Introdução
O Programa de Pós-graduação em Educação: Teoria e Prática de Ensino (PPGE-TPEn) da UFPR está completando dez anos em 2023. Surgiu incentivado pelas políticas de pós-graduação em mestrados profissionais no Brasil, conforme reconhece a Portaria n° 80, de 16 de dezembro de 1998, e também como proposta para a formação pedagógica stricto sensu atrelada à pesquisa em educação. Nesse tempo de existência foram duzentos e oito mestres diplomados, entre 2015 e 2022, compondo um repertório diversificado de produções científicas conduzidas por profissionais diretamente envolvidos com fazer e pensar o ensino público a partir da escola.
O artigo intitulado “Mestrado Profissional em Educação: reflexões acerca de uma experiência de formação à luz da autonomia e da profissionalidade docente” (TORALES-CAMPOS; GUÉRIOS, 2017), publicado nesta mesma revista no ano de 2017, antes do final do primeiro quadriênio do Programa, explica como se deram os processos de estruturação e de implementação da proposta do curso, bem como de composição de um corpo docente comprometido com a formação pela pesquisa, conforme anunciado por seus objetivos fundadores.
[…] No caso do Setor de Educação, a formação de professores tem sido um importante eixo de debates e uma responsabilidade assumida com as comunidades e com os sistemas públicos de ensino. A partir da década de 90, com as orientações propostas nas Diretrizes Curriculares Nacionais e nas perspectivas oriundas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/96), o sistema de ensino nacional incorporou uma série de demandas que visam à democratização e universalização da Educação Básica. Este quadro alerta para a necessidade de aprimoramento das políticas de formação de profissionais que atuam na Educação Básica, bem como evidencia a importância de valorização dos mesmos. O Mestrado Profissional em Educação, ao tomar como foco de sua formação a qualificação do trabalho dos profissionais da e para as escolas de Educação Básica, procura reforçar o compromisso institucional da UFPR com o desenvolvimento do Ensino no estado do Paraná, assim como responder às expectativas sociais no que se refere à qualificação do trabalho docente (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ, 2013).
Contextualizando a proposta para o desenvolvimento profissional de professores e de pedagogos vindos da Educação Básica, o artigo mostra a contribuição dos mestrados profissionais em educação que haviam se constituído no Brasil, a serviço do fortalecimento da autonomia docente. Particularmente no caso do PPGE-TPEn, a relação entre pesquisa e ensino tornar-se-ia central, em razão da compreensão sobre quem é o sujeito docente que pesquisa, como formá-lo pesquisador, e qual conhecimento científico resulta desta relação.
Com o passar dos anos, os indicadores da avaliação nacional conduzidos no âmbito da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) consolidavam-no como bem pontuado (nota 4), e assim se mantiveram, podendo ser interpretados como sinalizadores da coerência dos objetivos fundadores, traduzidos na excelência da proposta do curso, e colocando as pesquisas produzidas no PPGE-TPEn em evidência na cena nacional, ao lado de outras instituições de ensino superior. Desse modo, somando-se às iniciativas repercutidas junto aos profissionais da educação básica do país, tal como o Programa de Pós-graduação profissional em Gestão e Avaliação da Educação Pública, da Universidade de Juiz de Fora (MG), primeiro na área da Educação no Brasil, e o Fórum dos Mestrados Profissionais em Educação (FOMPE), ativo desde 2016. Como resultado das iniciativas, difundidas no território nacional, a questão da formação acadêmico-profissional de professores e pedagogos, por vezes evocada como formação continuada (lato sensu ou por estratégias de capacitação ofertada pelos sistemas de ensino), passou a ser também pautada no âmbito da pesquisa em educação stricto sensu.
Atualmente o PPGE-TPEn conta com um corpo docente de 28 orientadores, credenciados nas duas Linhas instituídas, “Teorias e práticas de ensino na educação básica” e “Formação da docência e fundamentos da prática educativa”. Parte do percurso das pesquisas conduzidas no tempo de existência do Programa está sendo compilado nos formatos impresso e digital, em livro intitulado “Revisitando caminhos na pesquisa de educação básica: 10 anos do mestrado profissional em educação da UFPR” (BAIERSDORF; POOLI, 2023). Este material reúne amostragem significativa dos temas até aqui investigados, recortada do acervo de dissertações concluídas e publicizadas após aprovação das bancas examinadoras.
