Notas introdutórias
O presente artigo investiga, por meio de estudo comparado, as recentes reformas do ensino médio no Brasil e da educação secundária na Argentina. O objetivo é desvelar se o que orientam essas reformas são as desigualdades nacionais e/ou as ingerências dos organismos multilaterais. Para tal, propõe-se a investigar as justificativas e as intencionalidades oficiais dessas reformas, com o intuito de desvelar divergências e/ou convergências, inclusive por meio da comparação das reformas e de seus elementos contextuais.
Optou-se pelo método de estudo comparado em educação porque,
[...] considerando a crescente interdependência de países, o surgimento de questões transnacionais e o crescimento de organizações internacionais, torna-se cada vez mais necessário, e inevitável, o processo de comparação e compartilhamento de experiência com políticas, para a resolução de problemas locais. (YANG, 2015, p. 337).
Soma-se a isso o fato de que o emprego do método comparativo possibilita desvelar aspectos que seriam ignorados se não fossem analisados em um contexto mais amplo, comparado, como sugere Corrêa (2011). Permite, ainda, elaborar generalizações acerca dos padrões comuns e dos padrões de mudança dos sistemas em análise.
Em um devir dialético, ao confrontar as referências nacionais de Brasil e Argentina entre si, este estudo comparado considera as diretrizes internacionais, conforme sugere Yang (2015). Apresenta, assim, os dados oficiais disponibilizados por ambos os países e por instituições supranacionais, em sítios sob os cuidados de instituições como: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e Ministério de Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia (MECCyTN) da Argentina.
Esta pesquisa, de natureza bibliográfica e documental, analisa qualitativamente a Exposição de Motivos (EM) nº 0084/2016/MEC (BRASIL, 2016c); e a Resolução do Conselho Federal de Educação (CFE) nº 230/2017 (ARGENTINA, 2017), que são os documentos que apresentam as justificativas e as intencionalidades expressas das respectivas reformas. O referencial teórico é constituído pelos estudos de Corrêa (2011); Yang (2015); Libâneo (2012; 2018); Nascimento (2018); Krawczyk e Ferretti (2017); Polizzi (2019); e Feldfeber e Gluz (2014).
É certo que aspectos contextuais nacionais e internacionais - como tensões, resistências, convergências, sensos e dissensos - oferecem subsídios sem igual para a compreensão e o desvelamento dos processos que orientam as políticas públicas em educação (YANG, 2015). O contexto internacional das políticas educacionais de Brasil e Argentina é exatamente o da hegemonia neoliberal, sob a qual atuam os organismos multilaterais internacionais.
Desde 1990, as recomendações provenientes do Fórum Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, e dos fóruns que se seguiram - em Dakar, ano 2000; e em Incheon, ano 2015 - propunham medidas que, de uma forma ou de outra, orientam as políticas educacionais dos países emergentes signatários, dentre os quais Brasil e Argentina. Tais recomendações emanam do movimento global Educação para Todos (EPT).
No ano de 2015 - 25 anos após Jomtien e 15 após Dakar - o Fórum Mundial de Educação em Incheon (Coreia do Sul) apresentou a “nova” proposta global, denominada de “Agenda 2030 para o Desenvolvimento (Sustentável)”. Esse documento, acolhido como referencial para os 15 anos seguintes, contém os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O ODS de nº 4 - intitulado “Educação de qualidade: assegurar a educação inclusiva, e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” - é o que trata especificamente da educação e orienta a Declaração de Incheon. Um dos subtítulos de seu Preâmbulo sintetiza a proposta dessa Declaração: “Rumo a 2030: uma nova visão para a educação” (UNESCO, 2015, p. 7, grifo nosso). Paradoxalmente, embora o Documento se proponha a uma nova visão, reafirma as orientações de Jomtien (UNESCO, 1990) e de Dakar (UNESCO, 2000). O certo é que a Declaração de Incheon apresenta poucos elementos novos em relação às declarações anteriores, destacando-se o discurso mais acomedido nas projeções e uma eventual mudança de perspectiva da avaliação.
