Introdução
Desde a democratização do país, em meados da década de 1980, a ampliação da participação de atores e de movimentos sociais nos processos de definição das agendas e de implementação das políticas educacionais foi crescente no bojo das demandas por democratização e descentralização da educação. Os Conselhos, ao constituírem-se como espaços de esferas públicas democráticas para debates e proposições, foram instrumentos importantes dessa ampliação da participação dos atores. Contudo, em suas distintas composições, não se constituíram como órgãos representativos apenas de seus beneficiários diretos, mas também de outros grupos e movimentos envolvidos com as políticas educacionais, como grupos profissionais, setores privados, grupos de gestores da educação e grupos de especialistas, no caso estudado, o do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) com natureza interfederativa.
Nesse sentido, neste artigo, analisamos a trajetória do Consed, relacionando-a com a formulação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), considerando a composição, as parcerias estabelecidas e as relações com a sociedade civil. O texto está dividido em cinco partes: além desta “Introdução”, as duas primeiras seções são de contextualização. Na primeira, “Democratização da sociedade brasileira e Consed”, discutimos o contexto de democratização da sociedade brasileira de meados de 1980, o surgimento do Consed, suas finalidades originais e a modificação dessas finalidades na década de 1990. Na segunda, “Antecedentes da BNCC”, abordamos a discussão, desde a Constituição Federal (CF) de 1988, entre conteúdos mínimos e prescrições curriculares, com ênfase na distinção entre Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a BNCC. Na sequência, na seção intitulada “Conselhos, democracia e vida pública: apontamentos teórico-metodológicos”, tratamos da concepção de Conselho como espaços públicos de aprofundamento da democracia de Hannah Arendt, explicando como os dados foram organizados e categorizados. A parte relativa às Análises e discussões está subdividida em categorias articuladas entre si: a) pluralidade no Consed; b) interesses privados e o Consed na elaboração da BNCC; c) regime de colaboração e o Consed na BNCC; d) representatividade do Consed. Por fim, as considerações finais indicam que a participação do Consed na elaboração da BNCC evidencia a perda da essência no interesse público em seu sentido originário, na medida em que compactua com as recomendações de organismos multilaterais e das elites de Organizações não Governamentais (ONGs) empresariais, o que faz diretrizes privatizantes ganharem espaço nas políticas que deveriam ser públicas.
Democratização da Sociedade Brasileira e o Consed
Fruto de debates e intensas mobilizações populares estendidas por anos a fio, a promulgação da CF de 1988 simboliza o início de uma nova configuração da República no Brasil. Em seu Art. 1º, a CF institui que: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático De Direito [...]” com seus entes federados autônomos (BRASIL, 1988, p. 3).
A democratização do Estado Brasileiro, na década de 1980, foi marcada pela intensa mobilização de diferentes setores da sociedade em torno dos princípios de descentralização e de reconhecimento do direito à educação para todos como dever do Estado, o que abriu caminhos para o fortalecimento do controle e da participação social por meio da criação, da consolidação ou da institucionalização de diferentes tipos de organizações da sociedade civil e de Conselhos,1 inclusive na área educacional, uma das que mais foram alvo da política centralizadora do regime militar.
A transição do regime militar para a democratização foi resultado de pressões políticas das forças da sociedade civil organizada (partidos, comunidades eclesiais de base, movimentos estudantis, entre outros), das elites políticas de oposição, sobretudo as estaduais, e por variáveis federativas traduzidas nas mudanças das relações intergovernamentais, principalmente com a vitória esmagadora das oposições nas eleições estaduais de 1982 (ABRUCIO; SAMUELS, 1997).
O Consed foi constituído como amálgama dessas forças no ano de 1986, antes mesmo da promulgação da CF (BRASIL, 1988), congregando dirigentes estaduais de educação que se posicionavam contra o centralismo das políticas e dos programas do Ministério da Educação (MEC). Nesse sentido, Aguiar (2002) afirma:
Em razão do posicionamento claramente de contestação às diversas medidas do governo federal direcionadas à educação básica, o Consed afirmou-se entre as entidades da sociedade civil que procuravam interferir na formulação e execução da política educacional tendo como bandeira a defesa da democratização da educação pública de qualidade. (AGUIAR, 2002, p. 77).
No contexto de abertura econômica, da descentralização administrativa do Estado e das reformas educacionais dos anos de 1990, o Consed passou a aproximar-se do Governo Federal, especificamente do MEC. Assim, com a mudança no cenário político e as promessas de melhoria econômica que vieram nesse período, o Conselho assumiu uma conduta conciliatória em relação às reformas educacionais alinhadas às recomendações dos organismos multilaterais, tornando-se um dos principais aliados do Governo Federal nos contextos que percorriam a consecução da política educacional, evidenciando uma alteração em sua finalidade inicial (contraposição às políticas educacionais do Governo Central e defesa da educação pública, gratuita e de qualidade). Conforme afirma Paulo Renato Souza2:
[...] o CONSED tem sido o espaço privilegiado para essa articulação e integração das ações governamentais, facilitando o diálogo e levando ao que estou chamando de pactuação, isto é, o consenso em torno de objetivos, responsabilidades e formas de atuação. É isto que caracteriza a modernização das relações intergovernamentais na área da educação. (CONSED, 1999, p. 112).
