Introdução
O debate acerca da Reforma do Ensino Médio brasileiro, assim como dos elementos estruturantes do Programa Novos Caminhos, foi e tem sido estratégico no campo das políticas educacionais, tendo em vista seu papel na formação de sujeitos e de trabalhadores demandados pela sociedade capitalista. Dessa maneira, este artigo tem como propósito analisar o avanço das políticas conservadoras de educação no Ensino Médio brasileiro, que se expressam por meio da Reforma do Ensino Médio e do Programa Novos Caminhos. Em termos metodológicos, elegemos a abordagem qualitativa e, no tocante aos procedimentos de pesquisa, utilizamo-nos de pesquisa bibliográfica e análise documental.
Movimentamo-nos procurando apreender como essas políticas se materializam, o que elas expressam e como transcendem o caráter específico, buscando compreender “[...] o significado do projeto social do Estado como um todo e as contradições gerais do movimento histórico” (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2011, p. 9). A formação dos jovens, cujas características e especificidades são requeridas pelo mercado e pelo capital, historicamente, contrapõe-se aos interesses da classe trabalhadora, pois representam projetos societários em disputa. Tendo clareza desse aspecto, organizamos este texto apresentando, em primeiro lugar, uma análise da Lei Nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 e, em seguida, do Programa Novos Caminhos.
No que diz respeito à Reforma do Ensino Médio, observamos que ela se deu sob a alegação de que seus indicadores de qualidade, medidos por exames de larga escala, são pífios e que o Ensino Médio não correspondia à expectativa dos jovens. Na esteira dessa discussão, uma Comissão Especial do Congresso Nacional elaborou um relatório que ensejou no Projeto de Lei (PL) Nº 6.840/2013 e apresentou a proposta inicial de reforma educacional (BRASIL, 2013). Formalmente abandonado pouco tempo depois, por ter sido parcialmente derrotado por movimentos de resistência, esse PL representava a gestação de um projeto que nasceria três anos depois. No ano de 2016, após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, “[...] a quebra da institucionalidade democrática foi o estopim para que um conjunto de medidas tão ilegítimas quanto o governo que assumiu viessem à tona” (SILVA, 2018, p. 41), produzindo as condições políticas necessárias para a retomada da onda conservadora nas políticas educacionais, alicerçadas na ideologia neoliberal e em perspectivas antidemocráticas, excludentes e comprometidas com o fortalecimento da dualidade estrutural na formação dos jovens brasileiros.
Encharcado dessa mesma lógica, em outubro de 2019, é apresentado um Programa de fomento à oferta do itinerário de formação técnica e profissional: é o Programa Novos Caminhos. De acordo com o Ministério da Educação (MEC), um dos objetivos é incentivar os sistemas estaduais de ensino a ofertarem o itinerário de formação profissional, para aproximar a formação dos jovens ao setor produtivo.
O Programa estrutura-se em três eixos: 1) Gestão e Resultados; 2) Articulação e Fortalecimento; e 3) Inovação e Empreendedorismo. Formulado pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica, o Programa Novos Caminhos promete gerar emprego, renda e capacitação, atrelando a oferta educacional e a formação dos jovens ao setor produtivo (BRASIL, 2019a). Reduzindo a formação profissional ao mero adestramento às demandas do mercado e do capital, como já visto em outros contextos em que as ondas conservadoras deram o tom das políticas educacionais, exploraremos cada eixo e frente de atuação do Programa que, assim como a Reforma, provocada pela Lei Nº 13.415/2017, representa retrocessos incalculáveis ao direito à educação de qualidade e à formação humana integral.
A partir dessas considerações iniciais, as reflexões acerca da Reforma do Ensino Médio e do Programa Novos Caminhos têm como propósito desnudar os principais aspectos que as envolvem a fim de subsidiar discussões sobre o manifesto caráter conservador dessas políticas e seu alinhamento perverso com o projeto societário capitalista.
A reforma do Ensino Médio: Educação Básica que não garante a base
A Reforma do Ensino Médio em discussão, desde, pelo menos, 2013, ancorou-se na alegação de que o Ensino Médio oferecido não dizia respeito às expectativas dos jovens e que apresentava resultados que não correspondiam ao crescimento socioeconômico do país (SILVA; KRAWCZYK, 2016). Tal justificativa, em consonância com proposições de Organismos Internacionais - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial - centrou-se na tese de que a formação escolar atual não condiz com as expectativas da sociedade em geral, não é atraente ao jovem e não se relaciona com a “sociedade do conhecimento” (MOTTA; LEHER; GAWRYSZEWSKI, 2018, p. 317).
Em 2016, após articulações empresariais e parlamentares, com forte influência midiática, que possibilitaram a ascensão de Michel Temer ao cargo de Chefe do Executivo, uma Medida Provisória (MPV) foi emitida 22 dias após sua posse. De maneira atropelada e antidemocrática, a MPV Nº 746 foi “[...] a primeira medida de alto impacto social” (SILVA, 2018, p. 42) que, com força de lei, instituiu a Reforma do Ensino Médio. A principal alegação do Governo ancorava-se na justificação de que “[...] era preciso tornar o currículo mais atraente aos jovens e mais alinhado às vocações de cada um. No entanto, as mudanças foram recebidas com críticas por setores historicamente ligados educação” (CHAGAS; LUCE, 2020, p. 3).