À guisa de outros autores, Libâneo (2012; 2018) destaca o caráter gerencialista e neotecnicista das políticas emanadas da Unesco, que se concentram em aspectos de gestão e prestação de contas, atribuindo pouca importância às questões pedagógicas e didáticas, e desprezando igualmente a participação da comunidade escolar na construção das políticas educacionais e das políticas educativas. Como que estabelecendo uma cartilha de procedimentos, pautam-se em resultados, parecendo ignorar que estes dependem da complexidade de aspectos diversos, como ambiente escolar, contexto social de vida concreta dos alunos, e contradições próprias do processo ensino-aprendizagem.
Libâneo (2018) adverte, ainda, que as proposições advindas dos fóruns mundiais não apresentavam, até há pouco, elementos para oportunizar uma educação de fato de qualidade para os mais pobres. Segundo o autor, com um conceito restrito de qualidade, reduzem o desenvolvimento dos estudantes pobres à preparação para o mercado de trabalho, acentuando as desigualdades, bem como a exclusão social dos pobres dentro do próprio sistema escolar.
Ressalta-se, todavia, que o neoliberalismo não é uma força plenamente hegemônica, nem os organismos multilaterais atuam com total subserviência dos países signatários. Esse é o motivo pelo qual este estudo comparado - entendendo que a realidade não é tão linear, sem suas contradições - busca desvelar como as realidades nacionais concretas de Brasil e Argentina se comportam ante tais influências, sobretudo diante das demandas de combate às desigualdades.
Para melhor apresentação da discussão e dos resultados, o artigo se estrutura em três tópicos, que abordam: a) o contexto de reformulação do ensino médio brasileiro; b) elementos contextuais da recente reforma da educação secundária argentina; e c) uma análise comparativa entre reformas de Brasil e Argentina.
1.1 Reforma do Ensino Médio no Brasil: contexto
Historicamente a educação brasileira é marcada pelas desigualdades. Os modelos que favorecem as classes sociais privilegiadas alimentam a dualidade que, desde o processo de colonização, está presente na educação. A partir do século XX reduziram-se paulatinamente as desigualdades de acesso, por exemplo, mas a dualidade se manteve, conservando-se espaços e posições sociais privilegiadas.
No Brasil, o Governo Fernando Henrique Cardoso - FHC (1995-2002) foi o primeiro a assumir uma agenda declaradamente neoliberal, exercendo maior controle sobre a política educacional e descentralizando para os estados e municípios sua execução (BRASIL, 1996). Alinhado à agenda dos organismos multilaterais internacionais, FHC operou o controle do sistema escolar a partir de uma política de avaliação em larga escala, que ampliou o já existente SAEB e criou outros tantos exames, dentre os quais o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que - sob o pretexto de avaliar o ensino médio para melhorá-lo - se resignou até 2016 a classificar e desclassificar escolas a partir do desempenho dos estudantes. Entretanto, tais classificações das escolas atestavam muito mais a concentração dos capitais econômico, social e cultural de seus alunos do que o efetivo trabalho didático-pedagógico dessas instituições, tal qual desvela Nascimento (2018). Além disso, esse Exame ignorava uma série fatores cruciais para uma análise própria ao contexto escolar, ignorando-se aspectos relevantes como: as condições objetivas de cada comunidade escolar, a gestão escolar e o fazer educativo em sala de aula, dentre outros.
Desde o início da década de 1990 houve expressiva ampliação do acesso ao ensino médio. Em 1991, por exemplo, o Brasil tinha 3.772.698 alunos matriculados no ensino médio; em 1994 registrava 4.932.552; e em 2004 alcançou o ápice, com 9.169.357. Desde então o total de matrículas cai ano após ano (à exceção dos anos de 2010, 2011 e 2016), registrando 8.133.044 de matrículas no ano de 2016, quando se desencadeou o processo da atual reforma. Em 2019, o total de matriculados já havia baixado a patamares de apenas 7.465.891 estudantes (Inep, 2020), perfazendo-se 15 anos desse processo de desconstrução e retrocessos no ensino médio.
