PARA INICIAR
Escrever histórias para crianças numa linguagem que elas compreendam e amam, é proesa que equivale a entrar numa nursei minúscula, sem amassar os brinquedos nem acordar os bebês que dormem. Para essa excursão perigosa é preciso ter pés de seda.1
Erico Veríssimo (Revista do Globo, 16 de janeiro de 1937, nº 198)
A Revista do Globo foi selecionada como objeto e fonte para este estudo, “compreendendoa como expressão de práticas e de lógicas integrantes de um sistema cultural” (VELLOSO, 2006, p. 313), na perspectiva de se entender como a literatura infanto-juvenil de Erico Veríssimo foi divulgada em suas páginas. Com esta finalidade, mapeiam-se e examinam-se os livros escritos por Veríssimo e veiculados pela Revista do Globo nas seções infantis e nos anúncios sobre literatura presentes nas páginas do periódico desde as primeiras ocorrências possíveis de se localizar, considerando-se a peculiaridade da pesquisa histórica que privilegia a seleção, o tratamento e a análise de fontes documentais como os periódicos, neste caso, a revista, e sua potencialidade para a investigação.
Acredita-se que, conforme pesquisas realizadas por Chartier, as fontes não têm sentido estável, universal e cristalizado, já que são investidas de
significações plurais e móveis, construídas da negociação entre uma proposição e uma recepção, no encontro entre formas e motivos que lhe dão sua estrutura e as competências ou expectativas dos públicos que delas se apoderam (CHARTIER, 1990, p. 103).
A revista, entendida como uma “obra em movimento”, é “articulada ao cotidiano e tem a capacidade de intervenção mais rápida e eficaz” (VELLOSO, 2006, p. 313). A Revista do Globo surge no ano de 1929, contexto que se destaca como particularmente expressivo, dado se tratar do momento em que se inicia o processo da moderna comunicação de massa, capaz de afetar a dinâmica do campo cultural e da história intelectual, conforme Velloso (2006).
A Revista do Globo, uma das mais importantes produções da Editora, não pôde ser localizada em acervos fora do Rio Grande do Sul, onde as várias edições estão concentradas nos arquivos do Espaço de Documentação e Memória Cultural - Delfos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul2.
No presente estudo, além de mapear os livros infantis de Veríssimo, procura-se contextualizar a Revista do Globo, problematizando sua linha editorial, os aspectos relacionados à sua produção, à circulação e à possível capacidade de formar a opinião pública. Considerando a extensão do quantitativo de volumes da revista disponíveis para consulta3, foi necessário estabelecer um recorte temporal para a análise, a década de 1930, focando os anos de 1935, quando os livros para crianças e jovens escritos por Erico Veríssimo começam a ser publicados, especificamente, com A vida de Joana D’Arc, a 1939, com a publicação de Aventuras no mundo da higiene. Nesse sentido, Prost (2008) elucida esse elemento constitutivo da operação historiográfica, demonstrando a necessidade de se classificar os acontecimentos e estabelecer uma periodização, que permita pensar, a um só tempo, continuidades e rupturas.
Ao longo da década de 1930, a Revista do Globo foi publicada quinzenalmente, sem interrupções. Seu acervo encontra-se completo, organizado e sob a guarda do Espaço Delfos/PUCRS, com acesso virtual. Por isso, foi possível utilizar ferramenta de busca, na qual foram inseridos: “Erico Veríssimo”, “Literatura Infantil” e os títulos das obras infanto-juvenis do escritor gaúcho. Desta forma, foram localizadas propagandas, notícias e pequenas notas sobre os livros escritos por Veríssimo, destacando-se os números 165 (20 de julho de 1935), 213 (11 de setembro de 1937), 235 (27 de agosto de 1938), 237 (30 de setembro de 1938), 243 (14 de janeiro de 1939) e 253 (10 de junho de 1939) do periódico. Ademais, ressalta-se que o número 165, publicado no dia 20 de julho de 1935, trazia na capa uma representação de Joana D’Arc, em armadura reluzente, empunhando uma espada e cercada por flores, tudo sob um fundo azul; nas páginas da mesma edição podem ser lidas matérias sobre a vida de Joana D’Arc, assim como informações sobre um filme que narra sua vida.
