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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.39  Curitiba  2023  Epub 26-Abr-2023

https://doi.org/10.1590/1984-0411.87031 

DOSSIÊ VALORIZAÇÃO DOCENTE NOS CONTEXTOS DE BRASIL E CHILE FRENTE ÀS MARCHAS E CONTRAMARCHAS DO NEOLIBERALISMO

Negociação das políticas/práticas curriculares: o desenvolvimento profissional de professores(as) orientado para a decisão curricular1

Maria Julia Carvalho de Melo* 
http://orcid.org/0000-0001-9125-4142

Lucinalva Andrade Ataide de Almeida* 
http://orcid.org/0000-0002-3577-1716

Carlinda Leite** 
http://orcid.org/0000-0001-9960-2519

*Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: melo.mariajulia@gmail.com, nina.ataide@gmail.com

**Universidade do Porto, UP, Porto, Portugal. E-mail: carlinda@fpce.up.pt


RESUMO

Este artigo tem por objetivo evidenciar as possibilidades e as impossibilidades de processos de negociação das políticas/dos programas contribuírem para o desenvolvimento profissional de professores(as) orientado para a decisão curricular. Recorrendo à defesa da autonomia do exercício da atuação docente, considera-se que o desenvolvimento profissional perpassa a ideia dos(as) professores(as) se constituírem como decisores curriculares, entendida como capacidade de ação que se desenvolve a partir da articulação entre os esforços individuais do sujeito, os recursos disponíveis e os fatores contextuais. A orientação teórico-metodológica seguida tem por base a relação instável e indecidível entre particularidade e universalidade. A recolha de dados de políticas/práticas curriculares teve por lócus o município de Caruaru, Pernambuco, com o material disponível na Plataforma Instituto Qualidade no Ensino (IQE) Caruaru e o site oficial do IQE. A análise desses materiais evidencia disputas em torno da significação das políticas/práticas curriculares no município construídas a partir dos discursos das reformas educacionais globais e das políticas nacionais que vêm propondo, por meio da padronização curricular, a tentativa de fechamento da produção de respostas curriculares contextuais. No entanto, mesmo diante dessas limitações, acredita-se que existe a possibilidade de os(as) professores(as) agirem nas brechas da estrutura para disputar, com as políticas, outros sentidos de atuação docente que estimulem o desenvolvimento profissional baseado na autonomia e na consideração dos saberes docentes.

Palavras-chave: Políticas/práticas curriculares; Decisão curricular; Desenvolvimento profissional

ABSTRACT

This paper aims to highlight the possibilities and impossibilities of policies/programs negotiation processes to contribute to the teachers’ professional development oriented towards curricular decision-making. Using the defense of autonomy of the exercise of teaching enactment, it is considered that professional development permeates the idea of teachers constituting themselves as curricular decision-makers, understood as capacity for action that is developed from the articulation between individual efforts of the subject, available resources and contextual factors. The theoretical-methodological orientation is based on the unstable and undecidable relationship between particularity and universality. The locus of data collection on curricular policies/practices was the municipality of Caruaru, located in the state of Pernambuco, Brazil, with the material available on the Caruaru Platform Instituto Qualidade no Ensino (IQE) [Quality in Teaching Institute] and the IQE official website. The analysis of these materials shows disputes around the meaning of curricular policies/practices in this municipality built from the discourses of global educational reforms and national policies that have been proposing, through curricular standardization, the attempt to close the production of contextual curricular responses. However, despite these limitations, it is believed that there is a possibility for teachers to act in the structure gaps to dispute, along with policies, other meanings of teaching enactment that stimulate professional development based on autonomy and considering teaching knowledge.

Keywords: Curricular policies/practices; Curricular decision-making; Professional development

Introdução

Este artigo dá conta de um estudo que, tendo como foco políticas educacionais e, dentro delas, as políticas curriculares da Educação Básica, analisa disputas em torno de significações que lhes são atribuídas. O objetivo dessa análise é evidenciar as possibilidades e as impossibilidades que os processos de negociação das políticas/dos programas oferecem para o desenvolvimento profissional de professores(as) orientado para a decisão curricular. Assim, o posicionamento epistemológico circunda a defesa pela autonomia do exercício da atuação docente (GROCHOSKA; GOUVEIA, 2020), compreendendo que o desenvolvimento profissional também perpassa a ideia de os(as) professores(as) se constituírem como decisores curriculares.

A defesa pela autonomia docente justifica-se e inscreve-se no cenário de constantes tentativas de subalternização e de regulação do trabalho do(a) professor(a) (DIAS; GABRIEL, 2021), dimensionando sua atuação em uma perspectiva estritamente instrumental e técnica. Essas crescentes intervenções (de caráter pedagógico/curricular/organizacional), com raízes em segmentos privados, se fazem presentes e influenciam as próprias políticas públicas de educação. A partir do significante vazio” educação de qualidade”, há uma aposta na privatização do sistema educativo (GABRIEL et al., 2020) apresentado como possibilidade de suprir o que “falta” à educação (MACEDO, 2017). Ao ser percepcionada nesse lugar de ausência, a escola vem sendo submetida a novos arranjos políticos que produzem tensões e desafios na atuação do(a) professor(a), especificamente em suas práticas curriculares.

Nessa orientação, podemos perceber que, frente a um contexto social fortemente marcado pelas exigências do capital, a educação se apresenta como ferramenta importante para formar o(a) trabalhador(a) com as características requeridas pelo mercado, tais como a flexibilidade, a eficiência e a polivalência (DIAS; GABRIEL, 2021). Desse modo, os princípios das economias neoliberais materializam uma racionalidade discursiva que permeia a produção política, econômica, social e cultural (HYPOLITO, 2021) e têm vindo a influenciar as reformas educacionais que, baseadas em discursos de eficiência e de prestação de contas (NÓVOA, 2017), responsabilizam individualmente os(as) professores(as) pelo sucesso ou pelo fracasso dos processos de ensino-aprendizagem e da escola, não garantindo princípios de justiça social (FRITSCHT; LEITE, 2019; LEITE; SAMPAIO, 2020) a todos(as) os(as) alunos(as) para quem ela deve ser destinada.

