasgada sobre o collant de balé), a força do velho Santiago no confronto com o Marlim azul transmutada e rediscursivizada no corpo da bailarina. Assim ela explica seu processo de criação:

(...) criei uma dança (...) tentando me aproximar o máximo possível tanto do livro quando da música [Believer, da banda de rock Imagine Dragons], colocando na coreografia movimentos baixos, focados em dançar no chão, usando cambalhotas e espacates em partes em que houve uma maior expressão dos sentimentos apresentados em ambos, como a tristeza por estar há muito tempo sem conseguir seu precioso objetivo (...). E para o refrão, parte em que é apresentado o engrandecimento tanto do personagem da música, quanto do velho, dei à coreografia passos mais aéreos, como saltos e pulos, que exprimiram toda a saída de suas dores e transpareceu seu florescimento.

Será que uma prova sobre o livro ou uma análise escrita me diriam mais do que sua expressão corporal? A proposta de I. me parece dar bastante conta do que eu pedi à turma: que me dessem suas leituras das obras; seu espetáculo demonstra o movimento de ir até a obra, observá-la, compreendê-la, voltar a si e dar sua resposta. Eu, como professora, e os alunos, como turma, pudemos entrar nesse diálogo entre a leitora e o livro, remetendo-nos não só ao livro como fonte de informação e como obra artística em si, mas também a I. como autora de sua resposta.

Diversos outros trabalhos memoráveis foram apresentados a partir dessa mesma lista: M, K, J. e J.C. propuseram uma atividade sensorial a partir de Ensaio sobre a cegueira, de Saramago; E. e V. propuseram um debate sobre o universo islâmico de Persépolis, de Marjane Satrapi, e de Infiel, de Ayaan Hirsi Ali; M.L., R., L.A. e L. recriaram o ambiente de controle ideológico de 1984, de George Orwell, dentre outras propostas.

Às turmas de 3º período tenho apresentado uma lista de obras nacionais e internacionais do século XIX. Sendo assim, os livros propostos são, mais ou menos, esses:

Fonte: As autoras, 2019.

Quadro 2 Lista de livros sugeridos para leitura na disciplina Português III 

Essa seleção contempla alguns dos romances brasileiros comumente adotados para o estudo do Romantismo, como os de Alencar, mas passeia um pouco por outros estilos, países, e até avança para o final do século XIX, procurando diversificar as opções. Relembro aqui, especialmente, O cão dos Baskerville, de Arthur Conan Doyle, apresentado por G. e L. Os alunos explicam seu próprio trabalho:

O grupo procurou na história uma força motora para motivar o público a se interessar e procurar também lê-la. (...) [Para isso] decidiu usar a curiosidade dos espectadores e (...) colocá-los no lugar do próprio detetive e protagonista do romance. (...) Para levar aquela experiência clássica de investigação para a sala de aula, eram necessárias quatro coisas: um local, uma vítima, um assassino e uma motivação. Foi decidido situar o crime numa clássica mansão do século XIX, um Barão com seus pecados e uma série de personagens, todos com motivos para cometer um assassinato naquela noite. Daí em diante só era necessário executar o projeto, um corpo, sangue, pistas, uma carta de suicídio forjada, um diário, pequenos detalhes.

A ideia dos alunos foi, portanto, criar um enredo, encená-lo e deixar que os espectadores fossem os detetives, a la Sherlock Holmes. G. interpretou o Barão, caído no chão da sala, todos os demais elementos foram colocados cenograficamente no espaço (sangue, arma, diário da vítima, sua mesa de trabalho, etc), para que a turma pudesse circular pela “cena do crime”. Divididos em grupos, os estudantes foram convidados a desvendar o assassinato pelo método dedutivo caro a Holmes. O resultado dessa experiência foram alunos em polvorosa com a atividade e estudantes de outras turmas querendo entrar na sala para participar do desafio. Isso só foi possível porque a experiência de leitura de G. e L. foi significativa a tal ponto que os fez perceber as estratégias do autor e simular uma narrativa semelhante, agora para os seus próprios “leitores”.