O processo de aproximação do Consed com o MEC teve como pano de fundo o novo pacto federativo, vigente nesse período, quando o Governo Federal passou a ter maior centralidade das políticas e do orçamento, garantindo, assim, maior poder à União (ABRUCIO, 2005). Todavia, o novo federalismo não alterou o papel subsidiário do Governo Federal quanto à responsabilidade pela oferta da Educação Básica, delegada aos Estados e Municípios, tornando a aproximação das demais unidades federativas com o MEC essencial para o bom funcionamento da educação em um governo cujo foco estava na descentralização.
Dessa forma, o Consed passou a configurar-se como um importante agente nas relações de força que compunham o campo da Educação, principalmente quando outras forças tensionavam esse processo, como as representações docentes que questionavam o Governo Federal pelo não cumprimento dos compromissos firmados na Conferência Nacional de Educação para Todos de 1990, por exemplo. O Consed buscava promover uma melhoria na Educação Básica com ênfase na gestão educacional e no regime de colaboração (AGUIAR, 2002), sobretudo nos repasses financeiros diretos e na maior autonomia das Secretarias Estaduais, o que é um aspecto relevante, compatível com sua finalidade originária. Nesse sentido, o posicionamento do Consed em relação ao Governo Federal, a partir desse período, passou a fortalecer as propostas da União, com objetivos aparentemente convergentes, alterando os princípios nos quais foi fundado.
Tendo, regimentalmente, como princípio, a defesa de uma educação pública, gratuita, universal e de qualidade, é inegável a função do Consed de promover o regime de colaboração entre as unidades federativas para o desenvolvimento da educação pública. No caso da BNCC bem como na elaboração dos guias orientadores desse documento para as redes municipais e estaduais de ensino, especificamente, os documentos evidenciam a importância dessa função. Por exemplo, na seção “BNCC e Regime de Colaboração”, o documento menciona o Consed e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) como representantes e impulsionadores do sistema federativo na educação:
Por se constituir em uma política nacional, a implementação da BNCC requer, ainda, o monitoramento pelo MEC em colaboração com os organismos nacionais da área - CNE, Consed e Undime. Em um país com a dimensão e a desigualdade do Brasil, a permanência e a sustentabilidade de um projeto como a BNCC dependem da criação e do fortalecimento de instâncias técnico-pedagógicas nas redes de ensino, priorizando aqueles com menores recursos, tanto técnicos quanto financeiros. Essa função deverá ser exercida pelo MEC, em parceria com o Consed e a Undime, respeitada a autonomia dos entes federados (BRASIL, 2018, p. 21).
Entretanto, cumpre problematizarmos dois aspectos. O primeiro é que “[...] a simples adoção da estrutura federativa não é suficiente para que haja democracia” (DALLARI, 1986, p. 75), e o segundo é que a organização do regime de colaboração, juridicamente, não é o suficiente para garanti-lo.
Tendo em vista essas considerações, partimos da premissa da atuação do Conselho como experiência de agir em concerto e as decisões educacionais em torno do currículo como um assunto pertencente não a um grupo de especialistas, mas a toda uma comunidade política (CARVALHO, 2014).
Antecedentes da BNCC
O Art. 210 da CF/1988 estabelece a fixação de conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum (BRASIL, 1988). Da mesma forma, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) - Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) - preceitua, em seu Art. 9º, inciso IV, a fixação dos currículos e dos conteúdos mínimos para o Ensino Médio, a cargo da União, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (BRASIL, 1996). Dessa forma, a elaboração de uma base nacional comum para a educação brasileira está no foco das discussões desde a redemocratização, sobretudo para a garantia da aprendizagem. Esse movimento segue na LDBEN de 1996 e tem, na elaboração dos PCN de 1997 (Ensino Fundamental), de 1998 (Ensino Médio) e de 2000 (Ensino Médio - para orientação do professor), as primeiras tentativas concretas de consecução de uma Base Nacional Comum.
Entretanto, os PCN não se impuseram como diretrizes obrigatórias, em que pesem os livros didáticos e as avaliações se pautarem em suas referências. A BNCC se apresenta como “[...] referência nacional obrigatória para a elaboração ou adequação de seus currículos e propostas pedagógicas” (BRASIL, 2018, p. 5). Para Filipe, Silva e Costa (2021, p. 792-793):
Trata-se de um retrocesso, tendo em vista que os PCN surgiram como uma superação dos guias curriculares impostos durante a ditadura militar e das propostas curriculares, ao romper com a ideia de conteúdos dispostos, de forma a propor uma seleção e uma sequência, proporcionando aos professores maior autonomia, indicando-lhes objetivos mais gerais. (FILIPE; SILVA; COSTA, 2021, p. 792-793).
Na BNCC, os objetivos são apresentados de forma detalhada, ano a ano. As áreas de conhecimento, como as de linguagens e códigos, são extraídas das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), e a BNCC operacionaliza essa intencionalidade em uma perspectiva de controle rígido sobre o que o professor ensina na sala de aula, que parece responder aos anseios de setores da sociedade ligados ao movimento Escola sem Partido e aos fundamentalistas cristãos.