Marcas dessa orientação levam a que o desempenho do(a) professor(a) seja medido por meio dos resultados de aprendizagem advindos (não só, mas também) das avaliações externas, muito embora não sejam dadas as condições necessárias para que atuem de acordo com as situações específicas de cada contexto e do que é necessário para os(as) alunos(as). Essa responsabilização atribuída aos(às) professores(as) aproxima-os(as) do papel de aplicadores(as) das prescrições centralizadas de currículos, focadas nos resultados finais dos(as) alunos(as), e afasta-os(as) de um sentido de autonomia, como professores decisores curriculares, para fazerem opções contextualizadas da atividade docente. A autonomia dos(as) professores(as) reside, portanto, no fato de precisarem atender às exigências das políticas sem que sejam considerados os fatores contextuais.

Ao reconhecermos a capacidade de o(a) professor(a) constituir-se como um decisor curricular no uso do seu poder de agência (PRIESTLEY; BIESTA; ROBINSON, 2015), entendemos ser esta uma ação que se desenvolve a partir da articulação entre os esforços individuais do sujeito, os recursos disponíveis e os fatores que a facilitam. Por isso, consideramos que, entre os elementos que interferem no desenvolvimento profissional orientado para a decisão curricular, está o processo de privatização por que passa a educação brasileira. Nesse processo, o setor privado tem disputado o fundo público bem como o conteúdo das políticas públicas educacionais, dificultando a existência de condições para que os(as) professores(as) assumam papéis de decisão curricular.

Tendo essa orientação conceitual por base e apoiando-nos na Teoria do Discurso (TD) (LACLAU, 2011), analisamos o discurso dos programas políticos do município de Caruaru, localizado no estado de Pernambuco, nomeadamente o discurso do Instituto Qualidade no Ensino (IQE), que se apresenta como uma das principais políticas/um dos principais programas desse município. A opção por esse lócus de pesquisa justifica-se porque, há pelo menos dez anos, ele vem apresentando uma orientação política para a educação pública, baseada nos contornos da relação público-privada. Com essa análise, buscamos evidenciar as possibilidades de constituição de práticas que estão vinculadas a demandas do setor público e do setor privado, e que produzem políticas públicas com novas identidades. Nossa pretensão é demonstrar os processos de negociação das políticas/dos programas que podem ou não contribuir para o desenvolvimento profissional orientado para a constituição de professores decisores curriculares. Assim, inscritos em uma perspectiva que compreende que os sentidos produzidos no contexto investigado são contingenciais e não estabilizados, foi realizada a análise considerando que os sentidos hegemonizados são resultados de disputas em torno do processo de significação.

O currículo como significante vazio: Quais sentidos particulares estão sendo universalizados?

Ao operarmos em uma perspectiva de valorização do caráter contingencial, precário e provisório de toda a sedimentação (LOPES; BORGES, 2015), compreendemos o currículo inscrito em sentidos fixados apenas parcialmente, sem que haja uma essência ligada à sua significação. Desse modo, com essas autoras, questionamos a “fantasia essencialista” de que seja possível construir uma identidade plena do que vem a ser currículo e de que seja possível significarmos o currículo de uma vez por todas. Consideramos que, embora sejamos chamados a significar o mundo, podemos somente falar em esforços para controlar e estabilizar o currículo em um único sentido; assim, com elas, questionamos a “[...] tentativa de estabilizar o que é impossível ser estável” (LOPES; BORGES, 2015, p. 503).

Quando negamos a existência de um fundamento último, operamos com a ideia radical de que outros sentidos sempre são possíveis, que os sentidos já estão sendo outros. Isso nos remete à compreensão de que é a “[...] contingência que torna os eventos possíveis, mas não necessários e obrigatórios. Esta orientação remete à imprevisibilidade, à ausência de certezas, à diferença [...]” (LOPES; BORGES, 2015, p. 498). Nessa concepção, o currículo revela-se como significante vazio (LACLAU, 2011), o qual, se inscrevendo na lógica da hegemonia, possibilita que um sentido particular se apresente em seu caráter universal. Essa posição implica que os sentidos de currículo que debatemos no espaço da nossa argumentação são sentidos particulares que, ao terem sua particularidade esvaziada e ao construírem equivalências com outros sentidos particulares, se fixaram (parcialmente) e assumiram a posição de sentido universal.

Nessa linha, em nossa posição discursiva, perspectivamos o currículo enquanto projeto formativo assumido nas escolas como resultado, ao mesmo tempo, das orientações das políticas curriculares globais e locais e das produções realizadas cotidiana e contextualmente pelos atores escolares (MELO, 2019). Nesse entendimento, o currículo é a materialização das vivências dos sujeitos nos cotidianos das escolas que estabelecem relações entre si e com o conhecimento veiculado e construído nesses espaços. Por conseguinte, “[...] é um elemento constitutivo “ como é todo ato educativo - da subjetividade, das subjetividades, dos sujeitos, dos sujeitos sociais” (ALBA, 2014, p. 210). Percebido como construção social (MELO; ALMEIDA; LEITE, 2020), o currículo traz as marcas históricas dos sujeitos que nele se envolveram, não sendo apenas documento burocrático, mas expressão do cotidiano vivenciado pelos grupos, mesmo que essas vivências não estejam sistematizadas oficialmente na escola. Por isso, reconhecemos a importância de

[...] superar tanto modelos que entendem as relações do Estado sobre a prática das escolas como verticalizadas, reservando às escolas o papel subordinado de implementação e ao Estado, uma ação onipotente, quanto análises que desconectam as práticas das relações com processos sociais e político-econômicos mais amplos, mediados pelo Estado. (LOPES, 2006, p. 35).