Os dados do Inep (2020) revelam que os estudantes vulneráveis são essencialmente os da Rede Pública, pois é nessa esfera administrativa onde ocorrem as variações significativas, o que denuncia as desigualdades do ensino dual e confirma que esses sujeitos são os que mais carecem das políticas públicas educacionais, até para gozarem do mero direito à educação.
O recuo no número de matrículas desde 2005 dá conta da falta de políticas educacionais próprias para consolidar esse nível de ensino, com universalização do acesso, permanência e êxito discente. Não obstante, ao longo desse período de retrocesso, o ensino médio tem sido “monitorado” por avaliações em larga escala, que não subsidiaram sua melhoria, dentre outras razões porque conservaram por anos um acinte desvio de sua função.
Na Meta 3 do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024), até se propôs a “universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de quinze a dezessete anos e elevar, até o final de sua vigência (2014), a taxa líquida de matrículas no ensino médio para oitenta e cinco por cento” (BRASIL, 2014). Contudo, a mera previsão legal não tem sido suficiente para pôr fim à queda no número de matrículas. Tal é a gravidade que, no ano de 2017, estavam excluídos da educação básica 1.293.896 de jovens em idade escolar própria - o equivalente a 12,35% do total de jovens brasileiros nessa faixa etária, conforme dados do IBGE (2018).
Nesse contexto de retrocessos consecutivos, uma reforma era demanda de tempos, mas não servia qualquer uma. Como rememoram Krawczyk e Ferretti (2017), o Projeto de Lei (PL) nº 6.840/2013 (BRASIL, 2013), que visava a uma reforma nos moldes da que viria a se concretizar em 2017, foi amplamente modificado durante os debates na Câmara dos Deputados, muito em virtude da atuação do Movimento em Defesa do Ensino Médio. Devido a interesses vencidos, o PL acabou arquivado.
No entanto, eliminados da última versão do PL nº 6.840/2013, alguns elementos adversos reapareceram em 2016, agora com o caráter impositivo da Medida Provisória nº 746/2016, um documento de 3 páginas, repleto de incongruências, duas das quais contidas no Tópico 10: “Neste período, o Brasil passou pela democratização da educação, com a universalização da oferta de matrícula na educação básica [...]” (MEC, 2016c, p. 2, grifos nossos). Primeiro, o processo de democratização ainda está em curso, e no caso do ensino médio, em retrocesso; segundo, naquele momento a universalização não havia ocorrido, como ainda não ocorreu mesmo 4 anos depois.
Com pouca discussão, especialmente com os profissionais da educação, a MP nº 746/2016 seria convertida na Lei nº 13.415/2017, ao mesmo tempo em que se buscou acelerar a conclusão da BNCC Ensino Médio, também alinhando suas “premissas” às recomendações da Unesco e dos organismos associados. Nessa ruptura, demudaram-se fundamentos, diretrizes e outros elementos essenciais das amplas discussões desde 2015, que haviam gerado duas versões: a primeira, com as colaborações dos profissionais da educação e da sociedade em geral; e a segunda, adicionando-se as contribuições dos especialistas em educação.
Essa não foi, porém, a única artimanha do Governo Temer nesse processo todo. Valeu-se também do estratagema de uma reforma fiscal, impondo limite aos gastos públicos, um pouco antes da aprovação da Reforma do Ensino Médio, com o intuito de “blindar” a União da responsabilidade de aumento do orçamento da Educação, prescrição do Tópico 14 da Declaração de Incheon. Essa reforma fiscal afeta toda a Educação e contraria sobremaneira o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, que prevê na meta 20 o investimento de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro até o seu 5º ano de vigência e de 10% ao final do decênio.
Na medida em que deturpou medidas importantes, como a elaboração de uma Base Nacional e a ampliação de escolas em tempo integral, o governo atendeu às recomendações do Tópico 10 da Declaração de Incheon: “[...] que se ofereçam percursos de aprendizagem flexíveis e também o reconhecimento, a validação e a certificação do conhecimento, das habilidades e das competências adquiridos por meio tanto da educação formal quanto da educação informal” (UNESCO, 2015, p. 8, grifos nossos). O legado que resta é o de grave implicações para o ensino médio: a) a aprovação às pressas do limite dos gastos públicos por 20 anos, com impedimento de aumento real do orçamento da Educação; b) a imposição da reforma de ensino médio, para atender, quase que exclusivamente, às orientações dos organismos internacionais; e c) a ruptura do processo de construção da BNCC, descaracterizando-a.
