O legado edipiano na fundamentação das ciências modernas: “conhece a ti mesmo”
A crítica dos ídolos fomentada pela moderna filosofia natural e política de Francis Bacon teria tentado revelar como a racionalização dos mitos deveria regular a fundamentação da matéria e do método das modernas ciências da natureza e do homem1. Nesse registro, podemos dizer que a racionalização baconiana do mito do Édipo e da Esfinge teria influenciado os modernos princípios filosóficos e científicos expresso tanto nas Meditações de Descartes quanto no Leviatã de Hobbes. Acontece que, no mesmo registro em que Copérnico e Galileu teriam inaugurado a astronomia moderna representando os corpos celestes mediante uma racionalização da matéria dos antigos mitos greco-romanos (Hélio, Marte, Vênus, Júpiter, etc.), Bacon também teria racionalizado o moderno conceito da ciência natural e da política no registro dos mitos, particularmente do mito do Édipo e da Esfinge2. A partir de uma consideração geral sobre a influência dessa moderna apropriação científica da mitologia edipiana nas filosofias de Bacon, Descartes e Hobbes o presente trabalho busca mostrar como as teses iniciais do anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, e das Metafísicas canibais, de Viveiros de Castro, buscariam rejeitar essa tradição maquinal das modernas ciências do homem e da natureza. Tradição maquinal essa, aliás, legada à contemporaneidade filosófica através de um eterno retorno mitológico do Édipo, assim como da Esfinge.
Tanto Descartes (2004) quanto Hobbes (1983) afirmam terem fundado as bases de suas respectivas filosofias a partir de uma aplicação do método geométrico sobre a mesma matéria das paixões humanas, isto é, sobre o homem. Mas, diferentemente de Hobbes (que priorizava sempre a utilidade ou a prática do conhecimento cientifico), Descartes considerava a linguagem geométrica como uma espécie de ferramenta conceitual fundamentalmente descritiva ou analítica. Por essa razão, Descartes entendia que a demonstração geométrica de uma coisa pensada rigorosamente pressuporia a realidade ou a existência dessa coisa passível de análise e de demonstração. A demonstração cartesiana, racional e geométrica da ideia de Deus, por exemplo, equivaleria à prova da existência desse mesmo Deus (DESCARTES, 2004, p.69). Hobbes, ao contrário de Descartes, considerava a linguagem geométrica como uma espécie de ferramenta prescritiva ou construtiva. Por essa razão, ele entendia as definições geométricas como regras práticas capazes de orientar o entendimento e as ações humanas no processo de construção de coisas artificiais: formas e figuras geométricas. A prova geométrica ou demonstrativa da ideia de Deus em Hobbes, por exemplo, equivaleria não à prova da existência do próprio Deus, mas sim uma demonstração prática dos limites do conhecimento humano em relação às causas últimas das coisas no mundo material (HOBBES, 1983, p. 19). Para além dessas diferenças conceituais, o que nos interessa aqui é ressaltar o fato de que tanto Descartes quanto Hobbes teriam se utilizado do mesmo método (geometria) aplicado sobre a mesma matéria (paixões humanas) para defender a ideia de que a filosofia tanto natural quanto política deveria se assentar sobre um tipo de conhecimento do moderno homem-máquina sobre si mesmo3. Nisso ambos parecem concordar. Por isso podemos dizer que a modernidade do século XVII (tanto no que diz respeito à filosofia natural quanto à política) teria considerado as ciências a partir do autoconhecimento mecanicista do homem tanto como corpo natural quanto como cidadão.
As mudanças de paradigmas religiosos e políticos que se estenderam à modernidade do século XVII fizeram com que a filosofia e as ciências da época reivindicassem suas autonomias frente ao domínio papal da tradição romana e eclesiástica. As ciências teriam deixado de ser consideradas um conhecimento natural ou divino para se tornarem um propriamente conhecimento humano, antropocêntrico ou simplesmente racional. Em outras palavras, os pensadores modernos teriam deixado de considerar Deus e a Natureza como substâncias reguladoras do conhecimento científico para colocar o homem como princípio, meio e fim desse processo cognitivo: o antropocentrismo moderno. Não é sem razão, portanto, que a mesma modernidade chamada “heliocêntrica” seja também considerada “antropocêntrica”, uma vez que ela tomaria as ciências do homem como modelo de conhecimento sobre todas as coisas no mundo, inclusive do próprio homem. E assim como os mitos greco-romanos teriam servido de princípios para ilustrar a moderna astronomia heliocêntrica de Copérnico e Galileu, a matéria mitológica do Édipo, racionalizada por Bacon em sua “crítica dos ídolos” (BACON, 1994)4, teria servido de base para a edificação tanto de uma metafísica racional em Descartes quanto de uma política passional em Hobbes. Para exemplificar o conceito de ciência moderna em Bacon, elaborado a partir de uma racionalização do mito do Édipo e da Esfinge, cito a Sabedoria dos antigos:
A Ciência, que deixa perplexos os ignorantes e inábeis, pode muito bem ser considerada um monstro. Na figura e no aspecto, representam-na como criatura multiforme, em referência à imensa variedade de assuntos com que se ocupa (...). A Esfinge propõe aos homens inúmeros enigmas tortuosos, que ela colheu das Musas. Quando passam das Musas para a Esfinge - ou seja, da contemplação para a prática, suscitando a necessidade de agir, escolher e decidir, então começam a mostrar-se penosos e cruéis. A menos que sejam solucionados e explicados, atormentam e molestam a mente, empurrando-a de um lugar para outro e, por fim, despedaçando-a. Além disso, os enigmas da Esfinge apresentam sempre dupla condição: laceração da mente, em caso de fracasso; um reino, em caso de vitória. Pois aquele que sabe o que faz é senhor de seu objetivo e todo artífice é rei de sua obra. São de dois tipos também os enigmas da Esfinge: um diz respeito à natureza das coisas; o outro, à natureza do homem. De igual modo, há duas espécies de reinos oferecidos como prêmio de sua solução: o reino sobre a natureza e o reino sobre o homem. (BACON, 2002, p.89.)
Sob o prisma mitológico do discurso filosófico de Bacon, podemos dizer que a racionalização do “homem” pelo próprio homem teria se manifestado como uma tentativa de universalizar a resposta do Édipo aos enigmas da Esfinge, em uma alusão direta às ciências modernas. Essa inspiração científica dos filósofos modernos parece evocar uma antiga e complexa máxima imperativa da ação e do pensamento, inscrita do templo do deus Apolo em Delfos: nosce te ipsum ou “conhece a ti mesmo”. No registro do autoconhecimento dos homens modernos, reconhecido na sabedoria dos antigos, a ciência ilustrada por Bacon poderia ser considerada como uma espécie de teoria criacionista de investigação do homem sobre si mesmo e sobre aquilo que ele faz quando pensa e age. Parece ser assim que a observação dos fenômenos científicos na modernidade teria se voltado para o discurso acerca da verdade do sujeito sobre si mesmo (Descartes) e sobre suas próprias paixões/ações (Hobbes). No registro metodológico das filosofias de Descartes e de Hobbes, podemos dizer que a própria filosofia moderna (tanto natural quanto política) parece ter se tornado uma espécie de “auto-antropologia” do moderno homem-máquina. E isso porque, tanto para Descartes quanto para Hobbes, o homem seria uma criatura ou um artefato confeccionado pelas mãos divinas e conservado pelo princípio heliocêntrico de autoconservação do movimento da matéria.
