Introdução
Vive-se atualmente em uma sociedade marcada pela consolidação do capitalismo neoliberal, sob a dominância financeira, que tem acentuado a desigualdade social, a intolerância, o fundamentalismo religioso, os deslocamentos forçados, a expropriação das terras indígenas e quilombolas e a precarização do trabalho (BOSCHETTI, 2017).
É um processo de embrutecimento das condições de vida e destruição dos direitos conquistados (BOSCHETTI, 2017) que faz ganhar força movimentos de natureza racista, xenófoba, fascista ou semifascista. No Brasil, assumem ainda o apelo militar, cujas raízes estão na globalização neoliberal, na crise econômica de 2008, na tradição antissemita e colonizadora, bem como na conjuntura internacional, particularmente no Oriente Médio (LÖWY, 2015).
Nesse cenário, observa-se a desresponsabilização das atribuições sociais dos Estados, dentre elas oferecer educação formal, ao mesmo tempo que aumenta o poder das agências transnacionais (CHAVES; CABRITO, 2011. A natureza democrática e igualitária da educação, vinculada à ideia de bem público, é questionada em prol de um bem privado comercializável (NASCIMENTO; CABRITO 2014).
Esses fenômenos impõem desafios à educação, particularmente ao ensino superior, como o subfinanciamento; a concorrência e a competição (CABRITO; CASTRO; CERDEIRA; CHAVES, 2014); a massificação; a revolução digital; a utilização de novas mídias e tecnologias; a centralidade econômica das universidades (NÓVOA, 2018); assim como a produção de novas culturas institucionais (MANCEBO; SILVA JÚNIOR; SCHUGURENSKY, 2016).
Resguardadas as especificidades histórico-sociais e do campo teórico-prático, o ensino de Enfermagem tem acompanhado as tendências do movimento geral da sociedade e da educação superior: expansão de cursos em instituições privadas, produção de conhecimento a partir dos interesses de empresas e lobbies, oferta de cursos de graduação na modalidade à distância, subordinação dos conteúdos curriculares à lógica do empreendedorismo e modelos de gestão cada vez mais alinhados ao produtivismo e à rentabilidade.
Mesmo com alguns movimentos de resistência (MIRANDA, 2010; GALLEGUILLOS; OLIVEIRA, 2001), predominam na formação em Enfermagem projetos ideológicos que representam ora a vocação abnegada, ora a prática técnico-científica. Em nome da “arte do cuidar”, a educação em Enfermagem torna-se um instrumento abstrato, neutro e vazio de historicidade, que mascara as contradições e as desigualdades concretas das sociedades capitalistas (GERMANO, 2007; SILVA, 1986; LESSA; ARAÚJO, 2013).
Diante desse contexto, o presente estudo buscou analisar a formação inicial em Enfermagem no Brasil e em Portugal, identificando suas semelhanças e diferenças. Esses países possuem longas relações políticas, econômicas e culturais, expressas ainda hoje na unicidade da língua, mas com especificidades próprias construídas ao longo do tempo (NÓVOA, 2018), que contribuem para uma determinada forma de organização social e, em particular, de pensar e definir a formação de enfermeiras e enfermeiros.
Percurso metodológico
Este é um estudo qualitativo organizado em dois movimentos articulados: análise documental e entrevistas em profundidade. Para tanto, buscamos compreender a determinação histórica-social do fenômeno estudado, considerando sua profundidade, singularidade, processualidade, transitoriedade e determinação (MINAYO, 2011; 2017). Foi uma investigação intencional cujo rigor teórico-metodológico perpassou pelo reconhecimento de que a qualidade do processo de conhecimento está implicada na visão de mundo que o contém” (EGRY; FONSECA, 2015, p. 86). Essas premissas orientaram a construção do projeto, do trabalho de campo, da análise e da interpretação dos dados.
Primeiro, reunimos documentos regulamentadores do ensino superior em Enfermagem, em vigor, até janeiro de 2020, disponíveis publicamente em sítios eletrônicos, relativos ao primeiro ciclo (Portugal) e à graduação (Brasil).