Posso ainda mencionar os excelentes trabalhos de R., T. e C., que colocaram a turma para decifrar códigos a partir da leitura de Viagem ao Centro da Terra, de Julio Verne. J. fez um teatro de sombras baseado em Iracema, de Alencar - trabalho que demandou uma flexibilização do tempo e evidenciou que o processo de avaliação pode ser mais individualizado. R. fez uma leitura comparativa entre A dama das camélias, de Dumas Filho, e Lucíola, de José de Alencar; H. partiu de A escrava Isaura, de Bernardo de Guimarães, para discutir o racismo estrutural do Brasil, dentre outros resultados surpreendentes.

Em cada apresentação se viu que cada um, no seu ritmo, com seus gostos, carregando suas experiências de mundo, enfim, com sua singularidade, foi construindo suas estratégias de leitura e usando a linguagem de uma maneira que lhe é autêntica, como a casa do ser, na epígrafe de Heidegger (2003). Os momentos de compartilhamento foram vivências que me permitiam compreender um pouco mais sobre essa relação de abertura que pode se dar entre leitor e obra quando a leitura é de fato significativa. E de que vale, se não for?

COMO LER UM LIVRO?13

“Na verdade, o único conselho sobre leitura que alguém pode dar a outra pessoa é não aceitar conselhos, seguir seus instintos, usar sua razão, chegar a suas próprias conclusões.” (WOOLF, 2017, p. 67).

No relato anterior, elencamos a singularidade dos leitores. No entanto, o respeito a essa singularidade é algo relativamente raro na vivência escolar de boa parte dos estudantes. Na prática docente, é comum nos depararmos com questionamentos semelhantes ao de Wolf (2017) “Como ler um livro?”. Muitos estudantes, estimulados pela prática mercadológica de ensino, chegam ávidos por “dicas de leitura” como se fosse possível criar uma “fórmula mágica” para desenvolver um hábito de leitura perfeito (como se isso existisse). A partir desse questionamento de Woolf (2017), podem nascer vários outros como, por exemplo: Como ler poesia? Como ler os clássicos nacionais e internacionais? Como dar aulas de literatura? Como estimular o hábito da leitura nas aulas de literatura?

Apesar do conselho dessa professora de literatura sobre não aceitar conselhos, ficamos tentados a colocar leituras obrigatórias para nossas disciplinas que atendam aos exames externos, mas será que é possível vencer essa tentação e dar aos estudantes a oportunidade de “seguir seus instintos, usar sua razão, chegar a suas próprias conclusões” (Woolf, 2017: p.67) a respeito de suas leituras? Será que conseguimos favorecer o desenvolvimento de leitores autônomos; estabelecer processos avaliativos, sem podar as escolhas literárias dos alunos?

É bem provável que isso possa ocorrer através das mais variadas estratégias didático-pedagógicas, mas, parodiando Woolf (2017), o único conselho sobre ensino de literatura que um professor pode dar a outro é não aceitar conselhos, seguir seus instintos, usar sua razão, chegar a suas próprias conclusões. É nesse viés empírico que serão apresentadas algumas experiências mais ou menos exitosas que vivenciei, no segundo semestre de 2018 em uma turma do 4º período do Ensino Médio Integrado do IFPE campus Recife.

Dentre as maiores dificuldades que se apresentam na prática pedagógica do Ensino Integrado estão a quantidade e a diversidade de conteúdos a serem abordados em um breve espaço de tempo. Por diversas vezes, a inquietação docente se localiza na delimitação dessas temáticas e na impossibilidade de abordar de forma aprofundada o todo. Na experiência em questão, essa inquietação foi minimizada com base no conceito de ensino integrado de Ciavatta (2005), já que a autora entende a impossibilidade da apropriação do todo, mas defende a completude e a compreensão das partes no seu todo ou da unidade social.

Assim, por meio de um recorte literário que abordava quatro diferentes estilos, a saber, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo e Simbolismo, foi apresentado aos alunos um projeto literário de base integradora. À luz dos postulados de Pistrak (2009), a promoção da autonomia nesse grupo se deu em três frentes: a coletividade, a organização (auto-organização) e a criatividade. A partir das aulas expositivas e das sugestões de leitura que se fizeram necessárias, cada grupo escolheria um recorte literário (autor, obra, temática, etc.) e desenvolveria uma apresentação de livre escolha para o momento da culminância do projeto.