No site do MEC, na parte relativa ao histórico da BNCC, são indicados como marcos temporais os anos: de 2008 (Programa Currículo em Movimento); de 2010 (primeira Conferência Nacional de Educação - Conae e diretrizes curriculares para a Educação Básica); de 2011 (diretrizes curriculares para o Ensino Fundamental de nove anos); de 2012 (instituição do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - Pnaic); de 2013 (Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio); e de 2014 (Conae - mobilização para a BNCC), como importantes etapas preliminares de discussão sobre a formulação do documento. Em 2015, houve a primeira versão apresentada para discussões e contribuições da comunidade educacional; em maio de 2016, a segunda versão foi disponibilizada; em 2017, a versão final (terceira versão) do Ensino Fundamental e Educação Infantil foi homologada; e em 2018, a parte do Ensino Médio.
Conselhos, democracia e vida pública: apontamentos teórico-metodológicos
Ao utilizarmos o dicionário eletrônico Origem da palavra, identificamos que “conselho” vem do latim consilium, “opinião, plano”, de consultare, “perguntar, refletir, considerar maduramente”, diz respeito, assim, a algo visivelmente público e não privado (CONSELHO, 2023, n.p.). Cury (2001, p. 47) complementa a definição ao considerar o Conselho “[...] uma via de mão dupla: ouvir e ser ouvido [...] ou reciprocamente, ver e ser visto”. Nesse contexto, visando à ampliação de canais de comunicação entre o Governo Central e as discussões das políticas educacionais, é importante a organização de Conselhos dos entes federativos, como é o caso do Consed.
Ao discutirmos a importância dos Conselhos para a democracia e para a vida pública, destacamos o apreço de Hannah Arendt pelo sistema de Conselhos como uma possibilidade de participação ativa no Estado. É um modo a se pensar em relação à política, mas não a única forma possível de viver juntos em sociedade tal experiência (ARENDT, 2010). Segundo Arendt (2018, p. 81), “[...] os conselhos sempre foram inquestionavelmente democráticos, mas de uma forma nunca antes vista e jamais pensada”. De acordo com Daher (2015, p. 12), o pensamento arendtiano discute os Conselhos como “[...] organismos políticos emanados do seio da esfera pública, comprometidos com a realidade comum e movidos pelo debate e pelo consenso”.
Embora nosso olhar esteja direcionado para a atuação e os posicionamentos do Consed na construção da BNCC desde 2015, portanto nos referindo ao contexto atual, a formação de Conselhos é antiga. Nascem “[...] exclusivamente das ações e demandas espontâneas do povo, e não foram deduzidos de uma ideologia, e tampouco previstos, muito menos preconcebidos, por nenhuma teoria da melhor forma de governo” (ARENDT, 2018, p. 80-81). Têm em sua origem a Revolução Russa de 1805, as revoluções ocorridas na Europa em 1848 e a Revolta de Comuna em Paris em 1871 (ARENDT, 2018).
Conforme Arendt (1963), os Conselhos formados na Revolução Húngara no século XX foram caracterizados pelo ressurgimento da esperança e da liberdade política em um curto período, contudo com intensos ideais revolucionários. Ainda para a autora, os levantes revolucionários organizados por esses Conselhos evidenciam que “[...] o povo foi desperto apenas por obras de palavras abertas, e não por manobras silenciosas” (ARENDT, 2018, p. 79).
Para Frateschi (2016, p. 40), os Conselhos propostos por Arendt sugerem um aprofundamento da democracia por meio da “[...] ampliação da participação política, um direito de todos os cidadãos”. Felício (2006, p. 43) afirma que “[...] o sistema de conselhos constituiria, assim, a única alternativa para a fundação de repúblicas baseadas na participação política direta em territórios extensos”. Segundo a autora, os Conselhos marcariam o encontro e o fortalecimento das bases federativas e participativas (FELÍCIO, 2006). Esses Conselhos seriam, para Arendt (1963), como ilhas da liberdade, uma vez que liberdade e política “[...] são idênticas e sempre onde não existe essa espécie de liberdade, tampouco existe o espaço político no verdadeiro sentido” (ARENDT, 2006, p. 21), como se disséssemos:
[...] queremos participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público, e queremos ter a possibilidade de determinar o curso político de nosso país. Já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para determinar nosso destino, precisamos de um certo número de espaços públicos dentro dele. (ARENDT, 2010, p. 200).
Para que haja esses espaços públicos3 organizados dentro de um grande território, Arendt (2010) nos inspira a pensar nos Conselhos fundados a partir de pequenos grupos mobilizados em torno de interesses comuns que se manifestam pela participação ativa, pela liberdade pública e pelos exercícios políticos. Portanto, “[...] Arendt aposta em uma teoria da democracia que aponta para uma cogestão da vida política por todos os cidadãos” (FELÍCIO, 2006, p. 41).
