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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022004 

DOSSIÊ: A LEITURA PELO OLHAR DO COTIDIANO

Leitura e singularidade biográfica: o caso do editor português Vitor Silva Tavares

Reading and biographical singularity: the case of the portuguese publisher Vitor Silva Tavares

Emanuel Chaves Cameira1 
http://orcid.org/0000-0002-1019-8714

1Licenciado em Sociologia pelo ISCTE-IUL, pós-graduado em Estudos Curatoriais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e doutorado em Sociologia pelo ICS-UL. Professor Auxiliar Convidado no ISCTE-IUL e Investigador Integrado do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH). No âmbito do extinto Observatório das Actividades Culturais (OAC), integrou a equipa que realizou o “Inquérito ao Sector do Livro” (2007-2009), tendo também sido um dos investigadores que levou a cabo o projecto “A leitura digital – transformação do incentivo à leitura e das instituições do livro” (2011-2013). É actualmente um dos investigadores envolvidos no “Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses”, a decorrer no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, sob coordenação do Prof. Doutor José Machado Pais. Em 2010 foi um dos curadores da exposição “João César Monteiro, assim e não assado”, tendo, em 2012, comissariado “Fracções” (para o espaço dos Artistas Unidos/Teatro da Politécnica, com obras de José Francisco Azevedo e Ruth Rosengarten). Nos últimos três anos, foi um dos responsáveis pela realização da “Feira Gráfica Lisboa – edições independentes e livros de artista”, iniciativa apoiada pela Câmara Municipal de Lisboa. Recebeu, em 2018, o Prémio Victor de Sá de História Contemporânea, atribuído pela Universidade do Minho (Portugal). Interessa-se, actualmente, pela área de estudos da sociologia do livro e da edição. É o responsável pela casa editora “Barco Bêbado”. E-mail: emanuel.cameira@sapo.pt


Resumo

O presente artigo parte de uma relevante premissa de Paulo Freire, a de que “a compreensão crítica do ato de ler […] não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 1981, p. 9). Procura-se, então, analisar os primeiros anos (até a adolescência) do processo de construção social de um indivíduo-leitor, a saber, Vitor Silva Tavares (1937-2015), timoneiro, a partir de 1974, da histórica casa editora &etc. Com uma infância vivida num meio nada culto ou diletante (em sua casa o objeto livro não era algo que abundasse), e tendo abandonado precocemente os estudos liceais, Vitor Silva Tavares acabou por tornar-se, contra toda a probabilidade, numa figura marcante do campo da edição literária em Portugal na segunda metade do século XX. Ganhando ele espessura de caso, trata-se aqui de refletir, a partir de elementos obtidos através do recurso à história de vida do referido editor, como, sob a colagem de diversos efeitos, socializações e acasos, se foi produzindo um perfil singular de indivíduo, perfil esse onde a atividade da leitura ocupou um papel determinante, gerando predisposições mentais, desafios, condicionando a própria vida que Vitor Silva Tavares quis levar, dedicada à prescrição editorial, à mediação da leitura, transferindo para outros impressões (sobre vários mundos) que foram primeiramente suas.

Palavras-chave Singularidade; Biografia; Leitura; Livro; Vitor Silva Tavares; Portugal

Abstract

This paper starts from one of Paulo Freire’s relevant principle, according to which “the critical understanding of the act of reading […] is not a mere decoding of the written word, or of the written language, but rather it anticipates and extends itself into an intelligence of the world. The reading of the world precedes the reading of the word; hence, the ulterior reading of the word cannot exist without a continuing reading of the world” (FREIRE, 1981, p. 9). From this starting point, I will attempt an analysis of the first years (until adolescence) of the process of social construction of a specific individual reader, namely Vitor Silva Tavares (1937-2015), who led the historical publishing house&etc since 1974. Silva Tavares lived his childhood in a non-cultivated environment(he had few books at home). Having abandoned formal schooling early on, he ended up against all odds as a key figure within the field of literary publishing in Portugal in the second half of the twentieth century. Having become a case study, this paper will take on elements from the publisher’s life story to reflect on how his individual profile developed under the convergence of various effects, socializations, and chance events. His profile is indeed centrally filled with the activity of reading – this activity generated mental predispositions and challenges, and it determined the life course Vitor Silva Tavares intended to lead, notably dedicated to editorial prescription and the mediation of reading, as he passed on to others impressions (about many worlds) which were primarily his own.

Keywords Singularity; Biography; Reading; Book; Vitor Silva Tavares; Portugal

Vitor Manuel Lopes Silva Tavares (1937-2015) veio ao mundo a 17 de julho de 1937, ano em que Picasso pintou Guernica. Filho de gente popular, sem eira nem beira, dessa Lisboa das primeiras décadas do século XX cuja “caracterização do modo de viver e pensar […] está por fazer”, sendo contudo “unânimes as opiniões dos contemporâneos: viviam mal” (BARRETO; MÓNICA, 1983, p. 19).

Venho de gente muito pobre, a roçar mesmo a miséria, um pouco menos por parte do meu pai. Quando eu nasci, ao que dizia a minha mãe, a miséria batia no fundo. E ela ficou sempre com um tremendo complexo de me ter feito nascer em condições tão más.