As condições de financiamento que precediam a austeridade já comprometeriam metas do PNE 2014-2024, cujo prazo de vigência ainda não findou. Com todos os agravantes, o PNE e a reforma já há muito se candidataram ao rol dos malsucedidos planos e projetos de 10 ou 15 anos, cujos fracassos atestam a pouca efetividade das medidas empregadas e até a discrepância entre as intencionalidades e as ações adotadas.
1.2 Reforma do Ensino Secundário na Argentina: elementos contextuais
O processo de escolarização na Argentina foi bastante distinto do que ocorreu no Brasil, desde a criação das primeiras universidades à quase universalização da educação primária ainda na década de 1980, com o atendimento de 93,9% dos argentinos. Esse legado ajuda a explicar, por exemplo, o índice de analfabetismo abaixo dos 2%, como lembram Feldfeber e Gluz (2014).
Entretanto, a dualidade também é histórica no sistema escolar argentino. No caso do ensino secundário, as primeiras escolas surgiram no final do século XIX com a criação do Liceu, destinados aos jovens de classes sociais mais abastadas. Ainda no século XX, muito em virtude das mais diversas demandas e reivindicações que o momento impunha, desencadearam-se processos convergentes para a ampliação do seu acesso, alcançando-se segmentos sociais outrora excluídos.
No início da década de 1990, as reformas liberalizantes de Carlos Menem avançaram sobremaneira. Por meio da Lei Federal de Educação (LFE), a Lei nº 24.195/93 (ARGENTINA, 1993), sob o pretexto de “concretização de uma igualdade efetiva de oportunidades”, o governo transferiu às províncias a responsabilidade de gestão das escolas secundárias, sem em contrapartida lhes transferir as verbas. Assim, as províncias mais pobres e menos desenvolvidas tiveram dificuldades para arcarem sozinhas com a manutenção de sua rede escolar. Como esclarece Polizzi (2019), essa Lei fragmentou o sistema escolar, afetando sua qualidade e aumentando as desigualdades escolares.
Contudo, no primeiro Governo Kirchner, sem romper de todo com as antigas lógicas neoliberais, implementaram-se algumas mudanças com vistas a assegurar a regulação pelo Estado, a garantia dos direitos e a universalização de políticas. Na educação, estabeleceram-se:
A Lei de Garantia do salário de professor e 180 dias de aula (nº 25.864/2003), que estabeleceu que o ano letivo anual deve ter 180 dias efetivos de aula e examina se o Poder Executivo Nacional pode conceder assistência financeira às províncias; a Lei da Educação Técnica Profissional (nº 26.058/2005), que regulamenta a educação técnica e cria políticas que buscam re-hierarquizar a modalidade; e a Lei de Financiamento Educacional (nº 26.075/2005), que estabelece um aumento progressivo do investimento em educação, ciência e tecnologia, atingir 6% do PIB até 2010. (POLIZZI, 2019, p. 5, tradução nossa).
Por fim, como medida mais efetiva, em 2006 foi promulgada a Lei nº 26.206/2006, denominada de Lei de Educação Nacional (LEN), que promoveu outras tantas mudanças na estrutura educacional argentina, a fim de consolidar a educação como um direito pessoal e social, sob a garantia do Estado. Essa Lei propiciou avanços ao estender a obrigatoriedade da educação para 13 anos: 1 ano destinado às turmas de crianças com 5 anos de idade e 12 anos de duração entre o ensino primário e o secundário. Por não conseguir consolidar a unificação das redes de educação, como se pretendia, em algumas jurisdições o ensino primário é de 6 anos, com o secundário de mais 6 anos; em outras, o ensino primário é de 7 anos, com o secundário de 5 anos, conforme escolha das províncias.