Entretanto, é exatamente nesse lugar de subordinação que as políticas curriculares produzem sentidos de currículo, associando a escola a um lugar de aplicação de propostas prévia e externamente definidas, as quais não consideram as demandas específicas das instituições e de seus sujeitos, tampouco promovem a participação deles em sua elaboração. Tendo o neoliberalismo como versão dominante, estamos cada vez mais sujeitos à lógica do setor financeiro, o que coloca as diversas sociedades em um estado permanente de crise (SANTOS, 2020). No bojo dessa crise constante - que tem por objetivo nunca ser resolvida, mas legitimar a concentração de riqueza e, consequentemente, a desigualdade social -, vêm sendo impostos à educação modelos de organização baseados em princípios mercadológicos. Nesse lugar de crise, a educação, principalmente a pública, é vista diante do que lhe falta, nomeadamente a falta de qualidade. Por essa razão, instala-se uma perspectiva de educação como quase-mercado a partir da compreensão de que, somente por meio das forças do mercado, o sistema educacional poderia melhorar sua qualidade e sua eficiência (ALARCÓN-LEIVA; JOHNSTON; FRITES-CAMILLA, 2013). A tentativa é de fechar a produção de sentidos, em busca de expulsar do político outras formas de organização social. Se não há outras possiblidades, o que resta é adotar uma certa ortodoxia de como deveriam ser as políticas curriculares.

Nessa produção discursiva neoliberal, justificada para melhorar a qualidade da educação, uma das soluções propostas pelas políticas “ não só no Brasil, mas também internacionalmente a partir do Movimento de Reforma Educacional Global (GERM) -, é a padronização curricular (MARINHO; LEITE; FERNANDES, 2019), que implica um currículo prescrito a ser implementado em todo o território nacional, buscando frear as produções curriculares contextuais. No nosso país, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) constitui-se como uma das representações desse movimento, intencionando determinar o que a escola e seus(suas) professores(as) podem e devem ensinar. Baseada no princípio da centralização do currículo, assim como o Common Core dos Estados Unidos e o Currículo Nacional da Austrália, a BNCC segue uma racionalidade de teto, de limite pré-determinado do que os(as) estudantes devem saber ao sair da escola (OLIVEIRA; FRANGELLA; MACEDO, 2017).

Privilegiando especialistas e subalternizando o debate com as comunidades escolares, como afirma a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPEd (2017), a BNCC tem por foco o desempenho dos(as) estudantes, assim como todas as políticas da esteira da padronização, mas não seu desempenho global, privilegiando apenas as disciplinas que são alvo de exames e testes nacionais, como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), e internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Desse modo, é uma política que reduz o processo de educação escolar

[...] a uma listagem de conteúdos e habilidades, ignorando todo o processo social de aglutinação permitido pelas Diretrizes existentes, tanto quanto o trabalho dos professores já em curso, os currículos em andamento nas escolas e tudo o que acontece nas relações professores e estudantes, em suas múltiplas ações. (OLIVEIRA; FRANGELLA; MACEDO, 2017, p. 4).

Nesse cenário marcadamente neoliberal, a qualidade da educação também seria alcançada por novas formas de gestão articuladas às dimensões de desempenho e de produtividade, materializando-se em uma gestão corporativa que muito se aproxima do modelo empresarial. Essas novas formas de gestão também são forjadas por meio das parcerias público-privadas que mais se baseiam na ideia de “[...] privatização dos serviços públicos e o subfinanciamento dos que restaram por não interessarem ao capital” (SANTOS, 2020, p. 24), do que no estabelecimento de relações justas entre ambos os setores. O êxito, portanto, da política neoliberal reside também na redução das diferenças entre o público e o privado, tendo por efeito a noção de que o privado otimiza os recursos que geralmente seriam dilapidados por organismos públicos vistos como ineficientes (ALARCÓN-LEIVA, 2017).

Em uma educação fortemente marcada por um modelo de gestão privada, as políticas curriculares seguem perspectivas baseadas na accountability (AFONSO, 2019), em outras palavras, na responsabilização e na prestação de contas de escolas e de professores(as). Submetidas às políticas de avaliação externa, as práticas curriculares dos(as) professores(as) estão sendo definidas pelos exames que buscam indicar o desempenho dos(as) estudantes, limitado a áreas específicas. O mesmo acontece na BNCC por intermédio do atrelamento das avaliações nacionais aos conteúdos escolares (ANPED, 2017). Assim, ensina-se o que está previsto nos exames externos, uma vez que há políticas de punição ou de prêmio a partir dos resultados obtidos.

Essas novas estratégias e tecnologias de regulação da atuação docente e do trabalho da escola, que argumentam elevar os resultados escolares vistos como únicos indicadores relevantes de uma pretensa qualidade e eficiência, introduz incentivos que geram a competição entre as escolas e se baseiam na crença de que isso elevaria a qualidade escolar (ALARCÓN-LEIVA, 2017). Nesse cenário, podemos visualizar já algumas disputas em torno da significação do currículo. Se, por um lado, temos as políticas neoliberais que buscam definir como a educação deve se materializar, por outro, temos os(as) educadores(as) e os(as) pesquisadores(as) que concebem as escolas como curricularmente inteligentes (LEITE, 2005), capazes de construir, a partir do envolvimento e do comprometimento coletivo de seus atores, currículos que respondam às demandas contextuais.