De um modo geral, essas pesquisas se reportam ao contexto atual de ensino no país e às suas implicações teórico-práticas, sociais, históricas, culturais e político-ideológicas. Há vários trabalhos dedicados à criatividade e à inovação dos processos de ensino por meio do estudo das práticas escolares. A formação inicial e continuada de professores da educação básica; a instrumentalização das políticas educativas nas escolas; as práticas, o cotidiano escolar, os contextos de educação formal e não formal no âmbito da instituição educativa; os espaços, os tempos e os significados do processo educativo; a construção de instrumentos e materiais didáticos; são exemplos de temáticas recorrentes nas pesquisas conduzidas. Além disso, há um conjunto de pesquisas voltadas aos fundamentos teóricos e práticos para o exercício da docência na contemporaneidade, levando em conta a existência de diferentes perspectivas e correntes teóricas, e buscando compreender o papel do educador e o espaço da sala de aula numa perspectiva histórico-filosófica-cultural.
O acervo conquistado demonstra o compromisso com a formação de professores e de pedagogos das escolas e, neste momento endossa o Programa a analisar como ampliar sua própria abrangência na Educação Básica, pois está em discussão a gestão pedagógica das instituições e nos sistemas de ensino, possível de se tornar objetos de pesquisas, ainda sob o olhar da docência, mas em parte modificando o perfil dos egressos, dado que aqueles que trabalham na organização e gestão dos sistemas de educação pública passariam a ser também considerados possíveis pesquisadores no Programa.
O propósito do PPGE-TPEn continua a ser afirmar-se como espaço formativo para e com a escola, em articulação com espaços educativos diversificados e, com essa vocação, presente desde a sua implementação, e a partir da mobilização de seus quadros de técnicos e de docentes pesquisadores, continuar a contribuir para que o Setor de Educação da UFPR participe ativamente do debate regional e nacional sobre a valorização do magistério, na sua relação com a qualidade da Educação Básica.
Teoria e prática como desafio de pesquisa
Hoje reafirmamos o compromisso social da Universidade para com a formação de professores e pedagogos da Educação Básica, e de forma articulada à excelência pedagógica em cada uma das suas etapas, níveis e modalidades. Endossamos a formação pela pesquisa, considerada uma conquista do magistério imbricada no reconhecimento do direito à escolarização da população.
Contudo não se trata de um enfrentamento fácil, seja do ponto de vista da articulação das políticas de valorização do magistério, mas também no que se refere a como pesquisas acadêmicas, como aquelas incentivadas nos programas de mestrado profissional em educação, podem contribuir para que a formação do professor pesquisador esteja ao encontro das demandas da prática escolar e da gestão dos processos pedagógicos nas escolas, isso com base em como operam os sistemas de ensino e também considerando o trabalho educativo em espaços não escolares e mesmo informais.
Sobre a valorização do magistério incidem variáveis ligadas às políticas educacionais capazes de criar ou de obstruir as condições concretas do fazer pesquisa na e com a Educação Básica, principalmente quando este sujeito que pesquisa é alguém inserido na prática da docência. Para esse pesquisador é preciso financiamento, bolsas de estudo, circularidade no meio científico através de publicações e participação em encontros acadêmicos, entre outros incentivos, sobretudo quando do ingresso destes profissionais em processos formativos de mais longo prazo como mestrados e doutorados.
Ao lado disso, há que se considerar a complexidade de um fazer pesquisa em educação voltando-se para a prática pedagógica. Essa questão está colocada na literatura pedagógica há algumas décadas (APPLE, 1997; CONTRERAS, 2002; FRANCO, 2003; VIDAL, 2009; NOGUERA-RAMÍREZ, 2011), no Brasil e no mundo, tal como discute Lüdke (2009), ao se reportar às possibilidades para a formação do professor pesquisador e a contribuição das Universidades,
O reconhecimento da insuficiência do conceito acadêmico de pesquisa não tem sido bastante para encontrar um substituto mais abrangente para incluir outras formas de fazer pesquisa, como algumas das efetuadas por professores da educação básica, não de maneira única, nem exclusiva. Queremos dizer com isso que há docentes deste nível de ensino efetuando pesquisas classificadas como de tipo acadêmico, com possibilidade de publicação em periódicos de primeiro nível, de circulação internacional, como pudemos registrar em nosso estudo, embora em alguns casos. O que gostaríamos de enfatizar é a possibilidade efetiva de que esse tipo de pesquisa seja desenvolvido por professores da escola básica, ainda que não seja o mais frequente, nem o mais indicado para enfrentar os problemas dessa escola, como declararam os próprios professores (LÜDKE, 2009, p. 17).