Apesar dos movimentos de resistência à reformulação do Ensino Médio pela comunidade acadêmica, particularmente por meio de associações de pesquisadores em educação e de sindicatos de professores, mas, sobretudo, de estudantes secundaristas por meio de ocupações em universidades e escolas, não foi possível conter a Reforma do Ensino Médio que se alinha fortemente às políticas conservadoras. Assim, em fevereiro de 2017, a MPV Nº 746/2016 foi convertida na Lei Nº 13.415/2017, apresentando poucas mudanças em relação ao texto proposto pelo ato que a criou e que “[...] favoreceram ainda mais o setor privado e trazem maiores prejuízos para estudantes da escola pública” (SILVA, 2018, p. 44).
No tocante ao conteúdo e à forma, a Lei Nº 13.415/2017 pode ser vista como uma “[...] reforma contra os filhos da classe trabalhadora, negando-lhes o conhecimento necessário ao trabalho complexo e à autonomia de pensamento para lutar por seus direitos” (FRIGOTTO; MOTTA, 2017, p. 357). A Reforma do Ensino Médio modificou, substancialmente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), quando trata da organização curricular da última etapa da Educação Básica, e de financiamento, representado pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Soma-se a isso, ainda, “[...] a imposição de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), sem qualquer envolvimento de escolas e educadores/as, [e] a iniciativa de produção de novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, igualmente sem qualquer debate com a sociedade” (SILVA, 2018, p. 41).
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), impostas às escolas e aos seus professores para implementação, expressam a clara finalidade de impactar diretamente sobre um perfil de formação. Essa formação requerida, ancorada em diretrizes curriculares estruturadas em competências e habilidades, inspira-se na teoria do capital humano e revela o fortalecimento de uma política conservadora para determinam, em termos qualitativos, a força de trabalho necessária para atender às demandas do sistema produtivo capitalista. Uma reforma educacional, inspirada nessa concepção, revela-se comprometida com uma profissionalização precária dos jovens. Traz, portanto, em suas entranhas, que “[...] a ideia de investimento em capital humano como motor de desenvolvimento econômico é uma determinada concepção de formação humana nos marcos restritos das necessidades de mercado” (FRIGOTTO; MOTTA, 2017, p. 358).
Carregando consigo essa concepção, os currículos das escolas de Ensino Médio serão compostos pela BNCC e por itinerários formativos, que serão organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme relevância e possibilidades dos sistemas de ensino (BRASIL, 2017). Com a nova redação dada pela Lei Nº 13.415/2017, essa organização abrangerá as seguintes áreas do conhecimento: Linguagens e suas tecnologias; Matemática e suas tecnologias; Ciências da Natureza e suas tecnologias; e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas com seus respectivos componentes curriculares. Contudo, agora, conforme art. 35-A, § 3º da Lei Nº 9.394/1996, somente “[...] o ensino da língua portuguesa e da matemática será obrigatório nos três anos do ensino médio” (BRASIL, 1996, n.p.). Essa flexibilização apresenta-se como a “[...] negação de um direito a uma formação básica completa e comum a todos, como previa a LDB 9394/96 [...] ao compreender o ensino médio como ‘educação básica’” (SILVA, 2018, p. 43).
Estabelece-se, ainda, a obrigatoriedade do estudo da língua inglesa, sendo optativa a oferta de outras línguas estrangeiras, preferencialmente o espanhol, de acordo com a disponibilidade de oferta da escola. Esse disposto implicou na revogação da Lei Nº 11.161, de 5 de agosto de 2005, que instituía o espanhol como língua obrigatória (BRASIL, 2005), e escancara um alinhamento com interesses e exigências de grupos empresariais e organismos multinacionais, além de um desrespeito ao contexto e à especificidade latino-americana.
Ainda em relação à organização curricular, importa dizer que, a partir da Reforma, foram estabelecidos cinco itinerários formativos que constituem a parte flexível do currículo. Taxativamente expressos, agora, no art. 36 da Lei Nº 9.394/1996, são eles: o Itinerário de Linguagens e suas tecnologias; o de Matemática e suas tecnologias; de Ciências da Natureza e suas tecnologias; de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e o Itinerário de Formação técnica e profissional - esse último podendo ser ofertado na própria instituição ou em parceria com outras instituições. A profissionalização desintegrada “[...] via concomitância, como um dos itinerários formativos resultará em uma forma indiscriminada e igualmente precária de formação técnico-profissional, acentuada pela privatização da oferta pública por meio de parcerias com o setor privado” (SILVA, 2018, p. 43).
Assim, várias alternativas colocar-se-ão como possíveis para cumprimento das exigências curriculares, facultando aos sistemas de ensino reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância. Poderão ser reconhecidas na carga horária dos estudantes de Ensino Médio atividades como: demonstração prática; experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar; atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino credenciadas; cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais; estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras; e cursos realizados por meio de educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias (ARAUJO, 2019).