A decisão curricular como elemento de desenvolvimento profissional

Conforme mencionamos, trazemos sentidos de currículo que podiam ser outros. Entretanto, nossa inscrição no campo da discussão pós-fundacional possibilita-nos, a partir de articulações discursivas, compreendê-lo como elemento vivo que influencia a prática e é por ela influenciado. Frente a isso, e corroborando Felício e Possani (2013, p. 131), o “[...] currículo [...] constitui-se num terreno para múltiplos agentes, cuja dinâmica envolve mecanismos diversos, numa confluência de práticas”. Em outras palavras, pensar o currículo é também pensar as políticas curriculares, os contextos sociais e históricos que influenciam a elaboração dessas políticas, e sua reelaboração nos contextos locais por meio dos currículos praticados pelos(as) professores(as), alunos(as), gestores(as), objetivando a produção e a socialização do conhecimento.

Como ao longo deste artigo temos vindo a indiciar, é necessário captar o currículo em sua complexidade, na articulação entre o que é prescrito e sua reinvenção na prática. Dessa forma, o currículo como dispositivo de formação exige a compreensão dos contextos, dos atores e das intenções que o constituem. Pensá-lo para além do sentido burocratizante demanda considerar o(a) professor(a) também como um(a) produtor(a) curricular, deslocando seu lugar de executor(a) de demandas externas para o de agente de decisões curriculares (SANTOS; LEITE, 2020).

Nessa orientação, consideramos que “[...] os sujeitos que materializam o currículo são também construtores das políticas curriculares, no momento em que estas são ressignificadas no âmbito local, ou seja, no âmbito do espaço escolar” (ALMEIDA; SILVA, 2014, p. 1442) -ressignificação que muitas vezes implica ruptura do que está posto para a produção do novo. É nessa direção e nesse entendimento que, inscritos no poder de agência dos(as) professores(as) (BIESTA; PRIESTLEY; ROBINSON, 2015; SANTOS; LEITE, 2020), evidenciamos as possibilidades de construção e de concretização de currículos que atendam às características dos contextos educacionais e promovam a justiça social (FRITSCHT; LEITE, 2019; LEITE; SAMPAIO, 2020), bem como o desenvolvimento profissional do(a) professor(a) (GROCHOSKA; GOUVEIA, 2020).

O conceito de agência vem sendo utilizado em pesquisas recentes para demonstrar a capacidade de os atores construírem/forjarem criticamente suas próprias respostas às situações problemáticas (BIESTA; TEDDER, 2006). Tendo como premissa a qualidade do engajamento dos atores em contextos de ação situados temporalmente, a agência não diz respeito a uma qualidade individual dos atores, quer dizer, não é algo que as pessoas possuem, como uma propriedade privada, capacidade ou competência, mas algo que as pessoas fazem (BIESTA; PRIESTLEY; ROBINSON, 2015; SANTOS; LEITE, 2020).

Nesse sentido, o conceito de agência ajuda-nos a percepcionar a capacidade de os(as) professores(as) assumirem a posição de decisores curriculares, entendendo que não apenas aplicam as demandas das políticas, mas constroem respostas às situações que emergem na especificidade de sua atuação profissional. Esse conceito também demonstra que não existe uma essência ligada à capacidade de o(a) professor(a) se constituir como um decisor, porque não se trata de uma competência ou mérito individual, mas, antes, uma ação que se desenvolve a partir da articulação entre os esforços individuais do sujeito, os recursos disponíveis e os fatores contextuais.

Tendo essas ideias por referência, entendemos que considerar o papel do(a) professor(a) na delimitação do projeto formativo da escola (currículo) e compreender que o espaço escolar é capaz de produzir respostas eficientes às problemáticas cotidianas, é perspectivar as possibilidades de desenvolvimento profissional do(a) professor(a). É considerar o protagonismo docente, não em uma dimensão individual como as políticas neoliberais concebem, mas como projeto coletivo e compartilhado que também ocorre nos espaços de atuação docente. Como foi lembrado por Nóvoa (2002, p. 60), “[...] o desenvolvimento profissional dos professores tem que estar articulado com as escolas e os seus Projetos”.

Em linha com Imbernón (2009, p. 77), quando afirma que o desenvolvimento profissional “[...] é um conjunto de fatores que possibilitam ou impedem que o professorado avance na identidade”, entendemos que firmar a posição de decisor curricular é um dos fatores que podem promover a construção de uma identidade docente autônoma e criativa. Além disso, o desenvolvimento profissional, ao referir-se à “[...] qualquer intenção sistemática de melhorar a prática profissional, crenças e conhecimentos profissionais, com o objetivo de aumentar a qualidade docente” (IMBERNÓN, 2004, p. 45), pode ser associado ao poder de agência do(a) professor(a) nas opções que faz de decisão curricular.

Apoiadas nessas ideias, na análise da enunciação discursiva das políticas/práticas curriculares da Educação Básica, procuramos evidenciar como elas podem ou não contribuir para o desenvolvimento profissional orientado para a constituição de professores decisores curriculares. Para isso, foram considerados os seguintes aspectos: incompletude e provisoriedade como marcas do percurso metodológico; equivalências que constituem o IQE como programa/política; disputas em torno da significação das políticas/práticas curriculares.

Incompletude e provisoriedade: marcas de um percurso metodológico pós-fundacional

Seguindo um percurso metodológico que tem por base a premissa da relação instável e indecidível entre particularidade e universalidade, em que “[...] o universal não tem conteúdo próprio, mas é uma plenitude ausente [...], [que] só pode surgir do particular” (LACLAU, 2011, p. 40), compreendemos que as políticas/práticas, apesar de aparentarem um caráter universal, são constituídas por conteúdos particulares que simbolizam uma representação plena, que nunca é alcançada, mas é requerida. Sentidos particulares podem ter a aparência de sentidos universais, dito de outro modo, eles podem se apresentar como únicas possibilidades, como se existisse uma essência ligada ao que eles significam, mas, na verdade, eles apenas adotam o papel da universalidade que será sempre precária e não saturada, porque há “[...] uma sucessão de identidades finitas e particulares que tentam assumir tarefas universais que as ultrapassam” (LACLAU, 2011, p. 42).