[Vitor Silva Tavares (doravante VST), testemunho de 20/12/2012]2

Assinale-se, desde já, que ter por horizonte uma singularidade individual não equivale a sustentar que ela está presente num dado indivíduo de forma intrínseca, mas que é sim produto de processos sociais: ele é ele com as suas circunstâncias (Ortega y Gasset). Ora, Vitor Silva Tavares (futuro editor contrainstitucional, de uma &etc3 que, ao fim e ao cabo, teve um efeito de prescrição até canónico no campo literário português da segunda metade do século findo) foi miúdo descalço da Madragoa, desse “bairro todo a subir e a descer”, também descrito por Azinhal Abelho como “uma cidadela […] dentro de outra cidade. E a cidadela é tal, que a sua população será a mais característica da capital. Povo ribeirinho, com pé sempre a nadar dentro da água do Tejo” (ABELHO, 1968, p. 57). Do já citado livro de António Barreto e Maria Filomena Mónica, são várias as passagens que caraterizam uma Lisboa de outro tempo e que fornecem elementos de enquadramento tratando-se de explorar as origens sociais, de classe, de Vitor Silva Tavares. Da sua mãe (sem o diploma primário, pese embora soubesse ler e escrever; “a minha pobre mãe”, foi assim que se lhe referiu numa entrevista), lembra que

trabalhava em tudo e mais alguma coisa. Nomeadamente, quando eu nasço, ou pouco depois, trabalhava a descarregar carvão no cais da Ribeira, ou do lado de lá do rio, na fábrica das anchovas ou dos gelos, numa zona chamada Olho-de-Boi. Fica entre o cais do Ginjal, Cacilhas e, agora, a ponte do Tejo. Muito miúda, trabalho extremamente duro e muitas vezes nocturno.

[VST, testemunho de 20/12/2012]

Quanto ao pai de Vitor Silva Tavares, natural, como a sua mãe, da Madragoa, também ele entra muito novo no mundo do trabalho. Manuel da Silva Tavares não fora educado pelos pais, mas pelos tios, e é ainda como trabalhador-estudante que, para além de trabalhar no complexo naval do Arsenal do Alfeite, oficialmente inaugurado pelos finais dos anos 1930, inicia a sua vida no mar através das viagens dos lugres bacalhoeiros, fazendo carreiras, no mínimo de seis meses, para a Terra Nova, para a Groenlândia. Tendo começado por frequentar uma escola industrial, onde se especializou em “Máquinas” e “Ferramentas”, acabou depois por enveredar pelo ramo civil da marinha, a mercante, completando paulatinamente outras disciplinas que lhe permitiram terminar a carreira no mar como primeiro oficial maquinista ou, noutra designação mais recente, primeiro engenheiro de máquinas.

Da infância de Vitor Silva Tavares, passada sempre na beira-rio, diga-se que ela é vivida já quando António de Oliveira Salazar dera início a um “Estado Novo” (inscrito no quadro político dos autoritarismos europeus da época), alvo de sátira nos versos de Fernando Pessoa4 e que, em traços largos, consistiu na edificação de um regime de feição nacionalista, autoritária e corporativa, trazendo atrelada uma cultura, um sistema ideativo específico (deus-pátria-família), conjunto de ideias e valores a transmitir, a fazer atuar no plano quotidiano. Corria o ano de 1936 e já António Ferro principiara a encenação de uma Política do Espírito (da cultura ao serviço da política) “que pretendia fornecer alimento cultural à população” (TCHEN, 2001, p. 47), assim como a Organização Nacional da Mocidade Portuguesa, virada para a formação e arregimentação da juventude, tinha acabado de ser fundada. Como pano de fundo, uma circunstância histórica na qual a estrutura da sociedade portuguesa era maioritariamente dominada pelo mundo rural e aldeão, “em que os camponeses, analfabetos, morriam no local onde tinham nascido”, em que “o mundo exterior não existia”, em que “a hierarquia social era considerada imutável por aqueles que dela usufruíam ou por ela sofriam”, em que “o modo como alguém estava vestido, ou falava, denunciava a respectiva origem social”, em que “as desigualdades sociais eram aceites com benignidade” (MÓNICA, 1996, p. 20-21), em que Lisboa era uma capital com elevado déficit de modernidade face às congéneres europeias.

De um ponto de vista sociológico, e ainda que Vitor Silva Tavares tenha “vivi[do] e testemunha[do] desde cedo as vicissitudes da vida adulta” (MARTINS, 2011, p. 462), é interessante verificar como é através da ida para a escola primária (em 1943) que se lhe abrem os olhos para a sua condição ou modo de vida. Até então, era uma criança portadora de uma determinada visão do mundo:

eu não sabia, na minha infância, que havia meninos ricos, que havia outras pessoas que viviam muito bem, […] para mim era tudo natural. Se os outros miúdos com quem brincava na rua tinham os pés descalços, era natural, era assim mesmo.

[VST, testemunho de 20/12/2012]

Tem razão o fenomenólogo Alfred Schütz: “O conhecimento associado ao padrão cultural traz sua evidência em si próprio” (1979, p. 81). É que mesmo vagueando por toda a parte no bairro, à maneira do que se vê nos filmes do neorrealismo italiano, era o rio, a frente ribeirinha, o sítio mais longe aonde Silva Tavares ia.

