Nenhuma filosofia, nenhuma análise, nenhum aforismo, por muito profundos que sejam, podem comparar-se, na intensidade e na riqueza de sentidos, a uma história bem contada (ARENDT, 1991, p. 33).
Introdução
Provocados pela leitura do livro O coração é um caçador solitário, de Carson McCullers (1917-1967), este artigo resulta do entendimento acerca da relevância de discutirmos e pensarmos sobre o fenômeno da solidão, temática que configura o cerne da obra. Publicado pela primeira vez em 1940, nos Estados Unidos da América, a autora coloca-nos em contato com o dilema da comunicação e da compreensão humana, razão pela qual se destaca, em vários momentos, a solidão das personagens: em meio a várias pessoas, são incapazes de se comunicar, isto é, de compartilhar suas ideias com alguém que as entenda.
Para a elaboração deste ensaio, partimos do pressuposto de que O coração é um caçador solitário é uma obra literária-filosófica (PAVIANI, 2003), porquanto com seu enredo, narrativa e personagens (elementos próprios à literatura), coloca-nos diante das vicissitudes da existência humana envolvida em situações que indagam sobre o sentido da vida, a verdade e a realidade (questões próprias à filosofia). Com isso em mente, objetivamos compreender a solidão para além de um dilema que a encerra em si mesma, mas, sobretudo, compreendê-la inserida no contexto dos tempos sombrios, fenômeno epocal em que se manifesta o ódio e a intolerância (a exemplo de manifestações machistas, racistas, xenófobas e homofóbicas) incentivados por uma espécie de obscurantismo anti-intelectual. Por essa razão, o artigo se desdobrará em proposições pedagógicas, uma vez que - na perspectiva que é a nossa - formação, de modo geral, e os processos de escolarização, especificamente, são perpassados pelas questões sociais (econômicas, políticas e culturais) que fomentam tempos sombrios neste mundo fora dos eixos.
Elementos sobre a solidão, a escuta e a compreensão
Na obra de McCullers, a primeira guinada à solidão acontece quando John Singer passa a habitar a vizinhança onde moram as demais personagens da estória, por ocasião da partida de seu amigo, Antonapoulos, que vai morar em um asilo. Singer é o primeiro a sentir a solidão, entretanto, com a sua mudança para o pensionato da família Kelly, a casa da família que fora transformada em pensão por conta das dificuldades econômicas - cenário comum nos Estados Unidos pós 1929, o início da conhecida Grande Depressão -, atraiu as demais personagens para sua órbita. O Sr. Singer é descrito como um homem sensato e sábio, alguém que tem algo de especial, razão pela qual, na esperança de serem compreendidas, as pessoas vão até ele. À sua maneira, cada personagem carrega consigo uma solidão particular: Mick Kelly, menina sensível, tem um talento especial para a música, mas ninguém o percebe; Jake Blount, alcoolista, esforça-se em apresentar, sem sucesso, ideias e ideais aos trabalhadores da cidade; Biff Brannon, proprietário do bar/restaurante sediado na vizinhança, leva uma vida, aparentemente, sem sentido, como se desejasse “explicar algo a si mesmo” (MCCULLERS, 2018, p. 37); Benedict Copeland, médico, dedica-se ao cuidado e à promoção da saúde dos pobres da cidade. Estas personagens, especialmente, seus anseios por compreensão e partilha de pensamentos convergem para o Sr. Singer “como os raios de uma roda para o centro” (MCCULLERS, 2018, p. 230). Quando ninguém mais parece capaz de entender as divagações ou “verdades” às quais eles estão dispostos a viver e a divulgar, é ao Sr. Singer que recorrem.
No contexto geral da vida em sociedade, análogo ao cenário que nos oferece McCullers, reina o modelo da convivência humana em grandes cidades, onde as pessoas são “coagidas” a se deparar com estranhos sem entabular qualquer conversação, isolando-se em seus aparelhos, descansando da jornada exaustiva de trabalho ou, simplesmente, observando a mudança de paisagem dentro dos ônibus abarrotados de gentes - “A desconfiança mútua entre os que haviam acabado de acordar e os que estavam encerrando uma longa noite dava a todos uma sensação de isolamento” (MCCULLERS, 2018, p. 38). A nova solidão, do século XX, não é mais a do isolamento físico. Ela acontece em meio à multidão. Uma sociedade que “destila solitários depressivos” (MINOIS, 2019, p. 410).
No romance citado, a cidade não é uma metrópole. Trata-se de um lugar ao Sul dos Estados Unidos, marcado pelo racismo, exclusão e, consequente, pobreza. A ocupação principal das personagens reside em sobreviver e, em Mick, uma pré-adolescente, em sonhar um futuro em que sua vida possa ser tal como almeja, fazendo uso de suas capacidades musicais para realizar-se. Mesmo que a narrativa explicite a condição solitária das personagens principais, é necessário distinguirmos entre solidão, isolamento e “estar só”.
Analisando o fenômeno totalitário em Origens do Totalitarismo, Arendt distingue esses conceitos para ampliar o escopo de compreensão dos acontecimentos que marcaram o Século XX. Para Arendt (2011, p. 528), “solidão não é estar só. Quem está desacompanhado está só, enquanto a solidão se manifesta mais nitidamente na companhia de outras pessoas”. Num primeiro momento, é notório que a solidão aflige as personagens e as leva a circundar um referencial de compreensão e comunicação que é o Sr. Singer, pois eles sentem a solidão, embora não nos pareça que se trate disso. Estão sempre rodeados de outras pessoas com quem conversam temas acerca da “vida”, mas isso não alivia a sensação de abandono, de alienação.
Na opinião de Epiteto [...], o homem solitário (éremos) vê-se rodeado por outros com os quais não pode estabelecer contato e cuja hostilidade está exposto. O homem só, ao contrário, está desacompanhado e, portanto, “pode estar em companhia de si mesmo”, já que os homens têm a capacidade de “falar consigo mesmos”. Em outras palavras, quando estou só, estou “comigo mesmo”, em companhia do meu próprio eu, e sou, portanto, dois-em-um; enquanto, na solidão, sou realmente apenas um, abandonado por todos os outros. (ARENDT, 2011, p. 528)
É interessante frisar que Arendt (2005, p. 341) concluiu sua obra sobre a “vida ativa” com uma citação de Catão, que está intimamente relacionada com o que estamos tratando agora: “nunca está ninguém mais ativo que quando não faz nada, nunca está menos só que quando está em companhia de si mesmo”.1 Essa frase registra o interesse da autora pelo “pensar”, que nos parece ser um tema fundamental apesar de não explorado nas Origens do totalitarismo. Em primeiro lugar, Arendt se situa no horizonte dos que não oporão “vida ativa” e “vida contemplativa”, reservando o “pensar” ao segundo modo. A faculdade de pensar é uma das atividades espirituais, portanto, não está relacionada à quietude e à passividade diante do “revelado”. Nesse sentido, o projeto intelectual de Arendt, que é compreender o que se passou naqueles anos sombrios, percorre as possibilidades de resistir e manter a dignidade, quando possível, num mundo “fora dos eixos”.