Reafirmando a incompletude de qualquer processo de significação (GABRIEL, 2018), interessamo-nos por compreender como as políticas/práticas no contexto caruaruense disputam a produção de sentidos que (im)possibilitam professores(as) de assumirem a posição de decisores curriculares, promovendo (ou não) o desenvolvimento profissional orientado nessa direção.

A escolha pelo município de Caruaru, localizado no agreste pernambucano, para a realização do estudo se deu a partir do resultado de outras pesquisas (MELO, 2019; SILVA, 2020; VELOSO, 2021) que indicaram que o município tem seguido o modelo do estado de Pernambuco e buscado se vincular às fundações e aos grupos educacionais do setor privado. Assim, entendendo, com Hypolito (2021), que a privatização neoliberal da educação assume diferentes contornos, nos parece interessante acompanhar a que se materializa em Caruaru, cujas relações público-privadas se baseiam no apagamento (ou na redefinição) das fronteiras entre o que seria público e o que seria privado.

Na análise, a partir do levantamento inicial, identificamos a presença das seguintes políticas/dos seguintes programas em atuação no município: Tempo Certo; Comunidade Leitora; Programa Criança Alfabetizada; Gincana X; Aprender com Sucesso; Todos Aprendem; Qualifica EJA; Formação de Liderança para Gestores; CAEd2 Fluência; SAEC3 Avaliação e IQE. É de realçarmos que o IQE, presente em Caruaru (entre idas e vindas) desde 2009, tem se tornado recorrente nos discursos dos(as) professores(as) da rede como política/programa que vem impactando a produção de suas práticas curriculares (MELO, 2019; SILVA, 2020; VELOSO, 2021).

Ao investir “[...] na promoção de formações e incorporação de materiais pedagógicos nas escolas que buscam centralizar nas práticas curriculares das professoras mecanismos de conformação com as avaliações externas” (VELOSO, 2021, p. 88), o IQE tem se constituído como uma das principais políticas/um dos principais programas do município. Justifica-se, portanto, a análise do material disponível na Plataforma IQE Caruaru, correspondente ao conteúdo pedagógico voltado aos(às) professores(as). Importa referirmos que o material analisado corresponde ao ano de 2022, para os anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano). Esse material dizia respeito às sequências didáticas de Português e de Matemática, e contabilizou 20 sequências de Português e nove sequências de Matemática, distribuídas entre o 1º e o 5º ano. Também foram consideradas as informações disponíveis no site oficial do IQE que ajudaram a dimensionar quais equivalências a política/o programa realizou para se constituir.

As equivalências que constituem o IQE como programa/política

Para analisarmos como se constitui o IQE como política/programa que vem, nos últimos anos, sendo um dos responsáveis por fixar (parcialmente) sentidos de currículo, de conhecimento, de aprendizagem, de avaliação nas políticas/práticas curriculares do município de Caruaru, foi relevante compreendermos como se constrói a operação hegemônica que está universalizando os conteúdos particulares desses sentidos. Para isso, mobilizamos a lógica da equivalência, a qual se “[...] caracteriza pela articulação de diferentes elementos que se aproximam, não porque são iguais, mas justamente por fazerem diluir suas diferenças em prol da hegemonização de um sentido particular” (DIAS; GABRIEL, 2021, p. 1307). A lógica da equivalência possibilita-nos entender o processo de significação que se institui - porque o universal não tem conteúdo específico e se sustenta em significantes vazios - e identificar quais diferentes elementos se aproximaram para hegemonizar determinados sentidos que estão na base do IQE.

Tendo seu nascimento em 1990 a partir de um grupo de trabalho composto por empresários e diretores de escolas estatuais, o IQE tinha como objetivo implementar o Programa Qualidade na Escola e, com isso, melhorar a qualidade do Ensino Fundamental de escolas públicas. Com um projeto piloto instituído no sistema escolar paulista a partir do desenvolvimento de materiais didático-pedagógicos, o IQE, em 1999, definiu como segundo lócus de sua atuação a cidade do Recife, onde se iniciou “[...] o programa de voluntariado, envolvendo funcionários de empresas parceiras e comunidade” (IQE, 2022a, n.p.). Há, desse modo, uma inscrição histórica da presença do Instituto no estado de Pernambuco, sendo essa presença ampliada para o interior do estado em 2006. No ano de 2009, ele chegou ao município de Caruaru por meio do Programa Qualiescola, e, atualmente, tem se vinculado à produção de materiais didáticos, à formação de professores(as) e à avaliação externa.

Frente a isso, reconhecemos que o IQE surge na articulação entre o setor público e privado, sendo “[...] uma associação civil de caráter educacional e de assistência social, sem fins econômicos, [...] mantida com o apoio de empresas privadas e parcerias com governos” (IQE, 2022b, n.p.). Dessa forma, o IQE baseia-se na relação estreita entre o setor público e o setor privado que funciona como - para usar a metáfora forjada por Hypolito (2021) - uma porta giratória em que não se sabe quem entra, quem sai, com quem entra ou com quem sai, cujas fronteiras que delimitam cada setor são apagadas ou são reconfiguradas.