Querendo em última instância compreender como veio Vitor Silva Tavares, “filho e neto de pobres” (o enunciado é seu), a erguer-se ao cimo (como se lê num poema de Ruy Cinatti), a trilhar caminhos literários, culturais, artísticos, quando, em princípio, considerando a sua origem de classe (proletária), o sítio de onde vem (não dos bairros elegantes, expressão que pertence a Louis Aragon), nada o indicaria, há que considerar que, mesmo atendendo à primeira recusa ou resistência que, logo em criança, Vitor Silva Tavares manifesta perante o ingresso na escola primária, o seu contacto com essa grande matriz socializadora, a Escola, se revelou determinante no que respeita ao processo de incorporação de determinadas disposições. É na escola da Rua da Lapa, muito pela acção de duas professoras que provavelmente vinham do antigo Magistério Primário da Primeira República, que nele é por exemplo despertado o gosto pela leitura e pelos livros.

[…] Elas liam bocadinhos de autores sobretudo da Primeira República. O Guerra Junqueiro, o autor de Pátria, de Os Simples, com poemas tão conhecidos como O Melro, A Lágrima, e outras coisas assim… mas também outros autores [Augusto Gil, Gomes Leal…], os nossos escritores. Acabaram assim por incentivar em mim o gosto pela leitura.

[VST, testemunho de 20/12/2012]

Mencione-se porém que, em sua casa, o objeto livro não era algo que abundasse. E “do muito que cerca a criança, os livros constituem elemento actuante, tanto pela presença como pela ausência”, bem o observou Natércia Rocha (1984, p. 15). A este respeito, o caso de Vitor Silva Tavares é diferente do de Luiz Pacheco, escritor e editor português que conhecerá numa fase adulta da vida e de quem ficará amigo. Este último era um menino de família, de casa com piano e criadas, oriundo de um quadro familiar burguês através do qual

recebeu […] algum capital cultural que o predispôs para as actividades intelectuais e lhe transmitiu as primeiras disposições para agir no meio artístico, nomeadamente, familiarizando-o com os bens culturais (a casa de família dispunha de uma boa biblioteca, que misturava livros de várias gerações, de avós e tios-avós), com as suas práticas mundanas, e a frequência de locais de cultura (como a Feira do Livro), aonde ia guiado pela mão do pai.

(GEORGE, 2011, p. 530).

A infância de Vitor Silva Tavares, ao contrário, não é vivida num meio culto ou diletante. Só que a família, tal como qualquer outro universo de socialização, nunca é uma realidade simples, homogénea. Neste sentido, em termos metodológicos, para o retrato sociológico de um dado indivíduo, para a reconstrução do seu habitus, importa, tanto quanto possível, “desomogenizar ou desglobalizar os ‘contextos’ […] dissecando as diferenças internas, e isto até à diferença entre pessoas relevantes da envolvência dos inquiridos, […] as variações intra-domínios, […] dos atributos das pessoas com quem se joga a interacção”, diz Lahire (2005, p. 35). Em matéria de interesses e práticas culturais, Vitor Silva Tavares recordava-se de a sua avó materna, a avó Arminda, ter o hábito de assinar romances em folhetim, género que não cabe dentro da chamada literatura séria. Segundo Hoggart, “as histórias metem quase sempre assassínios e paixões incontroláveis, […] é muitas vezes um mundo ingénuo e espalhafatoso, no qual as emoções brotam a jorros” (1973, p. 150-156). Alguns desses romances eram publicados pelas Edições Romano Torres:

Não sei a periodicidade… mas eu fartei-me de os ver, atenção! Que eram postos, quando não estava ninguém em casa, eram postos por baixo da porta. Era um caderninho, teria 16 páginas talvez, ao todo, uma capa a cores, com uma bonecada, normalmente, sei lá, algo dramática, para chamar a atenção. E era tudo, aqui não havia… Só mais tarde, quando nasce o meu tio Silvino, irmão da minha mãe, o mais novo… ele depois também foi para a escola, também para uma escola comercial, aqui na Calçada do Combro, e esse sim trazia já jornais juvenis, o tal O Mosquito e o rival Diabrete [ambas as publicações granjearam enorme êxito, principalmente nas décadas de 1930/40], eram as minhas leituras daqui, quando eu comecei a aprender a ler. Não havia mais nada. Aqui não havia nem um livro para amostra. O meu tio depois, como digo, em adolescente e tal, é que até chegou a ter aqueles livrinhos pequeninos daquela colecção Civilização, do Porto, Alexandre Dumas e coisas assim do género... Claro os Salgaris, os Sandokans, isso eu fui lendo quando já sabia ler. Isso foi tudo, os Sandokans todos.

[VST, testemunho de 18/03/2014]

Por outro lado, contudo, apreender a pluralidade de princípios de socialização ou, se se preferir, as pequenas diferenças internas na constelação familiar, no primeiro grupo de referência de Vitor Silva Tavares, em termos das práticas, culturais ou outras, de certas das suas figuras, mas também das maneiras de agir, permite, na verdade, reflectir como sob a colagem de efeitos diversos se produz um perfil singular de indivíduo.

De facto, a descrição que Vitor Silva Tavares me fez acerca das suas várias idas a casa de um tio-avô carbonário, Afonso Tavares de seu nome, reveste-se de particular interesse quando é preciso olhar de mais perto para situações ou interações específicas experimentadas por Silva Tavares em miúdo, e que naquele caso o marcaram, o fascinaram pelo contraste estabelecido com o contexto de cultura de rua que era o seu, dos jogos com berlinde e bola trapeira, pelo que de propriamente excecional havia na casa desse tio-avô, mundo de artefatos que lhe acrescentava mais mundo:

Ele próprio era leitor de Eça de Queiroz e, curiosamente, ali em plena Rua das Madres, no 3.º andar, debaixo de mim, ele era um melómano e tinha uma grafonola linda, e discos de ópera e de fados. Quer os fados da Ercília Costa, fado operário e não sei quê… mas já em disco, baquelite, muito fortes… quer óperas com o Caruso. E lá os punha, com aquele ritual todo de limpar com uma flanela os discos e de pôr a agulhinha do gramofone. E era uma maravilha ouvir aquilo… até pelo mistério. Era uma coisa à brava misteriosa. Isso eu gostava, isso eu gostava muito. Desse meu tio.