Em 2009, entrou em vigor ainda o Plano Nacional de Educação Obrigatória, que estabeleceu um currículo comum nacional e buscou facilitar a integração entre os anos finais da educação primária e o ciclo básico da educação secundária. Por meio da Resolução do CFE nº 84/2009, o Plano regulamentou o que denomina de “trajetórias escolares relevantes”, de forma que a educação secundária passou a ter um Ciclo Básico - comum às modalidades adotadas pelas províncias (de 2 ou 3 anos, a depender de onde está situado o sétimo ano) - e um Ciclo Orientado - flexível e diversificado (de 3 anos em todas as jurisdições). Para as modalidades Técnico-Profissional e Artística, a duração do Ciclo Orientado é de 4 anos. Ressalva-se que a adoção de trajetórias distintas e de flexibilização do currículo na Argentina precede às orientações até então contidas nas Declarações dos Fóruns Mundiais de Educação, o que só ocorreu na Declaração de Inchon.
Feldfeber e Gluz (2014), ao reconhecerem a relevância da obrigatoriedade da educação secundária, identificam que o desafio argentino se tornou desde então o da “inclusão” de grupos sociais outrora excluídos, uma vez que o sistema foi organizado historicamente para ser seletivo. Para as autoras, as medidas que se seguiram para o combate às desigualdades foram essenciais, pois de fato primaram por valorizar os docentes e sua formação, ao invés de ignorá-los ou tratá-los como meros tecnocratas.
Destaca-se que o Plano Nacional de Educação Obrigatória favoreceu esses avanços porque não procedeu como mera carta de intenções. Antes, foi acompanhado por medidas concretas e efetivas que ampararam suas ações, a começar pela dotação de novos recursos:
[...]. Em maio de 2009 o Plano Nacional de Educação Obrigatória foi aprovado. No ano seguinte foi lançado o Plano de Aperfeiçoamento Institucional para o Ensino Secundário, com um investimento de 2.132,7 milhões de pesos para reformas das condições materiais, construtivas, tecnológicas, pedagógicas, institucionais e curricular, com o objetivo de melhorar a qualidade do ensino e acompanhar as trajetórias pedagógicas dos alunos. (LEIVAS, 2017, p. 70, tradução nossa).
Embora o ensino secundário argentino tenha avançado, não foi o suficiente para eliminar as disparidades escolares e sociais. Marrone (2016) chama a atenção para as desigualdades regionais e escolares que ainda persistem, mantendo muitos fora da escola. A pesquisadora lembra que - apesar dos avanços - 10,2% dos jovens argentinos de 15 a 17 anos estavam fora da escola no ano de 2013. Já em 2016, ano que precedeu a reforma da educação secundária, a situação era um pouco melhor, pois 93% dos adolescentes entre 12 e 17 anos frequentavam a escola, dos quais 91,7% estavam no ensino médio, segundo dados da Unesco (2017).
No ano de 2017, a forma como o ex-Presidente Mauricio Macri anunciou a Reforma gerou protestos e ocupações de escolas pelos estudantes, lembrando o que ocorrera um ano antes no Brasil. Por fim, a reforma acabou aprovada pelo Conselho Federal de Educação (CFE), sob a denominação de Secundária Federal 2030. Embora muitos denominem de “a Reforma de Macri”, o documento anexo “Marco de Organização das Aprendizagens para a Educação Obrigatória Argentina”- que apresenta a Secundaria Federal 2030 - tem estreito alinhamento às diretrizes da “Declaração de Incheon para a Educação 2030” (UNESCO, 2015). O Conselho Federal da Educação apresentou, ainda, outro anexo denominado “Critérios para a elaboração de Planos Jurisdicionais Estratégicos de Nível Secundário”, de forma que cada jurisdição pudesse elaborar seu próprio plano para o período 2018-2025, implantando-o total ou parcialmente a partir do ano letivo de 2019.