Os critérios avaliativos foram apresentados e dentre eles estavam a autoria, a criatividade e o planejamento. Não bastava contemplar a teoria trabalhada nas aulas expositivas, a produção de cada grupo deveria ter necessariamente as peculiaridades inerentes à personalidade dos integrantes, a criatividade de apresentar as subjetividades oriundas das relações dos discentes com o recorte escolhido e cumprir os prazos relacionados à apresentação dos pré-projetos e à culminância.

O pré-projeto solicitado era apenas um esboço da apresentação que serviria de guia para o meu planejamento pedagógico e para a organização interna das equipes. Abaixo segue a proposta dos alunos L., G. e A.

(Fonte: As autoras, 2019)

Quadro 3 Proposta de apresentação dos alunos de Português IV 

Com base nesses esboços, meu papel, enquanto orientadora, seria apenas sugerir livros, filmes, séries, entrevistas, entre outros textos que pudessem ampliar a capacidade criativa do grupo. Na apresentação dos pré-projetos, o grande grupo participava fazendo críticas e sugestões aos colegas. Apesar de já conhecerem superficialmente as propostas de cada grupo, os estudantes se surpreenderam na culminância com a forma peculiar de apresentação, já que, em muitas situações, os elementos-surpresa só eram apresentados a mim em conversas sigilosas e, ainda assim, apenas quando os alunos estavam inseguros quanto à viabilidade de algum elemento ou necessitavam de infraestrutura específica para as suas apresentações.

Em muitas situações, durante as aulas expositivas, eu assumia também o papel de provocadora, suscitando questionamentos relacionados aos pré-projetos. As inquietações, quase sempre, estavam relacionadas às produções culturais e literárias da contemporaneidade e a situações sociopolíticas da atualidade. Entendendo o meu compromisso com a transformação social, eu agia no sentido de promover o desenvolvimento da capacidade de agir crítica e conscientemente nesses alunos. Essa abordagem dialoga com o conceito de Pedagogia Ativa de Araujo (2015), para quem

A atividade, portanto, na perspectiva da transformação da realidade e visando à ampliação das capacidades humanas, coloca-se como um componente a ser considerado no planejamento, no desenvolvimento e na avaliação das práticas pedagógicas que se querem integradoras. (ARAUJO, 2015, p.73)

Essa atitude crítica e consciente dos alunos já se apresentava nos esboços e tomava corpo em contato com as leituras, não só dos clássicos, mas dos diversos textos que circulavam nas nossas aulas. No exemplo apresentado anteriormente, os alunos L.,G. e A. se valeram da obra realista “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis; da naturalista “O Cortiço”, de Aluízio de Azevedo e da obra contemporânea “Sobrevivendo ao Inferno” de Racionais Mc’s. Eles associaram o materialismo, o pessimismo e os recursos linguísticos (flashbacks) machadianos; o determinismo e a zoomorfização da obra naturalista à música “Tô ouvindo alguém me chamar”; e realizaram muitas críticas sociais a respeito de como as camadas sociais menos favorecidas ainda são tratadas na atualidade.

Quase que orientados por Woolf (2017), os alunos seguiram seus instintos e fizeram suas escolhas literárias e, intuitivamente, ainda atenderam às demandas dos exames externos. A última obra, por exemplo, tornou-se um livro e entrou para a lista de leituras obrigatórios para o vestibular da Unicamp em 2018. Devo reconhecer que desconhecia esse fato e que, por não ter afinidade com esse estilo musical, jamais faria as associações entre essas três obras em sala de aula. Com essa experiência, eu cresci bastante profissionalmente, por entender que meus recortes pedagógicos podem cercear a liberdade criativa de toda a turma e a minha também.

Os gostos e as vivências pessoais dos alunos interferiram novamente de forma positiva, quando a aluna G., integrante do grupo de Teatro da escola, propôs em sua metodologia levar a turma para assistir ao espetáculo teatral “Alguém pra fugir comigo” do grupo Resta1 coletivo de Teatro. Com base em seu pré-projeto, pude verificar o conteúdo da obra, a idade indicativa e articular os trâmites burocráticos para que a turma pudesse ter acesso a uma peça que eu não conhecia. Sob o olhar posterior da própria aluna, a turma pôde refletir sobre como questões raciais e de gênero ainda se apresentam na sociedade de forma determinista. Vários personagens da peça foram comparados a personagens de obras naturalistas, como Bertoleza (O cortiço); Raimundo (O mulato); Aleixo e Amaro (O bom-crioulo), entre outros.