Conforme podemos observar, o conteúdo da Lei Nº 13.415/2017 e seus desdobramentos, na prática, permitirão às instituições privadas interferir tanto na formação dos estudantes quanto na formação dos professores e na gestão pedagógica das escolas. No que diz respeito à formação dos estudantes, essa influência poderá ocorrer tanto pela validação de atividades, cursos de curta duração, experiências de estágio, entre outros, particularmente no percurso formativo da educação profissional e tecnológica, quanto pelos materiais didáticos que terão acesso a partir dos convênios realizados para assessoria pedagógica. Em que pese os impactos sobre a formação de professores e a gestão pedagógica das escolas, o que temos observado é a influência e a presença de entidades empresariais como o Sistema S, a Fundação Itaú Social, o Instituto Ayrton Senna, o Instituto Natura, a Fundação Lemann, a Fundação Roberto Marinho, o Todos pela Educação e o Movimento pela Base, tanto na elaboração do texto da Reforma do Ensino Médio quanto na sua implementação país afora, por meio de assessorias pedagógicas, cursos de formação continuada e materiais didático-pedagógicos. De acordo com Chagas e Luce (2020, p. 4), “[...] a atuação desses agentes, alinhados a movimentos internacionais de reforma educacional, pode ser compreendida como um dos efeitos da globalização em relação à política educacional”.
No tocante aos dispostos sobre organização curricular do “novo” Ensino Médio, a utilização dos termos “e suas tecnologias” e “práticas”, em inúmeras partes da Lei Nº 13.415/2017, demonstra o retorno do tecnicismo extremado para essa etapa da Educação Básica, como podemos observar no art. 3º, § 2º, da Lei Nº 13.415/2017: “A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia” (BRASIL, 2017, p. 1). Trata-se de estudos e de práticas de componentes curriculares que são essenciais para a educação ética, estética e a construção de saberes que possibilitem a reflexão acerca da organização da sociedade e do próprio projeto societário. A previsão foi incluída somente após pressão feita por movimentos de resistência à Reforma, organizados, que disputaram espaço nessa construção aligeirada, para garantir a presença mínima desses conteúdos. Ainda assim, poderão ser reduzidos ao que os sistemas de ensino definirem como estudos e/ou práticas, proforma e ofertados esporadicamente, contribuindo para a “sonegação do direito ao conhecimento” (SILVA, 2018, p. 44) de ciências fundamentais para a compreensão das relações humanas e sociais.
Outrossim, um aspecto importante da Lei Nº 13.415/2017 diz respeito à ampliação progressiva da sua carga horária (vide art. 24, § 1º da LDBEN), que passará progressivamente, agora, de 800 horas anuais “[...] para mil e quatrocentas horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo de cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga horária” (BRASIL, 1996, n.p.). Atentando-se a essa previsão, Silva adverte que
[...] o incentivo à ampliação da jornada (tempo integral) sem que se assegure investimentos de forma permanente é outro aspecto preocupante na medida em que resultará em oferta precária e poderá incentivar o abandono escolar. Vale lembrar que a ausência de compromisso como acesso e permanência no ensino médio já atinge quase 2 milhões de jovens de 15 a 17 anos que não possuem qualquer vínculo escolar e estão em idade escolar obrigatória desde a EC 59/2009. (SILVA, 2018, p. 43).
Apesar da ampliação considerável da carga horária total do Ensino Médio, observa-se uma redução significativa do percentual de formação básica dos jovens, que não poderá ser superior a 1.800 horas do total da carga horária do Ensino Médio e de acordo com a definição dos sistemas de ensino (BRASIL, 2017). Evidencia-se, assim, a supervalorização da parte flexível, que significará uma grave diminuição da parte destinada à formação geral, ou seja, a restrição do direito à educação, que requisita acesso aos conhecimentos básicos de todas as ciências, em outras palavras, uma Educação Básica que não garante a base.
A Lei Nº 13.415/2017 também exprime, em seu art. 3º, § 7º, que os currículos do Ensino Médio “[...] deverão considerar a formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais” (BRASIL, 2017, p. 1). Pela totalidade da proposta de reformulação, influenciada por interesses e grupos privados, a concepção de formação integral, diferentemente do que aparenta, não se preocupa com o desenvolvimento integral do estudante. Pelo contrário, revela forte presença do ideário neoliberal que, entre outras características, atribui unicamente aos indivíduos a responsabilização pelo seu futuro. Essa concepção de formação, que tenta ocultar suas reais intencionalidades, em verdade, constitui-se a partir da necessidade de produzir um trabalhador multifacetado e obediente, que pode se adaptar às mais variadas condições laborais.
Apesar de a Lei Nº 13.415/2017 prescrever que “[...] os sistemas de ensino, mediante disponibilidade de vagas na rede, possibilitarão ao aluno concluinte do ensino médio cursar mais um itinerário formativo [...]”, e que “[...] as escolas deverão orientar os alunos no processo de escolha das áreas de conhecimento ou de atuação profissional [...]” (BRASIL, 2017, p. 2), na realidade concreta, dadas as condições materiais dos sistemas de ensino, essa possibilidade é mínima. Essa previsão escancara um dos pontos mais questionáveis da Reforma, “[...] haja vista que o país conta com aproximadamente 3.000 municípios com uma única escola de ensino médio” (SILVA, 2018, p. 44). Como poderá o sistema de ensino contemplar os itinerários previstos, dada a precariedade de condições materiais para tanto? A própria legislação não obriga a oferta ampla dos itinerários previstos, fazendo com que, inevitavelmente, a maioria dos jovens tenha de cursar o que estiver disponível na escola mais próxima.
