SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número61IDENTIDADE E PREDILEÇÃO POR TIMES DE FUTEBOL ENTRE ALUNOS DE UMA ESCOLA FRONTEIRIÇA (BRASIL-BOLÍVIA)CIDADE EDUCADORA E HUMANIZADORA: A REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES E VULNERABILIDADES índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.61 São Paulo abr./jun 2022  Epub 09-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n61.15798 

Artigos

AS PERSPECTIVAS DE COMPETÊNCIAS NA BNCC: UMA ANÁLISE À LUZ DA PEDAGOGIA FREIREANA

BNCC PERSPECTIVE SKILLS: AN ANALYSIS IN THE LIGHT OF FREIREAN PEDAGOGY

LAS PERSPECTIVAS DE COMPETÊNCIAS EM LA BNCC: UN ANALISIS A LA LUZ DE DE LA PEDAGOGÍA FREIREANA

Elis Laura Pinto Rieger Hipler, Mestrado em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-0353-8549

Lídice Tiede Fraga, Mestrado em Educação2 
http://orcid.org/0000-0003-3604-9351

Antonio Fernando Gouvêa da Silva, Doutorado em Educação3 
http://orcid.org/0000-0002-8915-9952

1Mestrado em Educação, Universidade Federal de São Carlos - campus Sorocaba - UFSCar Sorocaba. Sorocaba, SP - Brasil.

2Mestrado em Educação, Universidade Federal de São Carlos - campus Sorocaba - UFSCar Sorocaba. Sorocaba, SP - Brasil.

3Doutorado em Educação, Universidade Federal de São Carlos - campus Sorocaba - UFSCar Sorocaba. Sorocaba, SP - Brasil.


Resumo

Buscou-se analisar, neste trabalho, as competências gerais apresentadas na BNCC para os anos finais do Ensino Fundamental e investigar se a pedagogia freireana apresenta alternativas para a superação e enfrentamento de políticas neoconservadoras, a partir de uma pesquisa documental de cunho qualitativo, que utilizou como principal referencial teórico Paulo Freire e suas contribuições epistemológicas e pedagógicas a respeito das categorias educação crítica, coletividade e conscientização, norteada pela seguinte questão de pesquisa: “a pedagogia freireana pode ser uma fonte de resistência ao instrumentalismo presente no neoconservadorismo proposto na BNCC?”. Dessa forma foi possível identificar que as competências apresentam características avessas a uma compreensão mais ampla e crítica, fundamentada na compreensão de educação crítica e conscientizadora de Freire (1987).

Palavras-chave: Freire; BNCC; Competências.

Abstract

The aim of this paper was to analyze the general competences presented at the BNCC for the final years of elementary school and to investigate if Freire's pedagogy presents alternatives for overcoming and confronting neo-conservative policies, based on a qualitative documentary research, which was used as its main objective. Theoretical framework Paulo Freire and his epistemological and pedagogical contributions regarding the categories critical education, collectivity and awareness, guided by the following research question: “Can Freire's pedagogy be a source of resistance to the instrumentalism present in the neoconservativeism proposed in the BNCC?”. In this way, it was possible to identify the competences that have characteristics that are contrary to a broader and critical understanding, based on Freire's (1987) understanding of critical and awareness education.

keyword: Freire; BNCC; Skills.

Resumen

Buscamos analizar, em este trabajo, las competências generales presentadas em la BNCC para os últimos años de la Enseñanza Fundamental e investigar si la pedagogia freireana presenta alternativas para la superación y enfrentamento de las políticas neoconservadoras, a partir de uma investigación documental de corte cualitativo, naturaliza, quien tomó como principal referente teórico a Paulo Freire y sus aportes epistemológicos y pedagógicos em torno a las categorias educación crítica, colectividad e conciencia, guiados por la seguiente pergunta de investigación: “La pedagogia freireana puede ser fuente de resistência al isntrumentalismo presente em el neoconservadurismo propuesta em la BNCC?”. De esta forma, fue posible identificar que las competências tienen características adversas a uma comprensión más amplia y crítica, a partir de la comprensión de Freire (1987) sobre lá educación crítica y conciente.