O apagamento dessas fronteiras, ou melhor dizendo, a produção de novas fronteiras, corresponde à tentativa de conversão do “serviço público” em “serviço privado”, tendo por parâmetro a forma de organização empresarial (FREITAS, 2018). O IQE vai se assumindo, portanto, como “provedor privado da educação”, construindo um discurso em que as respostas às problemáticas da escola pública seriam dadas por agentes a ela externos. Apresentando como missão “[...] promover e desenvolver projetos educacionais que tem por objetivo a inclusão social através da melhoria da qualidade do ensino público básico” (IQE, 2022b, n.p.), institui-se uma articulação entre o público e o privado como substituição do controle público das instituições por grupos econômicos privados. Com isso, não estamos negando a força política da articulação entre os setores; ao contrário, estamos problematizando a constituição da fronteira hegemônica entre eles (GABRIEL, 2018) que marca a produção de sentidos do IQE.

Essa produção de sentidos circula em torno do significante qualidade, que se relaciona diretamente aos resultados de aprendizagem e ao desempenho dos(as) professores(as) (DIAS; GABRIEL, 2021). Dessa maneira, há um investimento em um sentido de qualidade organizado em torno da necessidade de superar as fragilidades da escola pública, cuja ineficiência, como foi alertado por Macedo (2014, p. 1538), “[...] funciona como exterior constitutivo que cria uma rede de demandas em torno de reformas marcadas pela lógica do mercado. A hegemonia da nova forma de sociabilidade é garantida pela expulsão das antigas formas de gestão da educação como bem público”.

Inscrito nessa articulação entre o público e o privado, o IQE não aposta na autonomia das escolas e de seus(suas) professores(as), nem na descentralização curricular. Sua pretensão é “[...] melhorar a eficiência do ensino nas escolas públicas” (IQE, 2022a, n.p.), por meio da promoção de mudanças na sala de aula a partir da “[...] reestruturação das ferramentas e capacitação do corpo diretivo da instituição e profissionais da Secretaria de Educação, até avaliação dos alunos, passando, principalmente, pela requalificação e acompanhamento dos professores” (IQE, 2022a, n.p.). Sua pretensão é, assim, dar às escolas algo que lhes falta. Não há o reconhecimento do potencial de qualificação das escolas, o que as permitiria conhecer-se e, a partir disso, planejar suas ações futuras no sentido de uma contínua melhoria. Ao contrário, percepciona-se a necessidade de formatação dos espaços educativos por especialistas e a definição de como seus profissionais precisam atuar.

A capacitação dos(as) professores(as) é realizada tendo em vista a sua instrumentalização ao que é proposto pelo IQE, não sendo convidados(as) a gerir e a tomar decisões, mas, sim, a implementar programas específicos e ferramentas de avaliação que posteriormente servirão para embasar seu planejamento. Essa, como se infere, é uma produção discursiva que se articula com um movimento global de constituição de políticas inscritas na influência neoliberal. Dessa forma, a produção de reformas educacionais baseadas principalmente na padronização e na centralização curricular tem se expressado em Caruaru, tanto a partir da BNCC - como política assumida nacionalmente e, portanto, pelo município “ quanto a partir do programa proposto pelo IQE.

Um dos elementos que garante o cumprimento do programa proposto pelo IQE é a realização da avaliação dos(as) estudantes “[....] para diagnosticar as deficiências e dificuldades que devem ser superadas” (IQE, 2022a, n.p.). A atividade de ensino é, por conseguinte, regulada por meio dessas avaliações que dizem mais respeito ao que o programa compreende ser necessário que os(as) estudantes saibam, e menos ao que os(as) professores(as) compreendem ser necessário que eles(as) saibam. Assim, o IQE promove a regulação do trabalho do(a) professor(a), “[...] tendo como referência as ações necessárias para atingir determinado ponto previamente definido para ser alcançado” (MARTINS; GABRIEL, 2021, p. 18). Logo, o investimento é em uma performatividade única, engessada e anteriormente definida que os(as) professores(as) devem garantir por meio do cumprimento do programa.

Não há, por conseguinte, investimento no desenvolvimento profissional orientado para a constituição de práticas autônomas e criativas. Reconhecendo, como afirmou García (1999), que o desenvolvimento profissional, para além de contemplar a qualidade da formação docente, também inclui a capacidade de os(as) professores(as) atuarem frente aos dilemas de sua atuação, verificamos que, para o IQE, essa capacidade precisa ser dada aos(às) professores(as) por intermédio de modelos pré-definidos. Os espaços para o desenvolvimento profissional são reduzidos no recurso a estratégias que tentam controlar o que os(as) professores(as) podem e devem fazer.

Em síntese, o IQE constrói uma rede discursiva em que a qualidade da educação é alcançada por meio da definição de um currículo padronizado, definido por agentes externos à escola, sendo necessário aos(às) professores(as) capacitação para atender aos objetivos definidos por aqueles que são alheios às necessidades de cada sala de aula. Trata-se de uma concepção de qualidade que é garantida pela regulação promovida por avaliações que medem se os(as) alunos(as) percorreram os caminhos previamente definidos pelo programa. Entretanto, até que ponto é possível determinar esses caminhos? Para isso, recorremos à análise do material didático-pedagógico fornecido pelo IQE para ser implementado em sala de aula pelos(as) professores(as) e que à frente, neste artigo, é apresentado.