O itinerário da formação técnica e profissional, trazido e fortemente defendido pela Reforma, representa uma ameaça não só à concepção, como também à própria existência dos cursos de Ensino Médio Integrado à Educação Profissional. Como proposta mais bem elaborada de oferta da Educação Básica e de Educação Profissional, a modalidade integrada, além de se comprometer com uma perspectiva de educação integral, tem mostrado altos índices de qualidade - requeridos às escolas, em exames de larga escala. Ademais, outra preocupação que nasce a partir da Reforma é a possibilidade da atuação de “[...] profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional” (BRASIL, 2017, p. 2, grifo nosso). Além de não especificar o que é “notório saber”, o inciso IV, do art. 61, da Lei Nº 9.394/1996, pós reforma, parece reconhecer, de pronto, a falta de professores para atender ao itinerário de formação técnica e profissional, e legitima uma dispensa de formação docente. Contribui, com isso, para uma desvalorização ainda maior das licenciaturas, desconsiderando a importância da formação pedagógica e didática dos docentes. Essa grave brecha “[...] institucionaliza a precarização da docência e compromete a qualidade da formação profissional” (SILVA, 2018, p. 43).
Concernente à implementação da Reforma, Chagas e Luce (2020) mencionam que esta
[...] ocorrerá de acordo com a Lei 13.415/2017, em um prazo de dois anos a partir da publicação da BNCC, o que se efetivou somente em dezembro de 2018. Assim, a reforma chegará às escolas em 2021. No entanto, um projeto-piloto está em andamento para levar a flexibilidade curricular a 3 mil escolas públicas do país já em 2020. (CHAGAS; LUCE, 2020, p. 5).
Assim, as muitas das mudanças provocadas pela Lei Nº 13.415/2017, com ingerência de grupos empresariais desde a elaboração até a implementação, somadas à conhecida falta de recursos públicos para sua implementação, representam uma enorme ameaça ao direito à educação pública e estatal, de qualidade social referenciada, gratuita, presencial, laica, inclusiva e democrática. É lamentável que tenhamos que retroceder aos parcos passos dados. O fortalecimento da dualidade estrutural, por meio da educacional apontada, é, ainda, incentivado pelo atual Governo Federal por intermédio de um Programa voltado ao fomento do itinerário de formação técnica e profissional. Sobre ele, discorreremos na sequência.
Novos Caminhos que levam a velhos lugares: um programa para fortalecer a dualidade educacional
Lançado em outubro de 2019 pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC) do MEC, o Programa Novos Caminhos é mais uma política educacional que se ergue sobre pilares de governos de direita, e que, acompanhando outros Programas para a Educação Brasileira, em vários níveis, têm sido analisados como expressões do ideário neoliberal que reforçam a dualidade estrutural, a partir de políticas conservadoras.
Todas as informações oficiais sobre o Programa Novos Caminhos estão disponíveis no Portal do MEC, com um link que trata especificamente desse programa. Por essa razão, nossa análise baseia-se nos dados disponíveis no Portal mencionado, fazendo relações com aspectos históricos, socioeconômicos e políticos brasileiros. Assim o fazemos porque convergimos com Shiroma, Moraes e Evangelista (2011, p. 9) quando apontam que analisar políticas sociais obriga considerar “[...] não apenas a dinâmica do movimento do capital, seus meandros e articulações, mas os antagônicos e complexos processos sociais que com ele se confrontam”.
Declaradamente, a finalidade do Programa é abrir novas oportunidades a partir dos cursos já existentes e novos cursos, em atenção às demandas do mercado e nas profissões do futuro para gerar mais renda, mais emprego e mais capacitação (BRASIL, 2019a). Para tanto, promete fomentar a oferta do Itinerário de Formação Técnica e Profissional, previsto na Lei Nº 9.394/1996, após texto dado pela Reforma do Ensino Médio, contando, especialmente, com o potencial dos Sistemas Estaduais de Ensino. Ao prever formação profissional como sinônimo do Itinerário citado, demonstra compreender a formação profissional em sentido estrito e atrelada às demandas do setor produtivo. O Programa Novos Caminhos cumprimenta-nos anunciando um objetivo central: aumentar o número de matrículas na educação profissional e tecnológica do país em 80%, e o prazo para atingir tal propósito é 2023.
Em se tratando da visão limitada de formação profissional que insiste em reduzi-la ao mero adestramento e adaptação às demandas do mercado e do capital, como já identificado e criticado por Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005), em estudos sobre educação profissional, apontam que tem sido uma marca que a educação brasileira carrega ao longo de sua história. Apesar da necessidade de superar essa perspectiva que impede a construção de propostas que almejam uma formação ampla e sólida dos sujeitos, as atuais políticas educacionais de Educação Básica - especialmente a Reforma do Ensino Médio e o Programa em análise - insistem em manter vivo esse reducionismo da formação profissional, vinculando-a às necessidades imediatas do mercado de trabalho.