Identificamos e selecionamos os seguintes documentos relativos a Portugal: a Diretiva 2005/36/CE, atualizada pela Diretiva 2013/55/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de novembro de 2013; o Decreto-Lei nº 353 de 3 de setembro de 1999 que define o plano integrado de medidas estruturantes para o desenvolvimento dos recursos humanos no domínio da saúde; a Lei no 9 de 4 de março de 2009 que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva 2005/36/CE; a Portaria no 799-D de 18 de setembro de 1999, que aprova o Regulamento Geral do Curso de Licenciatura em Enfermagem em Portugal; o Decreto-Lei nº 161 de 4 de setembro de 1996 que regulamenta o exercício profissional do enfermeiro em Portugal (com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 104 de 21 de abril de 1998).
Em relação ao Brasil, foram levantadas as seguintes normativas: a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que institui as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN); a Resolução nº 03, de 7 de novembro de 2001, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem - CNE/CES; a Resolução nº 04, de 6 de abril de 2009, que dispõe sobre a carga horária mínima e o procedimentos relativos à integralização e à duração dos cursos de graduação em Enfermagem – CNE/CES; a Resolução no 2, de 20 de dezembro de 2019, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica; a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de1990, que dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes; a Resolução nº 569, de 8 de dezembro de 2017, que apresenta os pressupostos, os princípios e as diretrizes comuns para as Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação da área da saúde – CNS.
Ademais, recorreu-se às propostas de formação da Escola Superior de Enfermagem da Universidade de Lisboa (ESEL/ULisboa) e da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (FAEN/UERN), com as respectivas análises do Plano de Estudos do Curso de Enfermagem e do Projeto Político-Pedagógico.
O material empírico foi, então, submetido à leitura flutuante e, posteriormente, à leitura em profundidade. As informações recolhidas sobre a regulamentação geral da formação de enfermeiras e enfermeiros foram reunidas em um quadro síntese contendo: nível acadêmico, categoria administrativa e natureza jurídica das instituições que ofertam cursos de enfermagem, modalidade, grau conferido pelo diploma, título concedido, duração em anos e carga horária, perfil do egresso, competências, áreas de conhecimento e organização curricular. No que se refere às propostas de formação dos cursos, foram consideradas as características gerais, o perfil do egresso, as bases referenciais e a organização curricular.
Na fase de campo em Portugal, realizaram-se entrevistas com quatro docentes da Escola Superior de Enfermagem, um representante do Sindicato dos Enfermeiros e um da Ordem dos Enfermeiros. Cada entrevista teve duração média de 50 minutos e foi registrada em um diário de campo durante e após a sua realização, para que não houvesse comprometimento na captura dos dados. No Brasil, foram entrevistadas quatro enfermeiras docentes do Rio Grande do Norte, reconhecidas nacionalmente pela atuação no movimento político da educação em Enfermagem no Brasil. Suas entrevistas gravadas tiveram duração média de 90 minutos.
Transcritas as entrevistas, realizou-se leitura atenta do material empírico para identificar semelhanças, diferenças e unidades de sentido, situando-as no contexto histórico-social. Para garantir o anonimato, os sujeitos foram denominados Portugal e Brasil, enumerados de acordo com a realização das entrevistas em cada país (1, 2, 3 e 4). Todos os princípios éticos foram respeitados, conforme as Resolução no 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde.
Documentos e vozes: o ensino de Enfermagem no Brasil e em Portugal
A análise realizada permitiu identificar semelhanças e diferenças na formação inicial em Enfermagem nas duas instituições de ensino superior (IES), reunidas nos quadros 1 e 2.