Sob o prisma antropocêntrico da modernidade científica, os fenômenos naturais são vistos como os efeitos que o mundo material em movimento produz sobre os sentidos e o entendimento humano (HOBBES, 1983). A investigação desses efeitos no interior do corpo do homem, segundo a perspectiva hobbesiana, resultaria na filosofia natural. Contudo, esses mesmos efeitos, gerados pelo movimento da matéria externa que age sobre os sentidos internos, constituiriam as causas das paixões que regulam a vontade e o comportamento dos homens. A investigação dessas causas do comportamento humano resultaria na filosofia política. É nesse registro fenomenológico do movimento e dos corpos materiais que tanto a filosofia natural quanto a política na modernidade de Hobbes poderiam ser entendidas como um conhecimento do homem moderno sobre si mesmo. A filosofia e as ciências resultariam de um tipo de autoconhecimento humano análogo a um reconhecimento compartilhado. Parece ser nesse registro científico do autoconhecimento ou do reconhecimento que Descartes teria procurado, em suas Meditações metafísicas, mostrar que e como suas falsas opiniões deveriam ser rejeitadas mediante um conhecimento do sujeito racional sobre si mesmo e sobre suas próprias paixões (DESCARTES, 1975). E é sob esse mesmo prisma que Hobbes (logo na introdução ao Leviatã) afirma: “os homens poderiam realmente aprender a ler-se uns aos outros, se se dessem ao trabalho de fazê-lo: isto é, Nosce te ipsum, Lê-te a ti mesmo” (HOBBES, 1983, p. 6). Podemos dizer que, para esses filósofos, toda investigação cientifica deveria principiar e também se encerrar no próprio homem, considerado tanto como corpo natural quanto como cidadão. Nesse sentido, o “conhece a ti mesmo” do templo de Apolo em Delfos poderia ser entendido como matéria e método do discurso cientifico na modernidade por uma influência esfíngica da mitologia trágica do Édipo: a purificação das paixões e o reconhecimento característicos da arte poética e da tragédia em Aristóteles5.
No pensamento antropocêntrico da modernidade científica de Descartes e de Hobbes, o cosmo e a natureza são entendidos em termos mecanicistas e geométricos. Uma vez considerado o homem moderno como parte desse cosmos geometrizado e automatizado pelo heliocentrismo moderno de Copérnico e Galileu, o sujeito seria entendido como uma espécie de “máquina desejante” programada para se autoconservar tanto em relação ao corpo quanto em relação ao espírito. Essa máquina desejante, identificada com o homem moderno, seria movida e comovida pelo combustível dos desejos, das paixões e das vontades prudencialmente programadas para um fim: a autoconservação do próprio movimento. Nesse registro moderno, antropocêntrico e heliocêntrico tanto o homem quanto o Estado civil deveriam ser considerados como máquinas movidas por uma vontade automática, prescrita tanto pelas leis naturais e divinas quanto pelas leis civis e humanas6. Isso tudo em analogia à uma concepção de vida e de natureza mecanizadas pelo discurso geométrico com que se interpretava cientificamente o cosmos, a natureza e próprios homens na modernidade.
E assim como a solução edipiana para os enigmas da Esfinge ofereceria à moderna filosofia baconiana o reino da natureza e o reino dos homens (BACON, 2002, p. 90), essa mesma matéria mitológica parece ter guiado o fio condutor do discurso geométrico de uma moderna filosofia tanto natural (Descartes, 2004) quanto política (Hobbes, 1983). Bacon entende a Esfinge edipiana como a representação conceitual da própria ciência moderna, com seus enigmas devoradores do entendimento e do espírito daqueles que ousariam transitar imprudentemente pelo livre caminho da experimentação, da crítica e da dúvida. Solucionar os enigmas da Esfinge renderia ao vencedor a posse e o domínio do próprio destino (filosofia natural), tanto quanto do destino dos outros homens (filosofia política)7. Por essa razão edipiana ancestral é que o conhecimento moderno poderia ser entendido como o resultado de uma leitura dos filósofos e cientistas sobre si mesmos tanto como homens quanto como cidadãos. “Conhece a ti mesmo”, dizia a máxima ancestral que teria ajudado o Édipo a vencer os enigmas da Esfinge tomando “o homem” como resposta definitiva aos indecifráveis enigmas do entendimento e da ação. E é assim que a filosofia moderna parece ter tentado racionalizar a resposta do Édipo ou o “homem” como uma espécie de fórmula universal capaz de resolver os enigmas esfíngicos propostos pela ciência moderna tanto natural quanto política8.
Por mais que os discursos metafóricos e a racionalização da sabedoria dos antigos ocultem o real significado dos mitos criptografados pela modernidade mediante códigos maquinais (particularmente a geometria e a aritmética), o resultado final dessa trama toda parece ser bastante concreto e material: as máquinas espalharam um sistema de produção automática que, apoderado de sua própria matéria e método, teria evoluído para um processo ensimesmado de reprodução das próprias máquinas. Esse sistema maquinal auto-replicante estaria ancorado sobre um modelo mitológico de tragédia que operaria basicamente sobre um processo de purificação, síntese e reprodução das duas mais potentes paixões humanas: o terror e a compaixão9. A reprodução purificada dessas duas paixões resultaria no reconhecimento do público expectador com a trama narrada pela tragédia de sua própria existência e de sua cultura ancestral (ARISTÓTELES, 1984, p. 243). Esse reconhecimento trágico, segundo a interpretação dos filósofos modernos, reproduziria os desejos e as aversões (querer/não querer) que enredariam uma trama maquinal automática de criação de uma vontade, de uma inteligência e de um sistema de vida artificiais (BACON, 2002). Esse modelo de vida artificial se reproduziria e se conservaria de modo automático no legado cultural, cientifico e político da antiguidade para a modernidade e desta para a contemporaneidade, através de uma atualização permanente dos mitos racionalizados (HOBBES, 1983). O fato é que o legado do mecanicismo moderno parece ter se convertido hegemonicamente em um sistema de substituição do modelo de vida natural por um modelo de vida artificial, resultante dos costumes e da cultura dos homens civilizados e civilizadores. E parece ser justamente sobre essa tradição do pensamento cientifico da modernidade antropocêntrica (de autores como Bacon, Hobbes e Descartes) que Deleuze e Guattari desfecham suas críticas filosóficas ao legado hegemônico das máquinas desejantes na contemporaneidade.
Sobre os trilhos de uma crítica conceitual à tradição mitológica, maquinal e antropocêntrica da modernidade cientifica, Deleuze e Guattari começam o anti-Êdipo fazendo uma longa e minuciosa consideração sobre a máquina desejante enquanto um ponto rizomático do debate filosófico levantado por eles.10 A intenção dos autores parece ser a de estabelecer uma crítica filosófica à tradição científica que se estendesse tanto para o campo epistemológico e psicanalítico quanto para o campo político, social e econômico. Segundo o entendimento dos autores, “a psicanálise é a técnica de aplicação, da qual a economia política é a axiomática” (DELEUZE, 2010, p.401). Daí, inclusive, a razão pela qual o subtítulo d`O anti-Édipo procura incluir também no debate a relação entre “capitalismo e esquizofrenia”. Acontece que uma crítica contundente ao legado da filosofia moderna, segundo a herança daquela tradição edipiana, deveria ser, além de epistemológica ou científica, fundamentalmente política ou social. E embora a matéria mitológica do Édipo e da Esfinge se manifeste muitas vezes criptografada nas metáforas, parábolas e hipérboles do discurso filosófico e das abstrações metafísicas e geométricas, a máquina desejante retratada n´O anti-Édipo de Deleuze e Guattari é bastante concreta e material, para não dizer histórica.
Para além das metáforas que criptografam conceitualmente os mitos por trás da matéria e do método filosófico dos modernos, o legado concreto das máquinas desejantes parece ter se propagado tanto através da filosofia natural quanto da política, para não falar da religião. Sob o prisma de uma crítica filosófica à racionalização dos mitos na modernidade, a postura antiedipiana de Deleuze e Guattari parece mesmo se situar em uma crítica que se estendesse necessariamente a esses dois campos do discurso filosófico moderno: ciência e política. Interessados na crítica filosófica à matéria e ao método da metafísica psicanalítica de Freud, Deleuze e Guattari tentaram ressignificar a importância e o potencial do mito edipiano. Mito esse criptografado nas entrelinhas das ciências modernas e da própria psicanálise, operando segundo a funcionalidade hierárquica das peças constitutivas da máquina desejante social: a família e o Estado. Com suas críticas antiedipianas, Deleuze e Guattari buscaram revelar o potencial contraditório dessa matéria ancestral edipiana, no sentido de fazer submergir a diferença e a multiplicidade nas bases ocultas dos discursos metafísicos mais tradicionais. Para exemplificar essa perspectiva crítica e aporética da moderna matéria edipiana na contemporaneidade, cito O anti- Édipo.