O trecho acima aponta para formas de relacionar pesquisa e ensino, entre elas a pesquisa do tipo acadêmica, como também convida pensar a relação entre a formação docente e a melhoria da qualidade educacional, não por uma lógica de causa-efeito a qual poderia equivocadamente culpabilizar ou idealizar o alcance individual da docência, mas pondo em evidência os fenômenos educacionais sob múltiplas perspectivas e estratégias de ação educativa. São propostas ainda não amplamente concretizadas na esfera política, como também necessariamente abertas ao debate acadêmico e, no que se refere à formação pela pesquisa, trata-se de objetivo sempre revisto, uma vez que a cada nova geração de professores e pedagogas a demanda educacional se recompõe segundo novas e antigas configurações, relativas ao como se prestigia o magistério e o que se espera dele; e ainda sobre quais saberes mobilizar em matéria de abrir caminhos para as ciências da e para a educação.
Politicamente a questão da qualidade educacional remete ao modo como governos concebem o trabalho docente, não raro reduzindo-o ao caráter instrumental do exercício da docência, ficando a formação docente submetida à modelagem da prática pedagógica, segundo discurso especializado ou regulatório externo a escola, perspectiva para a qual a proposta de pesquisa stricto sensu seria pouco incentivada.
Risco similar se dá pelo viés academicista, subordinado à repercussão do regramento dos programas de pós-graduação, sem distinção de especificidades, por exemplo, o baixo respaldo financeiro de propostas formativas que almejam alcançar potenciais professores pesquisadores de lugares distantes ou em sistemas de ensino de pouco incentivo às condições para este tipo de investimento em pesquisa. Ainda há um caminho a ser percorrido para a manutenção e autogestão de programas de mestrado profissional no Brasil.
Há que se considerar que o tema remete a embates implicados na própria trajetória de profissionalização do magistério, onde a formação acadêmica profissional, na graduação ou em serviço, vem demandando a perspectiva da pesquisa, circunstância necessariamente recolocada para a pós-graduação. Isso segundo a expectativa de um ajustamento possível, para o qual os acúmulos teóricos e práticos da pesquisa educacional colocariam a docência num locus necessário ao pensar a própria atividade profissional de um modo não aligeirado, isto é, sustentado na permanente formação pela pesquisa.
Dessa mirada, com atenção sobre como os sistemas de ensino articulam suas proposições, o mestrado profissional se abre ao atendimento da demanda por formação, de onde a pesquisa educacional se torna necessária para a consolidação de sistemáticas de estudos segundo perspectivas investigativas geradoras de questionamentos e dúvidas sobre o rumo de tais investidas, e ainda comprometendo-se em abranger, nessa produção de conhecimento, o notório saber dos profissionais da educação básica através de suas práticas profissionais. Possibilidades para o pensar livre e plural, na academia buscado e direcionado ao magistério, e de acordo com processos formativos voltados à pesquisa e à prática educativa.
Daí que, não por acaso, a questão da relação entre a teoria e a prática seja uma temática recorrente, relativa ao direito à participação docente na produção do conhecimento científico, um dos compromissos primordiais de um mestrado profissional em educação, ciente de seu papel formativo e afirmativo da docência e de consolidação da Pedagogia enquanto Ciência da Educação (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011). Para tanto, parte-se da admissibilidade de que a pesquisa é constitutiva da prática docente e, por isso, requer os meios para que a mesma seja utilizada por um conjunto maior de profissionais envolvidos com o cotidiano da educação básica, sobretudo valorizando o lugar da pesquisa na e com a escola, junto dos envolvidos com a prática pedagógica.