O homem solitário está rodeado por outros e desacompanhado de si mesmo. O homem só está desacompanhado de outros, mas não de si mesmo: capaz de pensar, realiza essa atividade quando está consigo mesmo e atualiza o “dois-em-um”. Por isso, nem todos os personagens que orbitam Singer são solitários. Mick, por exemplo, em grande parte da estória sempre está consigo mesma, capaz, inclusive, de experiências estéticas com a música que ouve nos rádios dos vizinhos (MCCULLERS, 2018), distinguindo quando habita o “mundo de dentro” e o “mundo de fora”:
Mick sentou na escada e apoiou a cabeça nos joelhos. Foi para o mundo de dentro. Para ela, era como se existissem dois lugares - o mundo de dentro e o mundo de fora. A escola, a família e as coisas que aconteciam todos os dias eram do mundo de fora. O Sr. Singer era dos dois mundos. Países estrangeiros, os seus planos para o futuro e a música eram do mundo de dentro. As músicas que ela ouvia na cabeça também. E a sinfonia. Quando ficava sozinha nesse mundo de dentro, a música que Mick tinha ouvido naquela noite depois da festa voltava à sua lembrança. A sinfonia crescia bem devagar, feito uma enorme flor, dentro da sua cabeça. Às vezes, durante o dia, ou quando ela tinha acabado de acordar, uma nova parte da sinfonia lhe vinha à cabeça de repente. Então, ela tinha que ir para o mundo de dentro e ouvir várias vezes essa parte nova e tentar juntá-la com as outras partes da sinfonia já gravadas na sua memória. O mundo de dentro era um lugar muito íntimo e secreto. Ela podia estar no meio de uma casa cheia de gente e mesmo assim ter a sensação de estar trancada num quarto sozinha. (MCCULLERS, 2018, p. 179)
Há atividade “espiritual” em Mick. Ela vai para o “mundo de dentro” para lembrar-se da sinfonia que escutara. A lembrança é a condição do pensar, porque pensamos sempre sobre o que passou, no caso de Mick, a música que já não está presente. A lembrança atualiza a música e, nesse momento, a música é de Mick, porque ela se apropriou de uma parte do mundo e almejava ser musicista, ou seja, contribuir para a preservação da sinfonia e com a produção da arte. No “mundo de dentro” não há necessidades ou preocupações com a “vida”, apenas aquele “tempo presente” em que o objeto se encarna num “aqui” e “agora”. No que tange à memória e ao pensar, para ambos, é preciso tempo: “pare e pense”, num sentido arendtiano, significa sair do mundo, temporariamente, interrompendo qualquer fazer, qualquer negócio - a negação do ócio. Para sair do mundo, pensar, por exemplo, não é necessária uma saída espacial, uma retirada completa para a privacidade do lar. Há uma suspensão temporária do mundo, mas o mundo continua presente porque Mick está no mundo e, também, uma parte dele, a sinfonia, está em sua memória.
Mesmo rodeada de gente, sentada na escadaria, Mick não está solitária. Nessa atividade que iniciou, ela está só, desacompanhada de outras pessoas. E é nesse “estar só” que se inicia a atividade do pensar, quando a personagem não é apenas uma, mas duas, no momento em que, ao pensar, estabelece uma relação consigo mesma na medida em que o pensar, na tradição platônica, como se apropria Arendt, é o diálogo silencioso comigo mesmo: “O pensamento é estar só, mas não é solidão; o estar só é a situação em que me faço companhia” (ARENDT, 2009, p. 207).
Assim, na perspectiva que compartilhamos com Arendt, fazer companhia a si mesmo é cultivar-se. Entretanto, no caso de Mick, teria sentido o cultivo de si sem conseguir comunicar seus pensamentos e seus desejos a outrem? Seus pais sabiam de seu “talento” para a música, mas ela buscava comunicar-se com o Sr. Singer, que não entendia tudo o que a menina expressava. Mick fazia companhia para Mick, logo, não era solitária. Porém, os leitores sabem que ao final do livro ela começa a trabalhar e o tempo restante é tempo de sobra, que lhe serve apenas para comer e dormir: “Agora ela não conseguia mais ficar no mundo de dentro. Tinha que estar o tempo todo perto de alguém. Tinha que fazer alguma coisa todo santo dia” (MCCULLERS, 2018, p. 333, grifo nosso). E fazer, segundo as categorias arendtianas de A condição humana (2005), não é pensar ou atuar, mas tem a ver com a fabricação (work) ou com o trabalho (labor), isto é, com as necessidades imperiosas da vida. Para o caso dos fazeres de Mick, cuidar dos irmãos, estudar e trabalhar, sequer o estudo parecia lhe proporcionar “tempo livre”. Ocupando o posto de trabalhadora, a vida se resumiu a “tempo produtivo”, isto é, tempo das necessidades, da produção com vistas ao fim ou a um futuro no qual o descanso exerce a função de recuperar energias para continuar trabalhando.
Algo similar, mas sob um viés marxista, era a “verdade” que, em discurso, o Dr. Copeland queria transmitir aos vizinhos e conhecidos: “Somos forçados a vender nossos corpos para podermos comer e sobreviver. E o preço pago a nós por isso é apenas o suficiente para que possamos ter força para continuar trabalhando para que outros lucrem” (MCCULLERS, 2018, p. 208). Entretanto, ao fim de seu longo discurso, concluiu: “Tempo perdido. Uma hora desperdiçada” (MCCULLERS, 2018, p. 214). Afirmou isto porque concluiu a noite sem que os ouvintes tivessem compreendido o que acabara de professar - restando a si solidão, amargura e raiva.