Mas por que Freud, refletindo melhor, acrescenta que a neurose histérica é primeira e que as disjunções são obtidas tão somente por projeção de um condensado primordial? Trata-se, sem dúvida, de uma maneira de manter os direitos do Édipo no Deus do delírio e no registro esquizo-paranóico. É por isso que, a esse respeito, devemos levantar a questão mais geral: o registro do desejo passaria pelos termos edipianos? As disjunções são a forma da genealogia desejante; mas seria edipiana essa genealogia, inscrever-se-ia na triangulação de Édipo? Ou não seria Édipo uma exigência ou uma consequência da reprodução social, enquanto esta pretende domesticar uma matéria e uma forma genealógicas, que lhe escapam por todos os lados? Pois o esquizofrênico é certamente interpelado, nunca deixa de sê-lo. Precisamente porque sua relação com a natureza não é um polo específico, ele é interpelado nos termos do código social vigente: qual é o seu nome, quem é seu pai, quem é sua mãe? (...). A produção desejante forma um sistema linear-binário. O corpo pleno se introduz como terceiro termo na série, mas sem alterar o caráter desta: 2, 1 2, 1... A série é totalmente rebelde a uma transcrição que a submetesse e a moldasse em conformidade com uma figura especificamente ternária e triangular, como a do Édipo. O corpo pleno sem órgãos é produzido como Antiprodução, isto é, ele só intervém como tal para recusar qualquer tentativa de triangulação que implique uma produção familiar. Como pretende que ele seja produzido pelos pais se ele próprio dá testemunho de sua autoprodução, do seu engendramento a partir de si? (DELEUZE, G, 2010, p. 27-8).
Deleuze e Guattari entendem que Freud teria feito questão de manter os “direitos delirantes” do Édipo em um campo esquizofrênico e imaginário, contudo concreto, por conta mesmo da existência contraditória de um sujeito real que não se enquadraria à triangulação dos padrões sociais hegemônicos: pai, mãe e filho (a). Os desejos humanos mais potentes e vorazes não se moldariam naturalmente à esfera epistemológica, ao enquadramento político, aos círculos sociais ou mesmo à triangulação hereditária da família e demais convenções sociais. Nesse registro edipiano mais amplo, a produção maquinal dos desejos e das paixões padronizadas se mostraria ser contraditória, na medida em que produziria sistematicamente resultados práticos opostos às suas próprias causas produtoras ou reprodutoras: uma peripécia excêntrica da própria criação. Podemos dizer que a crítica do anti-Édipo revelaria uma deformação na face oculta por trás das formas perfeitas dos conceitos filosóficos mais canônicos. Nesse registro de uma revelação das faces ocultas, a família tradicional se mostraria sendo uma espécie de máquina produtora/reprodutora de desejos formatados aos moldes piramidais e hierárquicos da propriedade privada, do Estado civil e do costume cristão. Mas, no rebojo das contradições reprodutivas da máquina produtora de desejos, podemos dizer que o corpo pleno sem órgãos parece ainda resistir oculto nos subsolos do inconsciente desse processo cultural tal qual um rio submerso sempre prestes a transbordar.
Deleuze e Guattari se dedicam a demonstrar como o “Édipo supõe uma fantástica repressão das máquinas desejantes” que, diante das indagações esfíngicas, regularia a questão: “Será verdadeiramente necessário ou desejável curvar-se a isso? E com o quê? O que se há de colocar no triângulo edipiano, com o que formá-lo?” (2010, p. 13). No registro da matéria e do método relativo à complexa mitologia do Édipo, permaneceria oculta pela tradição filosófica uma multiplicidade antilinear ou “esquizofrênica” de relações contingenciais do sujeito: o delírio edipiano como matéria de uma potente “ética diferencial”, latente nas contingências do indeterminado oculto pelos discursos filosóficos e científicos da tradição. Uma ética diferencial poderia ser regulada pela consideração das ações antirreprodutivas (excêntricas ou esquizofrênicas) no processo de autoprodução criativa do agente que não se enquadraria naturalmente aos moldes de uma triangulação do tipo euclidiana, digo, edipiana: pai-mãe-filho (a). E sendo uma ética diferencial subjetiva, somada à contingência e à indeterminação objetiva do cognoscível, parece ser fundamental, nesse caso, considerar mais o resultado das práticas e das ações humanas e menos os princípios normativos de uma razão científica, geométrica ou mecanicista: a mudança exige ação e prática para além das teorias e das formas. No registro de uma intersecção entre teoria e prática é que a crítica de Deleuze e Guattari às metafísicas tradicionais parece se fundar em um campo do conhecimento tanto epistemológico ou filosófico quanto político ou social: o legado mitológico da matéria edipiana.
Ao considerarem, por exemplo, o modo como Freud reflete sobre a patologia da neurose histérica, os autores d´O anti-Édipo fazem questão de frisar como a postura freudiana (para além das críticas gerais à psicanálise) se vê diante de uma inescapável condição de conservar os direitos esquizo-paranóicos da crença edipiana em um “Deus do delírio” (DELEUZE, 2010, p. 27). Sob o prisma de uma crítica à racionalização dos mitos, Deleuze e Guattari observam como não seria necessário um esforço filosófico “sobre-humano” para se constatar um campo emancipatório do pensamento crítico moqueado nas frestas dos discursos filosóficos mais tradicionais. Por trás do falso discurso de neutralidade das modernas ciências do poder e da autoridade residiria na tradição filosófica um potencial cultural emancipatório e critico moqueado tanto pelo método quanto pela matéria do conhecimento científico legado por essa tradição. Em outras palavras, ouso dizer que o discurso científico da modernidade (visto sob esse prisma deleuziano de uma crítica aos mitos e à modernidade) parece se enquadrar àquilo que o poeta brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, dizia sobre sua incessante procura da poesia: “tem mil faces secretas sob a face neutra”.
As contradições ocultas sob a aparente face neutra das ciências modernas poderiam ser reveladas como um tipo de material crítico e emancipatório, quando vistas sob perspectivas multirreferenciais da criatividade cultural. A crítica de Deleuze e Guattari à metafísica tradicional aparece como uma mudança de direção no olhar filosófico, cegado tradicionalmente pela perspectiva milenar do Édipo como um sistema maquinal continuamente atualizado e reproduzido no pensamento e nas práticas sociais: ciência, política e religião. Sob o prisma dessas críticas de Deleuze e Guattari à metafisica tradicional, um olhar filosófico mais detido sobre a matéria investigada pela história da filosofia já seria razão suficiente para se ressaltar a multiplicidade potencial do pensamento moqueado pelo discurso das escolásticas acadêmicas, científicas e catecúmenas: o autoconhecimento de si dos modernos seria o resultado de uma ocultação dos saberes dos outros.
E parece ser por essa razão tanto epistemológica quanto política (para não dizer cosmológica ou religiosa) que Deleuze e Guattari observam como a máquina desejante parece ser reproduzida imanentemente pelo sistema social vigente de produção maquinal da vida11. Sob um aspecto edipiano, o progresso do modelo maquinal da cultura cientifica e social da tradição ocidental dependeria do combustível das paixões humanas já programadas para esse fim trágico: reprodução. Essa seria uma espécie de perpetuação do sistema de produção automática dos desejos e da vontade que (através da família tradicional, da propriedade hierárquica e do Estado civil) seguiria sempre atualizado no continuo processo de reprodução serial de um modelo representativo de vida artificial: a moderna vida civilizada.