Palabras clave: Freire; BNCC; Habilidades

1 Introdução

De acordo com Laval (2004), as mudanças ocorridas no âmbito das políticas educacionais nacionais são processos preconizados, de formas diversas, por organismos nacionais e internacionais (Organização Mundial do Comércio - OMC, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional - FMI, Comissão Europeia), que, a partir de seus poderes econômicos, conduzem, por meio de “avaliações” e “comparações”, um importante papel na criação de uma concepção educacional homogênea, de grandeza global.

O fato supracitado contribui para entender de maneira mais ampla como organizações internacionais e suas orientações influem e orientam políticas educacionais nacionais, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (CÓSSIO, 2015), e como este documento apresenta um caráter neoconservador. Para tal, compreende-se neste trabalho, do mesmo modo que para Losurdo (2006, p. 109), que o neoconservadorismo é, também, “a tentativa de reverter a ‘ideia de direitos civis e sociais’, de privar a ideia de direito daquela ‘substância social’ que é o resultado da resposta que a sociedade aberta apresenta aos desafios da luta de classes”.

A relação existente entre as propostas educacionais feitas pelo Banco Mundial e as políticas educacionais reformistas, como a BNCC, pode ser entendida quando se analisam ss principais estratégias defendidas nas orientações dessas organizações aos países em desenvolvimento, visto que enfatizam a necessidade de:

(...) reformar os sistemas educacionais e implantar uma base de conhecimento, a partir da definição de padrões de qualidade globais, que auxiliem na implementação das reformas, tendo como foco central a aprendizagem de todos, com ênfase na população considerada vulnerável (CÓSSIO, 2015, p. 618).

As modificações previstas em documentos orientadores dessas organizações internacionais para educação enfatizam e priorizam a aprendizagem de competências para o mundo do trabalho, tendo como palavras de ordem a eficiência, a inovação, a eficácia e a performance. Como Cóssio (2015) ressalta, o Banco Mundial e os grupos empresariais, que lideram essas propostas reformistas no Brasil, por meio da transgovernança e governança, entendem e disseminam uma concepção limitada do que vem a ser o direito à educação, principalmente para as camadas mais pobres, as quais teriam direito apenas a aprendizagens relacionadas à escrita, à leitura e ao cálculo, para além de estarem em consonância com uma concepção neoconservadora de educação.

Na primeira parte da Introdução da BNCC, intitulada “A Base Nacional Comum Curricular” é contemplado o conceito de “competências” apresentado pelo documento e uma lista com as “dez competências gerais da BNCC”. Nesta introdução, mais especificamente no item “Os fundamentos pedagógicos da BNCC”, justifica-se o “Foco no desenvolvimento de competências”, já que é o que vem orientando as construções educacionais de quase todos os estados e municípios brasileiros, estando em evidência nas atuais discussões pedagógicas e sociais e, além disso,

É esse também o enfoque (por competências) adotado nas avaliações internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que coordena o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês)11, e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em inglês), que instituiu o Laboratório Latino-americano de Avaliação da Qualidade da Educação para a América Latina (LLECE, na sigla em espanhol) (BRASIL, 2018, p. 13, grifo nosso)

Assim, é notório que a BNCC é uma manifestação de políticas neoconservadoras na área da educação, tendo no desenvolvimento de competências uma de suas principais diretrizes, à vista disso, o presente artigo busca investigar: em que medida a pedagogia freireana pode ser uma fonte de resistência e superação ao instrumentalismo, reflexo do neoconservadorismo evidenciado na BNCC?

Para tanto, pretende-se aqui analisar as competências gerais apresentadas na BNCC para os anos finais do Ensino Fundamental e investigar se a pedagogia freireana apresenta alternativas para a superação e enfrentamento de políticas neoconservadoras, a partir de uma pesquisa documental de cunho qualitativo, que utilizou como referencial teórico Paulo Freire (1987 e 1985) e suas contribuições epistemológicas e pedagógicas.

