Introdução
As políticas para a Educação do atual governo federal não surpreendem quanto à investidura do caráter privatista que se desenha em todos os níveis e etapas do sistema de ensino, consolidando uma ameaça real à educação pública. Tendo isso em vista, este texto tem foco, principalmente, na Educação Básica em sua primeira etapa – a Educação Infantil –, com o objetivo central de compreender as múltiplas facetas da privatização4 e como elas ocorrem na educação pública. Os demais objetivos são identificar e analisar nas políticas do governo federal atual a ameaça privativista da Educação Infantil no Brasil e apontar o MIEIB como um movimento de resistência propositiva que procura lutar pela Educação Infantil brasileira, com força de atuação em todo o território nacional.
O texto é construído por meio de pesquisa bibliográfica em autores que são referências no assunto, somado à análise de documentos, tomando por base dados dos documentos do governo federal (Programa de Governo/2018, Decreto Presidencial n.º 10.134/2019), bem como documentos encontrados no site e mídias sociais do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB). A pesquisa se justifica pela urgência de unir ações em prol da defesa dos direitos arduamente conquistados, no que se refere à Educação Infantil pública, em tempos em que as forças conservadoras e privatistas com seu discurso neoliberal de que o ensino privado oferece melhor qualidade que o público, desde a Educação Infantil, vem fragilizando e destruindo os direitos constitucionais de acesso e permanência na educação pública e gratuita para todos que recorrerem a ela, ao mesmo tempo em que envidam esforços para destinar recursos públicos para o setor privado.
O governo federal atual, no Brasil, adere a agendas de veiculação internacional e empresarial, na lógica do “capital humano”5, quando o mercado é o regulador de tudo, inclusive sobre a educação de crianças pequenas, que tão cedo são submetidas à lógica empreendedora e competitiva. Sobre isso, Dardot e Laval (2016, p. 135) corroboram ao enfatizarem que é interessante analisar como o neoliberalismo se esforça na propagação de caminhos estratégicos na “criação de mercados e produção do sujeito empresarial [...] dimensão antropológica do homem-empresa”. Para os autores,
A novidade consiste em promover uma reação em cadeia, produzindo sujeitos empreendedores que, por sua vez, reproduzirão, ampliarão e reforçarão as relações de competição entre eles, o que exigirá, segundo a lógica do processo autorrealizador, que eles se adaptem subjetivamente às condições cada vez mais duras que eles mesmos produziram (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 329).
Diante desta máxima, as estratégias de privatização e formação do sujeito empreendedor seguem a passos largos tanto no controle da elaboração do currículo, na qual a Base Nacional Comum Curricular tem exercido tal função, quanto à destinação dos fundos públicos6, via publicização, privatização e terceirização, e ainda a aceitação da sociedade que é submetida a discursos midiáticos tendenciosos de que a privatização, a meritocracia e o empreendedorismo são conceitos que, ao serem implementados na escola pública, trarão um ganho para a sociedade como um todo. A fim de fortalecer os argumentos aqui apresentados, a seguir o texto apresenta alguns dos principais momentos no desenrolar histórico das políticas para a Educação Infantil, em meio a conquistas, avanços e retrocessos que marcaram esta etapa da educação.
2 As Parcerias Público-Privadas na EI em suas implicações legais e de interesses mercadológicos
A conquista da Educação Infantil enquanto direito da criança deu-se somente com a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e posteriormente foi consolidada, enquanto etapa da Educação Básica em 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996). O ganho para as crianças é inegável, pois a etapa saiu do atendimento da Assistência Social e foi atribuída à Secretaria da Educação; no entanto, as condições materiais foram sendo realizadas com os recursos possíveis e diferentes espécies de parceria entre o setor público e privado, o que é registrado na própria Constituição Federal, embora as parcerias público-privadas sejam históricas e já ocorressem antes da promulgação da CF/1988. Sobre isso, Pinto (2016) aponta que,
Aprovada em um contexto de luta pela redemocratização do país, a Constituição Federal (CF) de 1988 representou um avanço em relação às formulações legais anteriores, ao estabelecer como norma a destinação de recursos públicos para as escolas públicas, abrindo, porém, a possibilidade que eles sejam destinados a escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas sem fins lucrativos (PINTO, 2016, p. 136).