No registro de uma moderna interpretação da poética de Aristóteles, a tragédia do Édipo poderia ser considerada, em termos de matéria e método, uma espécie de “fórmula maquinal” capaz de produzir paixões bastante específicas: o terror e a compaixão12. Essas duas paixões, uma vez combinadas no processo de uma moderna atualização do sistema maquinal, gerariam, por intersecção, uma terceira paixão ainda mais poderosa: o medo da morte violenta ou, às avessas, a esperança desmedida na imortalidade. A triangulação central que copula sujeito e predicado na multiplicidade dos discursos trágicos do Édipo parece se conformar a um modelo de reprodução social compatível com os princípios silogísticos do mecanicismo epistemológico de uma modernidade “neoeuclidiana”. Trata-se de um uso especulativo-prático do método geométrico, utilizado tanto na composição de versos e rimas poéticas entre os antigos quanto na investigação do comportamento dos corpos naturais, humanos e políticos na modernidade. A geometria portaria consigo um rigor demonstrativo capaz de construir e de reproduzir objetos formais tanto no campo da linguagem ou das palavras quanto na mente ou na imaginação dos homens. As imagens geradas e conservadas na imaginação humana segundo o princípio de autoconservação do movimento seriam as causas do desejo, da vontade e das próprias ações humanas.
No registro do mecanicismo moderno da ciência, da política e da religião, Deus seria trino (pai, filho e espírito santo) e os poderes do Estado seriam três (executivo, legislativo e judiciário) porque o triângulo (pirâmide) seria o modelo do método geométrico. O modelo triangular ancestral representaria uma hierarquia social fundada sobre os pilares da propriedade hereditária e da família tradicional: pai-mãe-filho (a) (HOBBES, 1983). Sob o prisma da tradição greco-romana, legada pela história da evolução maquinal oculta no seio da cultura cristã, a família (que teria surgido naturalmente como um sistema de produção criadora do novo) teria se tornado um mero mecanismo social de reprodução do velho modelo de novo: a propriedade hereditária. E assim a “novidade” da criação no seio da família teria se tornado o velho modo de vida reproduzido sistematicamente no eterno renascimento da mesmice de novo, de novo e de novo...
Parece ser por essa razão que, depois de iniciarem O anti-Édipo tratando de críticas contundentes à máquina desejante, Deleuze e Guattari se debruçam detidamente sobre a consideração da triangularidade da sagrada família cristã: José-Maria-Jesus. Nesse registro, os autores afirmam: “Em sentido restrito, Édipo é a figura do triângulo papai-mamãe-eu, a constelação familiar em pessoa”. (DELEUZE, 2010, p. 73). Com isso eles parecem querer revelar uma compatibilidade entre os interesses das tradicionais famílias cristãs e as modernas ciências políticas e epistemológicas da modernidade, no processo de perpetuação da propriedade intelectual e política hereditária: conhecimento é poder e o poder move o Estado e comove os homens. O sistema operacional da máquina desejante e a organização triangular da família cristã tradicional parecem se fundir na configuração das identidades que ilustram a complexa figura do Édipo atualizado, geometrizado e enquadrado a uma sala retangular do inconsciente coletivo. Sala retangular essa análoga a uma caixa de Pandora maquinal, movida pelo poder de uma esperança enclausurada que não passa de medo hereditário às avessas: a eterna angustia da espera.
A partir dessas considerações gerais, podemos dizer que o sistema artificial de reprodução da família tradicional é máquina e que, nesse registro, parece encontrar sua moderna emancipação em uma vida e em uma inteligência artificiais capazes de produzir uma vontade própria também artificial. O sistema de autorreprodução de uma hierarquia social contratualista que passaria hereditariamente da pátria à fraternidade ou da aliança à filiação. E parece ser nesse sentido reprodutivo que a máquina é desejante, isto é, carente de desejos e, ao mesmo tempo, produtora de uma vontade artificial auto-replicante. Vontade artificial essa que, no fim das contas, não passa de falta e carência, isto é, de “falha no sistema”. Falha essa que faz com que o mecanismo se mova, na medida em que se atualiza continuamente na busca por ou na produção de algo que lhe falta. Essa busca por superar uma carência autoproduzida geraria nos indivíduos uma necessidade artificial, maquinal e socialmente programada para nunca ser realizada. A carência e as faltas, que regulam os desejos dos modernos homens-máquina, seriam também produções ou reproduções de uma vontade artificial do sistema social da máquina do Estado. A exceção (regida pelo contratualismo civil durante as reformas políticas e religiosas da modernidade) teria se tornado a regra automatizada das ações humanas e também o modo de manutenção dos poderes vigentes e da propriedade hereditária.
No registro maquinal do cosmo, da vida, da família e do Estado na modernidade seiscentista, lembremos que tanto Descartes quanto Hobbes escreveram obras intituladas O homem (De homine). Obras essas que podem ser consideradas como tratados de “antropologia”, mas que não passam de ótica e geometria aplicadas à consideração do corpo, das paixões e da conduta de um tipo muito específico de sujeito: o moderno homem-máquina, também chamado cidadão/cristão. Essa perspectiva mecanicista do homem moderno parece resultar de uma consideração da vontade humana sob o prisma de uma ética geométrica reguladora da lei, da ordem, do movimento e dos corpos figurados. A imagem do “homem vitruviano”13 (visto sob um prisma mais deleuziano) poderia muito bem ilustrar ou retratar a resposta universal dos filósofos mecanicistas às indagações esfíngicas evocadas pela moderna ciência edipiana: “tudo é máquina”.
Princípios filosóficos de uma metafísica canibal antropofágica: “decifra-me ou te devoro”.
Partindo dessas considerações gerais sobre o legado mecanicista e antropocêntrico da modernidade científica, podemos dizer que a matéria (mito) e o método (geometria) das modernas filosofias de Descartes e de Hobbes teriam encontrado na tragédia do Édipo o projeto de uma de máquina desejante capaz de reproduzir seu legado ancestral desde os tempos da antiga cultura grega: Sófocles, Sócrates, Platão e Aristóteles. Nos trilhos dessa tragédia parricida e incestuosa retratada pelo mito do Édipo, o desmantelamento da ordem hierárquica na modernidade geraria a piedade para os agentes da ação e o terror no reconhecimento do público: o parricídio da tradição papal e a expropriação dos dotes da madre igreja romana constituiriam o grande interesse edipiano dos modernos. Com a ajuda dos filósofos e dos cientistas, o automatismo mitológico de um antigo processo maquinal (latente ancestralmente na tragédia do Édipo e da Esfinge) teria se atualizado na autorreprodução ensimesmada de uma máquina social presa ao círculo vicioso de sua sina de autoconservação nos tempos modernos. Parece ser contra esse legado cultural hereditário da modernidade científica que Deleuze e Guattari voltaram suas críticas antiedipianas tanto contra a hegemonia dos autômatos desejantes quanto contra a autoridade hierárquica da família tradicional e do Estado maquinal. Todas essas coisas ocultas sob o manto da matéria mitológica do Édipo.
No registro de uma crítica ao antropocentrismo mecanicista moderno, convém observarmos também como Viveiros de Castro (2015) adverte que a filosofia tradicional teria fundado suas teorias cientificistas sobre discursos muito equivocados ou mesmo mal-intencionados acerca da ideia ou do conceito de homem. Em suas Metafísicas canibais, o autor ressalta a importância criativa de se estender as críticas antiedipianas da filosofia deleuziana também para o campo da antropologia. Segundo o antropólogo brasileiro, as considerações filosóficas de Deleuze e Guattari sobre o modo de operação da máquina desejante teriam aberto uma brecha abismal nas tradicionais teorias canônicas sobre o homem, tanto no campo da filosofia e da psicanalise quanto no campo da política e da antropologia. Ao revelar o conceito maquinal de homem oculto nos fundamentos teóricos da filosofia moderna, a crítica filosófica de uma razão mais expandida ou alargada sobre esse homem deveria se voltar necessariamente para a antropologia.14
Sob a inspiração das críticas antinarcisistas de Viveiros de Castro, o antropocentrismo filosófico da modernidade (na medida em que teria se esforçado para colocar o homem como princípio e fim do conhecimento científico) também poderia ser entendido como uma espécie de antropologia: uma antropologia metafísica da ideia ou do conceito de homem-máquina. O moderno conceito de homem estaria limitado ao modelo de uma máquina desejante análoga ao “homem vitruniano”: enquadrado ao plano geométrico de uma vida artificial programada e representativa. Esse homem viveria preso ao plano geométrico de um eterno retorno da modernidade sobre si mesma, por isso ele seria sempre o mesmo ainda que manifesto como outro. E é com vistas à uma crítica ao mecanicismo moderno que uma antropologia “antinarcisista” (tal como proposta por Viveiros de Castro)15 se nos aparece sendo também uma espécie de filosofia antiedipiana. Filosofia essa que, na concretude de uma metafísica canibal antropofágica, ruminaria e regurgitaria o conceito maquinal de homem moqueado nas entrelinhas da história da antropologia tradicional como uma espécie de antídoto decolonial: um tipo de vacina antropofágica criada a partir de uma transformação do tabu em totem, isto é, da conversão do próprio veneno em antídoto.16
Nas entrelinhas das tramas epistemológicas amarradas às bases de uma política do domínio e do enquadramento das ideias mais criativas, as modernas ciências do poder e da autoridade seriam reguladas pela geometria das máquinas, dos mapas e da propriedade privada hereditária juntamente com os modelos da família e do Estado civil. Nesse registro, a metafísica canibal de Viveiros de Castro parece possibilitar também conceber o Estado moderno como uma representação da Esfinge edipiana devoradora de homens e regurgitadora de cidadãos. Essa Esfinge sobreviveria oculta nas entrelinhas de uma suposta neutralidade da resposta edipiana ao grande enigma cientifico, modernamente retratado na figura do Narciso contemplando a si mesmo diante do espelho: ego sum.