1.3 Similaridades e particularidades: uma análise comparativa
É tarefa por demais complexa estabelecer comparação entre sistemas e/ou redes com muitas particularidades. No caso de Brasil e Argentina, mais ainda. Por isso, é relevante ressalvar de antemão que se trata de um país com uma população estimada em 212 milhões de pessoas e outro com com 45 milhões. O primeiro é formado por 26 estados e o Distrito Federal; o segundo, por 23 províncias e a cidade autônoma de Buenos Aires. O ensino médio regular do primeiro é de 3 anos; o do outro, cujo ensino secundário se inicia pelo menos dois anos antes (seu ensino primário é de 6 ou 7 anos apenas), tem a duração de 5 anos, podendo chegar a 6 ou 7 anos, a depender da provícia e da modalidade em questão. Não obstante esse contraste, o que se propôs a investigar nesta pesquisa foram elementos atinentes às recentes reformas, quanto às ingerências e desigualdades, estas próprias dos contextos político, econômico, social e cultural dos respectivos países.
Considerando a centralidade dos indicadores de acesso (matrículas), permanência (abandono/continuidade ao longo do ano letivo) e êxito (promoção/retenção), apresentam-se os Gráficos 1, 2 e 3. No Gráfico 1, a seguir, apresenta-se o histórico comparado de matrículas de Brasil e Argentina:
Comparadas a linha de tendência das matrículas no ensino médio brasileiro (pontilhada de vermelha) com a linha de tendência argentina (pontilhada de azul), evidencia-se no Brasil um processo de eliminação dos jovens pertencentes aos grupos mais vulneráveis; e na Argentina um processo de inclusão dos jovens desses segmentos.
Devido à complexidade dos dados referentes ao rendimento escolar, apresenta-se o histórico do Brasil no Gráfico 2; o da Argentina, no Gráfico 3.
A linha de tendência do Gráfico 2 representa bem o contexto do ensino médio brasileiro. Esse gráfico revela a melhoria dos índices de promoção, repetição e abandono, sem, no entanto, indicar a efetiva melhoria do ensino médio brasileiro. Os dados do Gráfico 2 são melhor compreendidos quando associados aos do Gráfico 1. Isso porque os dados de redução contínua no número de matrículas atestam da eliminação dos grupos mais pobres e vulneráveis, aqueles que detêm menor acesso aos capitais econômico, social e cultural, uma forte razão pela qual costumam ter baixo desempenho e maior propensão à desistência escolar, como confirma Nascimento (2018). Dessa forma, a melhoria desses índices de desempenho, antes de tudo, testifica do processo de seletividade que castiga o ensino médio brasileiro desde 2005. Não fosse o efeito desse processo de seletividade na educação brasileira, os índices do histórico de promoção, repetência e abandono representariam avanços.
Por sua vez, esse processo na Argentina ocorre de forma um tanto distinta:
Contrastando com o aumento do número de matrículas (Gráfico 1), os dados do Gráfico 2 também apontam para uma melhoria dos índices de promoção e de abandono; e índices de repetição quase constantes. Confere maior distinção à melhoria de três dos quatro índices (matrícula, promoção, repetição e abandono) o fato de que esse avanço ocorreu enquanto se fez a inclusão dos jovens mais vulneráveis, desprivilegiados sobretudo dos capitais econômico, social e cultural.
A seguir, no Quadro 1, apresentam-se três relevantes aspectos identificados nos documentos orientadores das reformas de Brasil e Argentina, que tratam da ingerência dos organismos internacionais, das intencionalidades relativas ao combate à desigualdade e dos eixos centrais da proposta de reformulação.