Deixando de lado as singularidades de cada personagem, cuja amplitude desse artigo não nos permite abordar, semelhante ao Dr. Copeland é Jake Blount, um anarquista socialista que compartilha de algumas das “verdades” de Copeland, mas ambos são incapazes de se entender, alimentando a raiva mútua e, no caso de Blount, um ressentimento próprio dos pobres (MCCULLERS, 2018). Ambos, tal como Mick, buscam compreensão no Sr. Singer, único que parece os ouvir verdadeiramente, compreender o que explanam e concordar com suas ideias. Mas, não é certo afirmar que o Dr. Copeland e Jake Blount pensavam acerca das “verdades” que queriam comunicar - sobre o significado daquilo. Muito menos arriscaríamos a dizer que eram capazes de “despertar” as pessoas para aquelas “verdades”. Com exceção das vezes em que estavam na companhia do Sr. Singer, Copeland e Blount terminavam suas falas a sós, pois não estavam dispostos a abandonar a segurança das suas “verdades” em prol daquelas - supostas ou potenciais - amizades.
As teorias, segundo as quais os dois intelectuais, Copeland e Blount, interpretavam a realidade eram totais, isto é, não havia a possibilidade da surpresa, do espanto, da paralisia, da dúvida ou do despertar. As teorias, como “verdades”, explicavam tudo. Bastava agir segundo os ditames enunciados e anunciados por eles, dedutivamente. Ansiavam que os ouvintes se abrissem para a “verdade”, mas não se dispunham a escutar. Tiranos na teoria e senhores da palavra. Aos oprimidos não caberia a busca de significado, apenas a adequação e o conformismo. Outra forma de controle, domínio e preconceito?
Portanto, é possível que para os dois a solidão fosse uma realidade, ao menos na medida em que estavam abandonados, inclusive de si mesmos. Incapazes de despertar, paralisar e espantar (no sentido filosófico) aos outros e por si mesmos. Talvez por não se espantarem, não duvidavam e não questionavam mais. Por seus turnos, representam os antípodas de Sócrates, cidadão e filósofo que conciliava duas atividades distintas: a ação e o pensar. Para Arendt (2009), Sócrates representa o “moscardo”, a “parteira” e o “peixe-elétrico”. Como “moscardo”, o filósofo despertava os cidadãos para o pensamento, para a investigação. Fazia-o mediante perguntas acerca das palavras que as pessoas usavam, mas cujas possibilidades de sentido não haviam dedicado tempo para investigar. Nem Copeland e nem Blount eram moscardos. Incomodavam, mas não despertavam ninguém. Possivelmente não estavam abertos aos pensamentos dos outros, não eram “parteiras”, modo socrático de trazer à luz os pensamentos alheios. Aliás, não se interessavam pelos pensamentos alheios, pois eram banais, triviais ou falsos. Sócrates, ademais, era considerado, metaforicamente, um “peixe elétrico”, que paralisava os demais, mas também estava paralisado com as perplexidades oriundas da atividade dialógica. A paralisia refere-se, também, ao “parar para pensar”. Ademais, exerce um efeito atordoante, deixando os interlocutores inseguros no que tange às suas compreensões de mundo. O pensar, quando acontece, tem a potencialidade de “varrer para longe todas as manifestações anteriores” (ARENDT, 2009, p. 196-197). Como eram “verdades”, não havia possibilidade de dúvida ou opinião (doxa). Elas explicavam tudo. Eram verdades absolutas que, ao fim e ao cabo, destruíam o espaço público: de diálogo, de liberdade e de igualdade.
Soma-se a esta reflexão o fato de que, em dado momento da estória, Copeland, Blount, Mick e Brannon encontraram-se no quarto de Singer, mas, para a surpresa dos leitores e, principalmente, de Singer, não houve diálogo: todos permaneceram em silêncio. John Singer surpreendeu-se porque eles sempre falavam muito e a todo momento em sua presença, a ponto de atordoá-lo. Mais do que outra coisa, tratou-se de uma oportunidade para afastarem a solidão, comum a todos, e constituírem um laço de amizade. Porém, a possibilidade foi suplantada pela suspeita, pelo receio e pela ausência de abertura aos pontos de vista dos outros: “Singer ficou atônito. Todos tinham sempre tanta coisa para dizer. E, no entanto, agora que estavam ali juntos, ninguém falava nada” (MCCULLERS, 2018, p. 229).
Este aspecto nos parece fundamental. O mundo se torna nosso e, portanto, “comum”, quando nos relacionamos com os outros a partir do discurso e da ação. Há um mundo e, por conta disso, uma realidade, quando falamos sobre algo que pode ser testemunhado por outras pessoas que compartilham um mesmo lugar, ainda que de pontos de vista distintos. Porém, entre essas personagens solitárias (ou isoladas) não havia um mundo, pois não estavam abertos a rever e corrigir seus pontos de vista a partir dos pontos de vista alheios. Não surgiu um “senso comum”, um sentido acerca de algo que não seja relativo a nós mesmos e que, portanto, existe para além do eu. O “senso comum”, afirma Arendt (2007),
nos desvenda a natureza do mundo enquanto este é um mundo comum; a isso devemos o fato de nossos cinco sentidos e dados sensoriais, estritamente pessoais e “subjetivos”, se poderem ajustar a um mundo não-subjetivo e “objetivo” que possuímos em comum e compartilhamos com os outros. (ARENDT, 2007, p. 276)
A solidão é, também, a ausência de mundo, de algo que compartilhamos com outros seres humanos capazes de percepção. Além disso, o que é similar nas personagens do romance de Carson McCullers é o isolamento, distinto da solidão e do estar só. O isolamento é a impotência por definição. Os homens e as mulheres isoladas não atuam e, portanto, não há poder nem espaço público para a aparência. Para Arendt, o isolamento é pré-totalitário, ou seja, prepara o “terreno” para a ascensão de governos totalitários ou tirânicos, pois a ação está excluída e, assim, a possibilidade da resistência na forma do poder. Nas palavras da filósofa, “o isolamento é aquele impasse no qual os homens se veem quando a esfera pública de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse comum, é destruída” (ARENDT, 2011, p. 527). No romance em questão, não há, a priori, a impossibilidade de agir. Mas, se considerarmos que entre os indivíduos não há um mundo, na medida em que estão atarefados e preocupados em sobreviver, isso os impossibilita - logicamente - de agir, tendo em vista a existência da pobreza e os imperativos da “vida”. Assim, é difícil mudar as condições às quais estão submetidos, por exemplo, os negros e os trabalhadores naquele Sul dos Estados Unidos retratado na obra de McCullers. Intencionalmente ou não, o governo e aqueles que detêm o poder, ao mantê-los em tais condições, contribuem para com o isolamento dos sujeitos:
O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo não totalitário é o fato de que a solidão, que já foi uma experiência fronteiriça, sofrida geralmente em certas condições sociais marginais como a velhice, passou a ser, em nosso século, a experiência diária de massas cada vez maiores. (ARENDT, 2011, p. 530)
Nesse sentido, o isolamento relativo à política, e a solidão referente à sociedade, contribuem para a adesão das massas ao fascismo ou aos movimentos totalitários. Quanto ao primeiro, Leandro Konder (2009, p. 44) argumenta que o capitalismo, por meio da competição, tende a desenvolver cidades povoadas por indivíduos solitários, amedrontados e cheios de desconfiança: “Vítimas da tendência desagregadora que se fortalecia no interior da vida social, reduzidos a uma solidão angustiante, os indivíduos [...] ansiavam por se integrar em comunidades capazes [...] de completá-los”. Qualquer movimento, agrupamento ou ideologia simplista e simplificante pode atrair as massas de indivíduos isolados e solitários desejosos de se afirmarem identitariamente e socialmente, escapando dos fenômenos aqui analisados, porém, desistindo de si mesmos e de laços de amizade. A crise econômica que assolou os Estados Unidos, pós 1929, pano de fundo contextual à obra de McCullers, aliada ao rigoroso inverno descrito na estória, obrigou as fábricas de fiação a diminuir a produção. Por conta dessa redução do trabalho, “muitos tinham no olhar uma expressão sombria de solidão. [...] Houve um frenético surto de novas crenças” (MCCULLERS, 2018, p. 216).