2 Competências: O histórico do termo, sua abordagem na BNCC e à luz de Freire

A BNCC é um documento oficial, que norteia os currículos das redes estaduais, municipais e particulares do país, tem por objetivo homogeneizar as aprendizagens, por meio do desenvolvimento de competências e habilidades, para todos os estudantes do território nacional. A formulação da base comum partiu do que se previa no Artigo 210 da Constituição Federal de 1988 e no Artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação publicada em 1996 (LDB/96).

O primeiro movimento de mobilização para a BNCC deu-se na segunda Conferência Nacional pela Educação (CONAE), entre 19 e 23 de novembro de 2014, organizada pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), de onde originou-se um documento contendo as propostas e reflexões para a Educação brasileira, considerado referência para o processo de consolidação do que, então, intencionava-se acerca da base.

A primeira versão da BNCC foi disponibilizada para consulta pública em 16 de setembro de 2015. Essa versão foi o documento preliminar para discussão, no âmbito das escolas de todo o país, de 2 a 15 de dezembro, do mesmo ano - “Dia D da BNCC”. Após reformulação, com a incorporação dos debates anteriores, em 3 de maio de 2016, foi disponibilizada a segunda versão do documento.

No período de 23 de junho a 10 de agosto de 2016, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) promoveram 27 Seminários Estaduais, em que professores, gestores e especialistas debateram a segunda versão da BNCC, partindo daí a redação da terceira versão. A versão final da base para a Educação Infantil e Ensino Fundamental foi entregue ao Conselho Nacional de Educação (CNE), em abril de 2017. O CNE elaborou, então, um parecer e um projeto de resolução sobre a BNCC - encaminhados ao Ministério da Educação (MEC).

Com a homologação da BNCC, em 20 de dezembro de 2017, pelo ministro da educação Mendonça Filho, iniciaram-se os processos formativos e de capacitação dos professores, bem como o apoio aos sistemas educacionais públicos no sentido da elaboração e adequação curriculares. A Resolução CNE/CP no 2, de 22 de dezembro de 2017, é apresentada pelo CNE, instituindo e orientando a implantação da Base Nacional Comum Curricular.

No dia 6 de março de 2018, professores de todo Brasil reuniram-se, no Dia D da BNCC da Educação Infantil e Ensino Fundamental, para compreender a implementação da BNCC e seus impactos na educação básica brasileira. A terceira versão da BNCC para o Ensino Médio foi entregue, pelo MEC, ao CNE, em 2 de abril de 2018, iniciou-se, a partir de então, um processo de audiências públicas para debates acerca do documento.

Em 5 de abril de 2018, foi instituído o Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum Curricular (ProBNCC). Em 2 de agosto de 2018, ocorreu a mobilização das escolas do país para discussão e contribuições em relação à BNCC do Ensino Médio. Foram criados comitês com educadores, técnicos da educação e gestores, que debateram e preencheram um formulário online, com sugestões para aprimoramento do documento. Por fim, a homologação da BNCC para o Ensino Médio deu-se em 14 de dezembro de 2018, pelo então ministro da educação, Rossieli Soares.

Na BNCC (BRASIL, 2018), na parte destinada às competências gerais é possível identificar o que o documento compreende enquanto competências. Desta forma, são elencadas dez competências que são articuladas e tem como escopo incitar conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolução das complexidades da vida que são apresentadas aos sujeitos; para o amplo exercício da cidadania e para inserção no mundo do trabalho.