Entretanto, a natureza do Conselho aqui analisada, o Consed, é federativa, e seu principal foco de atuação é a integração entre os Estados e o Distrito Federal com a finalidade de discutir e articular ações que incidam nas políticas educacionais no âmbito nacional, ainda que de maneira não institucionalizada, tendo em vista a não regulamentação de normas de cooperação entre os entes federados. A partir dessa dimensão, Sano (2008, p. 8), avalia que: “Os estudos sobre o federalismo brasileiro ainda não incorporaram significativamente as implicações das relações interestaduais para as políticas públicas”.
Nesse sentido, o Consed seria, ao mesmo tempo, um espaço de aprofundamento da democracia, ao constituir-se como espaço público privilegiado para a descentralização e democratização das políticas educacionais, e, também, um Conselho de chefes de Estados, na medida em que é composto por secretários de Educação, com interesses nem sempre articulados à esfera pública, como interesses político-partidários e corporativos.
A partir dessa contradição quanto ao sujeito da pesquisa, no que diz respeito à metodologia, realizamos uma análise crítico-documental (BLOCH, 2001) da BNCC (BRASIL, 2018) e dos documentos publicados pelo Consed sobre a Base, a saber: Posicionamento do Consed sobre a BNCC (CONSED, 2016a), Estatuto do Consed (CONSED, 2016b) e Guia de implementação da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2020). Ao escrever sobre a observação histórica, Bloch (2001, p. 73) afirma que, “[...] como primeira característica, o conhecimento de todos os fatos humanos no passado, da maior parte deles no presente, deve ser um conhecimento através dos vestígios”. Entendemos que documentos não são provas da verdade, tampouco normativas metabolizadas, mas, sim, pistas que pressupõem uma posição conceitual e política no âmbito de um pertencimento social. Trata-se, então, de artefatos históricos e culturais produzidos em um contexto de disputas, tensões e negociações.
Análises e discussões
Para a sistematização dos dados, organizamos as análises em categorias: a) pluralidade no Consed; b) interesses privados e o Consed na elaboração da BNCC; c) regime de colaboração e o Consed na BNCC; d) representatividade do Consed. Há de destacarmos que, mesmo separando-as, elas estão articuladas. Discutimo-las apenas em relação ao período de construção da BNCC. Assim, há um recorte temporal específico que delimita nossas análises, não podendo ser generalizadas para todos os anos de atuação do Consed.
A pluralidade no Consed
O Consed é constituído por secretários de Educação em atividade (membros efetivos) que, por sua vez, são nomeados para seus cargos por governadores estaduais. Assim, muda-se o mandato do governo e a escolha é refeita (CONSED, 2016b). Além disso, existe a figura dos membros honoríficos, ex-secretários de Educação que:
[...] a) tenham integrado o Consed na condição de membros efetivos; b) tenham prestado serviços de reconhecida relevância à educação e/ou ao Consed; c) tenha comprovada experiência, know how, capacidade técnica e/ou articulação política no tocante à temática educacional, podendo contribuir, com essas competências, para com os objetivos institucionais, projetos e atividades do Consed. (CONSED, 2016b, p. 5).
A admissão do membro honorífico pode ser proposta por qualquer membro efetivo e será aprovada (ou não) pelo Fórum de Secretários de Educação. Destacamos o professor Binho Marques (filiado ao Partido do Trabalhadores - PT) como o primeiro membro honorífico do Consed. Ele também foi presidente da Undime do Acre (1993-1994/1995-1996), vice-presidente da Undime Nacional (1995-1996), secretário de Educação do Acre (1999-2002), secretário de Inclusão Social e vice-governador do Acre (2003-2006), governador do Acre (2007-2010), secretário nacional do MEC na Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (2012-2016). O professor é membro do Conselho Deliberativo do Todos pela Educação (TPE), ONG empresarial que exerce considerável influência na elaboração das políticas educacionais brasileiras.
Em uma mesa no evento “Educação já: fronteiras para articulação e impacto pela educação no país”, no X Congresso do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE), de 2019, Binho Marques criticou o federalismo brasileiro, sobretudo no que diz respeito à autonomia dos municípios com seus próprios sistemas de educação (defendendo um Sistema Nacional de Educação), aspecto que, para ele, impede a almejada qualidade na educação. Na mesma ocasião, o membro honorífico do Consed fez menção elogiosa a dois pontos de iniciativa do TPE: o primeiro deles é a BNCC. De acordo com Marques (2019), em um momento de implantação da Base (2019) e com a ausência de um Sistema Nacional de Educação (SNE), a BNCC poderia realizar um papel que seria do SNE, de modo que padronizaria o currículo (e, indiretamente, o ensino) no Brasil. Segundo ele, a educação no Brasil é ruim porque não tem regra e cada Estado e Município a organiza como quer. Marques (2019) ainda complementou, atribuindo à BNCC, a orientação da formação de professores, do Sistema Nacional de Avaliação e da produção de materiais didático-pedagógicos. O segundo ponto que Marques (2019) considerou como iniciativa do TPE é o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), pois acabaria em 2020, que ajudaria na redução das desigualdades no que diz respeito ao financiamento da educação. Notamos que Marques (2019) evidencia a influência do TPE em pautas importantes da educação nacional, indiciando, inclusive, a representatividade da ONG no interior do Consed e nas decisões emanadas do Conselho.