O regime estalinista também é um exemplo totalitário de uma (anti)política do isolamento e da solidão. No tocante ao isolamento, instituiu-se uma “paranoia sistêmica” - fenômeno semelhante ao “frenético surto de novas crenças” (MCCULLERS, 2018, p. 216) - em que “a culpa estava firmemente estabelecida antes mesmo que a acusação fosse formulada” (LEWIN, 2007, p. 101). Nessas circunstâncias, a ideologia, ou lógica de uma ideia total, encaixava os indivíduos e os prendia em papéis, atribuía funções e identidades, ao mesmo tempo em que os isolava, porque a ação política era impossível e os mantinha na solidão, abandonados de si mesmos e dos outros. Evidentemente, essa generalização é inapropriada, então, preferimos mantê-la como “tipificação”, pois apesar de tudo os seres humanos não perderam a capacidade de pensar. É uma das lições de Arendt e, na literatura, de George Orwell em 1984: “Nada pertencia ao indivíduo, com exceção de alguns centímetros cúbicos dentro do crânio” (ORWELL, 1975, p. 29).
O protagonista do romance, Sr. Singer, “ficou conhecido na cidade inteira” (MCCULLERS, 2018, p. 218), tanto que as pessoas especulavam sobre sua origem e descreviam elementos fictícios sobre a sua história de vida: “os boatos a seu respeito foram ficando cada vez mais extravagantes” (MCCULLERS, 2018, p. 242). Neste ponto da discussão, resta-nos revelar aos nossos interlocutores a principal ironia da obra de McCullers: John Singer é surdo. E, na presença daqueles que o procuravam para uma escuta atenta e acolhedora, Singer é que, de fato, permanecia na solidão. Como descrevemos no início do texto, desde que se separou de seu amigo, Antonapoulos, que também era surdo, Singer permaneceu no isolamento. De tempos em tempos, Singer visitava o amigo, a quem se reportava, por cartas, como “Meu único amigo” (MCCULLERS, 2018, p. 232). Em uma carta, Singer descreveu para Antonapoulos as pessoas que o visitavam:
[...] são pessoas muito ocupadas [...] não no sentido de que trabalham sem parar dia e noite, mas sim no sentido de que estão sempre com a cabeça ocupada com tantas coisas que não conseguem ter sossego. Eles vêm ao meu quarto e falam, falam e falam tanto, que eu não consigo entender como é que uma pessoa pode abrir e fechar a boca tantas vezes sem ficar exausta. (MCCULLERS, 2018, p. 233)
Descreveu em palavras como percebia cada um: Brannon, não era visto como os demais, foi descrito como observador; disse que Blount achava que eles compartilhavam algum segredo que só os dois sabiam, mas Singer, na verdade, não sabia de nada; contou que Copeland o assustava, e que seus olhos faiscavam; foi quanto a Mick que declarou, pela única vez, que a presença de alguém em seu quarto agradava-o. Mas, Antonapoulos era, de fato, seu único amigo, ao que ele revelou: “A necessidade que eu sinto de você é uma solidão que eu não consigo suportar. [...] Não fui feito para viver sozinho e sem você” (MCCULLERS, 2018, p. 235).
O desejo de encontrar um interlocutor que oferecesse uma escuta supostamente compreensiva, dado que a escuta de Singer era apenas passiva, impossibilitou o diálogo e a amizade entre os interlocutores da estória. O Sr. Singer, ainda que surdo, era capaz de interpretar as falas pela leitura labial e se comunicava perfeitamente pela leitura e escrita, logo, a sua deficiência não foi impeditiva do diálogo com os seus interlocutores. Por conta dessa incapacidade de compreensão mútua, o romance se desenrola em tragédia: quando finalmente Singer consegue visitar o amigo Antonapoulos no asilo, depara-se com a notícia de sua morte. Sem mais razões para habitar o mundo, John Singer cometeu suicídio. Isso nos remete à reflexão sobre a qual assentamos nossa argumentação e afirmamos que a problemática que diz respeito à solidão traz consigo o enigma da compreensão de si, do outro e do mundo.
Tempos sombrios e amizade
O contexto do romance aqui interpretado, e possivelmente o nosso, pode ser definido como “tempos sombrios”. Essa expressão arendtiana é originária de um poema de Bertold Brecht, Aos que virão nascer. Arendt o utiliza como ponto de partida para refletir acerca dos Homens em Tempos Sombrios, tempos de solidão, isolamento, desamparo e abandono. Também, de desordens, fomes, massacres, assassinatos, de ódio legítimo e cólera justificada que enfraquece a voz e denuncia o mundo (ARENDT, 1991). Tempos sombrios não apenas das experiências totalitárias do Século XX, mas de condições que persistem, nas quais os indivíduos tendem a se (pre)ocupar exclusivamente com os interesses vitais, o que implica desprezar e ignorar o mundo. Segundo Arendt (1991, p. 20), “o mundo torna-se inumano, inóspito para as necessidades humanas [...] quando é violentamente arrastado por um movimento onde já não há qualquer espécie de permanência”.