Figurações de um Mestrado Profissional em Educação
A organização de um mestrado profissional em educação pressupõe uma definição das suas especificidades em relação aos mestrados acadêmicos nessa área. Em termos gerais, o mestrado acadêmico realiza pesquisas e análises com um caráter mais amplo e especulativo, erudito e teórico centrado em investigações sobre as relações das teorias das ciências da educação e seus problemas epistemológicos, algumas vezes relacionados com as práticas específicas de sala de aula e outras não. O mestrado profissional tem duas preocupações muito específicas: uma vinculada à apresentação de respostas a problemas políticos, didático-metodológicos e pedagógicos, específicos do cotidiano das escolas; e a outra é caracterizada pela vinculação com a formação de professores e pedagogos que atuam diretamente nos tempos e espaços das escolas públicas. Embora os mestrados acadêmicos e profissionais não tenham diferenças significativas que os tornem antagônicos, é necessário ressaltar a especificidade que os caracterizam como oportunidade, e a viabilidade da formação acadêmico/prática.
O PPGE-TPEn da UFPR atualmente tem como objetivo central promover a formação de profissionais da Educação Básica no âmbito da pós-graduação stricto sensu, em especial, em relação ao que se refere à teoria e à prática de ensino. Mais especificamente pretende: a) promover processo de formação complementar em uma perspectiva crítica e reflexiva necessária à atuação do professor na Educação Básica; b) relacionar os conhecimentos pedagógicos e experiências sociais às estratégias de resolução de problemas do cotidiano escolar; c) articular teorias e práticas de ensino orientadas pelos objetivos da Educação Básica; d) estimular a autonomia do professor, fornecendo-lhe instrumentos para busca por conhecimento e desenvolvimento profissional de forma permanente; e) incentivar a pesquisa, a produção de materiais e práticas pedagógicas diferenciadas para o enriquecimento do processo de ensino e aprendizagem em sua área de atuação na escola. Como se pode constatar, há um direcionamento com as atividades concretas com o dia a dia, com as rotinas e com os procedimentos e hábitos da organização do trabalho pedagógico.
O mestrado profissional tem uma particularidade que é a formação de professores e pedagogos objetivando a resolução de problemas e impasses da organização do trabalho pedagógico do cotidiano das escolas públicas. A premissa que envolve essa formação considera que todo fazer é pensar; como bem argumenta Richard Sennett (2009, p.64), “quando a cabeça é separada da mão, a consequência é uma deterioração mental”.
Se todo fazer é pensar, a problematização pode girar em torno de como têm sido pensadas as questões que envolvem as interdependências entre teoria e prática, no desenvolvimento das pedagogias escolares, e sobre como encontrar outros modos de abordar a formação e pós-graduação de professores de escolas públicas, para além das formações utilizadas pelos processos convencionais em serviço (cursos, palestras, oficinas etc.). Para isso, é necessário considerar que
No campo da formação docente, por exemplo, arrisco-me a afirmar que dentre as questões tidas como mais problemáticas está a discussão sobre as relações entre a teoria e a prática. Nesse caso, dois polos são facilmente identificáveis. De um lado, colocam-se os que defendem a necessidade de uma prévia e sólida formação teórica nos assim chamados fundamentos da Educação - como a Psicologia, a História, a Filosofia e a Sociologia da Educação. Para esses pedagogos, tal formação prévia criaria as condições para que os futuros professores e professoras pudessem compreender melhor e até modificar as suas respectivas práticas. Para esses, a teoria precede a prática. Chamemo-los de “teoristas”. De outro lado, colocam-se os pedagogos que argumentam a favor de uma cada vez mais precoce imersão nas práticas docentes, pois seria a partir desse mundo das práticas - um mundo que no vocabulário platônico se chama de “sensível” - que os futuros professores e professoras poderiam ou deveriam, depois, compreender melhor os fundamentos da Educação. Para esses, o estudo antecipado da Psicologia, História, Filosofia e Sociologia da Educação não iria além de um estudo livresco, desconectado com aquilo que se costuma chamar de realidade ou, até mesmo, de verdadeira realidade. Muitos deles chegam a afirmar que qualquer teoria só tem valor se é retirada a partir do concreto de nossas práticas imediatas. Para esses, a prática precede a teoria. Talvez valha aqui o neologismo “praticistas” (VEIGA-NETO, 2015, p. 115-116).