Quando observamos as justificativas utilizadas na apresentação da proposta e, além delas, as fontes dos dados produzidos para fundamentar os propósitos do Programa, percebemos que não se trata de uma política isenta das influências e das determinações de sócios históricos (NEVES, 2000) do Estado brasileiro. Desde a gênese do percurso de construção de políticas públicas para a formação dos trabalhadores, “[...] o Estado se associou aos empresários na implementação do ramo técnico-profissionalizante da estrutura educacional dual” (NEVES, 2000, p. 36) e, durante as principais fases de desenvolvimento das forças produtivas no Brasil, foi o empresariado industrial, compradores de força de trabalho, quem interferiu decisivamente na formulação dos documentos orientadores sobre a oferta de formação técnica, profissional ou profissionalizante.
Evidenciamos, por meio das razões para sua elaboração, que, além da presença do empresariado industrial brasileiro, o Programa é fundamentado por apontamentos de alguns Organismos Multilaterais que financiam e recomendam políticas educacionais aos países em desenvolvimento. Para ilustrá-los, sistematizamos os dez argumentos apresentados pela SETEC no Quadro 1, que servem como justificativa para a elaboração do Programa:
a. “A empregabilidade (trabalho formal) aumenta em 38% para os jovens que tem formação técnica”. |
b. “A Educação Profissional e Tecnológica pode representar um aumento de cerca de 20% na renda do trabalhador”. |
c. “No Brasil, apenas 8% dos estudantes formados no Ensino Médio são concluintes da Educação Profissional, contra 42% em média entre os países da OCDE”. |
d. “93% da população concorda, que o governo precisa oferecer mais cursos de ensino médio que também ensinem uma profissão”. |
e. “61% das empresas brasileira têm dificuldades para preencher vagas de trabalho, principalmente as de nível técnico”. |
f. “Em 2017, das 48,5 milhões de pessoas com idade entre 15 e 29 anos, 23,0% (11,2 milhões de jovens) não trabalhavam nem estudavam ou se qualificavam, contra 21,9% em 2016. De um ano para o outro, esse contingente cresceu 5,9% (mais 619 mil pessoas nessa condição)”. |
h. “133 milhões de novas ocupações surgirão no mundo, no âmbito das grandes empresas, até 2022, com destaque para funções baseadas principalmente no uso das tecnologias digitais”. |
i. “O Brasil terá de qualificar 10,5 milhões de trabalhadores em diversas ocupações industriais até 2023”. |
j. “40% dos empregadores afirmam que a falta de capacitação dos jovens está deixando vagas em aberto nos níveis de entrada”. |
k. “O potencial de produtividade no Brasil será cada vez mais determinado pela atual juventude, ou seja, pelos que têm atualmente entre 15 e 29 anos”. |
Fonte: Elaborado pelas autoras, a partir do site oficial do Programa Novos Caminhos (BRASIL, 2019c).
Esses dados, utilizados como argumentos para estruturar o Programa, referenciam-se em fontes que verificamos individual e atentamente, nas quais encontramos um estudo apoiado pelo Instituto Votorantim e Fundação Getúlio Vargas - FGV (justificativa a.), pelo relatório da OCDE (justificativa c.), por uma revista da Confederação Nacional da Indústria - CNI (justificativa d.), por um infográfico de blog (justificativa e.), por documentos elaborados pelo Fórum Econômico Mundial (justificativa h.), pelo Sistema Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI (justificativa i.), pelo Banco Mundial (justificativa k.) e até por uma apresentação de um estudo que não apresenta as fontes dos dados utilizados, como o caso da justificativa j., entre outras. Os tentáculos das entidades e das instituições identificadas podem ser verificados em grande parte das políticas educacionais, especialmente dos últimos 30 anos e, inequivocamente, contribuem para a insuperável dualidade educacional brasileira.
No tocante aos elementos basilares do Programa, o Novos Caminhos estrutura-se, como já afirmamos, em três eixos de atuação, visando cumprir seus propósitos: Eixo 1) Gestão e Resultados; Eixo 2) Articulação e Fortalecimento; e Eixo 3) Inovação e Empreendedorismo. De acordo com as ações e as estratégias vinculadas ao Eixo 1, inicialmente, abre-se prazo para atualização do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos (CNCT). Justifica a atualização como passo fundamental para garantir efetivo alcance da política de educação profissional e tecnológica e alinhamento às mudanças no Ensino Médio a partir da Reforma, com a Lei Nº 13.415/2017 (BRASIL, 2019a). Para possibilitar a atualização da 4ª edição do Catálogo, o MEC emitiu a Portaria Nº 1.719, de 8 de outubro de 2019, reabrindo o processo de atualização do CNCT por 30 dias, a contar de sua publicação e disponibilizou guia de orientação (BRASIL, 2019e).