A característica distintiva do “mundo” em relação à “vida” é a estabilidade, durabilidade e permanência. O “mundo”, enquanto esfera pública, é o lugar em que a ação é possível, na medida em que os homens e as mulheres têm a segurança imprescindível para a preservação dos seus direitos, da igualdade e da liberdade. É no espaço público que mostramos quem somos, ou seja, aparecemos como seres singulares sob a égide da igualdade e da distinção. No romance de McCullers, as personagens não participam do espaço público no sentido político, embora apareçam na esfera social e, por isso, nós, leitores, temos uma ideia sobre quem eles são até o fim da narrativa.
Nesse sentido, os governos totalitários e/ou fascistas e/ou de feitio tirânico e/ou liberais (no sentido de liberar as pessoas da política) se assentam sob as bases da solidão e do isolamento e, no caso dos três primeiros, estimulam-nas. Se não há ação, como denominar a “atuação” das pessoas sob tais circunstâncias? Arendt (2005, p. 63), tratando da “emergência do social” na Modernidade, argumenta que “a sociedade sempre exige que seus membros atuem como se fossem uma enorme família com uma só opinião e um só interesse”. Podemos inferir que tanto o Dr. Copeland quanto Jake Blount apenas almejavam mudar a sociedade, mas não a política. O que esperavam não era a ação, mas o comportamento. Este, adequa as condutas às expectativas sociais. Sob esse prisma, não há acontecimentos ou eventos: “Quem não observava as normas poderia ser considerado como associal ou anormal” (ARENDT, 2005, p. 65).
Por isso, estamos insistindo que as condições da sociedade, as preocupações exclusivas com a “vida”, as necessidades e, por conseguinte, o trabalho (labor), o consumo e o comportamento, tendem a contribuir para a solidão e o isolamento. Do mesmo modo, contribuirão para a fragilização dos laços, que se exemplifica na ausência de relações de amizade entre os personagens do livro de McCullers. É justamente a amizade que poderia afastar os indivíduos do isolamento e, se filosófica, da solidão.
Os antigos, conforme Arendt (1991, p. 35), “consideravam os amigos indispensáveis à vida humana; para eles uma vida sem amigos não era digna de ser vivida”. Para Aristóteles, a amizade é um tema fundamental, ocupando parte importante de sua obra maestra sobre a ética. Nela, o filósofo argumenta que a verdadeira amizade exige reciprocidade, igualdade e conhecimento acerca do bem que os amigos se dispendem mutuamente (ARISTÓTELES, 2003). A amizade (philia) é tão importante que ela dispensa a justiça (ARISTÓTELES, 2003), de modo semelhante ao amor (eros), que está para além do dever (COMTE-SPONVILLE, 2015). Ademais, Aristóteles estabelece distinções entre tipos de amizade (amplamente conhecida, por isso não trataremos o tema em exaustão): a amizade por interesse, a amizade por prazer e a verdadeira amizade, fundada na virtude.
Os amigos por interesse não amam as pessoas, apenas estão com elas enquanto houver algum proveito. Pode ser que essa seja uma interpretação válida para a não realização da amizade entre os personagens do romance supracitado. Por exemplo, entre o Dr. Copeland e Jake Blount: ambos não estavam buscando amigos pela amizade em si, ou pela pessoa em si, mas alguém que compartilhasse de suas ideias e contribuísse para a materialização daquilo que julgavam “a verdade”. Como não houve conformação, a amizade não aconteceu; sequer se deu a amizade por interesse - embora ambos tenham acreditado estabelecer relações de amizade com o Sr. Singer que era, simplesmente, gentil, urbano e hospitaleiro. As amizades por prazer se estabelecem pela busca do prazer que as pessoas proporcionam. Assim, “quando se ama por interesse e por utilidade, somente se busca no fundo o próprio bem pessoal” (ARISTÓTELES, 2003, p. 293). Nessa segunda situação, encaixa-se Mick. Assim, todos ficaram sem amigos, isolados e solitários.
A amizade perfeita é, por outro lado, de homens e mulheres virtuosas que se assemelham pela virtude e são bons por si mesmos: “Os que querem o bem para seus amigos por motivos tão nobres são os amigos por excelência”, sentencia Aristóteles (2003, p. 294). Extraindo essa afirmação do filósofo de seu contexto para analisar a linguagem contemporânea, especialmente no Brasil dos “cidadãos de bem”, verificamos que a “bondade” pode ser capaz das maiores atrocidades, da destruição do mundo quando, por exemplo, restringe os direitos de cidadania, reduz as possibilidades da fala e do discurso público, e leva a violência para o espaço público. Em 1964, Hannah Arendt concedeu entrevista a Günter Gauss para um canal da televisão alemã. Nela, a filósofa expressou algo interessante para a temática aqui investigada: “o problema, o problema pessoal não era tanto o que nossos inimigos faziam, mas o que faziam nossos amigos” (ARENDT, 1993a, p. 132). Arendt referiu-se à adesão de parte de seus amigos e de intelectuais, como Heidegger, ao nazismo. Fato que a surpreendeu e que jamais pôde esquecer.
De fato, a distinção entre “conhecer” e “pensar” é fundamental. Não eram só as pessoas “comuns”, sem instrução, que aderiram ao movimento totalitário. Intelectuais que influenciaram a produção intelectual de Arendt, uma judia, não só aderiram como ofereceram suporte acadêmico ao regime. Essa surpresa nos conduz a tese de que nem todo intelectual pensa, mesmo que com uma inteligência acima da média, como Heidegger. Para Vallée (1993, p. 17), “a ligação de Heidegger ao nazismo é muito mais do que a decepção provocada por um homem e um filósofo, é um fiasco da filosofia”. Dito “fiasco da filosofia” porque a atividade fundamental e constituinte do filósofo, é o pensar. E pensar, como escrevemos, é investigar acerca de tudo o que nos acontece e considerar o ponto de vista dos outros. O pensar busca o significado, ao passo que a cognição almeja a verdade. Os intelectuais foram capturados pelas suas próprias construções teóricas e, ademais, incapazes de responder às exigências de pensamento do que acontecia. Ou, do que acontecia aos seus amigos. Fosse um “cálculo estratégico” ou uma adesão cega, Heidegger representa não só o fiasco da filosofia, mas também da moral e da amizade.