O presente estudo está dividido em duas seções. A primeira intitulada A Revista do Globo: o “quinzenário da vida social”, na qual se propõe um olhar mais apurado sobre o periódico, enfocando sua proposta editorial e aspectos materiais. Os livros infanto-juvenis de Veríssimo na Revista do Globo, segunda seção, destaca os livros de autoria de Erico Veríssimo divulgados pelo que pode ser considerado o principal periódico produzido pela Livraria e Editora do Globo.
A REVISTA DO GLOBO: O “QUINZENÁRIO DA VIDA SOCIAL”
De início, fez-se necessário investigar a própria história da revista. Lançada em 1929 pela Livraria e Editora do Globo, A Revista do Globo4 tinha como proposta editorial ser um “Quinzenário de Cultura e Vida Social”. Com 56 páginas em média, que retratavam a vida social de Porto Alegre e contribuições literárias de leitores, funcionava como uma espécie de vitrine dos autores e dos lançamentos e projetos da Livraria e Editora do Globo. Direcionada para homens, mulheres e crianças, com periodicidade quinzenal e tiragem de cerca de 8 mil exemplares a cada edição, de acordo com estudos divulgados no Catálogo Literário da Revista do Globo e publicados no site do espaço Delfos. Foram publicados 941 fascículos e dois números especiais: um sobre a Revolução de 19305 e outro sobre uma grande enchente ocorrida na cidade de Porto Alegre em 19416.
A revista surgiu em um momento de instabilidade, tanto nacional quanto internacional7, que culminou em modificações dos modos de vida, além de novos hábitos e costumes. No Brasil, novos grupos sociais precisaram ser incorporados à vida política, econômica e social. Produto desta conjuntura, a Revista do Globo legitimou-se como um veículo informativo, e, principalmente, moderno, que dava visibilidade às práticas culturais, visto estar voltada, pelo menos no início, para a literatura, mas dotada também de elementos jornalísticos.
O exame da Figura 1 permite identificar como a revista se declarava “A maior e melhor revista do sul do Brasil”. Marcada por capas em que a figura feminina tem maior destaque; a primeira edição, Figura 2, é reconhecida por uma mulher futurista sobre fundo negro, com cabelo de corte channel, abraçando um globo dourado8, fruto do trabalho de Sotero Cosme9. Muitos trabalhos sobre a Revista do Globo trazem a imagem desta capa icônica, que se tornou uma espécie de marca registrada do periódico. A grande maioria das edições da Revista do Globo estampava em suas capas mulheres com ar moderno, com cabelos mais curtos, em roupas de praia, bronzeadas ou em trajes característicos do hipismo, representações que fugiam ao ideal feminino divulgado até então.
Em sua maioria, as capas do periódico foram elaboradas por artistas do Rio Grande do Sul, que também trabalhavam as fotografias que, porventura, estampassem as capas, atribuindo cores artificialmente às imagens. Esses artistas foram estudados em diversas pesquisas sobre a revista e seu design10.
Os editoriais são considerados importantes objetos de estudo para o conhecimento da proposta ideológica do impresso. O primeiro editorial da Revista do Globo foi assinado pelo então diretor Mansueto Bernardi e trazia uma espécie de declaração de propósitos. Nele, eram reafirmados os ideais da revista:
Se propõe registrar e divulgar, com o auxílio da Livraria do Globo, tudo o que no Rio Grande houver e doravante ocorrer digno de registro e divulgação. E ainda Revista do Globo porque deseja constituir uma ponte de ligação mental e social entre o Rio Grande e o resto do mundo (Revista do Globo, Ano 1, nº 1 - Preâmbulo, 1929).