A Portaria Nº 1.719/2019 também fundamenta outra ação do Eixo 1, que é a regulação para a oferta de cursos técnicos por Instituições Privadas de Ensino Superior (BRASIL, 2019e), posteriormente normatizada, especificamente, pela Portaria SETEC Nº 62, de 24 de janeiro de 2020 (BRASIL, 2020a), assinada pelo Secretário de Educação Profissional e Tecnológica - assim como pela Portaria SETEC Nº 239, de 26 de março de 2020, que prorroga os prazos previstos na Portaria Nº 62 (BRASIL, 2020b). O Eixo 1, Gestão e Resultados, também prevê a regularização retroativa de diplomas emitidos pelas Instituições Privadas de Ensino Superior que ofertaram cursos técnicos, desde 2016. A validação é viabilizada pela Portaria Nº 1.717, de 8 de outubro de 2019 (BRASIL, 2019d), emitida pelo Ministro de Estado da Educação.
Dessa forma, o Eixo 1 trata a política de educação profissional e tecnológica de forma mais ampla, com regulamentações, via Portarias, acerca da atualização do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, autorização e habilitação para que Instituições Privadas de Ensino Superior ofertem cursos técnicos e validação retroativa de diplomas que conferem o título de técnico de nível médio.
Guardando semelhanças com o Decreto Nº 2.208/1997, emitido no contexto das reformas neoconservadoras dos anos de 1990, a Portaria SETEC Nº 62/2020 prevê, em seu art. 4º, parágrafo único, inciso II, alínea c, como modalidades de oferta da formação técnica apenas concomitante ou subsequente (BRASIL, 2020a, p. 2), negando, com isso, a modalidade integrada. Ainda, o referido documento prevê:
Art. 5º Os requisitos específicos relacionados ao curso técnico, de que trata o Parágrafo único do art. 4º desta Portaria, serão verificados, pela SETEC, durante a análise documental do pedido de autorização no prazo de até 120 (cento e vinte) dias, contados da data de conclusão do registro do SISTEC, e: [...] § 2º A autorização de curso técnico na modalidade a distância, considerará, exclusivamente, a sede e os polos EaD, informados pela IPES, constantes do Cadastro e-MC em situação ativa de funcionamento, onde ocorrerão as atividades presenciais previstas. (BRASIL, 2020a, p. 4-5, grifos nossos).
Legalizar e fomentar uma formação técnica a distância implicará em um distanciamento ainda maior do ambiente escolar, uma inserção no mundo do trabalho mais precocemente do que já acontece com as camadas mais populares da classe trabalhadora e uma piora considerável da formação desintegrada e sem sentido para os jovens (ARAUJO, 2019).
O Eixo 2, nomeado como Articulação e Fortalecimento, constitui-se em duas frentes: a primeira, na Formação de Professores e Profissionais de Educação Profissional e Tecnológica; e a segunda, no fomento à Formação Técnica e Profissional para Jovens e Adultos. A primeira apresenta-se como medida de apoio ao enfrentamento dos desafios da implementação do itinerário formativo basilar do Programa e a partir da qual a SETEC promete implantar
[...] um conjunto de ações com o objetivo de promover o aumento do número de matrículas em cursos de licenciatura; fomentar a oferta de cursos de complementação pedagógica, atualização tecnológica e/ou especialização de professores; e ampliar a oferta de vagas em curso específico de mestrado profissional em Educação Profissional e Tecnológica. (BRASIL, 2019b, n.p.).
Tal política de formação de formadores em Educação Profissional e Tecnológica exige outras discussões. A finalidade imediatista da formação prometida aos professores e demais profissionais da educação não expressa o caráter limitado dela? Quais Instituições de Ensino Superior (IES), hoje, possuem condições materiais para absorver o aumento de matrículas? Quem, nos últimos anos, tem transformado a formação docente em um mercado e atraído mais jovens das classes trabalhadoras? Lembramos, para refletir sobre essas questões, que a Emenda Constitucional Nº 95 estabeleceu um teto de gastos e congelou os investimentos na estrutura pública até 2036 e isso, por si só, já oferece elementos suficientes para qualquer análise que possa ser feita.
A formação de professores no Brasil é, assim como todas as políticas que qualificam força de trabalho, historicamente disputada por interesses antagônicos. A valorização dos trabalhadores da educação, notadamente dos professores, é previsão constitucional desde a Carta de 1988 e pauta das lutas sociais mais recorrentes do campo educacional. No entanto, também é preciso questionar: quem, no último período, “educa o educador?” (MARX, 1845 apudSEKI; SOUZA; EVANGELISTA, 2017, p. 449).
Outro aspecto que nos chama atenção é que, no texto que apresenta o Eixo 2, há uma sinalização para, assim como o Programa Future-se , novas formas de financiamento, fontes e receitas não necessariamente públicas quando pontua que “[...] a necessidade de investimento de recursos para financiar matrículas e expandir a formação técnica e profissional no país requer reflexão realista e responsável do ponto de vista da gestão pública” (BRASIL, 2019b, n.p.). Estaria, o Programa Novos Caminhos, reconhecendo que, embora direcione milhares de jovens ao Itinerário de Formação Técnica e Profissional, as Escolas Públicas tenham de abrir as portas ao empresariado e aos interesses privados por meio de parcerias público-privadas para financiamento de suas atividades?