A Lei Magna de 1988 possibilitou avanços inéditos na Educação Infantil, que estabeleceu a sua oferta como direito da criança, opcional à família e dever do Estado.7 Ressaltamos que a LDB garantiu a gratuidade da oferta da Educação Infantil em estabelecimentos públicos mais recentemente, com a nova redação dada ao art. 208 da CF pela E.C. nº 59/2009 (BRASIL, 2009), à faixa de 4 a 17 anos, na qual a pré-escola passa a ser obrigatória a partir de 2016, forçando os municípios a garantir a oferta. Isso fez com que os convênios entre o setor público e o setor privado/filantrópico no que se refere ao atendimento da Creche se ampliassem (FARIAS, 2018).
Em relação às Parcerias Público-Privadas (PPP) na Educação Infantil, o convênio é a forma mais utilizada; trata-se de recursos públicos empregados em instituições privadas sem fins lucrativos, sendo que há muito tempo se estabeleceu como um dos principais meios de oferta. Com o financiamento da Educação Infantil, pela criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), no ano de 2007, as matrículas em creche seriam contabilizadas no montante dos recursos do fundo (BRASIL, 2007).
Cabe esclarecer, contudo, que, no caso da Educação Infantil, os recursos não são passados diretamente para as instituições privadas, mas para os municípios, os quais não são obrigados a repassar integralmente o valor/aluno disponibilizado pelo fundo para essas instituições, devendo investir a diferença entre o valor recebido e o repassado na ampliação de sua rede própria. No entanto, há uma tentação significativa para que os municípios busquem ampliar a oferta na Educação Infantil pela via dos convênios com essas instituições tendo em vista o baixo fator de ponderação para as creches do Fundeb, que implica em um valor muito abaixo do custo real e os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal sobre os gastos com pessoal (PINTO, 2016, p. 142).
A título de exemplo sobre a destinação do FUNDEB para a Educação Infantil, Domiciliano (2009) enfatiza que o financiamento educacional, chamado “Bolsa Creche”, nos municípios de Piracicaba e Hortolândia – SP, transfere dinheiro público para creches e pré-escolas particulares; dessa forma, os municípios repassam a responsabilidade de oferta à iniciativa privada e se utilizam de mecanismos que estimulam o mercado educacional do público não estatal, violando o art. 213 da CF (BRASIL, 1988).
Tal prática tem sido recorrente nesta configuração, encontradas nos estudos de Azevedo (2014), Costa (2014), Domiciliano (2009), Oliveira (2013), Silva (2016). A Parceria Público-Privada com fins lucrativos funciona de diferentes formas, sendo a compra de vagas de instituições particulares para diminuir o déficit de atendimento uma delas. Essa estratégia neoliberal já ocorre em países como os EUA, Chile, dentre outros, e vem sendo incorporada aos discursos dos formuladores de políticas educacionais no Brasil; sendo assim, “ao invés de financiar escolas públicas, o governo entregaria às famílias ‘tickets educação’ para que escolhessem a escola, pública ou privada, de seus filhos” (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 118). O agravante é que essas vagas são incorporadas nas estatísticas de atendimento público como se o fossem.
Cabe ressaltar os interesses de mercantilização da educação que estão imbricados num processo de correlação de forças entre o público e o privado, sendo esse objeto de pesquisa de diversos autores, entre os quais Antunesi e Peroni, que enfatizam:
[...] entendemos que a mercantilização da educação pública não é uma abstração, mas ocorre via sujeitos e processos. Trata-se de sujeitos individuais e coletivos que estão cada vez mais organizados, em redes do âmbito local ao global, com diferentes graus de influência e que falam de diferentes lugares: setor financeiro, organismos internacionais, setor governamental. Algumas instituições têm fins lucrativos e outras não, ou não claramente, mas é importante destacar que entendemos as redes como sujeitos (individuais e coletivos) em relação com projetos de classe (ANTUNESI; PERONI, 2017, p. 186).
O Estado atuando com ação complementar ao mercado é cada vez mais percebido; não se trata de uma “saída de campo” do Estado, mas, sim, de novas configurações de PPP, onde ele continua a gerenciar, fiscalizar e remodelar as parcerias, tal qual nos dizem os autores:
Em síntese, observa-se que a atuação coordenada entre os entes governamentais e as redes de filantropia empresarial são orientadas pela concepção de governança, seja como método de ação, ou como princípio de gestão. Resta evidente que temos um movimento do campo empresarial em direção ao campo educacional, ‘colonizando-o’ não apenas com o discurso gerencial, mas também com a criação de metodologias, normas, orientações oficiais, porém não regulamentadas, acordadas entre os atores que pactuaram este empreendimento (CAMPOS; DURLI; CAMPOS, 2019, p. 175).