Portugal | Brasil | |
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NÍVEL ACADÊMICO | Superior politécnico | Superior – diversificação institucional |
CATEGORIA ADMINISTRATIVA | Escolas superiores especializadas: Enfermagem ou Saúde | Universidades, centros universitários, faculdades e institutos federais |
NATUREZA JURÍDICA | Pública não gratuita e privada | Pública gratuita e privada |
MODALIDADE | Presencial | Presencial e Ensino à Distância |
PRINCIPAL FORMA DE INGRESSO | Provas Nacionais de Ingresso: Biologia e Geologia ou Biologia e Geologia+ Física e Química ou Biologia e Geologia + Português | Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) – Sistema de Seleção Unificada (SISU). |
GRAU CONFERIDO PELO DIPLOMA | Licenciado | Bacharel e bacharel e licenciado |
TÍTULO CONCEDIDO | Enfermeiro | Enfermeiro |
DURAÇÃO (EM ANOS) | 4 anos | 5 anos |
CARGA HORÁRIA | 4.600 horas | 4.000 horas |
CRÉDITOS SEGUNDO O SISTEMA EUROPEU DE TRANSFERÊNCIA | 240 ECTS | Não se aplica |
PERFIL DO EGRESSO | Enfermeiro de cuidados gerais com formação científica, técnica, humana e cultural para a prestação e gestão de cuidados de enfermagem gerais à pessoa ao longo do ciclo vital, à família, grupos e comunidade, nos diferentes níveis de prevenção. | Enfermeiro com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Profissional qualificado para o exercício de Enfermagem, com base no rigor científico e intelectual e pautado em princípios éticos. |
COMPETÊNCIAS | Competências nos domínios da prestação e gestão dos cuidados; das relações com outros agentes de saúde e pessoas/famílias/grupos; da formação e educação em saúde e do desenvolvimento profissional. Competências que possibilitem diagnosticar, garantir qualidade e avaliar cuidados de enfermagem. Colaborar e se comunicar com outros agentes do setor da saúde. Participar na formação prática de pessoal de saúde.Habilitar pessoas, famílias e grupos a adotar estilos de vida saudáveis e autonomia. Encetar medidas de preservação da vida. Dar conselhos, instruções e apoio a pessoas que necessitam de cuidados. | Competências nos domínios da atenção à saúde, tomada de decisão, comunicação, liderança, administração e gerenciamento, educação permanente.Competências que possibilitem conhecer e intervir sobre os problemas/situações de saúde-doença mais prevalentes no perfil epidemiológico nacional, com ênfase na sua região de atuação, identificando as dimensões biopsicossociais dos seus determinantes. Capacitado a atuar, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano. |
ÁREAS DE CONHECIMENTO |
Ensino Teórico Cuidados de enfermagem (orientação e ética da profissão; princípios gerais de saúde e de cuidados de enfermagem; princípios de cuidados de enfermagem).Ciências fundamentais (anatomia e fisiologia; patologia; bacteriologia, virologia e parasitologia; biofísica, bioquímica e radiologia; dietética; higiene; farmacologia). Ciências sociais (sociologia; psicologia; princípios de administração; princípios de ensino; legislações social e sanitária; aspectos jurídicos da profissão). Ensino Clínico Cuidados de enfermagem em matéria de: medicina geral especialidades médicas; cirurgia geral e especialidades cirúrgicas; cuidados a prestar às crianças e pediatria; higiene e cuidados a prestar à mãe e ao recém-nascido; saúde mental e psiquiatria; cuidados a prestar às pessoas idosas e geriatria; cuidados a prestar ao domicílio. |
Ciências Biológicas e da Saúde Base moleculares e celulares dos processos normais e alterados, da estrutura e função dos tecidos, órgãos, sistemas e aparelhos. Ciências Humanas e Sociais Relação indivíduo/sociedade, contribuindo para a compreensão dos determinantes sociais, culturais, comportamentais, psicológicos, ecológicos, éticos e legais, nos níveis individual e coletivo, do processo saúde-doença. Ciências da Enfermagem: Fundamentos de Enfermagem. Assistência de Enfermagem. Administração de Enfermagem. Ensino de Enfermagem. |
ORGANIZAÇÃO CURRICULAR |
Ensino Teórico: deve corresponder a até 1/3 da carga horária do curso cujo objetivo é aquisição de conhecimentos científico, deontológico e profissional. Envolve metodologias de ensino teórico, teórico-prático, prática, seminários. Ensino Clínico: é assegurado pelo estágio e deve corresponder a 1/2 da CH do curso. O objetivo é assegurar aquisição de conhecimentos aptidões e atitudes para intervenções autônomas e interdependentes no exercício profissional. Unidades Curriculares de Opção: não obrigatórias, até 10% da CH do curso. |
Atividades Teóricas e Teórico-práticas Obs.: podem haver atividades teóricas e teórico-prática opcionais e eletivas.Estágio: 20% da carga horária do curso. Atividades complementares: 200 h. Trabalho de Conclusão de curso Obs.: Nos cursos de licenciatura, as Atividades da Prática devem ser contempladas |
Fonte: Documentos regulamentadores.