“Para os gregos a essência da amizade consistia no diálogo” (ARENDT, 1991, p. 35), já a “amizade política” (expressão nossa) não é uma conversa íntima na qual os interlocutores falam de si próprios. O diálogo, como inter-relação, diz respeito ao mundo, ou seja, ao espaço-entre, àquilo que os amigos têm em comum. O mundo só se torna humano, segundo Arendt, quando é objeto de diálogo. Ademais, é pelo discurso e pela ação que nos inserimos no mundo. Discurso e ação que pressupõem a existência de outros seres singulares capazes de comunicação e de reagir e atuar em conjunto, a essência do poder. Como a lógica do totalitarismo é o movimento, nada estável e durável se mantém, excetuando o próprio movimento. Assim, a amizade é impossível, porque ela se fundamenta na confiança e na durabilidade.
É possível que os nazistas e fascistas, e alguns de nossos contemporâneos, comportem-se acreditando estar amparados na bondade e que desejam o “bem” para todos, mesmo que isso implique violência e crime - a destruição da pluralidade, do mundo e dos seres humanos. De algum modo, foi o papel desempenhado pela “piedade”, na Revolução Francesa, a preocupação com o bem-estar do povo (le peuple) que introduziu o terror no espaço público e destruiu a revolução. Sob as interpretações rousseaunianas de Robespierre, destruiu-se o espaço público em nome da vontade una, a volonté générale, que eliminou o espaço da pluralidade, logo, do discurso e da ação. A “piedade” serviu como a única força que poderia unir as diferentes classes sociais contra um inimigo comum - retórica típica de governos ditatoriais e totalitários. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, jargão da campanha eleitoral do atual presidente da República. Tipificação da introdução do absoluto que adentra na esfera pública, acima dos interesses particulares, dos pontos de vista, em suma, da política e da esfera privada, porque se trata de uma linguagem totalitária. Tal como a bondade absoluta, essa divisa implica perdição da política, destruição do mundo e, também, da amizade.
O nazismo se introduzia mais bem na carne e no sangue das massas através de palavras isoladas, de expressões, de formas sintáticas que impunham repetindo-as milhões de vezes e que eram adotadas de forma mecânica e inconsciente. [...] Mas a linguagem não só cria e pensa por mim, mas guia minhas emoções, dirige minha personalidade psíquica, tanto mais quanto maiores são a naturalidade e a inconsciência com que me entrego a ela. (KLEMPERER, 2018, p. 31)
Evidentemente que a introdução do absoluto na esfera pública, interpretando o “bom” como fim, sem a consideração dos meios, é uma deturpação da teoria aristotélica. Chamamos atenção para uma apropriação indevida. O “bom”, como entidade metafísica, representa a possibilidade da destruição da política, da amizade e das pessoas. Assim como o lema da campanha eleitoral. É necessário, portanto, uma preocupação com a linguagem, com e sobre aquilo que falamos a respeito do mundo e da relação com os outros. No que tange ao lema do atual presidente, a questão é mais preocupante, pois tanto “Brasil” quanto “Deus” são entidades ou conceitos unificadores e homogeneizadores, contrários ao pluralismo e ao debate, na medida em que se apresentam como axiomas do qual qualquer coisa pode ser deduzida. Portanto, do ponto de vista do “mundo”, é a “amizade política” que importa, porque ela pode fazer frente aos “tempos sombrios”.
A “amizade política” se relaciona com o pensar e com a ação, nos termos de um diálogo entre amigos. O pensar pode ser um dos “antídotos” ao mal banal, pois o pensamento requer profundidade (ARENDT, 1991, p. 17) e uma relação comigo mesmo, o “dois-em-um” que exige amizade fundada sob o princípio da não-contradição comigo mesmo. Pensar “é entregar-se a um diálogo silencioso; refletir, interrogar-se, hesitar, condenar-se, lamentar, duvidar” (VALLÉE, 1993, p. 31). O pensamento se realiza por meio do discurso e/ou do diálogo, isto é, se torna real na medida em que estabeleço uma relação com um outro capaz de compreender e contribuir com meus pensamentos, minhas indagações, minhas hesitações, minhas interrogações e meus lamentos. A verdade absoluta, os dogmas e os jargões axiomáticos implicam fim do diálogo e, por conseguinte, o fim da amizade (ARENDT, 1991). Para Arendt (1991, p. 36), “só falando daquilo que se passa no mundo e em nós próprios é que o humanizamos, e ao falarmos disso, aprendemos a ser humanos”.
Por fim, amizade não é fraternidade. A fraternidade, a unidade dos irmãos, exige uniformidade, rejeita a pluralidade e a diferença. Em ambas se supõe a igualdade. Na fraternidade, a igualdade anula a pluralidade; na “amizade política”, a igualdade é a condição do espaço no qual os homens e as mulheres atuam. É porque são iguais que os homens podem se entender. É porque são diferentes, únicos, que podem aparecer como singulares e, portanto, se comunicar. Uma igualdade absoluta, a “igualização”, anula o diálogo e, portanto, o espaço público e o mundo. A fraternidade parece a alternativa urgente às necessidades imperiosas da “vida” ou aos “tempos sombrios”, mas insuficiente para a revelação de quem nós somos e para a preservação do “mundo” enquanto “espaço-entre”.
Proposições pedagógico-educacionais para um mundo fora dos eixos
Considerando as interpretações que realizamos, a educação ocupa uma tarefa fundamental no enfretamento da solidão, fenômeno cada vez mais corrente na massa dos indivíduos atomizados. Porém, isso não quer dizer que cabe à educação o enfrentamento exclusivo da solidão. Entendemos que nosso estilo de vida e existência, desde as profundas mudanças sociais do Renascimento à sociedade do narcisismo e do consumo (MINOIS, 2019) nos afrontam com a exigência de pensar sobre o que estamos fazendo e como estamos vivendo e existindo. Essa é uma tarefa dos adultos, dos responsáveis pelo “mundo” e sua continuidade. Com relação a crianças e jovens, o que nos cabe é não as condenar a um mundo em ruínas, propiciando-lhes a oportunidade de recomeçar, iniciar e introduzir o novo em um mundo que existia antes delas e continuará a existir. Para Arendt (2007), a educação é onde decidimos se amamos ao mundo e nossas crianças, salvando o primeiro da ruína e não expulsando as segundas, abandonando-as a seus próprios recursos. Se somos solitários e vivemos em um mundo em ruínas, ao menos não devemos condenar previamente as novas gerações ao mesmo destino: nisso reside o sentido da escola em enfrentar a solidão para que cada um possa aparecer como indivíduo singular e constituir uma realidade com os outros. Orientados por isso, apresentaremos três proposições pedagógico-educacionais.