A perspectiva ensimesmada dos filósofos modernos, que buscavam conhecer a natureza e os outros homens mediante uma leitura narcisista de si mesmos, remontaria diretamente à sina edipiana do “conhece a ti mesmo” do templo de Apolo em Delfos. Essa perspectiva é que teria permitido aos filósofos modernos justificarem suas teorias sobre a natureza e sobre as paixões humanas através de uma leitura edipiana e narcisista de si mesmos: nosce te ipsum ou conhece a ti mesmo, diziam (HOBBES, 1983 e DESCARTES, 2004). O método geométrico teria servido a esses filósofos como limite para a redução enquadrada do moderno conceito de homem à circunferência espectral de seus próprios umbigos. Mediante generalizações interpretativas de si mesmos e da universalização dos seus pré-conceitos científicos, muitos filósofos modernos julgavam e inquiriam a natureza e os outros homens como sendo assim e “assados”. Parece ser por essa razão, de raiz cultural mais ampla, que Viveiros de Castro entende a questão axial de suas Metafísicas canibais (ou d´O Anti-Narciso) como uma crítica antropológica que se estenderia tanto para o campo epistemológico quanto para o campo político.
Uma antropologia antinarcisista aparece sendo também uma filosofia antiedipiana porque a questão ligada à racionalização dos mitos que fundam a modernidade científica passa pela atualização de uma cultura ancestral que é tanto epistemológica (do ponto de vista da filiação ou da fraternidade) quanto política (do ponto de vista da aliança ou do patriarcado). A metafisica canibal configuraria uma denúncia à cultura do poder e da dominação dos outros pelas práticas de um conhecimento científico ensimesmado (narcisista) que é sinônimo de poder e de autoridade: scientia potentia est. Essa ciência do poder, típica da modernidade, seria promotora de uma autoridade que se estenderia do domínio da natureza (ciência) para o domínio dos homens (política) e vice-versa. Nesse registro, podemos dizer que o modelo de homem considerado pelos filósofos modernos seria um tipo de máquina edipiana conectada às esferas narcisistas de uma época sistematicamente atualizada: a modernidade antropocêntrica e heliocêntrica. A máquina desejante mitológica transcenderia os séculos tateando cegamente os labirintos obscuros daquelas paixões narcisistas que movem e comovem binariamente esse autômato “flex” ensimesmado chamado cidadão/cristão: o terror e a compaixão.
O terror e a compaixão seriam aquelas duas paixões mais potentes (passíveis de purificação, síntese e redução ao essencial) que são tratadas pela Poética de Aristóteles como finalidade da tragédia ou da busca pelo reconhecimento. Sob um prisma moderno da mitologia edipiana, o terror e a compaixão parecem ter servido como os combustíveis para o progresso das ciências tanto quanto da sociedade moderna17. Entendidas as ciências modernas no registro da representação e dos “jogos de poder”, podemos dizer que o motor capaz de mover e de comover o moderno homem-máquina ao mesmo tempo promoveria o assistencialismo técnico a esse autômato chamado cidadão. O mesmo poder e a mesma autoridade que supostamente promoveriam as ciências e o progresso social podem ser consideradas as causas eficientes do domínio, da censura e da guerra. Parece ser como já dizia o poeta brasileiro, Augusto dos Anjos, em seus versos íntimos: “a mão que afaga é a mesma que apedreja”.
Viveiros de Castro, por sua vez, observa como a mitologia do Édipo poderia ser considerada a matéria fundadora da psicologia tanto quanto a mitologia do Narciso poderia ser considerada a matéria fundadora da antropologia. Acontece que a potência passional dessas fábulas (como bem parece ter mostrado tanto os filósofos antigos quanto os modernos) remonta ao conhecimento humano de tempos olvidados ou esquecidos, isto é, ancestrais. Tempos remotos esses onde a oralidade das narrativas poéticas e mitológicas, bem como as encenações ou representações folclóricas, eram fontes de ensinamento mais importantes do que os livros ou do que a própria escrita normativa. As fábulas, os mitos e as narrativas poéticas parecem trazer consigo uma sabedoria ancestral acerca dos homens, dos deuses e do mundo que os discursos filosóficos fizeram questão de ocultar com suas criptografias conceituais e códigos maquinais da escrita. E assim como no mito do Narciso, a filosofia moderna teria buscado conhecer a natureza, os homens e o mundo ao seu redor mediante uma contemplação metafísica ou abstrata de sua própria imagem refletida no espelho: o moderno retrato de Dorian Gray.
A sabedoria ancestral dos mitos e das fábulas dos antigos poderia ser considerada uma espécie de “rio submerso” que escoaria oculto pelas entrelinhas dos discursos e textos filosóficos mais tradicionais. Aristóteles reconhecia declaradamente essa potência passional e criadora do mito na tragédia edipiana representada em ato: catártica. Por essa razão, aliás, a filosofia aristotélica parece ter considerado a figura representativa do Édipo não apenas como matéria modelar da Poética, mas também da Ética. O homem mais excelente e feliz, considerado por Aristóteles na Ética, seria aquele sujeito autônomo capaz de lutar contra o destino, não seguindo ordens de outros, mas deliberando segundo sua própria razão e natureza. O homem em Aristóteles é princípio, meio e fim de tudo aquilo que é resultado das próprias ações humanas. A autonomia de seguir somente as ordens que o sujeito racional ou o homem livre atribui para si mesmo pressupõe um autoconhecimento desse sujeito como sendo a mais excelente criatura da natureza: o animal político e racional. É na pólis que o homem, segundo Aristóteles, poderia exercer o máximo grau de sua racionalidade. O animal político de Aristóteles seria a realização ou atualização da natureza política existente apenas em potência no animal racional. O animal político e racional de Aristóteles realizaria sua natureza humana apenas através do autoconhecimento de si como homem livre, que poderia ser alcançado segundo o modo registrado pela tragédia do Édipo: o reconhecimento de si através do conhecimento de sua própria história ancestral.
Na atualização dessa perspectiva aristotélica na filosofia de Bacon, as modernas ciências do homem e da natureza deveriam estar fundadas sobre um tipo de sabedoria dos antigos que remontava diretamente à enigmática figura da Esfinge e não apenas ao Édipo. A supervalorização do homem moderno e civilizado como epicentro do cosmo fez com que a ciência criasse uma personalidade narcisista para o moderno homem-máquina de Descartes e de Hobbes e esquecesse a Esfinge no inconsciente epistemológico do narcisismo moderno. Bacon entende que, assim como a figura do Édipo dizia respeito a uma dupla natureza das questões enigmáticas da Esfinge (o reino da natureza e o reino dos homens), a figura do Narciso ou do “amor ensimesmado” teria também essa dupla natureza: epistemológica e política (BACON, 2002, p.28.). Assim, o narcisismo dos filósofos modernos residiria no fato deles suporem conhecer tanto as causas dos fenômenos naturais quanto as causas dos fenômenos políticos mediante uma análise ou investigação de si mesmos como homens (Descartes) ou como cidadãos (Hobbes). Narcisismo esse que seria compatível com a racionalização do mito do Édipo enquanto fundamento tanto das ciências naturais quanto da política na modernidade do século XVII: “conhece a ti mesmo” repetia o oráculo de Delfos nos reflexos e reflexões da modernidade.