ESEL | FAEN | |
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CARACTERÍSTICAS GERAIS DO CURSO |
Ano criação: 2004 Natureza jurídica: Pública Vagas Ofertadas: 300 Carga Horária: 6.642h Duração Curso: 4 anos Turno de Funcionamento: Turmas matutinas (8 h – 14 h) Turmas vespertinas (14:30 às–20:30 h) Título Concedido: Licenciado |
Ano criação: 1968 Natureza jurídica: Público Vagas Ofertadas: 26 Carga Horária: 4.775 h Duração Curso: 4 anos e meio Turno de Funcionamento: matutino e vespertino – todas as turmas Título Concedido: bacharel e licenciado |
PERFIL DO EGRESSO | Saber refletir, raciocinar e agir centrado no cliente, pessoa, família e noutros grupos. | Enfermeiro, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, qualificado para o exercício e para a coordenação dos processos de trabalho da enfermagem. |
BASES REFERENCIAIS |
Tem seu core no desenvolvimento de competências/resultados da aprendizagem derivado do Projecto Tuning e COFOE (Cohe´rence en Formation et Evaluation des Competences), nos princípios pedagógicos preconizados pelo Processo de Bolonha e na noção de competência perspectivada por Le Boterf. Concepções: Transições, Cuidados de Enfermagem, Bem-estar. |
Assume a compreensão da enfermagem como trabalho, parte do trabalho coletivo em saúde, bem como de que o processo produtivo está em constantes transformações, tanto em sua base técnica como nas atividades dos seus agentes e na divisão técnica e social do trabalho. Concepções: Sociedade, Trabalho, Trabalho Coletivo em Saúde/Produção dos Serviços de Saúde, Processo de Trabalho da Enfermagem, Processo Saúde/Doença, Educação, Políticas de Saúde e Gênero. |
Fonte: Plano de Estudo ESEL e PPP da FAEN.
A análise permitiu constatar que desde 1989 em Portugal a formação inicial de enfermeiras e enfermeiros ocorre no ensino superior politécnico e não no universitário. O ensino superior português é dual, ou seja, universitário e politécnico, com missões e finalidades distintas. Segundo a Direção Geral do Ensino Superior (DGES), cabe à universidade produzir conhecimentos e assegurar uma sólida preparação científica e cultural. Já o ensino politécnico deve oferecer uma formação cultural e técnica direcionada a compreender e resolver problemas (PORTUGAL, 2007). Nessa distinção, percebe-se que a formação em Enfermagem reitera a concepção tecnicista da profissão, alinhada ao desenvolvimento de competências para dar respostas às necessidades do mercado e do desenvolvimento das regiões onde as IES estão implantadas.
Conforme dados da DGES, 69,11% dos cursos de Enfermagem ofertados em Portugal são públicos. O ensino superior público é frequentado por mais de 80% de todos os estudantes do ensino superior do país, embora não seja gratuito. A anuidade para 2019-2020 em todos os cursos e instituições públicas de ensino superior foi de 872 euros e chegou a atingir os 400 euros mensais nas instituições privadas.
A licenciatura em Enfermagem é realizada em 4 anos, com 4.600 horas, metade das quais destinada ao ensino clínico. Como Portugal aderiu à Declaração de Bolonha, esses critérios têm como referência as diretrizes definidas para o Espaço Europeu de Ensino Superior, cujos dispositivos e normativas são de abrangência transnacional e favorecem a mobilidade de alunos, docentes, pesquisadores e profissionais, mas também a uniformização dos sistemas de ensino dos países, cuja diversidade cedeu lugar a concepções monolíticas (CABRITO, 2011).