A primeira competência refere-se a valorização e utilização de conhecimentos; na segunda competência frisa-se sobre a investigação, formulação e resolução de problemas; a terceira refere-se a manifestações artísticas e culturais; a quarta concerne à utilização de linguagens diversificadas para a interação social e produção dos sentidos; a quinta contempla de modo geral as tecnologias digitais de informação e comunicação; a sexta ressalta os saberes e as experiências no que tange à esfera cultural, relacionados ao mundo do trabalho e à atuação do sujeito no que compete a sua própria vida e à vida social; a sétima versa sobre as questões socioambientais, sobre o cuidado com si mesmo, com os outros e com o planeta; a oitava diz respeito às questões acerca da saúde física e emocional, próprias e mútuas; a nove faz referência às relações entre os sujeitos com base no respeito e no que preconizam os direitos humanos; por fim, na décima competência são abordadas as ações pessoais e coletivas, orientadas por princípios éticos para tomada de decisões. (BRASIL, 2018)

De acordo com Dias (2010), o termo competência surge no século IV associado ao trato de problemas específicos pelas instituições, como por exemplo uma câmara de contas. No século XVIII, o conceito estava imbricado na capacidade de um indivíduo, que partia de um conhecimento oriundo de sua experiência. Já no século XX o termo é encontrado em trabalhos científicos realizados pelo linguista Chomsky, relacionando as competências a características congênitas para a compreensão e a fala em determinada língua (DIAS, 2010 apud PERRENOUD, 2005).

Na década de 1970, o termo correlaciona-se ao âmbito profissional, assumindo uma perspectiva empresarial. Segundo Dias (2010, p.74), na área de Educação, competência

(...) tem surgido como alternativa a capacidade, habilidade, aptidão, potencialidade, conhecimento ou savoir-faire. É a competência que permite ao sujeito aprendente enfrentar e regular adequadamente um conjunto de tarefas e de situações educativas.

Perrenoud (1999) conceitua o que compreende ser competência no âmbito da Educação e afirma que “Competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações etc.). Para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações”. (p.30). Ainda ressalta serem elas necessárias para a adaptação dos indivíduos às diversas situações existenciais e primordiais para a resolução de problemas.

Em consonância com as ideias preconizadas por Perrenoud (1999), Coll (s/f, p.103) apoia que,

[...] os enfoques baseados em competências significaram um avanço em muitos aspectos, principalmente no que se refere ao tipo de aprendizagem que iremos promover a partir da educação escolar e, por extensão, à identificação, seleção, caracterização e organização das aprendizagens escolares que devem fazer parte do currículo escolar.

Moreira (1997), entretanto, tece críticas sobre a compreensão de educação a qual Coll preconiza, pois argumenta que esta concepção possui um caráter puramente psicologizante, não contemplando a relação entre educação e sociedade. Dessa forma, o processo educativo embasado na perspectiva de Coll não concebe questões relacionadas aos aspectos políticos e ideológicos que permeiam a educação, mas, ao contrário, pensam a educação enquanto um processo neutro de transmissão de cultura.

Macedo (2015), discutindo sobre o entendimento da educação como direito público e como bem privado, ressalta que a “listagem de comportamentos (objetivos ou competências) que expressam um saber fazer operacional” (2015, p.900) é fruto do “eficientismo contemporâneo”, que, por sua vez, associa-se ao mundo do trabalho.

Já a educação libertadora, preconizada por Freire (1987), pauta-se na articulação entre elementos para a promoção de uma educação crítica, podem-se se citar, dentre diversos: a “problematização” e “conscientização”. Tal articulação está associada a “temas geradores”, que são os viabilizadores da prática de uma educação emancipatória e democrática que, por sua vez, intenciona a construção da “consciência crítica” dos sujeitos envolvidos neste processo, de maneira coletiva, fomentando a atuação destes sujeitos na esfera social, cultural e econômica que constituem sua realidade concreta.

Desta maneira, a partir de uma dinâmica de aprendizagem e conscientização, que torna possível e necessária a participação de todos os relacionados neste processo de forma que os inclua no contexto socio-histórico e cultural, as práticas são direcionadas para a emancipação dos sujeitos, que, para Adorno (2011, p. 141), não se trata da “modelagem de pessoas” ou da “transmissão de conhecimentos”, mas refere-se “[...] a produção de uma consciência verdadeira [...] exigência política.” Consoante com esta perspectiva, para se tornar “sujeito”, requer refletir e atuar sobre a realidade concreta, conforme Torres (2010, p. 157),

(...) a concepção educacional (freireana) consiste em um ato de conhecimento do concreto, em uma aproximação crítica da realidade, em um esforço de humanização, direcionado à revelação do concreto, do real - na busca da conscientização.