O amor ensimesmado dos homens civilizados pela própria imagem diante do espelho fez com que filósofos e cientistas modernos formulassem teorias cientificas a partir de suas próprias ideias e opiniões, mas interessados em dominar tanto a natureza quanto a mente dos outros homens. Sob esse prisma moderno da ciência e do conhecimento como poder, a “antropologia antinarcisista” proposta por Viveiros de Castro parece ser análoga à filosofia antiedipiana de Deleuze e Guattari porque critica os modelos fixos das ideias tradicionais simplesmente revelando outras faces ocultas e criptografadas das mesmas: uma descriptografia filosófica dos códigos maquinais. E, no registro mecanicista do eterno retorno do Édipo, oculto nas entrelinhas da história da filosofia, a metafísica canibal parece revelar a face oculta do poder e do domínio moqueada sob a face neutra dos métodos epistemológicos adotados tradicionalmente pelas ciências e pela filosofia, particularmente na geometria. Para exemplificar essa perspectiva crítica ao antropomorfismo mecanicista moderno, cito as Metafísicas canibais:
“Se onde se lê geometria puser-se antropologia, as implicações são óbvias. O que faria as vezes de uma variedade para a antropologia? Não é difícil imaginar. Tudo aquilo que costuma ser ritualmente denunciado como uma contradição e um escândalo, torna-se subitamente concebível: descrever ou comparar variações sem pressupor um fundo invariável? Onde estão os universais? (...). Não se diga que a antropologia estaria com isso praticando o contrabando de mercadorias intelectuais exóticas, com a geometria diferencial. Elas não são mais exóticas do que aquelas que alimentam a ortodoxia antropológica sobre a comparação e a generalização; tributária como esta é de uma metafísica bimilenar - a mesma metafísica, recorde-se, que se orgulhava de não admitir em seus domínios quem não fosse geômetra.” (VIVEIRO DE CASTRO, E., 2015, p. 122).
As críticas de Viveiros de Castro à antropologia, nesse sentido moderno ou modernista (antropofágico), se voltariam fundamentalmente contra a naturalização do método maquinal da geometria tradicional demarcadora de terras e de territórios, tanto quanto do cosmo, das leis, dos mapas, etc. Sob o prisma filosófico das considerações de Viveiros de Castro acerca da dimensão matemática das críticas de Deleuze e Guattari, parece que a tarefa central das críticas filosóficas das Metafísicas canibais (ou do Anti-Narciso) deveria se conduzir por uma espécie de “descriptografia conceitual” do velho método geométrico, utilizado como sistema operacional na formulação dos conceitos filosóficos desde a antiguidade. No sentido geometricamente codificado dos mitos e da antropologia, Viveiros de Castro atribui grande importância à influência referencial do matemático Albert Lautmann sobre os estudos de Deleuze e Guattari (2015, p. 123). No registro de uma crítica aos modelos fixos e imutáveis das figuras geométricas, Viveiro de Castro procura apresentar sua metafisica canibal e antinarcisista como sendo os elementos para uma antropologia pós-estrutural. O método geométrico tradicional, aplicado na investigação das essências e substancias na antiguidade e na investigação das matérias e movimentos na modernidade, teria servido de “régua e compasso” para a edificação de uma cultura política e científica alicerçada na “antropologia” ensimesmada de um típico modelo de homem civilizado e civilizador: o moderno cidadão/cristão. Por isso, os elementos daquele método geométrico utilizado ancestralmente para medir a terra e o céu, marcar a propriedade e a família, edificar castelos e cidades, compor músicas e poemas, fazer filosofia e máquinas de guerra, etc., teriam de ser devorados e regurgitados para serem superados e convertidos em alguma outra coisa nova: transformação permanente do tabu em totem.
Convém observarmos o quanto a filosofia antropocêntrica, característica do heliocentrismo moderno, parece ser mesmo resultante de uma autoanálise narcisista dos filósofos modernos, que consideravam o cosmo, a natureza, o homem e o Estado como máquinas auto-replicantes. Aquela máxima edipiana do templo de Apolo em Delfos (conhece a ti mesmo) parece ser a ilustração metafórica mais clara de um retrato das fábulas e dos mitos criptografados nos conceitos codificados pela história da filosofia moderna mais canônica. Contemplando mecanicamente suas próprias imagens no espelho, muitos filósofos modernos retrataram o Narciso tal como se estivessem falando de si próprios. Analisando a si mesmos e à suas próprias paixões narcisistas mediante um método apolíneo e edipiano, filósofos como Descartes e Hobbes supunham saber a causa e os efeitos de tudo o que se passaria na mente e nos corações de todos os homens iguais a e diferentes deles. No registro do pensamento moderno criticado por Viveiros de Castro, a filosofia moderna teria alcançado seu reconhecimento científico através da ocultação de outros saberes diferenciais.
Acontece que a geometria euclidiana (segundo o modo como Hobbes a entendeu e a utilizou) poderia muito bem ser considerada tanto como uma Física ou filosofia natural quanto como uma Ética ou filosofia comportamental (HOBBES, 2010). Do ponto de vista da Física, a geometria euclidiana poderia ser considerada uma ciência capaz de operar com o simples movimento da matéria na investigação dos elementos causais dos efeitos ou fenômenos naturais em geral: a mecânica. Do ponto de vista da Ética, essa mesma geometria poderia ser considerada uma ciência prescritiva da ação e da conduta humana tanto fora quanto dentro do Estado civil: as próprias leis da natureza. O fato é que as definições geométricas não deveriam ser entendidas como descrições de objetos naturais, mas sim como regras práticas ou prescrições para a construção de formas e figuras abstratas, convencionais ou simplesmente artificiais. Podemos dizer que, sob esse prisma geral, as definições geométricas ampliariam o conhecimento humano na medida em que seriam prescritivas ou práticas, ou seja, por serem capazes de regular corretamente tanto o entendimento quanto as ações humanas. Embora seja uma linguagem teórica e representativa, a geometria se caracteriza desde a antiguidade como um tipo de conhecimento fundamentalmente prático e construtivo. Demonstrar uma figura geométrica, em termos euclidianos, equivaleria à construí-la a partir de seus elementos constitutivos e não apenas descrevê-la ou analisa-la a partir de um todo.
No registro artificial ou convencional das figuras geométricas (tanto quanto da família e da propriedade), Hobbes teria se esforçado para fundamentar sua filosofia epistemológica e política sobre um método tanto especulativo (físico ou natural) quanto prático (ético ou político): a geometria euclidiana. As definições geométricas de Euclides seriam como regras prescritivas da ação para a reta conduta daqueles que buscam conhecer as coisas segundo suas causas constitutivas e esperam alcançar resultados ou efeitos semelhantes às figuras perfeitas. Sob esse prisma especulativo e prático da geometria, tanto Hobbes quanto Descartes parecem ter tentado traduzir a sabedoria dos antigos moqueando, criptografando e mantendo em segredo a imagem do ethos ancestral que fundava, a partir da inspiração dos mitos e das fábulas, o modo de operação de seus métodos científicos. Tanto a matéria edipiana do autoconhecimento apolíneo quanto o método geométrico da triangulação edipiana trazem submersos, nas entrelinhas dos discursos e nos intervalos conceituais, costumes e crenças da mitologia antiga. Esse legado mitológico seria entendido como uma autoridade epistemológica e política continuamente atualizada no processo de um eterno retorno da modernidade científica sobre si mesma.