Isso porque, assim como expressam as justificativas apresentadas anteriormente, que representam anseios do empresariado industrial brasileiro, o que impede que a iniciativa privada firme parceria com determinada Rede Estadual de Ensino e, ao financiar materiais didáticos, equipamentos e ferramentas, “encomende” um jovem formado para determinada função? Aliás, parece-nos que o Programa não pretende oportunizar uma formação integral, em uma perspectiva crítica e reflexiva, mas, pelo contrário, entregar um “produto” ao mercado de trabalho, um, como caracteriza Frigotto (2001), cidadão mínimo e reproduzir o resultado histórico da escola tradicional que, “[...] sempre pretendeu preparar as classes populares para o trabalho, separando os futuros dirigentes, dos produtores; os que estavam destinados ao conhecimento da natureza e da produção, daqueles a quem eram entregues as tarefas de execução” (CIAVATTA, 2015, p. 30).
A outra frente em que o Eixo 2 atua é na Formação Técnica e Profissional de Jovens e Adultos, corroborando, mais uma vez, com expressões da dualidade histórica na formação de parcela majoritária da classe trabalhadora, em que uns poucos têm à disposição um conjunto amplo de conhecimentos em detrimento de outros. Muitos, que são formados, minimamente, para um trabalho simples e precário, suficiente apenas para produção da vida nos estreitos limites da sobrevivência.
Se considerarmos, por exemplo, o enunciado do art. 17, §5º das novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) - Resolução Nº 3, de 21 de novembro de 2018 - em que afirma: “Na modalidade de educação de jovens e adultos é possível oferecer até 80% (oitenta por cento) de sua carga horária a distância, tanto na formação geral básica quanto nos itinerários formativos do currículo” (BRASIL, 2018, p. 10), a Educação de Jovens e Adultos (EJA) pensada por essa reforma educacional é, além de excludente, escanteada.
Ignorando todos os possíveis fatores e múltiplas determinações que impediram a conclusão da Educação Básica no tempo idealmente projetado pela legislação educacional, o Programa Novos Caminhos fomenta uma Formação Técnica de jovens e adultos utilizando-se das possibilidades de oferta aligeirada e precária, com um fim: aumentar as estatísticas de força de trabalho qualificada com um certificado de curso técnico. No entanto, mantém todos os problemas substanciais da formação dessa parcela da classe trabalhadora.
Assim como as mudanças no mundo do trabalho requisitaram políticas de formação de força de trabalho que normatizassem a requalificação necessária, um novo momento parece ser percebido no Brasil. Os avanços conquistados por setores progressistas da sociedade brasileira, no que diz respeito à democratização do ensino e ampliação da escolarização do conjunto da classe trabalhadora, notadamente com o Estado cumprindo seu dever de garantir o direito à educação, conforme previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988), são rompidos abruptamente com a reforma educacional em movimento. O Eixo 2, assim como o Eixo 1, apresentam múltiplas expressões que atacam o direito à educação de qualidade dos brasileiros.
Já o terceiro Eixo do Programa Novos Caminhos, o de Inovação e Empreendedorismo, reforça uma tendência, já apontada em análises das políticas educacionais dos anos de 1990, nas reformas neoconservadoras e de construção de um aparato jurídico que legitima o ideário neoliberal. Prevendo a criação de um Escritório de Inovação e Empreendedorismo para a Educação Profissional e Tecnológica, além da criação de mais cinco Polos de Inovação, e fomento a Projetos de Iniciação Tecnológica, busca “[...] estimular estudantes do ensino técnico a desenvolver habilidades relacionais às novas tecnologias para o setor produtivo” (BRASIL, 2019b, n.p.).
Assim como o Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores - Future-se, o Programa Novos Caminhos busca estruturar mais uma política que expressa o viés neoliberal e que incute “[...] a ideia de sonho e esperança promovida pelas histórias de sucesso, [que] combinada com a conjuntura atual, torna-se o composto necessário para a profusão de discursos como estes: ‘o desemprego é uma oportunidade’; ‘o que é preciso é sermos empreendedores’” (BARBOSA; FERREIRA, 2015, p. 69) e naturaliza uma lógica não natural, mas produzida pelo modo de produção capitalista. O Programa Novos Caminhos, tal como o conjunto de Programas do atual Governo Federal, objetiva formar trabalhadores adaptados à precariedade e introduzir o empreendedorismo no trabalho educativo parece uma “[...] solução para ensinar pela prática que é natural aderir à competitividade para poder sobreviver: um ótimo método para a pacificação social via assimilação individual da ideologia” (CATINI, 2019, p. 37).
Articular políticas, em todos os níveis, com os mesmos eixos, faz emergir um ideário alinhado que valoriza a visão empreendedora de mercado como saída para superação da crise e do desemprego estruturais e colabora com a construção de um novo paradigma de emprego mais flexível e precário (SILVA; TEIXEIRA, 2015), correspondente ao paradigma de acumulação capitalista. Além disso, considerando a incapacidade de absorção da força de trabalho ativa e em condições de assalariamento e da necessidade de um exército industrial de reserva para manter as condições de trabalho e assalariamento precárias, o empreendedorismo constitui-se em um novo “fetiche do capital” (SILVA; TEIXEIRA, 2015, p. 628), a fim de que os trabalhadores passem a acreditar nas teses neoliberais que transferem ao indivíduo e ao seu esforço individual a responsabilidade pelo sucesso ou pelo fracasso.