Além dessas questões, o anticlericalismo de “O crime do Padre Amaro” de Eça de Queiroz e a homossexualidade em “O bom-crioulo”, de Adolfo Caminha, foram revisitados pelos alunos M., J. e F., por meio da performance artístico-musical das músicas “Take me to church”, do músico irlandês Hozier, e “Believer” da banda de rock Imagine Dragons. O determinismo e a luta contra ele foram expostos à turma com uma apresentação musical (flauta transversal, violino e teclado). O poder repressor da igreja foi representado através da escolha do figurino (traje formal) e da maquiagem (faixas pretas pintadas nos pulsos e nos lábios).

O fato de o grupo ser composto por músicos e de ter selecionado músicas de artistas e bandas com os quais não tenho afinidade, mais uma vez, forneceu ao grupo um momento ímpar de reflexão e apreciação artística que eu talvez jamais pudesse proporcionar à turma.

O mesmo ocorreu na apresentação da aluna S., que, por ser bolsista de um projeto de iniciação científica da Instituição que trabalha com documentário, optou por produzir esse gênero fílmico, trazendo depoimentos de alunas LGBTs do campus para falar sobre o estereótipo construído por obras cinematográficas a respeito das relações homoafetivas entre mulheres. Antes de exibir esse curta-metragem para a turma, S. fez uma análise comparativa entre as personagens de “O cortiço” (Pombinha e Léonie); e do filme “Carol” de Todd Haynes.

Esse relato dialoga com Pistrak (2009), já que propõe um trabalho que atende às exigências curriculares, sem perder de vista o projeto de sociedade que assumimos em função de nossa leitura da “realidade atual.”. Não se trata, portanto, de um projeto didático estéril, uma vez que as escolhas particulares dos alunos foram indícios de uma luta “por mudanças no projeto societário dominante” (FRIGOTTO, 2010, p. 10). Em seus recortes, os estudantes reforçaram o caráter transgressor da arte. Complementando o posfácio de “Odes Modernas” de Antero de Quental, no qual se afirma que “a poesia moderna é a voz da revolução”; essa experiência integradora marca como as artes (poesia, música, cinema, teatro) e a prática pedagógica podem também ser revolucionárias, quando temos artistas, discentes e docentes revolucionários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Começamos esse trabalho buscando um espaço de compartilhamento para experiências vivenciadas nas aulas de literatura dentro do contexto do ensino médio integrado, mas que ecoam questões ainda mais amplas. Com relação ao objetivo proposto, de apresentar algumas possibilidades de trabalho no ensino de literatura, revisitamos atividades em que se buscou priorizar a voz do estudante nas interações únicas que estabelecem com as obras literárias e outros gêneros artísticos. Os modos de acontecer dessas interações se basearam muito na troca com os alunos e na singularidade de cada grupo e não propõem um roteiro, mas uma provocação sobre aonde queremos chegar e qual nosso papel como professoras nesse caminho. Por isso, e em tudo, é uma discussão sobre valores, que toma a “ética, a diversidade, a dignidade humana e a cultura de paz” como norte, conforme anuncia nosso Projeto Político Pedagógico Institucional (IFPE, 2012).

Do conjunto de relatos, podemos destacar algumas questões que se revelaram centrais nas nossas experiências. Em primeiro lugar, não há como promover o tão falado pensamento crítico-reflexivo se não há espaço para as vozes que povoam a sala de aula, e isso vale tanto para o professor quanto, e especialmente, para o estudante. Para o docente, achar sua voz pode significar sair da rotina das aulas já conhecidas, permitindo-se experimentar e reconhecer o outro como sujeito responsivo; para o estudante, poder propor e ser ouvido favorece o compromisso com a própria formação, a presentificação.

Um segundo aspecto a se destacar é que o ato de ler assume uma importância crítica quando ganha corpo na dinâmica entre linguagem e realidade, no confronto e nos encontros com a vida vivida. Isso implica que a obra saia de seu lugar de objeto sacralizado e abra-se como possibilidade para o sujeito, que com ela dialogue a partir do lugar único que ocupa no mundo, tecendo redes de sentidos com outras obras e expressões artísticas, com raps e rocks. Ressaltamos ainda que a valorização da autoria, da construção coletiva e das múltiplas estratégias de leitura são algumas respostas possíveis a problemas como a apatia, os obstáculos do currículo e o tempo.