Já no Brasil, a formação inicial em Enfermagem é de nível superior desde 1923. A oferta de cursos ocorre em universidades, centros universitários, faculdades e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFECT), reproduzindo a diversificação institucional que marca o sistema superior brasileiro. As regulamentações são de abrangência nacional, com exceção de experiências pontuais de integração regional como a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), também conhecida como Universidade do Mercosul. O ensino público é gratuito e, diferentemente de Portugal, as IES públicas no Brasil contribuem com apenas 15,86% do total de ofertas de vagas em Enfermagem, 84,14% dos cursos fazem parte de IES privadas. A privatização na formação inicial de Enfermagem é agravada pela oferta de cursos na modalidade à distância, todos vinculados a IES privadas, conforme dados do Censo do Ensino Superior de 2018 (BRASIL, 2018).
Esse cenário faz parte de um movimento geral de mercadorização e privatização do ensino superior, com a diversificação institucional e o ensino direcionados para o desenvolvimento de competências. Com isso, se reduzem as atribuições estatais, sociais e universalistas, e se amplia o espaço e o poder dos interesses privados (MANCEBO; BITTAR; CHAVES, 2012).
O projeto de mercadorização da educação busca diminuir as despesas do Estado por meio de privatizações de serviços educacionais, ao mesmo tempo em que incentiva as políticas de acesso e governança, bem como o pagamento de mensalidades por estudantes (CHAVES; CABRITO, 2011).
A formação superior de Enfermagem em ambos os países ocorre em IES públicas e privadas com base em dispositivos legais e normativos que preconizam o perfil generalista com foco no desenvolvimento de competências para o exercício profissional. Além disso, saberes teórico-práticos de diversas áreas do conhecimento, como Enfermagem, Biologia, Medicina, Ciências Sociais e Educação são incluídos como necessários nos currículos. O estágio curricular é considerado imprescindível para a construção da autonomia das futuras enfermeiras e enfermeiros.
A formação de competências, presente nos documentos e reiterada pelos entrevistados, destaca-se entre as semelhanças dos dois países. Em Portugal, a expectativa é que “todos os estudantes tenham conhecimento suficiente para a tomada de decisão, pois é um processo complexo que requer conhecimento e competência” (PORTUGAL 1, 2019). Espera-se que o egresso “seja capaz de cumprir as competências para o exercício do padrão de qualidade. Buscar sempre pela excelência, baseado em evidência científica, ou seja, prática baseada em padrões de qualidade com evidência científica” (PORTUGAL 5, 2019) exigindo-se do trabalhador eficácia e produtividade, ao mesmo tempo em que aumentam a precarização, o subemprego e o desemprego e diminui o poder de negociação (DELUIZ, 2001, 2017; RAMOS 2001, 2018). Cresce ainda a formação adequacionista, individualizada e individualizante, preocupada com o produto e não com o processo, articulada aos interesses do mercado e às exigências empresariais (DELUIZ, 2017).
Outra distinção está relacionada ao grau acadêmico conferido, como problematiza um dos entrevistados:
Há uma diversidade de diplomas. Enfermeiro licenciado, bacharel... Afinal, qual é o grau? A academia atribui o quê? Atribui o título acadêmico ao diplomado. Afinal, quais as competências das instituições de ensino superior para conferir o grau? (PORTUGAL 2, 2019).
No Brasil, a graduação ocorre nos cursos de bacharelado, de licenciatura e tecnológico, com a pós-graduação em nível lato sensu (especialização e residência) e stricto sensu (mestrado e doutorado). A licenciatura é destinada à formação de professores. Essa diferenciação na interpretação dos termos entre os países tem comprometido os processos de reconhecimento dos diplomas de enfermeiras e enfermeiros brasileiros em Portugal. A situação se agravou após a publicação do Decreto-Lei no 66, de 16 de agosto de 2018, que aprovou o regime jurídico de reconhecimento de graus acadêmicos e diplomas de ensino superior atribuídos por IES estrangeiras, e da Portaria nº 33, de 25 de janeiro de 2019, que regulou aspectos da tramitação procedimental do reconhecimento de graus acadêmicos e diplomas atribuídos por instituições de ensino superior estrangeiras.