As discussões recorrentes sobre as possíveis relações entre teoria e prática fazem parte do discurso pedagógico e são principalmente abordadas pelos professores que defendem os processos de vinculação entre teoria e prática, ou da práxis, para a excelência do fazer pedagógico. Sem desconhecer implicações dessas discussões acadêmicas no modo como se apresentam programas de mestrado profissional como o PPGE-TPEn, pensamos ser possível analisar esse problema com outra perspectiva, tentando avançar por outra formulação.
Gilles Deleuze e Michel Foucault, em uma entrevista, fazem uma interessante análise sobre as questões que envolvem teoria e prática (FOUCAULT, 2000, p. 37). Deleuze interpreta que se concebia a prática e a teoria como uma relação de causa e consequência; uma teoria seria uma formulação originária de determinadas práticas, e essas seriam modificadas ou reafirmadas com base em uma teoria específica, e suas relações eram concebidas como um processo de totalização, num sentido ou noutro. Considerava que essa questão poderia ser colocada de outra maneira: teoria e prática não têm uma unidade interna e explicativa que dê conta da totalidade dos acontecimentos. Essa relação é muito parcial e fragmentada, pois em geral se refere a um pequeno domínio de um determinado local, que pode ou não ser aplicada a outros domínios. A aplicação nunca é direta e por semelhança, já que encontra obstáculos, muros e tropeços que a fazem produzir outros discursos, muitas vezes dissonantes e contraditórios. Para ele, a “prática é um conjunto de relés de um ponto teórico a outro, e a teoria, um relé de uma prática a outra” (FOUCAULT, 2003, p. 37); as teorias sempre encontrariam barreiras e as práticas seriam necessárias para romper esses anteparos; a teoria não tem uma prática correspondente, não tem uma aplicação direta que a expresse. A teoria é sempre uma prática e como tal é um lugar de experiências, onde alguma coisa está acontecendo, onde o poder está se apresentando, onde determinadas vontades estão se insinuando. A prática é o visível, o manifesto, o conspícuo onde as teorias se esgueiram em busca de explicações e correspondentes lutas por imposição de sentido.
Teoria e prática então têm a ver com o conhecimento empírico e auxiliam na construção do discurso científico. Michael Foucault (2000, p. 115) analisa a doxologia (descrição dos fatos de opinião) e a ilusão doxológica (quando “supõe que a opinião constitui o núcleo, o foco central a partir do qual se desdobra todo o conjunto de enunciados científicos”) preocupado com o simplismo que os epistemólogos e historiadores da ciência tratavam o conhecimento empírico, simplesmente considerando que
[…] essas disciplinas eram apenas misturas de verdades e erros; nesses conhecimentos tão imprecisos, o pensamento das pessoas, seus preconceitos, os postulados dos quais eles partiam, seus hábitos mentais, as influências que sofriam, as imagens que elas tinham em suas cabeças, seus devaneios, tudo isso lhes impedia de ter acesso à verdade. [...] Tal descrição me embaraçava um pouco por diversas razões. Inicialmente porque, na vida histórica real dos homens, essas famosas ciências empíricas, que os historiadores e os epistemólogos negligenciam, têm uma importância colossal (FOUCAULT, 2000, p. 150-151).
Para o filósofo, as ciências empíricas são mais do que ciências teóricas ligadas a práticas sociais. Elas têm algo a dizer sobre como fazemos as coisas, com que objetivo as realizamos e que articulações discursivas elas produzem para a consolidação de um certo saber específico e, nesse pensar, o mestrado profissional se aproxima muito, nos seus objetivos, de um campo acadêmico que tenta construir saberes a partir de práticas educativas.
As práticas precisam deixar de ser interpretadas simplesmente como aquilo que não é teoria, ou como modos concretos de realizar alguma coisa, tocar, sentir, modificar. As práticas na educação podem ser pensadas como “o domínio tanto daquilo a ser descrito, analisado e problematizado quanto, ao mesmo tempo, o domínio das próprias descrições, análises e problematizações que são colocadas em movimento” (VEIGA-NETO, 2015, p. 133). Descrição, análise e problematização se referem a coisas concretas, que podem ser pensadas em atos de ocorrência, quando efetivamente estamos realizando algo com intenção formativa.