Cabe ressaltar que o editorial menciona a intenção de publicar tudo o que for considerado “digno de registro e divulgação”. Mas quem decide o que é digno de ser registrado e divulgado pelos impressos? Sob a direção de Erico Veríssimo por alguns anos da década de 1930, a Revista do Globo publicou um grande número de textos literários infantis, juvenis e para adultos, além de notícias sobre os eventos e a sociedade porto-alegrense e gaúcha. As seções destinadas às leitoras também estavam presentes, sugerindo tendências da moda inspirada em Paris, regras de vestimenta adequada para as senhoras, as bênçãos de ser mãe, cuidados com o cabelo. Desse modo, o que seria “digno de registro e divulgação” dizia respeito a uma classe econômica mais abastada, que frequentava bailes e usava roupas que estivessem condizentes com a moda inspirada nos modelos europeus, representantes da modernidade.
Comandando a oficina gráfica da casa editora, Veríssimo teve que escrever, de improviso, textos que ocupassem espaços vazios na Revista do Globo, conforme narra em sua autobiografia:
Com frequência os nossos paginadores me telefonavam da oficina, comunicando-me que necessitavam de matéria para encher um espaço vazio de alguns centímetros, no fim duma página. “Espere um minuto!” - dizia eu. Punha papel na máquina de escrever e improvisava um poema à maneira oriental, atribuindo-o a um poeta árabe, chinês, japonês ou persa, todos imaginários, e mandava-o para o linotipista. Não raro vinha lá de baixo um chamado aflito: “Faltam ainda cinco linhas!”. Eu então ditava pelo telefone os versos suplementares em que apareciam amendoeiras floridas, cálidas areias do deserto, rosas dos jardins do Alhambra, luares sobre o Ganges... “Chega?” Havia uma pausa. “Agora tem uma linha sobrando...” - dizia o paginador. “Bom, tire fora essa flor de lótus. Faça ponto onde se lê desceu ao jardim”. (VERÍSSIMO, 2005, p. 237)
Outro aspecto relacionado a padrões de comportamento feminino foram os concursos de beleza realizados nos anos 30 do século XX. As candidatas do concurso “Mais Bela do Rio Grande do Sul” foram apresentadas em reportagens e entrevistas, que podem demonstrar como certos padrões de beleza e comportamento feminino foram reforçados por meio do impresso da Livraria e Editora do Globo.
No editorial ainda se afirmava que a revista buscava a formação e a revitalização da mentalidade nacional, estando “fora” e “acima” de partidos políticos, buscando assumir uma postura “neutra”. Assim, seus diretores tentavam transmitir uma sensação de pertencimento à sociedade, sem afastar possíveis leitores por filiações políticas.
Ainda, ao apresentar Getúlio Vargas em suas reportagens, o periódico se vale das imagens e fotografias como elemento de construção de significados e representações acerca da figura do gaúcho como instrumento político, antes mesmo da criação do Departamento de Imprensa e Propaganda, em 1939. Vargas foi retratado, de um lado, como o gaúcho que mantém suas raízes enquanto participa de um movimento de renovação política e social, demonstrando ter as qualidades necessárias para guiar a nação; por outro, com a consagração da figura política, Vargas passa a ser representado como o chefe da nação, um verdadeiro estadista. Até mesmo as imagens de Vargas veiculadas nas capas ou em matérias internas mudam do gaúcho vestido com elementos regionais para a figura austera e moderna do Presidente da República.
Entre os ilustradores que atuavam em diferentes projetos da Livraria e Editora do Globo, figuravam nomes importantes das artes plásticas do Rio Grande do Sul, como Ernest Zeuner, Sotéro Cosme, João Fahrion, Edgar Koetz e Francis Pelichek, difusores do Modernismo11 no sul do país. Naquele momento, as revistas apresentavam-se como “órgão de ponta na construção, na veiculação e na difusão do ideário moderno” (VELLOSO, 2006, p. 316). Mas, se no início, a revista utilizava apenas ilustrações12, com a modernização da imprensa na década de 1940, passou a utilizar também fotografias.