BRASIL | ARGENTINA |
---|---|
Justificativa amparada nas orientações advindas dos organismos internacionais | |
A EM nº 0084/2016 deixou “escapar” que as recomendações dos Organismos Multilaterais Internacionais é que orientavam as premissas da reformulação: “Um novo modelo de ensino médio oferecerá, além das opções de aprofundamento nas áreas do conhecimento, cursos de qualificação, estágio e ensino técnico profissional de acordo com as disponibilidades de cada sistema de ensino, o que alinha as premissas da presente proposta às recomendações do Banco Mundial e do Fundo das Nações Unidas para Infância - Unicef. (BRASIL, 2016c, p. 2, grifo nosso). |
A Resolução do Conselho Federal de Educação (CFE), nº 230/2017, admite expressamente a ingerência dos organismos internacionais já na primeira das justificativas para a Reforma: “Que a Declaração de Incheon das Nações Unidas de 21 de maio de 2015 e o Marco de Ação para alcançar o objetivo ‘Desenvolvimento Sustentável 4’, estabeleceu uma agenda universal para garantir educação inclusiva e equitativa de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida no período 2015-2030”. (ARGENTINA, 2017, p. 1, tradução nossa). |
Intencionalidade expressa de correção das desigualdades | |
A EM 0084/2016/MEC apresenta como intencionalidade da reforma a correção de índices negativos que acometem o ensino médio, reconhecendo que: “[...] os jovens de baixa renda não veem sentido no que a escola ensina” (BRASIL, 2016c, p. 1). |
Apresenta como intencionalidade expressa de correção de desigualdade: “Elevar significativamente a taxa nacional de egressos dos estudantes do ensino médio, que de acordo com as últimas pesquisas estatísticas anuais atingem apenas 48%”. (ARGENTINA, 2017, p. 2, tradução nossa). |
Eixos centrais das medidas propostas | |
Conforme previsão na EM nº 0084/2016 e confirmação pela Lei nº 13.415/2017, a reforma do ensino médio brasileiro se pauta em três aspectos: a) Implementação da BNCC b) Itinerários formativos (flexibilização) c) Ampliação de escolas de tempo integral |
Segundo o documento intitulado “Critérios para a elaboração de Planos Jurisdicionais Estratégicos de Nível Secundário”, as mudanças deveriam contemplar 4 dimensões, de modo simultâneo e integrado: • Organização institucional e pedagógica das aprendizagens; • Organização do trabalho docente; • Regime acadêmico; • Formação e acompanhamento profissional de professores. (ARGENTINA, 2017, p. 19 [p. 15 no Anexo I], tradução nossa). |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Ambos os países justificam as reformas em função das orientações dos organismos internacionais e apresentam como intencionalidade expressa o combate às desigualdades. Entretanto, os países se distanciam entre si quanto às medidas apontadas. Enquanto a reforma argentina se propõe a uma intervenção mais ampla, a brasileira apresenta três soluções pouco estruturais, duas das quais descaracterizadas.
Se a principal das intencionalidades da reforma brasileira era melhorar os indicadores do ensino médio e aumentar o interesse dos jovens de “baixa renda”, não parece razoável que a imposição de conhecimentos mínimos, a possibilidade de “escolha” pelos estudantes de limitados itinerários formativos e a ampliação precária do número de escolas em tempo integral - sob a condição de auteridade fiscal - sejam as medidas suficientes para propiciar condições igualitárias de acesso, permanência e êxito. Com esse arranjo de precarização, tais medidas pouco ou nada concorrem para a materialização das intencionalidades expressas de melhoria da qualidade e de redução das desigualdades.
A reforma brasileira nem ao menos se propõe a resolver problemas estruturais antigos, como a falta de professores em algumas disciplinas, a formação docente, a precariedade de muitas instalações físicas e a falta de recursos materiais e financeiros nas unidades escolares. Como bem avaliam Krawczyk e Ferretti (2017, p. 37), “nesse contexto, a Lei nº 13.415 de 16/02/2017 “flexibiliza” o tempo escolar, a organização e conteúdo curricular, o oferecimento do serviço educativo (parcerias), a profissão docente e a responsabilidade da União e dos estados”. Transforma-se, desse modo, a flexibilização em mero mecanismo para a desresponsabilização estatal.
A proposta da reforma argentina, por sua vez, não se limita a aspectos tão objetivos e simplistas. É certo que a forma como está sendo conduzida sua implantação é que determinará a natureza das proposições. Contudo, é muito mais promissora porque - para além das evidentes medidas de precarização adotadas pelo governo brasileiro - se propõe a subsidiar a melhoria do processo de ensino-aprendizagem, com medidas como a valorização da formação docente e a reorganização institucional e pedagógica das aprendizagens.