Essa lógica de mercado vem sendo incorporada também nas políticas curriculares, a exemplo da BNCC (BRASIL, 2017), para as quais as “Competências e Habilidades” devem ser almejadas desde a Educação Infantil, para dessa forma preparar o cidadão para o pleno exercício do trabalho. Nesta ótica, estimula-se a competividade desde a tenra idade por meio de projetos de empreendedorismo, criando a falsa ideia de que existe imparcialidade nas oportunidades e que a responsabilização do fracasso ou sucesso depende exclusivamente do sujeito, pela lógica da meritocracia. Tendo isso em vista, a seguir o texto apresenta algumas ações atuais do governo federal, que são temerárias para a democratização da Educação Infantil pública e gratuita.
2.1 Governo Bolsonaro na inculcação da educação privatista
Em relação à política educacional para a Educação Básica, em especial para a Educação Infantil, no governo Bolsonaro indica-se a necessidade de “dar um salto de qualidade na educação com ênfase na infantil, básica e técnica, sem doutrinar” (PROGRAMA DE GOVERNO, 2018, p. 22), e, ainda, enfatiza ser necessário “inverter a pirâmide: o maior esforço tem que ocorrer cedo, com a Educação Infantil, Fundamental e Médio. Quanto antes nossas crianças aprenderem a gostar de estudar, maior será seu sucesso” (PROGRAMA DE GOVERNO, 2018, p. 45). Assim, a disputa ideológica foi anunciada:
Além de mudar o método de gestão, na Educação também precisamos revisar e modernizar o conteúdo. Isso inclui a alfabetização, expurgando a ideologia de Paulo Freire, mudando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), impedindo a aprovação automática e a própria questão de disciplina dentro das escolas (PROGRAMA DE GOVERNO, 2018, p. 46).
A proposta afirma que os recursos empregados na Educação seriam suficientes, porém mal geridos. Isso se confirma com a atuação de seu governo, por meio de uma série de medidas provisórias, portarias e projetos de lei em curso; a privatização ganha força, e a disputa ideológica voltada para o empreendedorismo sobressai.
Em relação à privatização, uma política do governo diretamente ligada à Educação Infantil, motivadora desta pesquisa, é o Decreto Presidencial n.º 10.134, de 26 de novembro de 2019. Ele prevê de forma irrestrita a ampliação de alternativas de privatização das Instituições de Educação Infantil.
Art. 1º Fica a política de fomento aos estabelecimentos da rede pública de Educação Infantil qualificada no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República – PPI, para fins de estudos de viabilidade e de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para construção, modernização e operação de estabelecimentos da rede pública de Educação Infantil dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Parágrafo único. Os estudos referidos no caput terão por finalidade a estruturação de projetos-pilotos, cuja seleção será definida em ato do Secretário Especial do Programa de Parcerias de Investimento da Casa Civil da Presidência da República (BRASIL, 2019).
Uma das formas de oferta privatista que podem servir de modelo para tais propostas são os vouchers, em cuja prática o dinheiro público compra vagas particulares para as famílias que preferem que seus filhos estudem em escolas particulares, tendo geralmente uma complementar participação da família na compra da vaga.
Parte fundamental de sua lógica baseia-se na suposição de que alunos do ensino privado cursariam uma escola melhor e que a concorrência e a disciplina do mercado levariam, necessariamente, as escolas a serem mais inovadoras e sensíveis às demandas da comunidade (KLEES; EDWARDS JR, 2015, p. 16).