Disputas em torno da significação das políticas/práticas curriculares: análise do material didático-pedagógico do IQE

Em seu site oficial, o IQE informa que, por meio de seus programas, busca ensinar os(as) professores(as) a ensinar, por isso eles(as) devem ser “[...] orientados, acompanhados e incentivados a desenvolver novas formas de ensinar” (IQE, 2022c, n.p.). Inscreve-se, nesse discurso, sentidos de responsabilização do(a) professor(a), pois, segundo o discurso a que recorre, bastaria mudanças nas formas individuais de atuação docente para garantir a suposta qualidade na educação. Nessa culpabilização dos(as) professores(as), como é afirmado por Dias (2016, p. 599), “[...] a responsabilização da escola e dos agentes que nela trabalham em relação aos resultados que são esperados da instituição pela sociedade” faz parte de uma linguagem comum que vem se fazendo presente nos últimos anos, nomeadamente nas reformas educacionais que aconteceram na América Latina (ALARCÓN-LEIVA, 2017; BEECH, 2009). Não se fala em necessidade de transformação da própria estrutura da educação, ou de questionamento das estruturas sociais, mas, sim, de transformação individual dos(as) professores(as) na direção do que é prescrito e que ignora as situações reais.

É talvez por considerar que basta atuar sobre os(as) professores(as), que o IQE tem também seu foco voltado à produção de materiais didático-pedagógicos que devem ser implementados em sala de aula. Inscrevendo o(a) professor(a) como aquele(a) que precisa mudar sua forma de ensinar, o IQE dimensiona uma mudança a ser definida externamente ao local de atuação profissional. Para essa concretização, em Caruaru, o IQE disponibiliza um site em que é possível ao(à) professor(a) acessar um conteúdo pedagógico referente às sequências didáticas que correspondem às disciplinas de Português e de Matemática. Como é referido, o objetivo de: “Garantir a toda criança brasileira o acesso [à] educação de qualidade” (IQE, 2022c, n.p., grifo do autor) é alcançado exclusivamente por meio dessas áreas do conhecimento e recorrendo aos materiais didáticos dessas áreas.

A escolha por essas áreas vincula-se à perspectiva de accountability presente nas políticas curriculares, não só no Brasil, mas também no mundo (AFONSO, 2019). Nessa lógica de subordinação, e como argumenta Hypolito (2021), as reformas educacionais globais supõem como meta melhorar a qualidade da educação, tendo como um dos focos as disciplinas consideradas nucleares, justamente porque “[...] os exames e testes nacionais e internacionais (PISA, ENEM etc.) são baseados nessas disciplinas” (HYPOLITO, 2021, p. 4). Dessa forma, o IQE justifica o foco nessas áreas do conhecimento fundamentando-se em resultados de avaliações externas ao indicar que:

Apesar de 98% de crianças brasileiras entre 6 e 14 anos terem acesso à escola pública, é comprovado, por várias entidades nacionais e internacionais ligadas à educação, que os alunos brasileiros têm um péssimo desempenho em leitura, interpretação de texto e matemática. (IQE, 2022c, n.p.).

O significante aprendizagem articula-se, portanto, a sentidos de educação restritos à Língua Portuguesa e à Matemática, tendo em vista que os testes padronizados e as avaliações em larga escala se concentram nessas disciplinas. O desenvolvimento profissional dos(as) professores(as) restringe-se ao que propõe o programa, o qual, por sua vez, se orienta por políticas de avaliação externa. Como concluiu Alarcón-Leiva (2017), as regulações crescentemente intervencionistas materializadas em um currículo centralizado e em avaliações estandardizadas se constituem como marco de um desenvolvimento profissional caracterizado pela performatividade e pela preocupação com os resultados quantificáveis.

A análise realizada mostra que as sequências didáticas apresentam clara vinculação à BNCC, trazendo nominalmente a política nacional, no caso das sequências referentes à disciplina de Português, para enquadrar cada campo temático mencionado, conforme mostram as informações dos documentos apresentadas no Quadro 1.

QUADRO 1 Relação com a BNCC 

Orientações ao professor
1º ano De olho na BNCC:
CAMPO ARTÍSTICO LITERÁRIO - Campo de atuação relativo à participação em situações de leitura, fruição e produção de textos literários e artísticos, representativos da diversidade cultural e linguística, que favoreçam experiências estéticas. Alguns gêneros deste campo: lendas, mitos, fábulas, contos, crônicas, canção, poemas, poemas visuais, cordéis, quadrinhos, tirinhas, charge/cartum, dentre outros.
2º ano De olho na BNCC:
CAMPO ARTÍSTICO LITERÁRIO - Campo de atuação relativo à participação em situações de leitura, fruição e produção de textos literários e artísticos, representativos da diversidade cultural e linguística, que favoreçam experiências estéticas. Alguns gêneros deste campo: lendas, mitos, fábulas, contos, crônicas, cantigas e canções, poemas visuais, cordéis, quadrinhos, tirinhas, charge/cartum, dentre outros.
4º ano De olho na BNCC:
CAMPO DAS PRÁTICAS DE ESTUDO E PESQUISA - Campo de atuação relativo à participação em situações de leitura/escrita que possibilitem conhecer os textos expositivos e argumentativos, a linguagem e as práticas relacionadas ao estudo, à pesquisa e à divulgação científica, favorecendo a aprendizagem dentro e fora da escola. Alguns gêneros deste campo em mídia impressa ou digital: enunciados de tarefas escolares; relatos de experimentos; quadros; gráficos; tabelas; infográficos; diagramas; entrevistas; notas de divulgação científica; verbetes de enciclopédia.

FONTE: Elaboração própria a partir das informações contidas nas Sequências Didáticas disponíveis na Plataforma do IQE Caruaru somente para os professores.

As sequências didáticas também mencionam as habilidades que serão desenvolvidas em cada uma delas (Quadro 2), cujos sentidos de conhecimento e de aprendizagem referidos dizem respeito a um conceito restrito de educação que cabe em uma mera coleção de competências e de habilidades (FREITAS, 2018).

QUADRO 2 Habilidades 

Habilidades Foco
2º ano - (EF02MA06) Reconhecer e elaborar problemas de adição e de subtração, envolvendo números de até três ordens, com os significados de juntar, acrescentar, separar, retirar, utilizando estratégias pessoais ou convencionais.
3º ano - Reconhecer o significado de metade, terça, quarta, quinta e décima parte, associando-as com as divisões sem resto.
- (EF03MA09) Associar o quociente de uma divisão com resto zero de um número natural por 2, 3, 4, 5 e 10 às ideias de metade, terça, quarta, quinta e décima partes.