Destacamos que não há, de modo direto, participação da população na escolha dos membros do Conselho, de forma que acontece por meio da vontade daqueles que estão no lugar de poder (neste caso, os governadores e os próprios membros efetivos). Como alternativa democrática, os homens e as mulheres “[...] eleitos para os conselhos são escolhidos na base, e não selecionados pela máquina do partido para serem propostos ao eleitorado” (ARENDT, 2018, p. 81).
Em Arendt (2018, p. 82), a escolha dos representantes dos Conselhos “[...] não é induzida por um programa, uma plataforma ou uma ideologia, mas exclusivamente por sua avaliação de um homem [ou de uma mulher] em cuja integridade, coragem e juízo pessoais deve acreditar o bastante para confiar-lhe a sua representação”. Assim, corre-se o risco de aquele conjunto de representantes constituir uma máquina de partidos com opiniões preconcebidas advindas de organismos burocráticos.
Tais afirmações têm por referência o que Arendt (2006) compreende por política. Como um acontecimento, a política não depende de governo nem de nenhum tipo de regulamentação estatal para existir, mas surge sempre que os seres humanos decidem agir juntos ao se sentirem responsáveis pelo mundo que habitam. Arendt (2006, p. 3) ressalta que “[...] a política surge no intra-espaço e se estabelece como relação”, jamais se dá no isolamento. Portanto, o sistema de Conselhos é uma forma política de manter o espírito revolucionário vivo e de garantir a resistência do regime republicano mesmo nos tempos mais sombrios (UCHÔA, 2022).
O Conselho, em uma perspectiva pública, não se faz pelo ato individual de seus representantes, mas na presença de espectadores interessados que juntos assumem a cogestão pela educação. Para Arendt (2010, p. 203), na ação “[...] um Nós está sempre engajado em mudar nosso mundo comum [e] esse nós surge onde quer que haja homens [e mulheres] vivendo juntos”.
O caso do Consed, do ponto de vista dessa definição de Conselho, é peculiar, tendo em vista que, sob a premissa constitucional, é um artifício político de uma república federativa (tendo em vista que não é constitucionalizado, tampouco formalmente previsto na legislação infraconstitucional da área). Entretanto, no âmbito educacional dos Estados, é definido como associação de direito privado (de acordo com seu estatuto). Os textos normativos do Consed compreendem que uma das suas principais características é a pluralidade de ideias, sob a justificativa de que seus membros são de diversas correntes político-partidárias, levando-nos a compreender que essa pluralidade também se manifesta em diferentes epistemologias.
Todavia, se a pluralidade é a condição da ação humana e a ação nunca se dá no isolamento, para Arendt (2020, p. 127), torna-se complexo garantir a pluralidade de ideias em um Conselho que por vezes atua como uma soma de “eus” e não como um “nós” sempre que não há interlocução pública, pois “[...] quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da Terra”. A autora nos provoca a pensar na pluralidade como o encontro dos atos de seres singulares. A pluralidade é “[...] a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir” (ARENDT, 2020, p. 142). O que queremos dizer é que o fato de o Consed ser constituído por representantes de diferentes Estados indicados por partidos políticos distintos não é suficiente para afirmarmos que há uma pluralidade da sua participação na elaboração da BNCC, pois isso não se dá a priori, apenas por estar escrito na formulação legal.
Na versão final da BNCC, o Consed aparece com a Undime como parceiros e logo abaixo dos idealizadores principais do documento: o ministro da Educação (Rossieli Soares), o secretário-executivo (Henrique Sartori de Almeida Prado), a secretária de Educação Básica (Katia Cristina Stocco Smole) e o Conselho Nacional de Educação (CNE). Esse movimento evidencia a importância do Consed durante todo o processo de elaboração da BNCC, sobretudo na versão final, durante o governo Michel Temer (2017).
Os interesses privados e o Consed na elaboração da BNCC
Ainda na versão final da BNCC, há menção às seções: “Créditos institucionais e ficha técnica - 1ª versão” e “Créditos institucionais e ficha técnica - 2ª versão”, nas quais a Equipe Dirigente do Consed é creditada ao lado das equipes do MEC e da Undime. Além disso, o Consed teve seus representantes em duas importantes comissões de elaboração da BNCC: Comissão de especialistas (que, basicamente, era composta por membros do Consed e da Undime) e Coordenadores indicados pelas Secretarias Estaduais de Educação (todos membros do Consed). Desse modo, notamos a existência de comissões específicas para esse Conselho, potencializando sua relevância na construção do documento em todas as fases (1ª, 2ª e versão final).
Em 2016, o Consed publicou a atualização do Estatuto Social do Conselho Nacional de Secretários de Educação e, no Art. 3º, evidencia sua finalidade:
O Consed tem por missão atuar de forma propositiva frente às políticas públicas do Brasil para promover a melhoria da qualidade da educação básica pública e universal através da articulação, integração e mobilização das secretarias estaduais de educação e do Distrito Federal, junto aos órgãos consultivos, deliberativos, e instituições afetas à área da educação, observando sempre a otimização dos recursos físicos e financeiros de suas atividades. (CONSED, 2016b, p. 3).