[VST, testemunho de 20/12/2012]

Como também do tio Silvino, o dos jornais de banda desenhada, de histórias aos quadradinhos, o tio do quarto com “Vernes e Salgaris e Texas Jackes” (VST), abrindo brechas ficcionais no viver quotidiano do sobrinho, os dois divertindo-se em constantes vadiagens pelo bairro e redondezas, ávidos de experiências, buscando, inventando o que fazer, errâncias repletas de aventura, o tal tio “cheio de manias fascinantes” que acabou por influenciar as primeiras experiências de socialização cultural de Vitor Silva Tavares e a quem este associou, em texto, “o prazer de imaginar”, o tio com quem entretinha os seus ócios de infância, o tio-janela para certo tipo de leituras numa realidade de privações.

Apanhar esta genealogia, a história dessas experiências vividas por Vitor Silva Tavares em criança, mediante a ligação a determinadas pessoas do seu círculo familiar ou de proximidade, é quase o desvendamento de uma realidade escondida, espécie de descida ao porão da História (assim alude Milan Kundera ao “romancista [que fala] dele próprio, mas ainda mais dos outros e dos romances que ele admira e que se encontram secretamente presentes na sua própria obra” – 2005, p. 69). Volto pois ao tio Silvino, para ainda acentuar que os livros da Livraria Civilização Editora por ele colecionados (o que não significava que os lesse necessariamente a todos) eram edições populares, baratas, de muito pequeno formato. Nessa colecção (Civilização) constava por exemplo A Voz Subterrânea, de Dostoïewsky (coincidência ou não – não, não se tratou de mera coincidência –, Vitor Silva Tavares publicará essa novela na &etc em 1989, motivado pela forte impressão que a primeira leitura lhe causara).

Situe-se agora a acção no final da década de 1940 – Vitor Silva Tavares já aprendera a ler e, quando por esses anos a Portugália Editora dá à estampa a colecção juvenil Biblioteca dos Rapazes, de onde, entre outros, saem A Ilha de Coral,5 por Ballantyne, A Flecha Negra, por Robert Louis Stevenson, O Pirata, por Frederick Marryat, A Vida e as Aventuras de Robinson Crusoé, por Daniel Defoe, ou O Último Moicano, por James Fenimore Cooper, alguns desses livros de extraordinárias façanhas, pondo a tónica no risco e na acção, com personagens que se salientavam pelo seu lado heroico, pelo seu engenho e bravura, são por ele lidos vertiginosamente, não sem que Silva Tavares admirasse a componente de ilustração que tais livros continham, muitos deles impressos na Tipografia Ideal, na Calçada de São Francisco, em Lisboa, onde o editor da &etc fará, em 1979, A Fome de Camões, do boémio poeta Gomes Leal.

Só que aos livros da Biblioteca dos Rapazes, mais caros, Vitor Silva Tavares não chegava fatalmente por via do tio Silvino. Com alguns colegas da escola primária, alugava-os por exemplo na livraria-alfarrabista Avelar Machado, localizada na Rua do Poço dos Negros. Na verdade, à época, havia em Lisboa um pequeno circuito (à boa maneira dos gabinetes de leitura de Oitocentos) onde era possível, a troco de alguns tostões, arranjar livros em segunda mão – refiro-me a livrarias de vão de escada, a quiosques (um no Jardim da Estrela, outro perto do Liceu Pedro Nunes…), ao Parque Mayer ou aos vendedores que ocupavam as escadinhas da estação do Rossio com uma oferta de livros populares bastante diversificada. Anos mais tarde, já jovem, Vitor Silva Tavares terá praticamente acesso livre/gratuito ao acervo da Livraria Barateira (trabalhava lá a sua namorada), espaço também integrável naquele circuito… mas outras eram as suas leituras nesse tempo, nomeadamente autores neorrealistas.

Se no segundo número da revista &etc, de 31 de janeiro de 1973, é homenageado Eduardo Teixeira Coelho (num texto de Vasco Granja), não é certamente por acaso que isso ocorre. Fora ele o desenhador de várias das capas da Biblioteca dos Rapazes que Vitor Silva Tavares tanto admirava.6 Junte-se a convivência assídua com as publicações O Mosquito, Diabrete, Cavaleiro Andante ou Mundo de Aventuras, com os contos da Colecção Manecas lidos numa fase anterior (eram vendidos ao preço de 3$50 e editados pela Romano Torres), passando até por algumas revistas brasileiras que entravam em Portugal com os heróis da BD americana (Capitão Marvel, Super-Homem, Príncipe Submarino), e constata-se como parte da “educação” visual de Vitor Silva Tavares começa por vir daí, desse encanto absoluto.