Para compreender melhor esse conceito de prática também é possível solicitar ajuda de Michel Foucault, quando analisa as práticas discursivas. Ele parte da premissa de que
[...] os tipos de práticas não são apenas comandados pela instituição, prescritos pela ideologia ou guiados pelas circunstâncias - seja qual for o papel de uns e de outros -, mas que eles têm, até certo ponto, sua própria regularidade, sua lógica, sua estratégia, sua evidência, sua “razão”. Trata-se de fazer a análise de um “regime de práticas” - as práticas sendo consideradas como o lugar de encadeamento do que se diz e do que se faz, das regras que se impõem e das razões que se dão, dos projetos e das evidências. Analisar “regimes de práticas” é analisar programações de conduta que têm, ao mesmo tempo, efeitos de prescrição em relação ao que se deve fazer (efeitos de “jurisdição”) e efeitos de codificação em relação ao que se deve saber (efeitos de “veridicidade”) (FOUCAULT, 2003, p. 338).
Não está em jogo aqui se são as teorias que produzem as práticas ou são as práticas que produzem as teorias. São as condutas que se manifestam para dizer que algo está sendo pensado dentro de determinadas figurações, indicando que regras estão em processo de estabilização constituindo verdades. A escola é um lugar onde um regime de práticas se desenha como hábito, consolidando modos de ser e de agir que são muito difíceis de se modificar porque
Tudo o que é habitual tece a nossa volta uma rede de teias de aranha cada vez mais firme; e logo percebemos que os fios se tornam cordas e que nós nos achamos no meio, como uma aranha que ali ficou presa e tem de se alimentar do próprio sangue. Eis por que o espírito livre odeia todos os hábitos e regras, tudo o que é duradouro e definitivo, eis por que sempre torna a romper, dolorosamente, a rede em torno de si; embora sofra, em consequência disso, feridas inúmeras, pequenas e grandes - pois esses fios ele tem que arrancar de si mesmo, de seu corpo, de sua alma (NIETZSCHE, 2000, p. 232).
É necessário pensar de outra maneira, de encontrar outros meios de interpretação e orientação que se distanciem consideravelmente das teorias como expressões da verdade, e de práticas como simples aplicação de técnicas. As discussões sobre uma epistemologia da educação ainda dependem muito da demarcação de um estatuto científico, que sistematize alguma capacidade de orientação efetiva para as atividades de ensino e aprendizagem nas escolas. As ciências da educação poderiam utilizar outra estratégia a qual
consiste em operar uma interpretação, uma leitura de um certo real, de tal modo que, de um lado, essa interpretação possa produzir efeitos de verdade e que, do outro, esses efeitos de verdade possam tomar-se instrumentos no seio de lutas possíveis. Dizer a verdade para que ela seja atacável. Decifrar uma camada de realidade de maneira tal que dela surjam as linhas de força e de fragilidade, os pontos de resistência e os pontos de ataque possíveis, as vias traçadas e os atalhos (FOUCAULT, 2003, p.278).
Não se trata de fazer uma crítica ao estatuto científico hegemônico da educação para propor um novo paradigma de verdade, mas sim pensar em novas interpretações sobre as figurações da vida e seus possíveis efeitos nas instituições e nas pessoas. O mestrado profissional está voltado exatamente para esse objetivo: pensar a realidade como possibilidade de construir novas pedagogias a partir de outras interpretações das práticas. O mestrado profissional importa sempre um talvez, um talvez perigoso, como diria Nietzsche (2015, p. 15), que assume um papel de filósofo (pedagogo) pois
[...] é o homem que vivencia, vê, ouve, suspeita, espera e sonha constantemente coisas extraordinárias; que é golpeado por seus próprios pensamentos como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, como uma espécie sua de acontecimentos e relâmpagos; que talvez ele próprio seja uma tempestade prenhe de novos relâmpagos; um homem fatídico, em torno do qual há sempre um rugido, um rosnado, um ganido assustador que se aproxima (NIETZSCHE, 2015, p. 277).
Corroborando tal debate, novas perspectivas estão sendo buscadas também no PPGE-TPEn, em muito atreladas às trajetórias da formação do magistério no Brasil, e que hoje também se referem a questões não resolvidas relativas ao como se pensa a relação entre a formação docente e a qualidade da educação básica brasileira, ou como a teoria e a prática poderiam transpor a lógica de poder hierárquica, na qual análises macrossociais mobilizam teorias em detrimento da prática e de um modo fragmentário se impõem ao saber da docência.