Assim como o método geométrico teria auxiliado os primeiros poetas no processo de metrificação dos versos e rimas que narravam os mitos e as fábulas ancestrais, mediante parábolas, hipérboles e metáforas, esse mesmo método teria também auxiliado os filósofos modernos na representação científica dessa matéria filosófica: o conceito. A matéria edipiana, sobre a qual se fundava a telescópica cegueira filosófica da modernidade antropocêntrica, parece ter se apoiado nas entrelinhas do método geométrico tal como se essa ciência fosse uma espécie de fio condutor, capaz de guiar o pensamento racional em meio aos labirintos obscuros das paixões dos homens detentores do saber e do poder. Disso resultaria o conceito de homem moderno metrificado e geometrizado pelos códigos maquinais. E parece ser por essa razão que o mesmo método (geometria) aplicado sobre a mesma matéria (as paixões humanas) tenha resultado em disciplinas aparentemente tão dispares: uma epistemológica (Descartes) e outra política (Hobbes).
A disparidade entre a filosofia cartesiana e a filosofia hobbesiana, sob o prisma dos princípios e do método, seria apenas aparente. Acontece que a perspectiva mecanicista de Hobbes e de Descartes entendia as leis da natureza como expressões da vontade de um Deus trino geômetra e geometrizado. A natureza seria a própria arte através da qual esse Deus teria criado e governado o mundo em constante movimento e mudança: o heliocentrismo. Nesse registro criacionista e heliocêntrico da modernidade, a geometria seria uma espécie de ciência ou conhecimento revelado ao homem pela natureza ou pelo próprio Deus. Entendendo a natureza e os homens no registro desse método criacionista, mecanicista e geométrico, tanto Hobbes quanto Descartes consideravam os homens e a própria humanidade como máquinas e autômatos, ou seja, como criaturas ou artefatos feitos pelas mãos de uma Natureza soberana entendida como um Deus criador e senhor de tudo.
No registro geral dessas filosofias criacionistas, a percepção antropológica de Hobbes e de Descartes parece mesmo coincidir com os modernos princípios científicos de pensadores como Bacon e Galileu. Parece ser por essa razão geométrica que a natureza, o homem e o Estado civil são vistos na modernidade como autômatos, isto é, como mecanismos independentes, mas que podem ser modificados conforme a vontade dos detentores do poder do conhecimento e das tecnologias científicas. A sistemática moderna das máquinas parece ter mesmo adentrado artificialmente a natureza e transformado o curso das coisas mundanas pela força das crenças metafísicas e pela dominação das ciências naturais e políticas a partir da modernidade.
Nesse registro geral da matéria e do método cientifico moderno, aquela aproximação do “Anti-Narciso” de Viveiros de Castro com O anti-Édipo de Deleuze e Guattari aparece sendo interessante e assertiva quando revela que a questão central do conhecimento científico se volta para um campo antropológico de fundamentação tanto epistemológica quanto política (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 20). Tomando como exemplo Hobbes, a relação entre a geometria e a política teológica dos modernos (do Leviatã maquinal como representação esfíngica do Estado civil e eclesiástico) revela coisas interessantes. O Leviatã de Hobbes é uma espécie de autômato ensimesmado análogo a uma besta fera maquinal auto-replicante. Visto o homem hobbesiano como um tipo de “máquina-desejante”, o Estado civil criado à imagem e semelhança desse homem só poderia ser mesmo uma espécie de Estado-máquina ou um homem artificial. O Estado seria uma máquina programada artificialmente para se conservar reproduzindo sistematicamente a si mesmo através da produção e da conservação de seus cidadãos-artífices. O modelo maquinal do pacto constitutivo do Estado civil em Hobbes é a convenção familiar do patriarcado tradicional, que faz do corpo político uma pátria e seu legado histórico uma fraternidade hereditária.
Parece ser por essa razão tanto política quanto epistemológica que Viveiros de Castro entende que uma “antropologia antinarcisista” (tanto quanto a “filosofia antiedipiana”) poderia ser considerada em relação a uma geometria diferencial que rejeitasse o plano formal de uma triangulação tradicional do tipo euclidiana, digo, edipiana: pai, mãe e filho (a). O modelo familiar, triangular e hierárquico do método filosófico seria a mesma forma convencional que delimitaria a propriedade hereditária tanto quanto os mapas, as cidades, o cosmos, a natureza, o homem e o Estado. E é por essa razão filosófica que Viveiros de Castro faz questão de frisar como “a questão axial d’O anti-Narciso é espistemológica, ou seja, política” (2015, p.20). Acontece que a autoridade cientifica teria se tornando uma forma de dominação cristalizada hereditariamente sobre as bases da nossa cultura política colonialista e retrograda. Esse legado mitológico e geométrico das ciências e da política, tanto quanto das artes e também da lógica, seria uma espécie de “presente de grego” moqueado desde o passado remoto nas entrelinhas futuras do nosso herdado sistema maquinal de produção/reprodução familiar, cientifica e cultural.
Considerando as implicações daquilo que Viveiros de Castro sugere como uma substituição da palavra geometria pela palavra antropologia aplicada ao cânone da filosofia tradicional, podemos dizer que o pensamento geométrico de Hobbes e Descartes poderia muito bem ser entendido como uma espécie de “método antropológico”. O espaço e o tempo, assim como a matéria e o movimento que formam as linhas e as figuras, seriam tanto elementos naturais quanto formas ou modos do entendimento e da intuição humana. A geometria, operando sobre os princípios elementares do entendimento humano, não seria uma ciência descritiva da natureza, mas sim prescritiva das ações humanas. As definições geométricas seriam regras práticas para a construção de figuras artificiais feitas pelas mãos humanas e não pela natureza. O método geométrico teria auxiliado na construção de um moderno conceito de homem-máquina edipiano e narcisista representado pela imagem criptografada do “homem vitruviano” maximizado à potência do Leviatã soberano: um gigantesco homem artificial ou uma espécie de Deus mortal. E com essa atitude utilitarista das ciências os filósofos modernos não estariam praticando nenhum tipo de “contrabando de mercadorias exóticas”, visto que tanto Hobbes quanto Descartes se utilizaram do rigor da geometria euclidiana para criar cada qual sua própria filosofia: uma política e outra epistemológica, respectivamente. Parece que o mesmo método geométrico, aplicado sobre a mesma matéria das paixões humanas, poderia resultar em filosofias diversas e até mesmo opostas, a exemplo de Descartes e de Hobbes. Resultados diversos das diferentes interpretações e dos variados modos de uso inerentes à prática da própria geometria: são as mesmas concepções de ponto, linha e ângulo que, diferentemente utilizados, formam figuras muito diversas e até mesmo opostas, a exemplo do quadrado e do círculo.
Uma geometria diferencial poderia ser considerada como um resultado sistemático do exercício prático e concreto da geometria tradicional em seus diversos usos e experimentações. Tanto Descartes quanto Hobbes teriam tentado criar “novas” geometrias não-euclidianas a partir de interpretações mais ousadas e de usos diversos da própria geometria euclidiana: uma questão de perspectiva. Vista sob o prisma extensivo desse método aplicado às práticas históricas de interpretação e de construção do mundo, uma geometria diferencial poderia ser entendida também como uma “geometria anti-reprodutiva”, na medida pudesse superar os limites do que é tradicional para lhe acrescentar algo de novo e de prático. Isso significa dizer que, mesmo sendo crítica ou antitética de si mesma, uma geometria diferencial poderia ser considerada criativa e produtiva, embora não reprodutiva. A diferença interpretativa, desse ponto de vista prático, residiria no interesse aporético dessa geometria diferencial: ao contrário do uso tradicional da geometria, o uso diferencial dessa linguagem se interessaria por revelar, e não ocultar, o revelo das diferenças no processo de construção do conhecimento cientifico e filosófico de uma racionalidade mais ampla e alargada. Essa geometria diferencial consideraria os objetos do conhecimento não a partir de modelos fixos e figuras perfeitas, mas sim a partir da prática e das possibilidades particulares de criação do novo e não da reprodução do velho. A investigação daquilo que é novo deveria trazer consigo sua própria história e epistemologia imanentes, não operar sempre com os mesmos modelos fixos e imutáveis dos velhos paradigmas metafísicos e filosóficos, como no caso das figuras geométricas perfeitas.