Lembro-me de o meu pai, numa ocasião em que eu estava doente, me dar um livro de Oscar Wilde, O Príncipe Feliz. Que, quer pelos desenhos, pela edição... me encantou sobremaneira. E estas leituras são anteriores a leituras, digamos, mais substanciais, sou mais rapazinho e tal… Deve-me ter trazido ou dado o livro porque a minha mãe deve ter referido que eu estava sempre a ler… Talvez por isso ele resolveu dar-me o livro. Porque, no demais, não me lembro de o meu pai me ter dado um livro a não ser esse.

[VST, testemunho de 01/08/2014]

Além da interação com o tio Silvino, também a frequência da casa do vizinho do 2º andar foi importante, na medida em que o ajudou a construir o gosto por determinados objetos da cultura impressa, onde cabia igualmente O senhor doutor, “a primeira leitura decisiva” de Luiz Pacheco (GEORGE, 2011, p. 36), jornal que o avô paterno assinara para ele, mas com o qual Vitor Silva Tavares tomará contato fora das suas quatro paredes, por contingência não familiar:

a familória que vivia no 2º andar… eu chamava à senhora “Mãe Pópó”. Porque o filho tinha um pópó para brincar. Esse filho tinha umas revistas também cá publicadas, mais antigas, mas ele tinha-as, chamadas O senhor doutor. Grande formato, lindérrimo, feito a cores. E eu batia à porta e toca a entrar para ver a bonecada da revista para os miúdos chamada O senhor doutor. O boneco que ilustrava o título da publicação era então a figura, logo na capa, de um burro, mas de pé, bem vestido, com fraque e com chapéu alto. Ah, e com livros debaixo da pata. Eu tinha 4, 5 anos, o outro miúdo era mais velho do que eu, chamava-se Augusto, se não me engano… Esse também tinha revistas e coisas assim. Para miúdos.

[VST, testemunho de 08/05/2014]

Tendo Vitor Silva Tavares terminado a quarta classe com uma boa classificação, é com a mãe dele que as professoras da referida escola da Rua da Lapa insistem no sentido de o filho não ficar por aquela fase dos estudos. Nesse momento em que foi preciso decidir se o filho continuava a estudar ou ia trabalhar, tanto a indução das professoras, gabando certos talentos ou faculdades que o menino pudesse ter, como a vontade da mãe em lhe proporcionar oportunidades de que ela própria não dispôs estão na base da sua ida para o liceu, por fatalidade geográfica o então prestigiado (pelo regime) Liceu Nacional de Pedro Nunes, sito à Avenida Pedro Álvares Cabral.

Ainda que excecionalmente tenha criado empatia com um ou outro professor, os livros da escola pouco interessavam a Vitor Silva Tavares. Para melhor compreender o seu estado de estudante (conceito avançado por Peter McLaren, por oposição ao de estado streetcorner), caraterizado por um conjunto diverso de resistências pragmáticas (o furto de material, da prancheta, dos livros; o desprezo pelos manuais obrigatórios…), a que se somavam as atitudes de conflito com certos professores (“violar as regras era uma resposta lógica às condições opressoras do estado de estudante e ocorria, na maioria das vezes, quando o autoritarismo do professor se tornava insuportável” – MCLAREN, 1993, p. 148), importa realmente sublinhar como Vitor Silva Tavares, na passagem da infância para a adolescência, e na privacidade do lar, fora do controlo da escola ou da Mocidade, foi incorporando uma determinada maneira de ver o mundo que o rodeava. É que, de repente, abrira-se diante dele o armário de livros do pai, aonde acorria por prazer.

Quando Bernard Lahire mencionou a impossibilidade de se observar directamente uma disposição (chega-se lá por um trabalho interpretativo sobre as práticas, opiniões etc., seus elementos indiciantes), escreveu que a ocorrência ocasional de um dado comportamento “não permite, de forma alguma, falar em disposição para agir, sentir ou pensar dessa ou daquela maneira. A noção de disposição, portanto, carrega a ideia de recorrência, de repetição relativa, de série ou de conjunto de acontecimentos, de práticas” (LAHIRE, 2005, p. 19).

Ora, se houve prática que Vitor Silva Tavares levou recorrentemente a cabo naquele período da vida, foi precisamente a leitura. Mas não uma leitura qualquer. E é neste ponto do raciocínio que a situação se esclarece. Através de muitos dos livros do pai,7 descobre que era pobre, o que isso queria dizer, adquirindo a perceção de que a sociedade estava dividida em classes, antagónicas senão mesmo inimigas, o que terá feito nascer dentro de si a revolta perante a injustiça social, em geral, e aquela mais próxima de que era não apenas testemunha mas actor (ouça-se Gaspar Simões sobre Fernando Pessoa: “uma adolescência feita à custa de olhar para dentro, para o interior da alma, e para fora, para o mundo, através das páginas dos livros” – 1980, p. 71).