No início da pesquisa documental com a revista, foi necessário registrar informações catalográficas, como número, ano, preço de venda, e, em seguida, o sumário, assim como a equipe editorial. Na análise de uma fonte histórica, o pesquisador deve sensibilizar-se pela organização tanto discursiva quanto material, os documentos devem ser estudados, também, em si mesmos, articulando aspectos materiais e discursivos, condições de produção e utilizações estratégicas (CHARTIER, 2002).
A Revista do Globo teve como primeiro diretor Mansueto Bernardi, sendo sucedido, brevemente por João Pio de Almeida, por Octávio Tavares, Erico Veríssimo, Luiz Estrela, Justino Martins, Henrique D’Ávilla Bertaso e José Bertaso Filho. Veríssimo figura ainda como secretário da publicação, que circulou por um período longevo de 38 anos. Ao longo desse período, Veríssimo exerceu a função de secretário a partir do início do terceiro ano de publicação da revista, nela permanecendo até o final do quarto ano de publicação. Sendo assim, figura nessa função por 49 fascículos.
Nas páginas da revista, imagens e textos dividiam espaço com muitas informações, assuntos literários e artísticos, assim como acontecimentos políticos, novidades sobre a moda, o cinema e esportes. Na perspectiva de De Luca (1999), os magazines anteriores a Revista do Globo já
pretendiam revelar a moda do dia, as regras do bom gosto e bem viver, numa palavra, todo o necessário para que o seu leitor, em geral pertencente aos extratos médios da sociedade, pudesse se familiarizar com os padrões de elegância das classes abastadas (DE LUCA, 1999, p. 58).
Um conjunto de materiais educativos, como livros, periódicos e folhetins, que partilham com a instituição escolar o espaço de transmissão de valores culturais, foi disseminado após a emergência da imprensa no Brasil, ainda no século XIX. Os meios de comunicação podem ser compreendidos, portanto, como espaços informais de educação (PALLARES-BURKE, 1998), e a Revista do Globo disseminava conhecimentos sobre literatura, entre outros, para a população do Rio Grande do Sul e dos demais estados brasileiros.
O estudo da produção impressa vem ganhando espaço, na medida em que possibilita a compreensão do cenário de urbanização e modernização da sociedade brasileira. Nessa perspectiva, a Revista do Globo configura-se como espaço potencial de pluralidade de vozes de seus editores, leitores e consumidores. Observa-se, contudo, a peculiaridade da pesquisa histórica que privilegia essas fontes. Comparadas a espelhos que refletem a realidade após distorções e refrações relativas à imprensa periódica, é preciso cuidado ao intérprete que estudará esse funcionamento, de acordo com Vieira (2007).
Intitulando-se uma revista “da cidade para o mundo”, a Revista do Globo alcançou leitores no Brasil e nas Repúblicas Platinas, tornando-se uma das maiores publicações nacionais e abordando os mais variados assuntos, conforme pesquisa realizada por Dalmáz (2002).
A leitura literária era assunto muito importante para o quinzenário. Ele trazia, já nas suas capas, ilustrações em que momentos de leitura eram destacados, em sua maioria, mulheres leitoras eram as retratadas. Verifique-se a Figura a seguir.
Contudo, a figura feminina não aparecia somente nas capas. Ela era veiculada nos anúncios sobre produtos de beleza, cuidados com a higiene e a saúde feminina.
Os livros sobre mulheres que tiveram seus nomes marcados na história, como Joana D’Arc, também eram veiculados no magazine. O livro de Erico Veríssimo, A vida de Joana D’Arc (1935), foi pensado para um público leitor específico, os jovens; e uma de suas propagandas afirma que esse seria “um presente ideal para o Natal”.
Contudo, não somente os livros apareciam em propagandas nas páginas da Revista do Globo. A revista carioca Fon-Fon13, por exemplo, também era anunciada nas páginas do periódico.