Proposição 1: a escola é o espaço principal da educação e toda educação implica comunicação, o “questionamento” e as “respostas” dos estudantes ao “mundo”. O acesso à escola integral, isto é, não apenas de tempo, mas de educação integral, poderia proporcionar a Mick, com os devidos direitos sociais, o desenvolvimento pleno de suas capacidades, a partir do exercício, das práticas, da rotina e do acesso à cultura musical que lhe permitiriam conceber outro mundo possível ou uma existência não restrita à vida, isto é, ao sobreviver, ao metabolismo vital. Para Arendt (2007), a escola é o espaço de transição entre a família (espaço privado) e o mundo (espaço público). O sentido da escola reside especificamente em ser um lugar onde as novas gerações desenvolvem a si mesmas a partir da interrelação com o “mundo” e com os outros. Tal “confronto” ou “conflito” permite aos indivíduos sair da “mesmidade”, isto é, o potencial intrínseco às relações parentais que não podem não possibilitar individuação. Ademais, a tarefa educacional implica exigência em relação ao “mundo” e sua conservação, que acontece na medida em que novas gerações se tornam herdeiras de tudo aquilo que foi construído e constituído pelos homens e mulheres. Tal introdução acontece pela ação (ARENDT, 2005); e agimos na medida em que consideramos a possibilidade da ação dos outros, da resposta que eles darão às nossas ações e a que daremos às demandas do “mundo”. Por exemplo: sabe-se que as questões biológicas não estão dissociadas de escolhas e deliberações político-econômico-administrativas que podem propagar epidemias ou destruir a natureza. Logo, não cabe apenas estudar as teorias que pretendem explicar tais fenômenos ou amparar-se unicamente aos fatos. É importante indagar-se sobre o significado das ações dos indivíduos concernidos e de nossa responsabilidade como cidadãos. Nas ciências da natureza, estudamos o átomo sem as exigências acerca da utilidade disso, ou seja, transformamos o mundo, ou a própria natureza, em “matéria” e confrontamos os estudantes com o mundo e consigo mesmos. O “encontro” dos estudantes com a “matéria” e consigo mesmos, liberados das injunções externas, pode se constituir como espaço de descoberta e criação e, talvez, de destruição, como foi o caso da bomba atômica. O diferencial está na capacidade de pensar que se tem um lugar importante na escola e no desenvolvimento moral e político dos estudantes.
Isso quer dizer que a escola não é um espaço somente de socialização (introdução na sociedade) ou adaptação. A questão fundamental da educação é que os indivíduos possam ser sujeitos, isto é, atuar e aparecer como seres singulares. As escolas precisam mostrar interesse pelo que os estudantes pensam e sentem, e não os tratar como objetos ou consumidores de um serviço que é apropriado privadamente (BIESTA, 2013). A existência de um “mundo comum” só é possível na presença dos “outros” que atestam a realidade das percepções individuais, “posto que nossa sensação da realidade depende por inteiro da aparência e, portanto, da existência de uma esfera pública” (ARENDT, 2005, p. 72). Esse “mundo comum” pode ser um elemento fundamental para a ruptura com a “solidão”, pois diante dele não se estará abandonado dos demais. Trata-se de seu exato oposto, em um “mundo comum” compartilhar-se-á entre nós, enquanto humanidade, algo que não é o eu, posto que ao mesmo tempo os outros dependerão desse eu para a sua realidade. Ademais, é a presença dos outros que põe ao teste nossos pensamentos, isto é, o “uso público da razão” (ARENDT, 1993a, p. 53).
No totalitarismo, como argumentamos, há a destruição do mundo. Com isso, homens e mulheres são amontoados uns nos outros, mantidos sob domínio, inclusive, com o uso de teorias conspiratórias. Faltava às personagens da novela de McCullers esse “espaço-entre” e a “abertura” ao outro capaz de compreender e responder às impressões pessoais. Todos estavam demasiadamente centrados em si mesmos e, por isso, a educação escolar deve propiciar oportunidades de descentramento.
Proposição 2: o cultivo da imaginação e a prática do “descentramento” contribuem para enfrentar a potencial solidão num mundo “fora dos eixos”. A imaginação é a faculdade de tornar presente o que está ausente, e tem como objetivo contribuir para o juízo na medida em que permite o colocar-se no lugar do outro (ARENDT, 1993b), potencializando a formação do “senso comum”. O “senso comum” é aquilo que nos ajusta a uma comunidade. Trata-se de um sentido “especificamente humano, porque a comunicação, isto é, o discurso, depende dele” (ARENDT, 1993b, p. 90). A imaginação e a reflexão nos liberam das condições privadas, contribuindo para o cultivo de uma “mentalidade alargada” e, portanto, de um antídoto à solidão. Centrar-se em si mesmo é estar alienado do mundo, condição potencial para a “banalidade do mal”, pois o mal banal não é profundo (característica do pensamento, da reflexão e da imaginação que articulam as faculdades mentais do juízo e do pensamento). Assim, desenvolver a faculdade da imaginação está associada com a ideia de crescer, desenvolver, superar limites nos quais as condições e percepções privadas determinam o encarceramento do sujeito. O descentramento, por sua vez, “somente é possível na medida em que [as crianças] vivenciam abundantes experiências de interação social” (PUIG, 1998, p. 71). Tais interações não podem, se educacionais, ser espontâneas, como se “naturalmente” os seres humanos se descentrassem ao entrar em contato com os outros. A educação deve ser entendida como elemento que cria práticas constantes e rotineiras nas quais os estudantes se confrontam com o outro, saindo de si mesmos ao mesmo tempo em que se tornam mais si mesmos e rompem com idiossincrasias e idealizações. Puig (1998) sugere exercícios de role-playng, dramatizações nas quais as crianças e jovens desenvolvam a capacidade para pôr-se no lugar de outras pessoas, para compreendê-las e, efetivamente, para “sair de si”. Aulas de teatro ou encenações de situações nas quais os alunos tenham de interpretar papéis permitem que eles se coloquem no lugar daqueles indivíduos e de vidas que lhes são estranhas, isso para que possam imaginar como agir e julgar em determinadas situações.