Este modelo, de acordo com os estudos realizados por Klees e Edwards Jr., pode aumentar a desigualdade, pois as famílias com melhor poder aquisitivo poderiam enviar seus filhos para as instituições particulares e, na medida em que aumentam os vouchers, “as escolas públicas tornar-se-iam repositório de crianças mais pobres, de estudantes considerados ‘difíceis de educar’ e de pessoas com necessidades especiais” (2015, p. 16). Além disso, o voucher diminuiria a atenção às escolas públicas, pois se presume que a competição resolveria os problemas sem custos adicionais, além do que essas escolas podem ser geridas por grandes corporações. Pesquisas apontam que,
Por décadas, políticas privatistas têm causado danos incalculáveis a crianças e adolescentes, lesados no acesso à escolaridade em virtude de cortes orçamentários. Não há evidências de que [...] vouchers melhorem os resultados ou a eficiência das escolas, mas há evidências de que os vouchers exacerbam desigualdades. Argumentos de apoio a financiamento baseado em resultados podem parecer superficialmente sensíveis, mas ignoram quatro décadas de prática que evidenciam seu fracasso (KLEES; EDWARDS JR, 2015, p. 23).
Ressaltamos que as privatizações tendem a aumentar o abismo de desigualdades sociais na educação; o que de fato precisamos é de uma gestão participativa e integrada por familiares, professores, gestores, em que os impostos pagos pelos cidadãos se revertam em benefícios reais garantidos pela Constituição Federal, que ainda sobrevive, mesmo que a duras penas. Os mecanismos de fortalecimento da educação precisam passar pela melhoria das escolas, desde a formação docente, sua condição de trabalho e salarial, até chegar aos recursos prediais e materiais de qualidade. No site de Freitas (24 fev. 2020) 8 temos a prorrogativa de que
As terceirizadas (charters) são um meio de se destruir a “escola pública de gestão pública” e criar mercado (com recursos públicos). Uma vez criado, os vouchers ganham prioridade. Os recursos garantidos às terceirizadas por contrato terão agora que ser disputados no mercado de vouchers e passam a depender da escolha dos pais, que são os portadores dos vouchers.
Diante de medidas e políticas que concorrem para desqualificar a educação pública e ampliar a destinação dos recursos financeiros públicos para o setor privado, este texto é uma possibilidade de ampliar a reflexão e valorizar as diferentes formas de mobilizações propositivas e resistências organizadas por grupos progressistas, que defendem a democratização da escola pública e gratuita, buscando saber como se organizam, qual o conteúdo de suas propostas de resistências e até que ponto estão conseguindo influenciar na mediação das políticas e projetos para a educação pública, em momentos de extremo conservadorismo, que desqualifica a escola pública e os profissionais que ali atuam. Neste sentido, concordamos com Freitas (2018) ao anunciar que
O presente período de resistência que se abre em nosso país tem características que o tornam motivo de preocupação e estudos específicos que revelem suas características próprias. Enquanto eles não chegam, é preciso arriscar entendimentos. Isso é necessário para que questionemos nossas estratégias e táticas de luta com vistas a uma resistência propositiva. Neste sentido, a resistência deve se converter, ao final, em um caminho para novo avanço e isso é, em última instância, o que deve motivar a resistência (FREITAS, 2018, p. 906).
Nesta vertente de pensamento, este texto destaca em específico o MIEIB como um destes espaços de resistência, como aponta a seguir.
2.3 O Lugar dos Movimentos Sociais: MIEIB
Cabe ressaltar, neste cenário de privatizações, o lugar ocupado pelos movimentos sociais, de luta por uma Educação Infantil de qualidade para todas as crianças. Faria (2005) coloca que a primeira proposta nacional para uma política pública de educação para crianças abaixo de 3 anos de idade derivou do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e do Conselho Estadual de São Paulo da Condição Feminina, entre os anos de 1986 e 1989, traduzida no documento “Creche-Urgente”, o qual apresentava a creche como um direito das famílias e das crianças. No site do Mieib, temos que os Fóruns Estaduais já existentes neste período sentiram a necessidade de se unir em articulação nacional devido ao acompanhamento que faziam em diversas frentes de políticas educacionais.
Essa articulação foi instituída oficialmente na cidade de Caxambu – MG, em 1999, por ocasião da 22ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPED), associação esta que agrega pesquisadores também na área de Educação Infantil. Nesta ocasião, houve a criação do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil9, constituindo-se como movimento social que defende a Educação Infantil pública, laica e de qualidade.
Sua origem derivou da associação de 7 Fóruns Estaduais de Educação Infantil (São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Ceará, Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul), e hoje o MIEIB agrega 26 Fóruns Estaduais e o Distrito Federal, sendo aproximadamente 41 Fóruns regionais e municipais. Desde então, discute temas de relevância no cenário nacional de políticas educacionais para a Educação Infantil (MAUDONNET, 2019).