A conscientização é concebida nesta vertente enquanto consciência crítica em ação, constituindo-se como decisão e compromisso histórico com a relação “homem-mundo”, ação-reflexão-ação, e, portanto, concretizando-se em práxis. Assim, a educação freireana, ou seja, libertadora, denuncia a organização desumanizadora e anuncia uma organização humanizadora, por meio da “desmitificação da realidade” e da superação das “situações-limites” ou contradições sociais, que condicionam os sujeitos ao estado de “coisas” (FREIRE, 1987).

Nesta perspectiva, a realidade é encarada como um desafio a ser respondido e é por meio da “investigação temática” que tais desafios serão revelados, pois a realidade é sistematizada em “temas geradores”. Sendo assim, ao passo que os sujeitos encontram-se mais conscientizados, maior sua potência para denunciar e anunciar o mundo em suas relações dialéticas, devido ao compromisso dos sujeitos com a transformação do pensar e do agir. (FREIRE, 1987)

Para tanto, este processo educativo ocorre de maneira conjunta e recíproca, pois esta envolve tanto o educando quanto o educador, onde tudo se inicia antes mesmo de se chegar nos ambientes escolares, por meio de entrevistas e visitas aos locais cotidianos da dada comunidade escolar, assim, o educador passa a investigar e conhecer a realidade de cada sujeito envolvido e acaba por proporcionar a elaboração e delineamento dos temas geradores (FREIRE, 1987), estes, que, por sua vez, concretizam-se a partir do entendimento, por parte do educador, a respeito do universo de palavras que são expressas pelos educandos, pois é através delas que é possível entender como os próprios educandos pensam e agem sobre sua realidade.

Assim, é por meio da investigação do universo temático - fundamentado no contexto imediato e local, e, também, necessariamente no contexto subjetivo e não imediato -, que se culmina nos contextos locais, representados pelas organizações sociais, culturais e econômicas da comunidade que se pretende ensinar e conscientizar, estabelecendo-se relações com a vida dos educandos. Destarte, contemplar os problemas sociais contemporâneos e o conteúdo específico, onde se podem observar ponderações a respeito da relevância social e da contextualização, avança-se para um ensino mais significativo e crítico. Esta forma de ensinar leva em consideração quem são os sujeitos e seus respectivos contextos, proporcionando um ensino pertinente e comprometido com a formação de cidadãos críticos e participativos, capazes de refletir e atuar na realidade coletiva em busca de sua autonomia. (FREIRE, 1987)

Para isto, Paulo Freire lança olhar para professores e estudantes, no que tange aos seus valores implícitos, diferenciando autonomia de emancipação, que deve ser coletiva e compartilhada e na relação educador-educando, pois “[...] no processo educativo libertador, são ambos sujeitos cognoscentes diante de objetos cognoscíveis, que os mediatizam”. (FREIRE, 1985, p. 54).

Dessa forma, o autor pauta seus estudos na construção de uma educação política, focada em uma educação crítica, na ética, no direito de voz do outro, na denúncia às injustiças sociais - em detrimento da legitimação das mesmas -, na crítica à educação bancária, na horizontalidade da educação, na identificação das contradições sociais, nas problematizações para seleção de conteúdos, entre outros e, assim, a educação política,

[...] deve ter [...] um objetivo fundamental: através da problematização do homem-mundo ou do homem em suas relações com o mundo e com os homens, possibilitar que estes aprofundem sua tomada de consciência da realidade na qual e com a qual estão. (FREIRE, 1985, p. 21)

Neste contexto, urge pensar e ressignificar a educação no sentido de se colocar em prática um currículo crítico-conscientizador freireano, pois este implica na adoção de práticas voltadas para uma “educação libertadora”, que contempla uma visão de educação que parta da tomada de consciência dos sujeitos para a percepção das contradições sociais e situações de opressão para, posteriormente, desenvolver ações que visem a superá-las, sendo uma