Sobre este anúncio é curioso notar que o mesmo ocupa toda a página da revista e apresenta a chamada “para andar ao corrente do que se usa no Rio”. Voltado para o público leitor feminino, o anúncio ainda informa que a leitura da revista Fon-Fon é “amena e instrutiva”, e finaliza com a frase reveladora de uma sociedade patriarcal, em que a renda familiar era responsabilidade do homem: “peça para o seu marido trazer-lhe Fon-Fon todas as semanas”. À mulher casada não era permitido trabalhar sem a autorização do marido, por isso a dependência financeira. A legislação vigente à época, o Código Civil de 1916, consagrava a superioridade masculina e dava ao homem o controle da família, uma vez que ao casar, a mulher perdia sua plena capacidade, tornando-se relativamente capaz, assim como os indígenas e as crianças. Tal situação só começaria a mudar em 1962, com a edição da Lei nº 6.121, o Estatuto da Mulher Casada, devolvendo plena capacidade à mulher, que passou a ser colaboradora na administração da sociedade conjugal e não precisava mais da autorização do marido para trabalhar, o que a levou a razoável independência financeira.
Importante ressaltar também que tal revista não era direcionada a qualquer leitora, mas àquela “elegante e fina”, que quisesse “andar sempre ao par do que há de mais moderno”, e o que havia de mais moderno era o utilizado no Rio de Janeiro, na Belle Époque, que buscava se tornar uma sociedade bem próxima dos padrões franceses. Não por acaso, a revista estava repleta de estrangeirismos franceses em suas colunas (MACENA, 2010), tornando-se, assim, um importante instrumento no processo de criação do ideário feminino durante o período do Estado Novo (1937-1945).
Às mulheres a Era Vargas preparou, cuidadosamente, um projeto pedagógico, uma cartilha de retorno das mulheres ao lar, lugar de onde poderiam servir a pátria e a família ao mesmo tempo. Servindo a família, estariam, imediatamente, servindo a nação. Voltadas para os problemas domésticos, alienadas do contexto político, alheias aos problemas sociais e apenas com a função de mãe / esposa / educadora, não lhes era permitida qualquer afinidade ou semelhança com as funções masculinas ou da pátria. (NAHES, 2007, p. 38)
Textos infanto-juvenis também eram publicados na revista, como Nico e o paraíso perdido e O burrico, o palhaço e outros bichos14, de autoria de Erico Veríssimo, foram publicados em 13 de agosto de 1932 e 27 de agosto de 1932, respectivamente. Os dois textos foram publicados na página de rosto do periódico, no ano de 1932, época em que Veríssimo ainda não havia iniciado a publicação de suas obras infanto-juvenis pela Livraria e Editora do Globo.
Para atrair o leitor infantil, a revista investia em estratégias que incluíam páginas com diagramação diferenciada e ilustrações, inclusive no cabeçalho. Tais recursos tornam clara a intenção da revista de cativar, por meio das imagens e dos textos, a atenção do leitor criança. No período de outubro de 1931 a 1936 Erico Veríssimo integrou a direção da Revista do Globo, e publicou diversos textos infantis e juvenis no periódico, evidenciando sua proposta literária, preocupada em alcançar adultos e crianças.
Na “Página Infantil”, além das fábulas, lendas, contos, histórias em quadrinhos e poemas publicados, fotografias de bebês e crianças ganhavam destaque, sempre indicando os nomes dos pais zelosos. Outra característica observada a partir de 1933 é a inclusão de propagandas de diversos produtos nessas páginas, nem sempre relacionados ao universo infantil.
OS LIVROS INFANTO-JUVENIS NA REVISTA DO GLOBO
As crianças tinham, portanto, lugar destacado nas páginas da revista, com fotografias publicadas nas seções “Creanças Bonitas” e “Página Infantil”, além das seções em que eram divulgadas as novas publicações para este público.
Na edição número 165 da Revista do Globo, em texto sobre o lançamento da biografia de Joana D’Arc para jovens, a editora apresenta uma defesa do estilo escolhido pelo autor Erico Veríssimo para narrar a vida da personagem.