Os Fóruns de Educação Infantil são denominados como
[...] espaços suprapartidários, articulados por diversas instituições, órgãos e entidades comprometidas com a expansão e melhoria da educação infantil, num determinado estado, região ou município. São espaços permanentes de discussão e atuação, não se restringindo a um “encontro” ou “seminário” (MIEIB, 2002, p. 196).
Dada sua organização, todos os Fóruns seguem as orientações do MIEIB, expressas em diversas formas de registros documentais frente a posicionamentos públicos, cartas dos encontros, boletins, o que tem “evidenciado sistematicamente sua participação e a incidência nas políticas públicas da área, explicitando para sua audiência interna (membros e simpatizantes) e externa (legisladores, formuladores de políticas públicas) seus êxitos” (MAUDONNET, 2019, p. 193).
Dada a orientação do MIEIB, os Fóruns Estaduais constroem suas próprias pautas, de acordo com a realidade e a necessidade que apresentam. Nesse sentido, encontram espaço de luta e militância por uma Educação Infantil de qualidade nos diferentes Estados.
Em sua trajetória, o MIEIB participou de lutas pela garantia dos direitos das crianças. Dentre tais ações, destacamos o reconhecimento da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, como uma das conquistas mais importantes. Outra é a inclusão da Educação Infantil no financiamento da Educação Básica e ainda a participação na organização de documentos, tais como: Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (DCNEIs); Parâmetros Nacionais de qualidade para Educação Infantil; Participação no Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de equipamentos para a rede escolar pública de Educação Infantil, por meio do Proinfância; Política de Educação Infantil do campo, dentre outras (MIEIB, 2016).
Diante dessa complexidade de abrangência, a pesquisadora enfatiza:
Contudo, o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil não é um movimento homogêneo e livre de tensões e contradições. Como movimento social, há dilemas a serem enfrentados pelos participantes, que parecem se ampliar conforme este vai ganhando mais visibilidade e legitimidade. Dentro do próprio movimento, há diferentes posições e forças políticas e grupos mais fortalecidos e legitimados têm conseguido maior adesão para seus posicionamentos (MAUDONNET, 2019, p. 193).
Uma forma de manter a união em prol dos mesmos objetivos está na Carta de Princípios do MIEIB, seguida pelos diversos Fóruns de Educação Infantil Estaduais, cujos princípios básicos10 são:
A garantia de acesso às crianças de 0 a 06 anos aos sistemas públicos de educação;
O reconhecimento do direito constitucional das crianças de 0 a 6 anos (independentemente de raça, idade, gênero, etnia, credo, origem sócio- econômica-cultural, etc.) ao atendimento em instituições públicas, gratuitas e de qualidade;
A destinação de recursos públicos específicos e adequados, imprescindíveis ao bom funcionamento dos sistemas de Educação Infantil;
A indissociabilidade cuidar/educar visando o bem-estar, o crescimento e o pleno desenvolvimento da criança de 0 a 6 anos;
A implementação de políticas públicas que visem à expansão e a melhoria da qualidade do atendimento educacional abrangendo toda a faixa etária 0 a 06 anos;
A identificação da Educação Infantil enquanto campo intersetorial, interdisciplinar, multidimensional e em permanente evolução (MIEIB, 2017).
Para além dos princípios básicos, a carta apresenta, ainda, objetivos, critérios norteadores de ações e estratégias. Sempre atento às demandas envolvendo a Educação Infantil, o MIEIB se manifestou quanto ao Decreto Presidencial n.º 10.134, publicado no dia 26 de novembro de 2019 (que permite de forma irrestrita a ampliação de alternativas de privatização das Instituições de Educação Infantil). Seu posicionamento contrário recusa a privatização da Educação Infantil pública, pois essa ação viria a desresponsabilizar o Estado quanto à oferta pública, incentivando, segundo o Mieib11, citado por Freitas (29 jan. 2020),
[...] a promover a oferta educacional de forma compartilhada com o setor privado e colocando em risco aspectos imprescindíveis para essa etapa da educação básica, tais como a gestão democrática e parâmetros de qualidade da oferta quanto à infraestrutura, proposta e materiais pedagógicos, contratação de profissionais habilitados, atendimento educacional especializado, dentre outros.