Assim, apesar de haver licenciatura em Enfermagem em ambos os países, em Portugal essa designação corresponde ao primeiro ciclo de formação superior. Isso porque o ensino superior nos países europeus vinculados ao tratado de Bolonha está organizado em três ciclos: licenciatura, mestrado e doutorado. Assim, a graduação nas universidades e institutos politécnicos corresponde ao 1º ciclo. A designação existe apenas por tradição, já que não existe o diploma de licenciatura e sim o de graduação.
No Brasil há cursos exclusivamente de bacharelado, destinados à formação de enfermeiras e enfermeiros generalistas e há também licenciaturas e bacharelados articulados. Nesse último caso, além da formação geral, o estudante é preparado para ser professor da Educação Profissional Técnica de Nível Médio em Enfermagem (EPTNM) (CORRÊA; PREBILL; RUIZ; SOUZA; SANTOS, 2018).
No Brasil, a equipe de enfermagem é composta predominantemente por auxiliares e técnicos de enfermagem, responsáveis pelas ações de saúde para população brasileira. São as enfermeiras e enfermeiros, e não a outra categoria profissional, os responsáveis pela formação dos trabalhadores de cada equipe. Desse modo, é inquestionável e imprescindível o papel social de uma formação articulada de enfermeiras e enfermeiros generalistas e de professores da EPTNM para a Saúde e a Educação no país (CORRÊA; PREBILL; RUIZ; SOUZA; SANTOS, 2018).
Acrescenta-se como distinção entre os países, a exigência de algumas IES portuguesas da declaração médica que ateste a ausência de deficiência psíquica, sensorial ou motora para ingresso em cursos de Enfermagem. No Brasil, não há tal exigência e, sim, um esforço para garantir o acesso ao ensino superior das pessoas com deficiência por meio de dispositivos legais e experiências institucionais. Todavia, deve-se registrar que ainda não há uma política inclusiva que garanta o acesso igualitário ao ensino superior a todo cidadão brasileiro.
Outra distinção presente na formação de enfermeiras e enfermeiros no Brasil diz respeito aos componentes curriculares, em particular à obrigatoriedade do trabalho de conclusão de curso (TCC) e a realização de atividades complementares, por meio das quais o estudante pode diversificar suas atividades formativas, participando de atividades de ensino, pesquisa e extensão, mesmo nas instituições não universitárias. Já o TCC é uma oportunidade de aprendizagem relacionada à investigação na graduação sob orientação docente.
Na legislação portuguesa estudada, não foi identificado nenhum componente curricular correspondente ao TCC e às atividades complementares. O exercício da pesquisa científica ocorre em algumas unidades curriculares e a extensão, por meio de atividades voluntárias, como esclarece uma das entrevistadas:
A investigação ocorre desde o início do curso através do exercício de investigação: busca, leitura, análise de artigos, definir tema e objetivos, fazer citação e referências etc. Nas licenciaturas, não se produz conhecimento, mas sim interpreta-se e mobiliza-se conhecimentos para aplicá-los. [...] A extensão ocorre através de grupos de voluntariado, que podem ser em locais onde ocorrem a prática (PORTUGAL 1, 2019).
Há de se destacar que o ensino de enfermagem português tem como potencial “[...] ser uma licenciatura em que 50% da carga horária é destinada ao estágio [...]” (PORTUGAL 2, 2019) e “[...] que possibilita a ‘mobilidade entre países’” (PORTUGAL 1, 2019). Diferentemente dos momentos de prática, o estágio é a experiência concreta, real e continuada do discente no contexto de trabalho, com supervisão direta das enfermeiras e enfermeiros no campo, mediado didática e pedagogicamente pelo docente. Assim, o estágio pode ser uma oportunidade para que a práxis subsidie o pensamento crítico, o trabalho coletivo e a autonomia do aluno, contribuindo para o desenvolvimento da qualidade da formação, do serviço de saúde e da vida dos usuários (ESTEVES; CUNHA; BOHOMOL; NEGRI, 2018).