Todavia, o Estatuto Social do Consed sofreu ingerências dos processos de mercantilização e de gerencialismo, que são elementos privatizantes da educação. Exemplo disso é a Ata da IV Reunião Extraordinária do Conselho Nacional de Secretários de Educação de 2016, a qual estabeleceu que, para a constituição do estatuto, as recomendações do The Boston Consulting Group (BCG)4, para revisar o modelo organizacional e de governança corporativa da entidade, deveriam ser seguidas, o que foi aprovado por unanimidade pelo Fórum de Secretários.
Assim, os interesses privados atuaram não apenas nas parcerias firmadas pelo Consed para elaboração e instituição da BNCC (TPE, Instituto Unibanco e Fundação Lemann, para citar algumas), mas estão presentes desde o documento que estabelece seu funcionamento e suas regras (Estatuto Social, atualizado em 2016). Vemos, nesse cenário, empresas e organismos internacionais tirando a educação do debate e do espaço público, alterando a sua natureza de bem comum, ao articulá-la à lógica empresarial, alinhando as políticas educacionais de Estados e Municípios. Para Arendt (2018, p. 215), “[...] o desafio permanente de uma sociedade é se ocupar do bem comum sem violar os direitos dos cidadãos individuais”. Nesse sentido, podemos afirmar que a atuação do Consed rompe com esses princípios, na medida em que a mudança em sua finalidade, que passa a ser alinhada aos interesses privados, foi inscrita até mesmo em seu estatuto.
Vale destacarmos que esse rompimento não foi abrupto nem recente, pois, na década de 1990, ao apropriar-se da concepção de educação do Governo Federal, o Consed já havia se tornado um aliado indireto das recomendações dos organismos multilaterais, como o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). O direcionamento das políticas educacionais no Brasil já estava, naquele momento, alinhado às exigências externas como contrapartida para os auxílios prestados por esses organismos ao desenvolvimento econômico no Brasil.5
Dialogamos com Farias (2023, p. 5) ao tensionarmos a participação de uma burguesia empresarial no Estado que, dentre as diferentes formas de atuação, utiliza da “[...] introdução de representantes empresariais na administração direta do poder público, em vários postos de trabalho ou de cargos (secretarias, diretorias, coordenações e chefias)”. A exemplo disso, a inserção de entidades privadas como colaboradoras do Consed (Conselho Interfederativo Informal, cujo princípio deveria ser a defesa da educação pública como bem público), desde a década de 1990, é progressiva e constante, pois, somados a esses organismos, há a Fundação Lemann, o Instituto Natura e a Fundação Ayrton Senna, como grupos privilegiados que influenciam as políticas educacionais.
Em entrevista ao canal Unimestre, o então presidente do Consed, Eduardo Deschamps (2019), categorizou a BNCC como uma política de Estado e não uma política de governo. Entretanto, o que seria uma política de Estado? Para ele, seria uma política que transcende os governos e, de fato, a BNCC passou pelos governos Dilma, Temer e, a partir do Ensino Médio, por Bolsonaro. Todavia, isso é o suficiente para que seja caracterizada como uma política de Estado? E os interesses que constituíram sua elaboração? Cabe-nos interrogar: Até que ponto o Consed - como Conselho perene sob o ponto de vista estatutário, mas transitório, se pensarmos que os representantes podem mudar a cada quatro anos - consegue contribuir para a continuidade das políticas educacionais que visem à educação como bem público, como se trata de Conselho de natureza interfederativa, ainda que não formalizado em dispositivos constitucionais ou infraconstitucionais?
Regime de colaboração e o Consed na BNCC
O documento Guia de implementação da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2020) foi assinado pela União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme), pelo Fórum Estadual dos Conselhos Estaduais de Educação (FNCEE), pela Undime, pelo MEC e pelo Consed, com apoio técnico do Movimento pela Base Nacional Comum6. Entre as cinco entidades que elaboraram esse guia, quatro são Conselhos, ou organizações deles. Chama-nos atenção um trecho, logo na apresentação do documento, que discorre sobre a importância do federalismo na implantação da BNCC:
O trabalho colaborativo é o princípio central da implementação da BNCC. Buscar maximizar a colaboração entre entes federados assegura que as orientações aqui propostas respondam às diferentes realidades das escolas brasileiras. Mais do que uma possibilidade, a parceria entre estados e municípios é entendida como um importante catalisador desse processo. Por essa razão, permeia todo o material. (BRASIL, 2020, p. 2).
Uma vez que o Consed é autor desse documento de implementação da BNCC, entendemos que há uma preocupação de explicitar a problemática desse processo a partir do federalismo e do regime de colaboração. Para Araujo (2013), o regime de colaboração é uma concepção em disputa, não apenas pelas questões fiscais e pela natureza da Federação brasileira, mas também pelas concepções empresariais que deturpam o modelo de federação cooperativa da CF de 1988.7 Tendo em vista o princípio federativo de multiplicação de poderes horizontais (DALLARI, 1986), entendemos que a aliança de Estados-membros poderia constituir uma federação de Secretarias de Educação, atribuindo ao Conselho um possível signo da República Federativa ao menos nas discussões educacionais. Aguiar (2016) vê o pacto federativo como uma possibilidade de acolhimento de assembleias participativas e deliberativas em qualquer instância que coloque em movimento a relação entre poder instituído e instituinte.