FONTE: Elaboração própria a partir das informações contidas nas Sequências Didáticas disponíveis na Plataforma do IQE Caruaru.

Um outro elemento importante de ser evidenciado é que as sequências didáticas, para além de serem produções que não consideram as especificidades de cada turma e dos(as) alunos(as) que a formam, partem da perspectiva de que é necessário, inclusive, dizer ao(à) profissional como ela deve ser desenvolvida, chegando mesmo a anunciar o passo a passo das atividades, como mostra o texto apresentado na sequência didática do 2º ano do Ensino Fundamental, correspondente ao campo artístico-literário.

Ponto de Partida: esta sequência didática tem como ponto de partida uma roda de conversa com seus alunos sobre o que sabem a respeito de cantigas e canções. Inicie com questões tais como: Vocês sabem o que é uma cantiga ou canção? Quais vocês conhecem? Para que vocês acham que serve (para divertir, para brincar, para ler)? Gostariam de cantar? Permita que os alunos exponham livremente suas ideias e que troquem informações. Nesse momento, seguramente, os conhecimentos de alguns contribuirão para o avanço de todos. Solicite às crianças que reproduzam algumas músicas que seus familiares costumam cantar em diferentes situações: para dormir, em festas, para brincar, por exemplo. Anote todos os nomes. (Sequência Didática do Professor, 2022, p. 3).4

Como podemos compreender, inscrito em processos de significação de padronização curricular, o programa do IQE assumido pelo município de Caruaru produz sentidos de docência vinculados às perspectivas tecnicistas, em que o(a) professor(a) é percepcionado(a) como aquele(a) que não tem, nem lhe compete ter, poder de decisão, precisando de intervenção externa para organizar os seus modos de atuar nos processos de ensino-aprendizagem. Com esse procedimento de controle do que se deve ensinar nas escolas, há a tentativa de fechar a produção de sentidos de práticas curriculares que atendam aos contextos locais e às características dos(as) alunos(as) com que cada professor(a) trabalha. A concepção que parece orientar essa linha de atuação é a de que os fatores contextuais são limitadores da aprendizagem, e por essa razão os(as) professores(as) não precisam ser agentes da decisão curricular, restringindo-se a condições de desenvolvimento profissional docente.

Considerações finais

Tendo como lócus da pesquisa o município de Caruaru e as políticas/práticas curriculares da Educação Básica que nela estão a ocorrer, a análise realizada neste artigo permite-nos concluir que elas foram construídas a partir de discursos de reformas educacionais globais e de políticas nacionais que, por meio da padronização curricular, vêm tentando impossibilitar a produção de respostas curriculares que tenham por base os contextos locais. Nessa perspectiva, o currículo é dimensionado apenas como resultado das políticas, desconsiderando o(a) professor(a) como produtor(a) curricular. Ao mesmo tempo, ao valorizarem apenas o conhecimento relativo às áreas de Português e de Matemática e às avaliações formatadas, as políticas/os programas induzem que a formação e a educação escolar se constituam como preparação para essas provas externas ou finais. Essa é a lógica neoliberal de accountability que restringe os(as) professores a executores(as) do que lhes é prescrito e na base do qual devem passar a organizar e a controlar os processos de ensino-aprendizagem.

Seguindo essa orientação, o município vem promovendo um desenvolvimento profissional docente tecnicista e mecanizado, na contramão dos processos alinhados à construção de uma autonomia contextualizada e interativa que permita aos(às) professores(as) reconfigurarem os sentidos da sua ação profissional. Nessa estratégia, ficam fragilizadas as possibilidades de os(as) professores(as) questionarem a multiplicação de dispositivos de supervisão e de avaliação que reduzem o autocontrole sobre as práticas que concretizam e sobre a sua profissão (NÓVOA, 2002).

Entendendo que o exercício por parte dos(as) professores(as), do seu poder de agência, exige, para além dos esforços individuais, a disponibilidade de recursos e de fatores contextuais favoráveis, reconhecemos que o exterior constitutivo, ao negar essas condições, cria dificuldades a processos de desenvolvimento profissional orientados para o poder de decisão curricular. Entretanto, reconhecendo que as escolas são instituições inteligentes, constituídas por profissionais capazes de diagnosticarem o que é adequado a cada contexto, acreditamos que as impossibilidades que lhes estão a ser criadas convivem com possibilidades construídas pelos(as) próprios(as) professores(as). Nessa posição, inscrevemo-nos na compreensão de que os sentidos sempre podem ser outros, e que, mesmo diante das limitações contextuais, os(as) professores(as) agirão nas brechas da estrutura e do sistema para disputarem, com as políticas, outros sentidos de atuação docente que estimulem o desenvolvimento profissional baseado na autonomia e apoiado na consideração dos saberes docentes que possuem. No entanto, como essas disputas acontecem na produção das práticas/políticas curriculares, envolver-nos-emos em um outro estudo que complemente este.

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1O estudo que originou este artigo contou com apoio do Programa Nacional de Pós-doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PNPD/CAPES), e de Bolsa de Pesquisa Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

2 Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd).

3 Sistema de Avaliação da Educação de Caruaru (SAEC).

4 Material disponibilizado na plataforma do IQE Caruaru somente para os professores.

Recebido: 31 de Julho de 2022; Aceito: 24 de Novembro de 2022

Translated by Janete Bridon. E-mail: deolhonotexto@gmail.com. Proofread by Louise Potter. E-mail: louise.potter@yahoo.co.uk.

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