[...] exigência radical, tanto para opressor que se descobre opressor, quanto para oprimidos que, reconhecendo-se contradição daquele, desvelam o mundo da opressão e percebem os mitos que o alimentam - a radical exigência da transformação da situação concreta que gera a opressão. (FREIRE, 1987, p. 37)

3 As competências na BNCC: Uma análise a partir dos pressupostos freireanos

Na parte destinada às Competências Gerais da BNCC - quadro das páginas 9 e 10 do documento - não serão identificadas na íntegra neste trabalho -, entretanto, os momentos em que versam e evidenciam uma educação crítica, que para Freire (1987) pressupõe a conscientização dos indivíduos, serão contemplados.

Na competência 2, o documento afirma:

Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas (BNCC, pág. 09, 2018).

Observa-se que a competência não pressupõe abordar a realidade do educando para posterior análise crítica da mesma para a transformação, pois o conhecimento culturalmente acumulado está pré-estabelecido, sendo assim, destitui-se de uma abordagem crítica, aproximando-se mais de uma abordagem neoconservadora, para Freire (1987), os sujeitos devem compreender a realidade e dialogar com ela, conscientizando e agindo no sentido da libertação, elegendo o que é relevante para adoção de estratégias focadas nos enfrentamentos, transformando a realidade em que vivem e humanizando os sujeitos.

E, dessa forma, não utilizando como ponto de partida a realidade concreta do educando, não contempla a conscientização dos sujeitos para a percepção das contradições sociais e situações de opressão, preconizadas por autores críticos, e a reflexão mencionada no trecho, restringe-se ao conhecimento científico e não acerca da cultura imposta, que coisifica, gera o conformismo e impede a resistência frente às injustiças socioculturais, ou seja, não há um uso social do conhecimento de maneira efetivamente crítica no sentido das transformações.

A sexta competência diz:

Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade (BNCC, pág. 09, 2018).

Entretanto, é notório que a preocupação com o mundo de trabalho está a priori, exigindo, assim, dos cidadãos, aperfeiçoamento profissional, adaptação à estrutura vigente, alta produtividade, contemplando uma visão utilitarista e acrítica da diversidade de saberes e das vivências culturais. Competindo à escola preparar e adaptar o indivíduo para as imposições da sociedade mercadológica de dotar sujeitos de conhecimentos científicos necessários para a inserção no mercado de trabalho.

Nesse sentido, a consciência crítica citada é contraditória, pois o conhecimento instrumentaliza-se e reflete a necessidade de padronização do ensino-aprendizagem e, pressupõe-se, então, a reprodução de arquétipos sociais por meio do ensino em detrimento da ideia de criticidade postulada pelos pressupostos freireanos, assim como para Giroux (p. 37, 1997), “[...] a visão tradicional do ensino curricular escolar está enraizada na atenção estreita à eficácia, aos comportamentos objetivos e aos princípios de aprendizagem que tratam o conhecimento como algo a ser consumido.”

O trecho a seguir, refere-se à competência 8:

Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas (BNCC, p. 10, 2018).

A dimensão crítica admite a relação entre os sujeitos e o reconhecimento entre os mesmos, porém, observa-se que há uma abordagem, apenas, no sentido do saber lidar com as emoções e não no sentido do estímulo ao diálogo e da emancipação compartilhada, mas de mera aceitação, tornando os sujeitos objetos, não reflete, assim, um comportamento crítico, coletivo e conscientizador. Portanto, pensar um currículo a partir das concepções freireanas requer pensá-lo a partir de uma pedagogia crítica, para viabilizar que o educando passe de sua condição de “objeto” para “sujeito”, que pertence a um tempo histórico, é mutável e está em constante modificação, além de que, da mesma forma que se transforma, possibilita a transformação do meio que vive, isto devido a uma abordagem que proporciona partir da sua realidade, não somente a imediata, mas também a subjetiva, representadas pelas organizações culturais, políticas, econômicas e sociais, que afetam a realidade local.