Considerações Finais
Embora Brasil e Argentina pautem abertamente suas políticas educacionais pelas orientações dos organismos internacionais, os países experimentam processos bastante distintos no contexto das atuais reformas de ensino médio/secundário, inclusive quanto à correspondência entre as intencionalidades e as medidas apontadas em suas reformas. É bem verdade que as respectivas reformas estão em seu início de implantação - a princípio com projetos-piloto que se iniciaram na Argentina em 2019; e no Brasil, em 2020, com raras exceções em 2019 - e há a necessidade de contínuo acompanhamento e outras tantas investigações acerca da materialização dessas reformas.
O recente histórico do ensino médio no Brasil revela um processo de seletividade, em que se eliminam os grupos mais vulneráveis e desprovidos em especial dos capitais econômico, social e cultural. Muito em virtude de eliminar os jovens mais vulneráveis ao baixo rendimento, o Brasil conseguiu melhorar os índices de aprovação, reprovação e abandono. Por sua vez, o ensino médio na Argentina, ao passo em que incluiu jovens desprivilegiados, alcançou melhores índices de aprovação e abandono.
No Brasil, verifica-se que a forma como as ingerências dos organismos multilaterais foram acolhidas pelo Governo Temer, adotando medidas divergentes às intencionalidades apresentadas para a Reforma: a) a imposição de uma BNCC Ensino Médio desfigurada, suplantando as contribuições da sociedade em geral, dos pesquisadores e dos docentes dessa etapa de ensino; b) a implantação de itinerários formativos, conservando-se os mesmos elementos estruturais no seio das escolas; e c) a ampliação das escolas de ensino médio de tempo integral sob as regras que impedem o incremento real do orçamento da Educação, em atendimento ao limite dos gastos públicos e em desprezo ao PNE 2014-2024, em particular à sua Meta 20.
Evidencia-se, assim, a divergência entre as medidas adotadas e as intencionalidades expressas de melhoria da qualidade e redução das desigualdades. Contudo, à exceção do estratagema da reforma fiscal empregado pelo Governo Temer, há convergência entre as medidas adotadas e as orientações oriundas do Fórum de Incheon. Em virtude dos interesses contemplados, e da forma como se deu, as medidas tendem a uma maior precarização do ambiente escolar e do trabalho docente, cujas graves implicações aumentam o risco de ampliação das desigualdades escolares e sociais. No Brasil, identifica-se, portanto, a urgência de novas e adequadas decisões, a fim de se evitar ao máximo os efeitos negativos da esvaziada reforma vigente.
Na Argentina, por sua vez, criaram-se desde 2003 condições objetivas favoráveis, com medidas concretas, como subsídio federal às províncias e aumento dos recursos para a formação docente e para a Educação em geral. É bastante provável que o País não tenha se afetado tanto pelas orientações da Declaração de Dakar (2000) por reconhecer a necessidade de corrigir distorções ainda da reforma de 1993 - sob o Governo Menem e as orientações advindas de Jomtien. Isso evidencia certo protagonismo, ao operar mudanças pertinentes às suas reais necessidades internas.
Embora a reforma argentina se justifique expressamente em virtude das orientações acordadas no Fórum de Incheon, é potencialmente mais promissora do que a brasileira. Contam em seu favor, e dos jovens mais pobres da Argentina, os avanços recentes na redução de desigualdades, uma maior ponderação às orientações dos organismos multilaterais depois do fracasso das reformas liberalizantes do início da década de 1990 e a propota de subsidiar a melhoria processo de ensino-aprendizagem em um contexto político muito mais favorável, por exemplo, que o brasileiro.
Contudo, compreendendo que a realidade não é linear, mas sujeita às constantes influências e mudanças, assim como as reformas se encontram em etapa inicial de implementação, é necessário que se acompanhe ao longo dos próximos anos como a Argentina está reelaborando sua política de ensino médio ante a “nova visão” das orientações advindas do Fórum Mundial de Educação de Incheon (UNESCO, 2015). Convém investigar as influências das novas diretrizes, sobretudo relacionadas a aspectos como o fazer educativo de professores (processo pedagógico-didático) e o impacto sobre a educação dos jovens mais pobres, concernente ao acesso, à permanência e ao êxito. Essas pesquisas se fazem imprescindíveis por diversas razões, destacando-se as contradições imanentes do processo, a exemplo do frequente distanciamento entre o proposto e o realizado pelas políticas públicas educacionais.