Outrossim, dispondo sobre a criação de Polos de Inovação nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, prevê que sejam criados mais cinco polos como o intuito de “[...] disseminar a cultura do empreendedorismo e alavancar o desenvolvimento de pesquisas aplicadas que atendam as reais demandas do setor produtivo aproximando a educação do mercado de trabalho” (BRASIL, 2019a, n.p.). Tal medida, já articulada desde o lançamento do Programa Novos Caminhos, publicou edital para processo de seleção para o credenciamento dos Institutos Federais interessados já no início de 2020. Esclarecendo a ação, o site do Programa prevê sobre o processo. Os Polos de Inovação
[...] têm o objetivo de promover o aumento da competitividade e da produtividade da economia nacional, por meio do desenvolvimento da pesquisa aplicada e da qualificação de recursos humanos para ações de pesquisa, desenvolvimento e inovação. Esses polos são voltados ao desenvolvimento de pesquisas avançadas que atendem demandas reais do setor produtivo, construindo uma ponte entre a academia e o mercado. (BRASIL, 2020c, n.p., grifos nossos).
O Programa Novos Caminhos, como política de fomento a uma expressão nefasta da Reforma do Ensino Médio, provocada pela Lei Nº 13.415/2017, expressa o caráter utilitarista e conservador das políticas educacionais voltadas à conformação de um projeto de sociedade excludente e desigual que parece levar a um lugar conhecido na história da educação brasileira: à revitalização da dualidade educacional que fortalece a estrutural.
Considerações finais
Com base nas análises realizadas ao longo deste artigo, trouxemos à baila aspectos da reforma educacional em movimento que, provocada a partir da Lei Nº 13.415/2017, tem estruturado todo um conjunto de políticas para alcançar o propósito almejado: direcionar uma formação precária às camadas mais pobres da classe trabalhadora. Em consonância ao texto da Lei, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) criaram um arcabouço para produzir as condições necessárias para que a última etapa da Educação Básica siga reproduzindo sua marca histórica: a dualidade estrutural.
Como se não bastasse, o Programa Novos Caminhos, lançado no fim de 2019, explora e agrava o que há de pior nesse arcabouço. Focando no itinerário de formação técnica e profissional, declaradamente, busca aumentar o número de matrículas na educação profissional e fomentar que os sistemas estaduais de ensino ofertem o referido itinerário, em atenção às demandas do mercado de trabalho. O Programa demonstra compreender a formação profissional em sentido estrito e cria mais um mecanismo para atrelar a educação institucionalizada, tão somente, às demandas do setor produtivo.
É fato que, historicamente, o Ensino Secundário, hoje denominado Ensino Médio, foi marcado pelo descaso estatal. Por um lado, na análise desenvolvida, verificamos que a frequência na Educação Básica se tornou obrigatória (dos 4 aos 17 anos), somente no ano de 2009, por meio da Emenda Constitucional Nº 59, de 11 de novembro de 2009, podendo ser implantada progressivamente até 2016 (BRASIL, 2009). Por outro lado, as disputas a respeito de como o Ensino Médio deveria ser oferecido em muito se acirraram a partir dos anos de 1990. Nessa seara, além do empresariado industrial, apelidado por Neves (2000) de sócio histórico do Estado brasileiro, Organismos Multilaterais, como o Banco Mundial, passam a influenciar e, em certa medida, determinar políticas educacionais para a Educação Básica.
As políticas que conservam e conformam o projeto societário capitalista não se comprometem com uma formação integral, que possibilita o desenvolvimento humano em suas múltiplas dimensões. Pelo contrário, realizam-se atendendo ao mercado e ao capital ao direcionar uma parcela majoritária da classe trabalhadora para o trabalho simples. Marx, em seu texto Trabalho assalariado e capital, identificou que “[...] quanto menor for o tempo de formação profissional exigido por um trabalho, menores serão os custos de produção do operário, menor será o preço do seu trabalho, o seu salário” (MARX, 2010, p. 44). Dessa forma, a qualidade da formação profissional também determina os lugares que os trabalhadores irão ocupar na sociedade e, assim, ao formar um cidadão mínimo (FRIGOTTO, 2001), reserva-se a este um trabalho precário para a produção da vida nos estreitos limites da subsistência.
Juntos, a Reforma do Ensino Médio e o Programa Novos Caminhos precarizam a Educação Básica e a Educação Profissional, desvalorizam o trabalho docente, representam uma ameaça concreta à oferta de Educação Profissional Técnica Integrada ao Ensino Médio comprometida com uma formação integral sólida, favorecem o avanço da educação a distância, comprometem o fortalecimento das instituições públicas de ensino, possibilitam o uso de recursos públicos para atender a interesses empresariais privados e culminam na revitalização da dualidade educacional brasileira. A Reforma e o Programa, atendendo aos interesses do capital e da classe que o representa, negam aos estudantes das classes populares o acesso à uma educação que contemple os aspectos científicos, tecnológicos, culturais e do mundo do trabalho.