Em Portugal, a fácil mobilidade entre os países signatários do Tratado de Bolonha é uma realidade em expansão e uma oportunidade de aprendizagem que extrapola a dimensão científica, pois possibilita a vivência cultural e afetiva em um outro país. Todavia, essa possibilidade é elitista e seletiva porque a bolsa que os estudantes recebem dos programas europeus como o Erasmus+ é insuficiente e tem de ser complementada com outros recursos, em geral da família, o que dificulta a participação de jovens provenientes de famílias de baixa renda.
A leitura dos documentos permitiu identificar que o modelo biomédico ainda é hegemônico no ensino de Enfermagem nos dois países (ARAÚJO; MIRANDA; BRASIL, 2007; PINHEIRO; CECCIM; MATTOS, 2006; CECCIM; FEUERWERKER, 2004; SARAIVA, 2015). Em Portugal ainda há mais saberes relacionados à Medicina, Biologia e Clínica, expressos nas competências, na nomenclatura de unidades e conteúdos curriculares, assim como no próprio Ensino Clínico que é, simultaneamente, uma área científica e de estágio. No curso analisado, por exemplo, uma das áreas científicas com menor número de créditos é Saúde Pública (3 de 240). Essa realidade também foi identificada em outros estudos (SILVA; COSTA, 2010; SANTOS; LOPES; FONSECA; SILVA; TEXEIRA, 2014).
Assim, infere-se que a formação inicial dos profissionais de enfermagem portugueses objetiva o preparo técnico-científico em cuidados clínicos individualizados, tendo por base uma perspectiva biopsicossocial que privilegia o contato com o paciente e a gestão do cuidado, mediante processos de tomada de decisão (SILVA; COSTA, 2010).
[...] tratar o ser humano holisticamente por meio de uma vertente científica, relacional e comunicacional em todos aos ciclos de vida e nos vários domínios: pré-hospitalar, saúde pública, na rede de cuidados continuados e integrados e hospitalar (PORTUGAL 6, 2019).
[...] privilegia a formação humanista, a singularidade e a individualidade da pessoa, dando resposta às necessidades a partir de conhecimento técnico-científico atualizado (PORTUGAL 1, 2019).
Mesmo que avance para uma perspectiva holística, centrada no ser humano e nas suas transições ao longo da vida, há de se ponderar os limites de uma formação em Saúde / Enfermagem com base no modelo biomédico e no ensino voltado para a ação (tomada decisão). A reprodução do saber médico, hospitalocêntrico, cientificista e tecnicista, que caracteriza o modelo biomédico, reduz a forma de pensar e intervir em saúde, pois não tem o compromisso de formar cidadãos com compreensão crítica e ampliada da realidade e da determinação social do processo saúde/doença (SARAIVA, 2015).
Porém, isso não significa dizer “[...] que não é importante a competência técnica. Eu dizia sempre a eles na sala de aula: na hora que a pessoa está enfartando, você quer um profissional competente, mas isso não é suficiente” (BRASIL 2, 2018). A defesa deve ser de uma formação que articule dialética e explicitamente técnica e política. Isso porque, no discurso de neutralidade técnica está implícita uma formação política para aceitabilidade e conservação da realidade (SILVA, 2015).
Para os entrevistados de Portugal, a formação técnico-científica, de base clínica, não se coloca como limite, mas como potencialidade, já que a enfermeira portuguesa “[...] é reconhecida por reunir grande preparação técnico-científica para a tomada de decisão, sendo os licenciados recrutados para outros países” (PORTUGAL 1, 2019).
No Brasil a formação inicial de enfermeiras e enfermeiros também está em grande parte alinhada ao modelo biomédico e ao desenvolvimento de competências. Contudo, as normativas e a proposta formativa analisada postulam uma formação comprometida com a consecução do direito à saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS), reconhecendo a responsabilidade do trabalho da Enfermagem na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
[...] o ‘SUS escola’ é cenário de ensino-aprendizagem, promotor de capacidade pedagógica nos serviços e desenvolvimento dos trabalhadores e do trabalho em saúde por meio da Educação Permanente em Saúde – EPS que tem como elementos essenciais para a aprendizagem no trabalho (BRASIL 4, 2018).