Novas perspectivas
Sob a ótica não reducionista da relação teoria e prática, pelo argumento da impossibilidade de uma ser consequência da outra, de uma ser o espelho para a outra, e mesmo por admitir alguma complementaridade ou causalidade entre elas, ambas ocupam espaços acadêmicos e escolares diferentes, construindo seus próprios caminhos, trilhas, paradas (ou fugas), suas estratégias de poder saber.
Interpretamos a pesquisa como um lugar a ser ocupado também por aqueles que estão na prática profissional (APPLE, 1997). Isso requer uma formação não reduzida à ideia de aplicação de saberes instrumentais ou submetida às lógicas de causa-efeito, comumente presentes no discurso político que conforma a burocracia escolar ao controle externo ou ainda segundo o viés academicista que subestima os saberes advindos da perspectiva da prática.
Atualmente, identificamos tais lógicas equivocadas em propostas para a formação continuada nos sistemas de ensino ou mesmo sob os efeitos de reformas curriculares pouco afeitas ao legítimo espaço de autonomia pedagógica nas escolas. São ofertas ligadas à ideia de capacitação, manejo de técnicas didáticas, atendimento a demandas imediatas, as quais concebem como contraproducentes tempos e espaços requeridos por processos de mais longo prazo. Por essas lógicas formativas se intensifica a desvalorização da pesquisa como qualidade da docência, nesse engodo destituindo os sujeitos do direito de pensar sobre o que se faz e desse lugar participar da produção do saber científico. O avanço de tais propostas inviabiliza e invisibiliza investidas docentes na pesquisa, o que compromete o alcance de programas como o PPGE-TPEn na medida em que os espaços de sistematização de saberes relativos às docências são cerceados.
Com isso não se está aludindo a condições ideais para somente então promover a pesquisa na docência, na escola ou em territórios educativos. Essa não tem sido a forma de afirmação das Pedagogias, dada a tenacidade dos processos de conhecimento, promovidos pelas margens dos ordenamentos existentes, cientes de que não raras as vezes por manobras bastante estreitas. Contudo a questão é operar no limite da qualidade de pesquisador, praticamente subsumida em processos político-pedagógicos intencionalmente produzidos como barreiras à autonomia intelectual docente e do próprio coletivo escolar.
Daí apontarmos a necessidade de estender o alcance do mestrado profissional para a gestão da Educação Básica, compreendida como relativa aos processos formativos e de produção do conhecimento escolar, por isso mesmo problematizados segundo movimento de abertura à participação de outros agentes envolvidos na prática pedagógica - secretários de escolas, diretores, outros membros de equipes pedagógico-diretivas, de secretarias de educação e afins -, os quais possam se somar ao domínio teórico e prático da pesquisa em educação. Com esse deslocamento, estamos buscando ampliar a sua área de abrangência principalmente no que se refere às questões que envolvem a gestão da educação.
Embora os ambientes escolares ainda estejam marcados por uma centralidade das discussões pedagógicas e didático-metodológicas, não é mais possível tratar as questões políticas e de gestão como instâncias separadas ou complementares. O debate intensificado sobre ambas está demandando uma formação de profissionais da educação especializados e qualificados para atuarem na gestão das ações, coordenação de atividades e processos e também na orientação quanto ao planejamento, execução e controle de recursos. As políticas na educação não dizem mais respeito somente aos marcos gestores dos ministérios, das secretarias ou outros órgãos de governo, mas estão estreitamente ligados aos espaços locais.
As políticas educativas acontecem efetivamente numa relação de práticas em territórios específicos como as escolas, as universidades, os institutos, as organizações não governamentais etc. Essa relação com forte presença local exige que as políticas públicas também tenham uma capacidade de avanço em diferentes realidades sociais e institucionais, não se tratando simplesmente de arranjos administrativos ou gerenciais de tipo burocrático, mas de abrir perspectivas institucionais para novas práticas e programas que melhorem resultados, fluxos, participações e situações de aprendizagem social.
Um grande desafio da educação no Brasil consiste em implementar processos de descentralização dos recursos e meios para a gestão local. A centralização dos recursos impede que as escolas possam construir processos de responsabilização dos atores que tenham compromisso com uma educação de qualidade, atendendo aos anseios das comunidades. De nada adianta elaborar projetos político-pedagógicos que proponham transformações no modo de condução dos processos educativos se os recursos para esse fim não podem ser administrados localmente pelas escolas. É muito difícil que as equipes diretivas e pedagógicas se aventurem em novos desafios se estiverem financeiramente submetidas aos gestores de outras instâncias mais distantes, que pouco compreendem as questões locais.