Assim, não basta o saber de si como mero instrumento de adaptação e aceitação, mas de maneira contrária, ou seja, práxiológica, que consiste na reflexão crítica, conscientização e ação transformadora.

Então, pensando na educação crítica analisada nesses trechos da BNCC, urge implementar um currículo, com relevância social, que contemple a categoria em seu sentido mais amplo - fundamentada em autores críticos -, pois, dessa maneira, a escola e o currículo passam a assumir-se enquanto esferas públicas democráticas comprometidas com uma educação que proporcione o desenvolvimento das linguagens da crítica, onde o educador pauta-se em uma pedagogia crítica para o agir conscientizado e transformador. (GIROUX, 1997)

Considerações finais

A partir das análises realizadas, pôde-se evidenciar que as competências apresentam características avessas a uma compreensão mais ampla e crítica, fundamentada na compreensão de educação crítica e conscientizadora de Freire (1987). Foi observado que a categoria, desta maneira, apresenta-se em consonância com princípios neoconservadores, que instrumentalizam o conhecimento e promovem a adaptação dos sujeitos à realidade vigente ao invés da transformação da mesma. Especificamente na BNCC, as categorias conscientização e educação crítica não se apresentam em consonância com os pressupostos idealizados pela pedagogia freireana neste artigo brevemente elucidada.

Sendo assim, ao assumir uma prática pedagógica pautada nos preceitos da pedagogia freireana como compromisso para a implementação de uma educação ética, transformadora conscientizadora e crítica, entende-se que o educador deve ressignificar seu papel social na implementação de um currículo crítico-transformador, buscando possibilidades de ações transformadoras, partindo dos obstáculos para impulsionar e entender as potencialidades no sentido da modificação da realidade e na formação de sujeitos da própria história, exercendo, assim uma educação verdadeiramente pautada nas concepções críticas dos teóricos críticos.

Referências

ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2011. [ Links ]

BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2002. [ Links ]

CÓSSIO, M. de F. Agenda Transnacional e governança nacional: as possíveis implicações na formação e no trabalho docente. Revista e-Curriculum, São Paulo, v.13, n.04, p. 616 - 640 out./dez.2015. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum. Acessado em: 21 de ago de 2019. [ Links ]

COLL, C. As competências na educação escolar: pouco mais que uma moda e bem menos que um remédio. Universidade de Barcelona, Espanha, n. 161, (s/f). [ Links ]

DIAS, I. S. Competências em Educação: conceito e significado pedagógico. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, v. 14, n. 1, p. 73-78, 2010. [ Links ]

FRAGA, T. L. Uma análise crítica da BNCC na área de Língua Portuguesa a partir das contribuições de Freire. Dissertação (Mestrado em educação) - Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba. Sorocaba, p. 89. 2020. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17º ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. [ Links ]

FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. [ Links ]

GIROUX, H. A. Os Professores como Intelectuais. Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Ed. Artmed, 1997. [ Links ]

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neo-liberalismo em ataque ao ensino público. Londrina: Editora Planta, 2004. [ Links ]

LOSURDO, D. Liberalismo: entre civilização e barbárie. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006. [ Links ]

MACEDO, E. Base nacional comum para currículos: direitos de aprendizagem e desenvolvimento para quem? Educação & Sociedade, v. 36, n. 133, p. 891-908, dez. 2015. [ Links ]

MOREIRA, A. F. B. A psicologia e o resto: o currículo segundo César Coll. Cadernos de Pesquisa, n. 100, São Paulo, p. 109-120, mar. 1997. [ Links ]

PERRENOUD, P. Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: Artmed Editora, 1999. [ Links ]

PERRENOUD, P. Escola e cidadania. O papel da escola na formação para a democracia. Porto Alegre: Artmed Editora, 2005. [ Links ]

TORRES, J. R. Educação Ambiental Crítico-Transformadora e Abordagem Temática Freireana. Tese (Doutorado em Educação Científica e Tecnológica) - Florianópolis: CFM/CED/CCB/UFSC, 2010 [ Links ]

Recebido: 01 de Outubro de 2019; Aceito: 01 de Dezembro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.