[...] Erico Veríssimo, autor dos romances Caminhos cruzados e Música ao longe (a este último foi recentemente conferido o Grande Prêmio Machado de Assis), acaba de escrever para a Livraria do Globo uma VIDA DE JOANA D’ARC. O livro, que já se acha no prelo, a aparecer dentro de uma quinzena, é, em suma, o romance de Joana D’Arc. É a biografia sob forma de ficção. Sem fugir à verdade histórica, sem sugerir, nem sequer de leve, histórias de possíveis amores de Joana D’Arc, sem usar dos recursos tradicionalmente usados para dar caráter novelesco às biografias, Erico Veríssimo consegue contar-nos, lisamente, com colorido e leveza, a história da camponezinha predestinada. O que principalmente há de notar no livro é a ausência de conspicuidade na narrativa. Tudo é fluente e simples. Nada de classificações psicológicas. Nada de excursões psicanalíticas ao passado. Poucas, pouquíssimas datas. Nenhuma descrição cansativa. As cenas do livro se sucedem rápidas, leves, dando ao leitor, no fim, a impressão de movimento, de ação contínua e trepidante. [...] A VIDA DE JOANA D’ARC nos revela realmente uma nova maneira de tratar a biografia romanceada. É livro que se lê com o interesse que costumam despertar as boas novelas de aventuras. A obra será dentro de uma quinzena apresentada ao público do Brasil num belo volume de 16 cm de largura por 24 de altura. Cerca de 350 páginas de impressão nítida. A capa - um desenho em muitas cores - é de Nelson Boeira Faedrich, que também fez em negro e branco as letras capitulares, o ex-libris e o pórtico em estilo gótico. [...] (Joana D’Arc. In: Revista do Globo. Porto alegre, edição da Livraria do Globo, 20 jul. 1935. Ano 7, nº 165, p. 6-10.)
Ao defender o estilo de Veríssimo, a editora aproveita para incluir elementos que favorecem a publicidade do livro, com a utilização de adjetivos como “belo volume”, “impressão nítida”, “fluente e simples”, além de destacar o formato do livro, a quantidade de páginas, visualmente “coloridas e leves”, e a capa com a ilustração colorida, realizada por Nelson Boeira Faedrich15, também responsável pelas ilustrações internas da obra. Toda essa estratégia de destacar aspectos da obra que produzissem a certeza de que sua leitura seria instrutiva e prazerosa demonstra a intenção da editora de convencer os adultos que sua aquisição seria de grande importância.
Já no texto, intitulado “Pórtico para A Vida de Joana D'Arc”, o próprio Veríssimo explica para a heroína de sua história porque escreveu seu livro de forma simples e descomplicada, de forma a permitir a leitura por jovens. O autor já tinha sofrido críticas, e era acusado de escrever de forma muito simples, e se autointitulava um contador de histórias16 (VERÍSSIMO, 2005).
Outro texto publicado na mesma edição da Revista do Globo, uma poesia, o autor Sérgio de Gouvêa escreve sobre o Romance da menina Joana, dedicando-o “a Erico”. Acompanhada de uma imagem ilustrativa de Santa Joana D’Arc, afirma que a menina sonha com anjos e soldados que salvarão a França, que a aguarda despertar. Resume a história e anuncia que, ao lado de seus soldados, a menina salva o país e seu rei, mas é condenada à fogueira pelos ingratos que salvara da escravidão. Abraçada por Nossa Senhora, a Joana D’Arc pode voltar a sonhar, na eterna glória. E as indicações a Joana D’Arc continuam com fotos de filmes sobre a vida da jovem, imagem fac-simile da capa do livro escrito por Veríssimo, além de uma fotografia do autor das ilustrações da capa e das páginas internas do livro, Nelson Boeira Faedrich.
Em outra propaganda identificada nas páginas da Revista do Globo, nota-se a capa de 4 livros sobre mulheres, entre eles o livro escrito por Veríssimo, A vida de Joana D’Arc.