Fruto do acesso aos livros do pai, que possuía alguma cultura literária e política, Vitor Silva Tavares tornara-se leitor dos primeiros escritores sociais, dos anarco-sindicalistas Assis Esperança, autor de Servidão (1946), e Ferreira de Castro, de Emigrantes (1928), A Selva (1930) e A Curva da Estrada (1950) – “eu lia escritores como o Ferreira de Castro e chorava de uma maneira doida” (VST), ou do Vergílio Godinho de Calcanhar do Mundo, publicado nas Edições Gama em 1942, tudo autores de obras de nítida preocupação social e que antecederam a geração dos neorrealistas ou do realismo socialista. Ao rol de livros lidos junte-se, por exemplo, os de Alves Redol: Gaibéus (1939), Marés (1941), Avieiros (1942), nas edições da Editorial Inquérito, de Eduardo Salgueiro,8 contendo os desenhos de Manuel Ribeiro de Pavia, ou o Ciclo Port-Wine, que o pai também tinha. Os de Fernando Namora (como Casa da Malta, de 1945), de Manuel da Fonseca ou de Máximo Gorki, A Mãe, que mais tarde Vitor Silva Tavares reeditará quando à frente dos destinos da Editora Ulisseia.9 Por um lado, a consciência progressivamente mais aguda que, por via literária, ia tomando doutros mundos, doutros problemas, doutras dissensões sociais, de uma condição de subordinação partilhada e da injustiça que isso comportava (assim se comprova o que Natércia Rocha afirmou, que os livros devem ser encarados como “potenciais agentes modeladores dos seres […], espalhando emoções, deixando recordações, operando segundo vectores variados” – 1984, p. 15). Regressando a Vitor Silva Tavares, não será despropositado salientar que já nele se vislumbrava uma apetência para herói, como os personagens positivos dos livros que lia, valendo-se fundamentalmente da sua coragem, cristalizada como valor importante das culturas populares, referencial de conduta, vestígio de um habitus de classe10 que transparecia nalguns dos seus testemunhos, na ênfase dada a este ou aquele acontecimento, a esta ou aquela ação, na forma de verbalização propriamente dita.

Apresentar, ainda que em pinceladas largas, a experiência existencial de Vitor Silva Tavares nestes primeiros anos, fixando momentos significativos, episódios de que foi protagonista, reconstituindo parte da sua teia de relacionamentos, toda uma atmosfera social, contextual, é do que aqui se trata. Assumindo um modo artesanal de produzir sociologia, mais ziguezagueante, “criando disponibilidade para encontrar” (PAIS, 2013, p. 111), e porque é verdade que “a biografia não pode evadir a questão da singularidade. Sob pena de nela só se procurar um retrato da matriz social, relegando o que tem de mais pessoal” (CONDE, 1999, p. 215), anote-se uma observação de Vitor Silva Tavares que toca exemplarmente na “intencionalidade e autonomia de um sujeito também dotado de atributos singulares. Não redutível a mero ‘efeito da estrutura’” (CONDE, 1999, p. 215). A maneira como frisou a assimilação cognitiva de um dos Mandamentos do Bom Filiado da Mocidade Portuguesa (o primeiro: “O bom filiado educa-se a si próprio por sucessivas vitórias da vontade” – “encornei isto, não fui eu que inventei. Isso é o princípio do livre-arbítrio, fazer esse exercício dentro de mim, forçando em mim a vontade, para estar eu próprio autoeducado” – VST), mostrou-se um bom pretexto para perceber como os indivíduos são seres culturais munidos da vontade de adoptar uma atitude determinada perante a realidade envolvente, da capacidade de lhe atribuir significação (Max Weber à colação). De facto, do ponto de vista prático de Vitor Silva Tavares, daquilo que eram os seus interesses, do que ele qualificava positiva e negativamente, no fundo, do que foram as suas escolhas e decisões enquanto estudante do Liceu Pedro Nunes, dá-se a concretização do tal preceito da Mocidade. Senão veja-se:

[...] a minha rebeldia inicial… morte aos professores e a quem os apoiar [risos]. Livros da escola, não. Embora gostasse, sei lá, da História, mas tive o azar de o meu professor de História ser o metodólogo, o pai deste Mattoso, o autor do Compêndio de História Universal, António Mattoso. Ora eu de História gostava mas não era por essa via. Desses livros de adolescente não posso deixar de referir o nosso Mário Domingues, que tinha uma grande quantidade de livrinhos, da Romano Torres salvo erro, de biografias, do Marquês de Pombal, etc., etc. Esses livrinhos do Mário Domingues eu li-os todos. Já os livros de escola não eram a minha especialidade. Esses livrinhos, não apenas do Mário Domingues… no campo da história, também Elaine Sanceau, Stefan Zweig… o meu pai tinha os livros do Stefan Zweig, não apenas os de ficção, Amok, O Doido da Malásia, mas sobretudo, em maior quantidade, as biografias escritas pelo Zweig… e da Elaine Sanceau também. Portanto esse era o meu alimento cultural. Resultado: até aí, mesmo no liceu, havia um enorme desfasamento cultural entre mim, o mau aluno, indisciplinado, e o resto da rapaziada que lá estava. Eu já tinha lido cinquenta vezes mais. Só que enquanto uns eram estudantes muito bons, liam aquela merda toda, essa merda é que eu não lia. Logo, eu ali não podia brilhar. E não havia cursos para gajos como eu. Isto manteve-se sempre.