A formação de enfermeiras e enfermeiros no Brasil é resultado de tensões entre o modelo biomédico hegemônico e os movimentos de mudança na saúde e na Enfermagem a partir dos anos de 1980. Esses movimentos foram construídos na efervescência social em prol da redemocratização da sociedade brasileira após a ditadura militar (1964-1985).
O Movimento Participação foi uma ação coletiva da Enfermagem que contribuiu para a transformação do Estado burguês (OLIVEIRA, 1990), mediante o reconhecimento do compromisso profissional com a defesa do direito à saúde, à liberdade e à vida digna (ALBUQUERQUE; PIRES, 2001).
A defesa de uma formação crítica emancipatória pressupõe “[...] a modificação da postura profissional e discente diante da realidade social, potencializando o desenvolvimento de transformações sociais [...]” (SILVA, 2015, p. 16) por meio da crítica da realidade com a finalidade de “[...] educar para a cidadania e a participação plena na sociedade” (BRASIL, 2001, p. 5), extrapolando a dimensão técnica do trabalho, ao reconhecer seu caráter ético-político.
As semelhanças e as diferenças identificadas na formação inicial de enfermeiras e enfermeiros expressam compreensões históricas do compromisso técnico-ético-político da Enfermagem e de sua relação com a sociedade. Relacionam-se com as macroestruturas e as tendências econômicas, políticas e culturais, bem como com as necessidades sociais presentes em cada momento histórico (EGRY, 1996), dotadas e permeadas simultaneamente por valores, historicidade, dinamicidade e incerteza. Um determinado contexto histórico-social constrói uma série de tensões e contradições que impõe desafios e possibilidades à educação, em particular à formação de enfermeiras e enfermeiros, como a emancipação social na construção de uma sociedade mais justa.
Considerações finais
No Brasil e em Portugal a formação inicial em enfermagem é de nível superior, ocorre em IES públicas e privadas, regulamentada por dispositivos legais e normativos que definem um perfil generalista e competências a serem construídas ao longo do curso. Além disso, define como necessário um currículo que considere saberes teórico-práticos de diversas áreas do conhecimento, como Enfermagem, Biologia, Medicina, Ciências Sociais e Educação. O estágio curricular é considerado um momento imprescindível para a construção da autonomia profissional.
Por outro lado, em Portugal predomina o ensino público não gratuito. Foram identificadas diferenças nas concepções de enfermagem, licenciatura, processo saúde/doença e enfermeiro generalista. Por mais que nos dois países predomine o modelo biomédico e a formação de competências, em Portugal há explicitamente a defesa de que o compromisso da formação seja a expertise clínica para intervir nos problemas e necessidades de saúde. Já no Brasil, defende-se uma formação ético-técnica-política para a cidadania com a defesa de uma política pública de saúde democrática e universal, integral e equânime.
Em termos de organização curricular, no Brasil há os componentes curriculares trabalho de conclusão de curso, atividades complementares e atividades práticas (para os cursos de licenciatura). Em Portugal, o estágio corresponde a 50% da carga horária do curso, enquanto no Brasil é de apenas 20%, bem como há uma mobilidade estudantil facilitada pela Declaração de Bolonha.
Resguardadas as especificidades históricas e sociais de cada país, a formação inicial em enfermagem no Brasil e em Portugal expressa o movimento geral do ensino superior de privatização, massificação e formação para o mercado. Revela, ainda, o predomínio do modelo biologizante, tecnicista e fragmentador da formação em Saúde / Enfermagem. Ao mesmo tempo, as potencialidades e as possibilidades apresentadas nas duas realidades estudadas sinalizam que há espaços para construir estratégias de transformação. Ainda que pontuais e singulares, estas revelam a intencionalidade, a pulsão e o desejo por igualdade e justiça social.