Mais uma vez, o livro de Veríssimo sobre a vida de Joana D’Arc surge encabeçando a lista de indicações da Livraria e Editora do Globo. Seguido por um livro sobre Cleópatra17, outro sobre Catarina II18 e outro sobre Cristina da Suécia19.
Contudo, as propagandas também apareciam em seções específicas, como a intitulada “Feira Livre”. Na seção do número 237 da Revista do Globo a casa editora divulga suas novas produções. Nela, lemos que os lançamentos enriquecerão a Biblioteca de Nanquinote com “mais cinco interessantes livros infantis”. Mesmo nessa pequena nota divulgada pela editora, não falta um atrativo para os pais dos leitores da Biblioteca de Nanquinote; note-se que a afirmação é que a coleção será “enriquecida” com a publicação dos livros, o que parece destacar a qualidade das novas obras, que deixarão a coleção ainda mais interessante.
A coleção de livros para crianças pequenas, Biblioteca de Nanquinote, reuniu, ao menos, 20 livros de autores do Rio Grande do Sul. Entre esses autores podem ser citados Erico Veríssimo e Mário Quintana. Veríssimo, além de escrever 7 livros para essa coleção, foi também seu idealizador. Seus livros foram publicados entre 1936 e 1939 em tal coleção, entretanto, outras obras suas compuseram coleções diversas da Livraria e Editora do Globo, visto sua destinação abranger diferentes faixas etárias.
Na mesma seção publicada no número 235 da Revista do Globo (Figura 9), é possível ler uma notícia sobre a próxima publicação da editora, o livro intitulado Viagem à Aurora do Mundo20. Dessa vez, a editora e sua direção se valem da estratégia de antecipar a notícia sobre o livro, criando expectativa sobre a obra. Além disso, deixam clara sua intenção de fazê-la circular pelas instituições escolares ao destacar seu caráter didático. Fato curioso acerca dessa obra é que em algumas propagandas era afirmado que não se tratava de uma produção para crianças.
Na próxima propaganda do livro localizada na Revista do Globo, mais uma vez a casa editora cria expectativa nos leitores ao divulgar que o livro estará “à venda dentro de dois meses”. Dessa vez, o livro recebe a caracterização de “original aventura científica”, mas não demonstra a intenção de que seja utilizado pelas escolas.
Se na propaganda presente no número 235 da Revista do Globo o livro juvenil Viagem à Aurora do Mundo é divulgado, frisando-se que a história conta com muito “senso de humor”, conduzindo o leitor por meio de um “romance didático” ao tempo da criação do mundo, e, ainda complementa-se afirmando que o livro “está fadado a obter grande êxito nos círculos escolares” de todo o país, com clara destinação às instituições escolares dos diversos estados e regiões do Brasil21, na propaganda veiculada no número 251 da revista, o livro de Veríssimo não é divulgado de forma isolada, mas é acompanhado pelo livro de Vianna Moog, intitulado Um rio imita o Reno22, e ainda é informado que o “festejado autor de ‘Olhai os Lírios do Campo’” é quem revela fatos sobre os animais pré-históricos. Tal distinção parece, por um lado, reafirmar a qualidade do livro juvenil, e por outro, “lembrar” aos leitores da revista sobre os demais livros escritos por Veríssimo.
Em nova edição da Revista do Globo (Figura 11), entre propagandas de outros livros publicados pela Livraria e Editora do Globo, seus editores afirmam que a Biblioteca de Nanquinote foi “enriquecida” com mais dois livros de Erico Veríssimo, ilustrados por dois dos mais famosos ilustradores da Livraria e Editora do Globo, Nelson Boeira Faedrich e Edgar Koetz.