[VST, testemunho de 08/05/2014]

Havia margem para escolhas individuais diferentes, condições favorecedoras a que Vitor Silva Tavares optasse, preferisse. Mas a peneira é o indivíduo, o sujeito da acção, é ele que aproveita, que enjeita, que tira ou não proveito dessas dádivas que lhe aparecem pelo caminho. O simples acesso àqueles livros do pai terá sido uma delas. Quanto à sua leitura, liberta de conotações escolares, vitória da vontade, há que reconhecer o papel eminentemente decisional de Vitor Silva Tavares. O seu desligamento de uma educação escolástica apertada (enveredou, em compensação, por um anarquismo mental, por um regime de rédea solta; “uma educação para a liberdade”, no sentido de Paulo Freire) oferece à evidência as idiossincrasias do sujeito, participante não conformado da vida social, a forma como voluntariosamente, guiando-se por uma liberdade de movimentos, foi construindo a sua individualidade (tornando-se audível também para si próprio, os termos são de Georg Simmel – 2004, p. 92), e portanto o esforço e a capacidade de adquirir conhecimentos variados (e de assim sedimentar singularmente no habitus uma disposição autodidata) não circunscritos à experiência de enquadramento/constrangimento do dispositivo escolar: “a autoformação, […] a única solução para os rebeldes, para aqueles que, por uma razão ou outra, deixaram o sistema escolar sem aceitar a sua hegemonia” (PINEAU; MARIE-MICHÈLE, 2014, p. 9).

A priori, por condição de classe, por não ter continuado os estudos, Silva Tavares estaria forçosamente condenado a ser um pequeno funcionário desta ou daquela empresa. Só que a vida não é somente obstáculos, ela sofre também alimentações – há os afluentes do rio. Sem subscrever que o contexto determina, parece-me essencial falar de condições favorecedoras. Ou de acasos, que podem acentuar disposições. No fundo, tencionando dissecar o homem por detrás da obra, procurando respostas para como algumas décadas mais tarde é despertada em Vitor Silva Tavares a ideia de fundar uma editora (prisma que suspende “a tendência dos estudos sociológicos da arte de escrever sobre as organizações e instituições da produção artística sem referência aos actores sociais ou às actividades por meio das quais essas organizações e instituições surgiram” – BOWLER, 1994, p. 248), não devo por exemplo ignorar ter existido o seu tio Silvino, ou até o tio carbonário que tinha a grafonola e os discos de ópera. Garantidamente, nesse momento marcante da socialização primária (“implica[ndo] mais do que a pura aprendizagem cognitiva. Ocorre em circunstâncias carregadas de alto grau de emoção. […] A criança identifica-se com os outros significativos através de uma multiplicidade de modos emocionais. Sejam eles quais forem, a interiorização só se realiza na medida da identificação” – BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 139), Vitor Silva Tavares depara-se com uma teia relacional que acaba por lhe abrir, rasgar horizontes. O próprio pai, pese embora a sua presença ausente, terá tido um contributo importante nesse sentido, na alimentação do seu imaginário, para fora desse cantinho muito fechado sobre si mesmo que era, à época, Portugal. E há os tais “acasos”, entre aspas porque não serão completamente acasos: os livros do pai que Vitor Silva Tavares leu e que o entusiasmaram.

Levanta-se, portanto, uma pergunta inevitável: quantos jovens da idade de Vitor Silva Tavares teriam familiares com gosto pela leitura e não o aproveitaram? Muitos, certamente em maior número do que aqueles que vieram a formar uma editora. Daí que se possa considerar uma teia de relacionamentos que inspira, que motiva, que predispõe. Essas as condições favorecentes, interferindo e cruzando-se com as trajetórias dos indivíduos, tornando possível a concretização de uma possibilidade que por vezes se insinua, mas que não se realiza obrigatoriamente. Reside aí a magia da vida (il mistero del soggetto, segundo Franco Ferrarotti), e é por isso que tem de se colocar o foco no indivíduo, no seu protagonismo, na sua vontade, no modo como subjetivamente absorve as diferentes influências socializadoras ou foge aos “destinos prováveis” (Bourdieu).

Note-se porém que, centrada a atenção numa biografia, é normal analisar os contextos de socialização, entendidos como colectivos sociais – família, amigos, comunidade… Ao invés dos livros. Esses, aparecendo, costumam ser “anulados” pelo contexto familiar. Justamente porque o raciocínio fica situado a este nível: alguém de uma família burguesa teria decerto livros em casa. Deixam assim os livros de emergir como forças actuantes, eclipsam-se, quando se enfatiza o papel do contexto familiar. Volto pois às palavras de Natércia Rocha (1984, p. 126), nelas cabe por inteiro uma reflexão que é lacunar na produção sociológica:

É possível dizer que a literatura é caminho para a interiorização e a criança encontra-se em situação de expectativa e receptividade: toda a sua afectividade está disponível para aderir às situações e tomar partido, sofrer ou divertir-se, acusar ou defender. Para o leitor – criança ou adulto – um texto pode tomar foros de maior realidade do que o próprio quotidiano.

No caso de Vitor Silva Tavares, os livros adquiriram uma vida especial. Tendo em conta o que me relatou, atrevo-me a dizer que funcionaram como interlocutores, como influenciadores da trajetória do editor. Sim, há os contextos sociais, a família, etc. Mas igualmente os livros, companheiros, incentivadores do pensamento e até de estratégias de vida, de escolhas biográficas, para utilizar um termo agora em voga.