A sugestão do Consed e dos demais elaboradores é que os Estados e os Municípios se organizem em regime de colaboração para unir forças e otimizar recursos e acrescentam: “O regime de colaboração prevê representatividade e isonomia entre os entes federados na tomada de decisão e execução das ações, com foco na aprendizagem dos estudantes” (BRASIL, 2020, p. 6). Outra pretensão do documento é orientar a elaboração de currículos regionais (municipais e estaduais) em conformidade com a BNCC, com a Undime e o Consed como consultores. Nesse sentido, além desse processo inicial, o Consed está presente na Comissão Estadual de Construção dos Currículos (ação consultiva e ação deliberativa), na Equipe de Gestão e na Equipe do Currículo. O Consed (e também a Undime) se estabelece como protagonista da implementação da BNCC a partir do pressuposto do regime de colaboração e do contexto federativo brasileiro, em que o SNE ainda não foi regulamentado.8
Mesmo que o Consed e as outras entidades envolvidas no processo de elaboração da BNCC defendam o sistema federativo, no qual seus entes têm autonomia decisória na parte educacional que lhes é cabida, e compreendam suas atuações como fortalecedoras das relações dos entes federados, existe uma questão inegociável: a BNCC deve ser o eixo de toda e qualquer construção curricular que se estabeleça nos Estados e Municípios, o que reflete nas políticas de avaliação, bem como de contratação, de valorização e de formação continuada de professores
Embora o Consed não tenha o objetivo de representar os professores, um aspecto que o aproximaria da perspectiva de um Conselho que prezasse a participação da sociedade, seria a organização de audiências públicas e fóruns para a discussão da reforma curricular para o fortalecimento da cidadania ativa e o aparecimento desses sujeitos no espaço público, além de contribuir para os posicionamentos do Conselho em espaços como o CNE e o MEC, nos quais teve representatividade na construção da base.
Sano (2009) analisa os Conselhos sob o viés da institucionalização intergovernamental. Para ele, quanto mais institucionalizados forem os fóruns federativos, mais poder eles têm de pressionar o Executivo Federal por uma federação equilibrada no que diz respeito às relações intergovernamentais. Por mais relevante que seja a existência de uma política nacional que possibilite o federalismo, Sano (2009, p. 32, grifos nossos) destaca que “[...] a existência de tal política não é uma garantia da coordenação e de articulação; outros fatores intervenientes são a institucionalização de arenas intergovernamentais e o grau de consenso em torno da política”. Assim, ao tratarmos da criação de canais para a participação social, da escolha dos secretários de Educação estaduais para a constituição do Consed e das (im)possibilidades do regime de colaboração, é importante refletirmos se o Consed possuiu arenas intergovernamentais formalizadas suficientemente para a realização de tais enfrentamentos políticos no contexto sócio-histórico em que a BNCC foi construída.
Quanto ao grau de consenso, Sano (2009) discorre que este é mensurado a partir da concordância (maior ou menor) dos atores em torno da política nacional, o que, na elaboração da BNCC, dependeu de diferentes instituições, além do próprio Consed. Desse modo, podemos ressignificar a pergunta feita na introdução deste artigo, a fim de problematizá-la: A forma como o Consed se vincula ao Governo Federal possibilita que ele se aproxime de uma instância pública compartilhada?
Questionamos até que ponto o Consed cumpre o objetivo de um Conselho como organismo político que visa a assegurar os interesses comuns em torno da educação, sobretudo em um processo que garanta a pluralidade de diferentes vozes em uma experiência pública compartilhada, visto que parece ser extinta a autoridade do Consed de fazer presente o seu ponto de vista quando ele simplesmente se submete à força de outras instâncias sem lançar mão da arte da persuasão e do debate naquele assunto específico, quando, por exemplo, há questões colocadas como não negociáveis e não passíveis de mudanças ou questionamentos.
Dessa forma, o Conselho, por algum motivo, prefere não se posicionar, no caso de, em nome de outros interesses, estar se submetendo a um poder vertical. Para Arendt (2010, p. 201), “[...] qualquer um que não esteja interessado nos assuntos públicos terá simplesmente que se satisfazer com o fato desses assuntos serem decididos sem ele. Mas deve ser dada a cada pessoa a oportunidade”. Ao que nos parece, onde não há agir em concerto, isto é, uma ação em conjunto que ocorre pelo consenso, temos como resultado apenas o convencimento pela força da imposição.