Nesses caminhos cheios de erros e acertos, seguimos tentando fazer de nossas salas de aula espaço para a construção, a abertura e o encontro, reafirmando nosso compromisso em conjugar o saber e a ética com vistas à transformação social. Essa abordagem nos aproxima de um trabalho com a literatura no contexto da educação profissional e tecnológica, que dialoga com as noções de trabalho, ciência, tecnologia e cultura, superando o conhecer pelo conhecer.

REFERÊNCIAS

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WOOLF, Virgínia. A arte do romance. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2017. [ Links ]

1Frase de Donaldo Schüler

2Segue um breve perfil da Instituição: o IFPE surgiu em 1909, como Escola de Aprendizes Artífices. Está vinculada hoje à Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica e conta com 16 campi espalhados pelo estado, atendendo cerca de 17.500 estudantes. O Campus Recife, onde foram vivenciados os relatos, oferece 18 cursos, numa proposta verticalizada, oferecendo educação profissional e tecnológica desde o Ensino Médio, com o curso médio integrado ao técnico, até a pós-graduação.

3Compare-se, por exemplo, com a descrição de uma escola técnica da rede privada: “os professores conhecem profundamente o mercado de trabalho e trazem experiências práticas para a sala de aula. Técnicas atualizadas, material didático especialmente elaborado, instalações planejadas e um excelente ambiente de convívio completam a estrutura necessária para uma formação profissional com foco no mercado de trabalho. Além disso, as aulas práticas em laboratório reproduzem situações reais de empresas e os cursos contam com uma carga horária dedicada a estágios, onde o aluno pratica os conhecimentos adquiridos na escola. Tudo o que umbom curso técnicopode oferecer.” (grifo no original). Disponível em: http://www.escolasequencial.com.br/a-sequencial. Acesso em 30 Out 2018.

4A Reforma foi apresentada no PL nº 34/2016 com base no Relatório da Comissão Mista. Esse PL foi aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, sancionado e publicado no Diário Oficial da União (DOU) como Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Foi, desse modo, incorporada à LDB nº 9.394/1996.

5O depoimento é fruto da pesquisa de Quitéria Rosa Pereira Oliveira, desenvolvida no Mestrado Profissional em Letras da Universidade de Pernambuco (UPE)

6Genette (2006, p. 9-10) define a paratextualidade como a “relação, geralmente menos explícita e mais distante, que, no conjunto formado por uma obra literária, o texto propriamente dito mantém com o que se pode nomear simplesmente seu paratexto: título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende.”

7Relato narrado pela autora 2

8No IFPE Recife os módulos são semestrais, e os alunos podem ficar com pendência em até 3 matérias sem que precisem repetir o semestre em sua totalidade. Os estudantes que cursam uma disciplina fora de sua turma de origem são chamados informalmente de alunos “pagantes”.

9Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=334cy2YMNAM. Acesso em: 28 jan. 2019.

10Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6ODTDVMkjWw. Acesso em 25/04/2019

11Relato narrado pela autora 1

12Adotamos, no IFPE Campus Recife, a divisão do curso em módulos semestrais, de modo que a turma de 2º período a que me refiro refere-se a um 1º ano do ensino médio; e a turma de 3º período refere-se a um 2º ano.

13Relato narrado pela autora 3

Recebido: 31 de Março de 2020; Aceito: 07 de Agosto de 2021

< karlaaraujo@recife.ifpe.edu.br >

<edvaneamaria@recife.ifpe.edu.br>

< virginiafreitas@recife.ifpe.edu.br >

Autora 1 - Coleta de dados, participação ativa na análise dos dados e revisão da escrita final. Relato de experiência “A menina que dançava livros”.

Autora 2 - Coleta de dados, participação ativa na análise dos dados e revisão da escrita final. Relato de experiência “Lendo com a câmera”.

Autora 3 - Coleta de dados, participação ativa na análise dos dados e revisão da escrita final. Relato de experiência “Como ler um livro?”.

As autoras declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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