No caso de uma ampliação interpretativa do legado histórico das ciências e da filosofia, revelar-se-ia as múltiplas perspectivas dos fenômenos científicos engessados pelos conceitos mais canônicos da tradição ocidental. A imaginação tem sido considerada por muitos filósofos antigos, modernos e contemporâneos a verdadeira “louca da casa” dentro dessa tradição. Daí, inclusive, o interesse racional da filosofia mais sistemática pela investigação normativa das substancias, das essências imutáveis, das formas irredutíveis e das figuras perfeitas, afim de regulamentar nossa imaginação mais criativa. Mas, na medida em que a história das ciências, das guerras e das conquistas acabaram tornando nossas instituições religiosas, científicas e políticas verdadeiros “hospícios”, o direito dos excêntricos à crença em um “deus do delírio” (que marcaria e pontuaria a diferença como referencial imanente nos esquizofrênicos, segundo Deleuze) faria dessa mesma imaginação diferencial a “dona da casa” de nossas ideias mais criativas e inovadoras. Nesse sentido, uma geometria diferencial imaginária poderia servir mesmo como um fio condutor capaz de guiar de modo prático o entendimento em meio aos labirintos intrincados de nossa imaginação mais fértil e emancipada: a crítica.
Considerar uma filosofia geométrica imaginária como sendo diferencial, amórfica e mutante significaria utilizar os princípios das ciências geométricas para se criar novas formas e práticas, rejeitando fundamentalmente a reprodução do sistema maquinal de modelos virtuosos da ação e de figuras perfeitas. Tratar-se-ia de uma simples superação do modelo pré-estabelecido dos processos formais do entendimento humano, das leis e dos direitos que circunscrevem a propriedade privada e o domínio tanto sobre a natureza quanto sobre os próprios homens. Vale lembrar que os gênios das ciências, da filosofia e das artes são considerados grandes personagens históricos justamente por contestarem os padrões estabelecidos em suas épocas e por trazerem com isso algo de novo e inusitado para o avanço do conhecimento humano. Sob esse prisma filosófico, ser adepto de uma tradição crítica implicaria em ser também crítico dessa tradição, no sentido de testar os seus princípios e limites com vistas ao progresso, ao avanço ou à superação desse conhecimento. Se somos herdeiros de uma tradição crítica (a exemplo da própria modernidade em relação ao medievo), para sermos considerados discípulos ou herdeiros dessa tradição temos que criticá-la no sentido de superá-la. E para isso não precisaríamos ser deuses ou heróis (super-humanos), mas apenas estar dispostos a devorar o nosso amargo legado histórico, ruminar filosoficamente essa tradição e regurgita-la antropofagicamente: o veneno da serpente leviatânica convertida em antidoto contra o mal de sua própria picada histórica.
Sob o prisma dessa tradição filosófica de vanguarda, podemos entender uma “filosofia imaginária e diferencial” no registro de uma autoprodução de si mesma criadora do novo e não reprodutora do velho. A criação do novo pode até pressupor o velho, mas apenas como ponto de partida para uma superação capaz de expandir a experiência e o conhecimento do homem rumo ao devir do inusitado. A criação anti-reprodutiva de uma filosofia imagética prática poderia ser considerada autônoma e prudencial o suficiente para dar uma “razão crítica” à sua própria existência paradoxal. Isso porque, dentro de um sistema maquinal excêntrico, seriamos reprodutores dessa excentricidade mesmo sem querer ser, mas com todo o direito a sê-lo. O indivíduo produzido por esse sistema imanente de reprodução maquinal da vida artificial resultaria em um tipo de marginal excêntrico ou “fora do eixo”, mas portador de um direito existencial congênito: a excentricidade que lhe foi imposta como rótulo, mas que lhe é efetivamente negada como direito adquirido. A “dialética-maiêutica”, que serviria como método metafísico na história da filosofia tradicional, poderia se tornar ela mesma a matéria do seu próprio conhecimento crítico. Essa aporia sistemáticamente anti-reprodutiva seria potencialmente criadora do novo, a partir do vazio existencial de um agente paradoxal que não se enquadra aos moldes culturais pré-estabelecidos pelo sistema vigente. E essa seria a peripécia mitológica da Esfinge antropofágica contra o Édipo: “decifra-me ou te devoro”.
Com suas críticas canibais à metafísica tradicional acerca do homem, Viveiros de Castro teria tentado revelar como uma reconsideração da diferença e da multiplicidade (moqueadas no bojo das doutrinas epistemológicas mais canônicas) já seria razão suficiente para desmascararmos essas filosofias representativas todas tal como elas de fato são: mitológicas e fabulosas. Não que mitos e fábulas sejam narrativas desprezíveis ou desprovidas de conhecimento e de sabedoria. Muito pelo contrário, pois, embora os discursos modernos buscassem menosprezar a mitologia frente à razão cientifica, os mitos e as fábulas constituíram a matéria básica dos principais sistemas filosóficos modernos: Bacon, Galileu, Descartes e Hobbes, por exemplo. O problema é que, para os filósofos modernos (que estavam mais interessados nos discursos sobre essências, conceitos e formas imutáveis), os mitos e as fábulas deveriam ser racionalizados mediante códigos maquinais por serem passiveis de interpretações diversas e até mesmo contrárias. Por isso, o interesse da filosofia moderna por uma purificação e por uma tradução formal dos conceitos científicos se voltaria para o processo criptografado de uma “racionalização dos mitos”. Criptografados no registro conceitual das ciências modernas e de seus códigos maquinais, os mitos e as fábulas teriam se perpetuado nas entrelinhas de nossa cultura colonial como um rio submerso oculto pelo domínio do pensamento civilizatório.
Ancoradas sobre os discursos de neutralidade e de universalidade, as metafísicas tradicionais teriam perpetuado seu legado milenar como um “presente de grego” restaurado a partir do passado e atualizado continuamente rumo ao futuro: o renascimento moderno e a colonização. Sob o prisma filosófico, ousamos dizer que os elementos de uma “antropologia diferencial”, analogamente aos de uma geometria e de uma ética diferenciais, rejeitaria o velho modelo metafísico e geométrico do homem vitruviano (meio Édipo, meio Narciso, meio Deus e meio máquina) para se lançar rumo às contingências indeterminadas do mundo natural e político concreto em que vivemos. Tratar-se-ia de uma rejeição dos modelos estruturais fixos e permanentes dos conceitos de família, de Estado e de ciência no sentido de uma expansão da experiencia e do conhecimento humano acerca dessas próprias coisas, suas causas e efeitos naturais, culturais e políticos.
Contra o legado colonialista permanentemente atualizado, uma provável metafísica canibal poderia mesmo nos ajudar a regurgitar antropofagicamente o conceito indigesto de homem-máquina que nos fora legado através dos mitos e das fábulas ocultas nas entrelinhas dos discursos filosóficos e científicos desde a antiguidade grega. ‘“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”, declama o manifesto inspirador de nossa metafísica canibal mais esfíngica, antiedipiana e antinarcisista. O sistema maquinal que se lançara contra nossos antepassados, a partir da modernidade cientifica e colonialista, seria análogo a um modo de produção da vida artificial capaz de se perpetuar através da reprodução das máquinas da família tradicional, da propriedade privada e do Estado civil autômato. A tragédia e a farsa seriam como modelos de representação das ações e do entendimento humano codificado nas entrelinhas dessa herança cultural colonialista. Esse legado mitológico oculto parece se criptografar e se atualizar concretamente na nossa vida social contemporânea, muitas vezes acobertado por uma cegueira política e social herdada histórica e culturalmente: o legado da tradição edipiana e narcisista das ciências e da política do pensamento colonizador. Contra os golpes mitológicos dessas máquinas despóticas hereditárias é que nossas flechas filosofais deveriam se levantar resistentes, como setas teleguiadas pelas mãos de outros saberes epistemológicos e pelo direito à crença em outros mitos diferenciais.