Da mesma forma que o MIEIB, defendemos uma Educação Infantil pública, gratuita, laica, inclusiva, democrática e de qualidade social, sem que seja alvo da mercantilização dos interesses capitalistas. Após a manifestação do MIEIB, os diferentes fóruns socializaram a carta em seus estados e contribuíram com o debate não apenas com professores e profissionais da área, mas também com a preocupação de explicitar às famílias/comunidade as reais intenções da privatização.
A articulação e o fortalecimento dessas parcerias serão vitais para o movimento nos próximos anos de governo Jair Bolsonaro (2019/2022). O novo presidente sinalizou durante a campanha eleitoral para políticas de criminalização de movimentos sociais e suas declarações públicas podem transformar esses movimentos, ao invés de avaliadores e propositores de políticas públicas, em inimigos públicos (MAUDONNET, 2019, p. 213).
Assim, consideramos que é de maior urgência fortalecer as pautas de discussões a respeito da defesa do direito à Educação Infantil pública, de gestão pública, gratuita, laica, inclusiva e de qualidade social e neste escopo é também de suma importância destacar e fortalecer a atuação de redes políticas (BALL, 2014) na área da educação, que agregam instituições tais como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Rede Nacional Primeira Infância (RNPI) e os Fóruns Nacional e Estaduais. A mobilização dessas redes é vital diante da possibilidade concreta de um retrocesso das conquistas, o que coloca em dúvida a continuidade da existência da EI, tal como nos marcos legais citados anteriormente.
Os Fóruns (Nacional e Estaduais) destacados neste estudo são espaços que primam pelo debate e reflexão formativa sobre as demandas políticas e pedagógicas que subsidiem as necessidades emergenciais da causa, como é o enfrentamento da defesa das políticas de fundo públicos (FUNDEB) para a educação pública e outras situações que estamos vivenciando, que contrariam as pautas progressistas e a luta por uma educação pública de qualidade socialmente referenciada.
Considerações Finais
No que tange às políticas educacionais para a Educação Infantil brasileira, deparamo-nos com questões que impactam diretamente em sua oferta, seja no financiamento, no qual a tramitação do FUNDEB tem um grande impacto e sofre pressões que ameaçam a educação pública, seja nos arranjos em que as Parcerias Público-Privadas levam às políticas de vouchers, seguindo modelos estrangeiros, na ótica neoliberal e/ou ainda nas implicações teóricos metodológicas e ideológicas que as políticas direcionam, como no caso da meritocracia e do empreendedorismo, aplicadas já nos primeiros anos de escolarização.
Em detrimento dos documentos de políticas produzidos anteriormente e citados brevemente neste texto, em um movimento de tensões e contradições e de limites, mas, também, de conquistas, a Educação Infantil segue ameaçada. As ameaças ocorrem, principalmente, no que se refere ao direito de gratuidade, o que engendra um processo permanente de luta e resistência por agentes da sociedade como um todo e daqueles militantes da causa, no qual o MIEIB tem se destacado em diversas frentes em suas ramificações representadas por todos os Estados brasileiros e Distrito Federal, visando à manutenção dos direitos conquistados. Entendemos que esses Fóruns, mesmo de forma precária diante da força neoliberal conservadora que flagela os direitos sociais, se arriscam em ações de forma propositiva e resistente e precisam ser mais bem estudados em suas ações e proposições, o que não foi possível aprofundar aqui, dado o limite do texto.
Concluímos, então, de forma ainda preliminar, que será aprofundada em estudos futuros, que o MIEIB se constitui em um importante espaço qua atua em redes políticas de forma propositiva, elabora e socializa manifestações, cartas e documentos que têm, historicamente, contribuído com o debate e a formação política não apenas de professores e profissionais da área, mas também no sentido de explicitar às famílias e comunidade de forma geral as reais intenções das políticas e ações governamentais na área da educação pública. Dessa forma, consegue atuar no movimento de elaboração e avaliação das políticas públicas para a Educação Infantil.
A Educação Infantil precisa considerar o sujeito na sua totalidade, de forma transformadora e emancipadora e tratar as crianças com isonomia de direitos. Esse é o nosso ideal e esforço diário na resistência contra a privatização que serve aos interesses hegemônicos do Estado, principalmente no que temos presenciado no governo de Bolsonaro. Finalizamos desejando que este trabalho sirva de estímulo para novas pesquisas que, na práxis transformadora do real, denunciem a barbárie da investida privatista em toda a área da educação, bem como, em especial neste texto, na área da Educação Infantil.