Que se olhe para um óbvio sociologicamente desconsiderado, a importância dos livros como agentes de socialização é algo que aqui se enfatiza. Estaria Vitor Silva Tavares à procura de uma realidade paralela? E encontrava essa outra realidade por exemplo através dos livros? Juntando a sua própria efabulação, a sua própria imaginação? Seguramente que sim. Se, no princípio, as leituras poderiam parecer um refúgio, por contraste com a dureza da vida real, depois foram não só um complemento, mas o seu alimento enquanto ser cultural. Vou mais longe: do ponto de vista analítico, parece-me sociologicamente legítimo afivelar uma dada singularidade editorial – um requisito/uma estratégia de distinção nos meios culturais, artísticos (a demanda de singularidade) – ao património individual de disposições do respetivo editor, incorporadas ao longo das suas múltiplas socializações. Não teria a &etc sido o que foi se, desde logo, o produtor de livros Vitor Silva Tavares, proveniente de uma classe socialmente desfavorecida (com repercussões ao nível da definição do seu habitus), não tivesse tido a vida marcada por indivíduos e contextos que, de maneira mais ou menos direta, o levaram a influenciá-la, bem como à vida da editora que ele produziu, a partir das leituras que foi fazendo.

Reporto-me a uma espécie de ciclo que se retroalimentou: leituras que geraram predisposições mentais, desafios na vida (também ligados à actividade editorial), opções… desde logo, a de Vitor Silva Tavares ter-se colocado, a si e à sua editora, numa posição de minoria, aparentemente à margem (do lado dos desfavorecidos do meio literário, dos marginalizados pelas instituições do meio – filho do lixo e não do luxo, Silva Tavares foi alguém que, interessantemente, provindo de uma classe social dominada, escolheu ocupar um lugar cultural não dominante). Pode, aliás, alcandorar-se esta ideia a outro patamar: falar de Vitor Silva Tavares e da &etc é dar conta de um caminho (trilhado pelo editor) dos livros para a vida e da vida para os livros. Se, por um lado, a leitura que efetuou de determinados livros condicionou a vida que quis levar, a vida que viveu (repleta de encontros, de experiências, de aquisições de conhecimentos) tratou de condicionar a decisão de que livros publicar. Não só os livros lhe transformaram a vida como ele próprio tencionou transformar vidas, a sociedade (a vida social), através dos livros.

2Algumas notas: o artigo em causa é resultado da pesquisa académica que se traduziu na tese de Doutoramento em Sociologia (especialidade de Sociologia da Cultura, da Comunicação e dos Estilos de Vida) intitulada A &etc de Vitor Silva Tavares – narrativa histórico-sociológica, realizada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), e defendida, em provas públicas, em março de 2018. Todos os testemunhos de Vitor Silva Tavares aqui reproduzidos foram recolhidos no âmbito da biografia sociológica que dele se fez, nomeadamente através da técnica da entrevista compreensiva, accionada em mais do que uma ocasião.

3O dealbar do projecto &etc deu-se ainda na segunda metade da década de 1960, na qualidade de magazine de um jornal regional, o Jornal do Fundão. Seguiu-se depois a revista autónoma com o mesmo nome, e a editora (de livros), funcionando desde 1973 até 2015. O afastamento reiterado da vertente mercantil, o regresso a certas formas de artesania e saber, o eclectismo das linguagens artísticas que congregou, a centralidade na afirmação de expressões marginais e de determinados grupos estéticos (realce-se, por exemplo, a ligação inicial a uma particular vaga do surrealismo português) ou o caráter de polo despoletador de outras editoras são, digamos assim, traços de uma & etc absolutamente ímpar.

4“Isto é o Estado Novo, e o povo/ Ouviu, leu e assentiu:/ Sim, isto é um Estado Novo/ Pois é um estado de coisas/ Que nunca antes se viu”

5“Lindo, ou pelo menos tenho a ideia disso. Não sei se hoje resistiria à leitura. Na altura foi um encanto, pá!” [VST, testemunho de 08/05/2014].

6Ainda para mais, deu-se a feliz coincidência de as iniciais do nome do ilustrador coincidirem com as da editora &etc.

7Com um gosto eclético, não tivesse ele em casa as Selecções do Reader’s Digest ou livros de autores simpatizantes do fascismo (por exemplo, o romance Uma Mulher Nua, de Eduardo Metzner Leone). Refiro igualmente os de Joaquim Paço d’Arcos, malquisto pelas esquerdas e bastante lido, em Portugal, nos anos 1940 e 1950 do século findo.

8Apetece, de facto, citar o escritor e editor Serafim Ferreira. Acima de tudo, porque também ele reconhece terem os livros da Inquérito ocupado um lugar importante na sua vida: “Claro que sempre recordo ter sido através das edições da Inquérito e no porfiado trabalho de Eduardo Salgueiro que o conhecimento do mundo se abriu por outros quadrantes. E tu comigo, meu bom Silveira, porque não nos cansámos de trocar entre nós os livros que fizeram parte da nossa formação e aprendizagem da vida. […] Foi pela mão e olhar de Eduardo Salgueiro, no seu escritório mal iluminado do Bairro Alto, […] que nós e muitos outros leitores, claro que sim, pudemos ler os […] primeiros romances de Redol e de Régio […]” (FERREIRA, 1999, p. 77; p. 79).

9Em Outubro de 1964, antes de criar a &etc, Vitor Silva Tavares torna-se produtor de livros, ficando responsável pela direcção literária da Ulisseia. Casa editora fundada em 1948, foi das mais prestigiadas e inovadoras, em Portugal, no domínio da literatura de ficção (décadas de 1950/60).

10Pierre Bourdieu, no seu bem conhecido livro La Distinction, refere que os membros dos grupos sociais populares “atribuem a si próprios força no sentido de força de trabalho e de luta: força física mas também força de carácter, coragem, masculinidade” (1996, p. 479).

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Recebido: 28 de Setembro de 2021; Aceito: 30 de Outubro de 2021

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