Martha Nussbaum (2012, p. 132) sugere que a literatura cultiva o que denomina de “imaginação narrativa”, isto é, “a capacidade de pensar como seria estar no lugar de outra pessoa, de interpretar com inteligência o relato desta e de entender os sentimentos, os desejos e as expectativas que poderia ter essa pessoa”. A contação de histórias e a leitura de poemas, por exemplo, colocam as crianças em situações que exigem o “descentramento” ao mesmo tempo em que podem cultivar a “imaginação narrativa” para lidar com os conflitos das personagens ou interpretar o sentido da história. Segundo a filósofa estadunidense, “a criança nasce com uma capacidade rudimentária para a empatia e o interesse pelo outro” (NUSSBAUM, 2012, p. 132) e suas experiências estão marcadas por um narcisismo potente que precisa ser direcionado para a realidade, ou seja, para as condições humanas; cientes de que cada indivíduo possui desejos, sentimentos, interesses e perspectivas distintas. A literatura põe em palavras e descreve pensamentos, sentimentos e emoções que ajudam o leitor a interpretar os seus e a compreender e interpretar os signos dos demais.
Porém, ler não é só juntar signos. Trata-se de uma atividade que muda profundamente o leitor que realiza uma experiência. O leitor é transformado pelo texto, interpelado, indagado e comprometido. “Ler (e comentar) um texto é, fundamentalmente, escutar a interpelação que nos dirige e fazer-se responsável por ela” (LARROSA, 2017, p. 128). Entretanto, é o adulto que auxilia as crianças e jovens a se abrirem ao texto, às suas interpelações. A leitura individual e coletiva seguida de perguntas acerca da narrativa e dos significados, do não compreendido e do afrontador forma um leitor competente e, ao mesmo tempo, o livra da solidão. Os renascentistas sabiam que a leitura auxiliava a suportar a solidão: “a solidão sem literatura é o exílio, a prisão, a tortura. Acrescentai a ela a literatura e ela se tornará pátria, a liberdade, o prazer” (MINOIS, 2019, p. 142).
Proposição 3: as crianças e jovens devem aprender a “estar sós” para pensar. Conforme a argumentação que antecedeu as proposições, “estar só” não significa ser ou estar solitário. O solitário pode estar/ser em meio à multidão. A capacidade de pensar exige um “pare e pense”, uma suspensão das demais atividades para indagar-se acerca do significado dos acontecimentos, de nossas atuações e dos próprios pensamentos. No romance estudado, as personagens estavam ocupadas em afazeres e no desespero de buscar a companhia de alguém, exceto Mick. Arendt (2009, p. 22) retoma a afirmativa de Catão, “nunca um homem está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só do que quando a sós consigo mesmo”, e argumenta que o pensar não é contemplar, pois se trata de uma atividade. Por isso, quando “nada faz” o homem e a mulher estão ativos, porque pensar não é fazer. O fazer relaciona-se a uma atividade de fabricação, inserida numa lógica instrumental. Como tal, tende a deixar algo depois de si: o produto ou objeto transformado ou criado pelo homem e pela mulher. Já o pensar é como a teia de Penélope: “desfaz-se toda manhã o que foi terminado na noite anterior” (ARENDT, 1993a, p. 151). O pensar não é produtivo, mas destrói as crenças, as visões de mundo, os clichês, as frases prontas, as teorias conspiratórias. Pensar desestabiliza o indivíduo, além de o dividir. Ao pensar, não somos um, mas dois. Para Arendt (2009),
existencialmente falando, o pensamento é um estar-só, mas não é solidão; o estar só é a situação em que me faço companhia. A solidão ocorre quando estou sozinho, mas incapaz de dividir-me no dois-em-um, incapaz de fazer-me companhia. (ARENDT, 2009, p. 207)
Por isso, o homem e a mulher estão menos sós quando a sós consigo mesmos. Se pensar é um “diálogo silencioso consigo mesmo”, só há diálogo na “dualidade”, não na unidade; e só há diálogo comigo mesmo quando há um interlocutor que devo prestar conta do que fiz, agi, laborei ou pensei. Nesse sentido é que compreendemos a afirmativa socrática de que é melhor sofrer uma injustiça do que a cometer, “porque se pode continuar amigo de um sofredor” (ARENDT, 2009, p. 210).
Assim, a escola deve ser e proporcionar espaços de rupturas com o “mundo”, com o “fazer”, o “trabalhar”. Essas “rupturas” compreendidas como suspensões, isto é, quando as tarefas e funções da família, do trabalho, da economia, da política e da sociedade são temporariamente suspensas para instalar o “escolar”, liberando as crianças e as atividades das expectativas sociais e do “tempo produtivo”. “Na escola, o tempo não é dedicado à produção, investimento, funcionalidade ou relaxamento. Pelo contrário, esses tipos de tempo são abandonados” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 33). O tempo escolar é o “tempo livre”, tempo do estudo e, evidentemente, do pensamento. E se o pensar acontece na duplicidade, não há solidão no pensar.
Há disciplinas específicas para a prática do pensar em sala de aula. A Filosofia é o espaço e o tempo privilegiado para isso. Há a atividade do pensar noutras disciplinas? A princípio, não. Pensar e conhecer não são o mesmo. O pensar almeja o significado e pode se debruçar sobre o conhecimento. O conhecer busca a verdade e constitui uma parte do “mundo”: “A necessidade da razão não é inspirada pela busca da verdade, mas pela busca do significado. E verdade e significado não são a mesma coisa” (ARENDT, 2009, p. 30). Historicamente, os filósofos se dedicaram ao pensar, e é razoável que a Filosofia na escola contribua com o aprendizado dessa capacidade. Além disso, pensar é um hábito, e como tal é cultivado por práticas rotineiras, refletidas, planejadas e intencionais. Na escola, as aulas de Filosofia contribuem para o cultivo do pensar, mas também práticas autobiográficas na qual os estudantes refletem, constroem e significam sua vida pessoal cobrindo-a de sentido e escolhendo valores. Embora a autobiografia não seja um “conhecimento” sobre si mesmo, porque isso depende da interação com os demais, pode ser um momento de pensar acerca de sua história, assumindo a responsabilidade pelo que se disse, fez ou pensou.