Tais títulos seriam publicados na Biblioteca de Nanquinote, “enriquecendo” a coleção ainda mais, segundo os editores, demonstrando a importância de ter toda a série de livros. Esse movimento de organizar os livros em coleções seria uma forma de “conquistar e atender um público maior de leitores”, de fidelizá-los, de acordo com estudo23 sobre a história do livro na França, realizado por Isabelle Olivero (1999). A Revista do Globo, dessa forma, agia como veículo formador da opinião pública, na medida em que buscava convencer seus leitores que, ao adquirir os livros publicados para seus filhos, esses teriam um bom conhecimento sobre diferentes assuntos e, dessa forma, se destacariam na sociedade. Em certa medida, os livros possuem uma carga simbólica associada, por um lado, à emancipação do homem por meio do conhecimento, por outro, ao status de uma classe superior. Por essa lógica, aquele que lê bons livros possui uma experiência cultural de grande valor, capaz de torná-lo distinto para a sociedade em que vive.
O princípio da distinção é construído a partir da familiaridade e naturalidade dos indivíduos e grupos sociais com a cultura dita legítima, de acordo com Bourdieu (2015). Logo, os motivos para uma pessoa ser distinta não estão ligados à genialidade, mas às condições de instrução recebidas por esse sujeito, e a manifestação cultural estaria condicionada pelo poder socioeconômico. Essa ideia de “distinção social” nas propagandas da Livraria e Editora do Globo buscava convencer seus leitores da importância de se possuir algo que os destacasse dos demais, que os colocasse em uma posição de notoriedade na sociedade da qual faziam parte.
CONCLUSÃO
A Revista do Globo foi pensada, neste estudo, como fonte privilegiada de divulgação da literatura infanto-juvenil e dos livros escritos por Erico Veríssimo e outros escritores do sul do Brasil. Os livros e as várias coleções organizadas pela Livraria e Editora do Globo se consolidavam no cenário regional e nacional, enquanto eram divulgados pelo periódico, considerado por seus idealizadores uma eficiente forma de propaganda não somente das obras, mas também de seus autores.
Os discursos veiculados na Revista do Globo acerca dos livros infantis e juvenis de Erico Veríssimo devem ser pensados como estratégias para alcançar maior número de leitores, não só para esses livros, como também para os romances, novelas e contos editados pela Livraria e Editora do Globo, já que as famílias tomavam conhecimento dos novos livros publicados por meio das propagandas registradas na revista.
Os livros organizados em coleções tendem a seduzir o público, criando expectativas de leitura, tornando-o fiel. Desse modo, ao divulgar o livro A vida de Joana D’Arc junto a outros livros sobre figuras femininas, por exemplo, a Livraria e Editora do Globo demonstrava seu plano editorial, utilizando o nome do escritor Veríssimo para garantir a venda de outros livros por ela produzidos. Da mesma forma, ao divulgar os novos títulos da Biblioteca de Nanquinote nas páginas da Revista do Globo, os diretores do periódico procuravam, não só dar visibilidade às novas produções, como também aos livros já publicados, utilizando, inclusive, o nome de Veríssimo como garantia de leituras de qualidade para as crianças e jovens. Seu nome significava, dessa forma, bons livros e agradáveis leituras.
As diversas propagandas acerca dos livros e coleções publicadas refletem a intenção de convencer os leitores do quinzenário de que a aquisição das obras garantiria uma boa formação para crianças e jovens, além dos adultos, que teriam boa literatura à disposição. Contudo, o próprio periódico publicava leituras literárias, além das notícias e matérias sobre a vida social do estado do Rio Grande do Sul. Com textos que sinalizavam os costumes e a moda de Rio de
Janeiro e Paris, o magazine buscava apresentar para a sociedade porto-alegrense e gaúcha um estilo de vida considerado moderno, que colocaria a cidade e o estado mais próximos dos ideais de desenvolvimento social e cultural. As mulheres formavam um público leitor a ser alcançado, pois seriam tanto influenciadas e consumidoras dessa moda e cultura, quanto influenciariam filhos e maridos. Dessa forma, a Revista do Globo se caracterizava como um veículo formador da opinião pública e uma incentivadora de leitores literários.