Representatividade no Consed e a sociedade civil
Em Arendt (1999, p. 198), a importância do sistema federativo está na circunstância de que “[...] o poder não vem nem de cima nem de baixo, mas é dirigido horizontalmente de modo que as unidades federadas refreiam e controlam mutuamente os seus poderes”. A adoção do federalismo é uma possibilidade de participação ativa, bem como de constituição da pluralidade desde que haja a ação de homens e mulheres no espaço público. Entretanto, na medida em que o Consed e os demais elaboradores da BNCC tomam uma decisão (ou se submetem a ela) de que os currículos de Estados e Municípios, assim como a avaliação e a formação de professores, devem estar obrigatoriamente alinhados à BNCC que atinge os entes subnacionais de maneira impositiva e sem deliberação conjunta ampliada, são ultrapassados os princípios do sistema federativo e dos Conselhos como artifícios de uma (res)publica que se ocupa com aquilo que é público e diz respeito a todos, neste caso, da educação. É como se disséssemos que, nessa ocasião, o Consed não deu conta de enfrentar e transgredir uma ordem dominante em função do que entendemos como bem comum, considerando que, para Cury (2001):
Certamente, é do interesse comum, ter conhecimento do que se passa no interior de um órgão que tenha algum poder decisório sobre a vida social. O dar a conhecer de atos e decisões que implicam uma comunidade e são comuns a todos os seus indivíduos só pode ser produto de uma audição maior. Essa modalidade do ver e ser visto deve se distinguir, por sua vez, daquilo que ocorre no âmbito da privacidade dos indivíduos. (CURY, 2001, p. 47).
A nosso ver, a representatividade de diversos sujeitos e instituições durante o processo de elaboração da BNCC não foi suficiente para que aqueles chamados a contribuir fossem de fato ouvidos e o horizonte público perseguido. Conforme Cury, Reis e Zanardi (2018), a participação dos sujeitos configurou-se como uma proforma e suas contribuições foram sumariamente ignoradas, de modo que as decisões já estavam tomadas a priori. Sobre a legitimidade da proposta, quando seus elaboradores alegam ter sido fruto de um longo debate coletivo de quatro anos, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) rebate: “[...] caberia perguntar: com quem foi este debate? Se falamos do debate que estava em curso, até o golpe de 2016, podemos afirmar categoricamente que não há nenhuma continuidade nesse processo, ao contrário, o texto em debate foi totalmente transformado, mutilado” (ANPED, 2018, p. 1, grifos nossos).
Diante disso, problematizamos: Por que se falar em debate e em consultas supostamente públicas, se nada adiantaria essa verbalização de opiniões, uma vez que o poder decisório estava sob governo de alguns? Talvez isso tenha ocorrido para propagandear a ideia de um projeto democrático, ao menos sob o ponto de vista jurídico e midiático. Além disso, a afirmação da ANPEd (2018) evidencia que parte do texto que realmente havia sido pensado conjuntamente no momento anterior ao golpe de 2016 foi alterado; desse modo, não foram sequer respeitadas as contribuições pretéritas.
A realização de consultas públicas nos diferentes Municípios e Estados a respeito da construção da BNCC seria um caminho interessante para discutir convergências e divergências sobre questões que lhe dizem respeito e que culminam em uma normativa nacional, buscando, assim, a transparência, o controle social, o envolvimento público e a participação popular. Uchôa (2022, p. 410) entende que “[...] o sistema de conselhos [viabiliza], sobretudo, o debate a nível local de problemas nacionais”; assim sendo, as consultas públicas nos microcontextos contribuiriam para a compreensão das especificidades no macrocontexto ao passo que poderiam descentralizar o poder político e fortalecer o federalismo brasileiro do ponto de vista das políticas educacionais.
Considerações finais
O surgimento e a existência, por um bom tempo, do Consed, em um contexto de defesa da educação pública, gratuita e de qualidade em resistência à agenda educacional do final da década de 1980 e início da década de 1990 foi ao encontro de pressupostos democráticos. Todavia, o seu alinhamento aos Governos Federais a partir de 1995 representou uma tentativa, por parte do Conselho, de garantir maiores repasses financeiros à educação dos entes subnacionais, mas, para isso, seu apoio na elaboração de políticas educacionais e a disseminação da agenda do Executivo Federal foram objeto de negociação entre o Consed e o Poder constituído. Portanto, embora seja um ator legítimo nos processos das políticas públicas, a sua atuação é influenciada por aqueles que constituem o Executivo Federal.
O artigo evidenciou a relação estreita entre o Consed e a agenda do Executivo Federal no processo de elaboração da BNCC, tendo em vista que o Consed se mostrou distante daquilo que é entendido por Arendt como o papel dos Conselhos na (res)publica. Isso se deve, principalmente, ao fato de que os interesses privados se sobrepuseram aos interesses públicos. Se antes o interesse privado era restrito ao ambiente da família e ao âmbito da necessidade, agora o interesse privado atingiu um nível de sofisticação confundido com o interesse público por sua presença em espaços considerados políticos, ao menos sob o viés institucional, no qual deveriam ter como prerrogativa a deliberação conjunta com vistas à educação como um bem público, e não um serviço público.
Assim, esses interesses aparecem como forma de atingir melhores resultados em avaliações internacionais, por exemplo, fazendo-se necessária a estandardização curricular. Isso não é interesse público em seu sentido originário, na medida em que compõe parte das recomendações de organismos multilaterais e da participação de ONGs empresariais. Logo, o Consed fortalece diretrizes eminentemente privadas.