Junto com nossos orientandos e suas investigações podemos avaliar empiricamente a dificuldade das escolas em propor novas metodologias e didáticas; atividades extracurriculares; desenvolver oficinas e ateliês pedagógicos; comprar materiais e livros independente de burocracias inócuas; realizar reformas e pequenas construções; selecionar docentes e servidores segundo necessidades especificas; elaborar e adquirir os produtos do cardápio dos estudantes; autonomia para interpretação das bases curriculares nacionais para construção de currículos locais e criação de mecanismos de responsabilidade coletiva pela gestão da escola envolvendo toda a comunidade mais próxima, que convive diariamente com seus problemas e perspectivas. Evidente que todas essas ações implicam tanto uma responsabilização local como uma supervisão dos centros de financiamento e controle, mas sem que isso implique um excesso de burocratização que impeça que as escolas possam desenvolver autonomamente seus destinos.
O mestrado profissional, pelas suas características, pode colaborar intensamente com a gestão principalmente na identificação de problemas, com o rompimento de resistências a novos programas, com a dinamização de projetos políticos pluridimensionais para deslocar os agentes educativos de seus tradicionais centros de atuação que dificultam tomadas de decisões com performances destradicionalizadas.
Apontamentos (in)conclusivos
Iniciamos esse artigo com a ideia de revisitar o Mestrado Profissional em Educação da UFPR e movidos pela provocação de tecer alguns apontamentos para mais dez anos de existência. Partimos da compreensão de que pesquisar é direito constitutivo da prática docente, além de ser também prerrogativa do trabalho pedagógico, e isso nos desafia como Programa na formação stricto sensu, desde a concepção fundadora do PPGE-TPEn até as atuais linhas investigativas com vistas a novas perspectivas de futuro. As pesquisas produzidas até aqui reafirmam sua finalidade primordial, mantendo-o vinculado à conjuntura nacional e regional pela qual se estruturaram os mestrados profissionais no Brasil, a partir do final da década de 1990, segundo o reconhecimento (ainda que formal) da pesquisa como componente central da formação inicial e continuada de professores e de pedagogos. O momento atual exige consolidar tal empreendimento demarcando processos menos centralizadores e controladores da gestão do conhecimento na escola, bem como uma abertura para outros espaços sociais onde a questão da construção do conhecimento se coloca em relação à organização do trabalho educativo com processos formativos diversificados.
Nesse artigo, sustentamos a compreensão de que fazer é pensar. Deste ponto reivindicamos a abertura para práticas de pesquisa em educação, implicadas no pensar a atividade pedagógica em profundidade e com vistas a interferir no modo de fazer educação ou de produzir o conhecimento escolar. Por essa via debatemos a relação teoria e prática problematizando concepções já consensualizadas, mas também propondo outras maneiras de pensar a pesquisa em educação. Perguntamos como e por que as coisas se dão desta ou daquela forma, e assim trilhamos um caminho inconcluso, por essa via formativo e investigativo.
Parafraseando Nietzsche (2000, p. 161), o compromisso do mestrado profissional com a pesquisa em educação almeja exercitar a capacidade de praticar com rigor, provocando resultados ínfimos como “apenas gotas no mar das coisas dignas de saber”, mas pelas quais valerá ser homem e mulher de ciência, professores e pedagogos pesquisadores da educação. Uma arquitetura que instala uma prática da pesquisa inclusiva dos artífices, sempre envolvidos com o pensar sobre e enquanto realizam o próprio ofício.
Vislumbramos novas perspectivas para a formação pela pesquisa, de um modo sensível, metódico e profundo, e em oposição a um tempo de resultados imediatos, mensuráveis, modelados, por vezes inalcançáveis porquanto idealizados e aleijados da reflexão necessária ao princípio investigativo como componente da prática educativa. Por fim, apontamos para a gestão educacional dos processos formativos engendrados na escola e nos sistemas de ensino, o que significa fazer e pensar pesquisas e práticas que possibilitem o exercício das docências com profissionalismo, qualidade, dignidade dos artífices da modernidade como mestres em educação.