SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27Leituras e travessias pelas memórias afetivas e musicais: experiências subjetivasModos e práticas leitoras, desafios do digital índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 15-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022008 

DOSSIÊ: A LEITURA PELO OLHAR DO COTIDIANO

Coração: uma leitura secular e sua presença no Brasil

Coração: a secular reading and its presence in Brazil

Eliana Rela1 
http://orcid.org/0000-0001-9670-1634

Neiva Senaide Petry Panozzo2 
http://orcid.org/0000-0001-6921-9084

Juliane Petry Panozzo Cescon3 

1Professora Drª pela UFRGS, PPGIE. Enquadramento funcional: tempo integral no Curso de História da Universidade de Caxias do Sul. Docente permanente no PPGHis e PPGEdu.. E-mail: erela@ucs.br

2Possui graduação em Licenciatura Plena em Educação Artística pela Universidade de Caxias do Sul (1988), mestrado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2001) e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007). Atualmente é pesquisadora voluntária sobre estudos semióticos, no Grupo de Pesquisa Conectividade (CNPq), na pesquisa Leitura de imagens no ensino de História: um estudo sobre mudanças e permanências nas prescrições, livro didático e representações culturais, do Programa de Pós-Graduação Mestrado em História, da Universidade de Caxias do Sul.

3Possui Licenciatura Plena em Educação Artística pela Universidade de Caxias do Sul (1998), Curso de Restauro pelo Palazzo Spinelli per l’Arte e il Restauro consórcio Brasil/Itália (2003), Curso de Graduação em Museologia pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (incompleto), Mestrado pelo programa de Pós-Graduação em Desenho, Cultura e Interatividade da Universidade Estadual de Feira de Santana (2010). Doutorado pelo programa de Pós Graduação em Memória Social e Bens Culturais da Universidade La Salle Canoas – UNILASALLE (2019). Professora do Programa de Pós-Graduação em Históriada Universidade de Caxias do Sul. E-mail: julipanozzo@gmail.com


Resumo

Este artigo é um recorte do projeto de pesquisa “Leitura de imagens no ensino de História: um estudo sobre mudanças e permanências nas prescrições, livro didático e representações culturais” (LIDHIS). Ele apresenta uma análise, dentre as muitas possíveis, da condição leitora na obra Cuore, escrita por Edmondo De Amicis, traduzida para o português brasileiro com o título Coração. Centenário, o livro teve sua primeira edição publicada no ano de 1886, na Itália, e tornou-se um grande sucesso editorial, principalmente por ter sido adotado nas escolas. Nesta investigação, foram analisados quatro exemplares publicados na metade do século XX no Brasil, com enfoque na materialidade da obra. Buscou-se identificar as relações entre as características de apresentação do livro, identificadas nas capas, nas ilustrações e na escolha da linguagem, com a prática de leitura. Esta investigação baseia-se nas considerações de Chartier (2002a, 2002b) sobre o livro escolar como objeto de circulação. Outros estudos fundamentais, que tratam da análise do projeto gráfico, da função da ilustração e da leitura enquanto prática social, são aqui apresentados e discutidos, respectivamente, a partir de Collaro (2000), Camargo (1995) e Kleiman (2013a, 2013b). Como método de análise, optou-se pelo estudo bibliográfico, pela busca e análise de diálogos informais sobre a experiência leitora da obra, e por pesquisa de campo em bibliotecas e hemerotecas. Em relação aos resultados, a presente investigação permitiu concluir que: o livro Coração circulou no Brasil, sobretudo na região nordeste do Estado do Rio Grande do Sul; a padronização dos exemplares no formato livro de bolso possibilitou acessar mais facilmente os seus destinatários, inclusive pelo valor de venda, possível graças ao investimento em altas tiragens para distribuição e circulação interna na Itália e também no exterior; o projeto editorial, no decorrer do tempo, reuniu aspectos visuais que dinamizam e promovem o estímulo à leitura; a prática de leitura do livro em voz alta, usada pelos professores na escola, foi força persuasiva à leitura e contribuiu para sensibilização dos alunos aos conteúdos dos contos presentes na obra.

Palavras-chave História; História da Educação; Leitura de imagens; Livro escolar; Objeto de leitura

Abstract

This article is an excerpt from the research project “Image reading in the teaching of history: a study on changes and permanence in prescriptions, textbooks and cultural representations” (LIDHIS). It presents an analysis, among the many possible ones, of the reading condition in the book Cuore, written by Edmondo De Amicis, translated into Brazilian Portuguese with the title Coração. Centenary, the book had its first edition published in 1886, in Italy, and became a great editorial success, mainly because it was adopted in schools. In this investigation, four copies published in the middle of the 20th century in Brazil were analyzed, focusing on the materiality of the work. We sought to identify the relationships between the characteristics of the book's presentation, identified on the covers, in the illustrations and in the choice of language, with the practice of reading. This investigation is based on Chartier's (2002) considerations about the school book as an object of circulation. Other fundamental studies, which deal with the analysis of the graphic design, the function of illustration and reading as a social practice, are presented and discussed, respectively, from Collaro (2000), Camargo (1995) and Kleiman (2013). As a method of analysis, we opted for the bibliographic study, for the search and analysis of informal dialogues about the reading experience of the work, and for field research in libraries and newspapers. Regarding the results, the present investigation allowed us to conclude that: the book Coração circulated in Brazil, especially in the northeast region of the state of Rio Grande do Sul; the standardization of copies in the pocket book format made it possible to access readers more easily, including at the sale price, made possible by the investment in long runs for distribution and internal circulation in Italy and abroad; the editorial project, over time, brought together visual aspects that streamline and promote the encouragement of reading; the practice of reading the book aloud, used by teachers at school, was a persuasive force in reading and contributed to students' awareness of the contents of the short stories present in the work.

Keywords History; History of Education; Image reading; Schoolbook; Reading object

A obra: entre estantes e escolas

Lendo Darnton, na epígrafe que abre este texto, entende-se que os livros oferecem múltiplas possibilidades de análise, que podem envolver, inclusive, campos de estudos diferentes, os quais se complementam em uma interpretação global, ainda que nunca encerrada, de uma obra. Essa potência é ainda maior na literatura, capaz de expandir em grande escala as possibilidades de leitura, e de se conectar a diferentes tempos, espaços e sujeitos leitores.

É o que ocorre com a obra já centenária Coração, de Edmondo De Amicis, publicada pela primeira vez na Itália em 1886 pela editora Treves, cuja recepção e sucesso editorial foram marcados pela frequente adoção do texto como leitura na escola. Esse fenômeno justifica-se pela qualidade da produção, mas também por seu conteúdo e estrutura: Coração narra, em forma de diário, as vivências de um protagonista criança, Enrico Bettini, em uma escola primária de Turim durante um ano letivo, de 17 de outubro de 1881 a 10 de julho de 1882. Os registros do personagem são intercalados, ao fim de cada mês, por um conto, que é uma história trazida pelo professor e carregada de um ensinamento moral. A obra de De Amicis é objeto deste estudo em dupla perspectiva: a primeira no aspecto que circunda a prática de leitura dos contos pelo professor aos alunos; a segunda enfoca a materialidade do livro em diferentes edições, seu projeto gráfico e as ilustrações que, gradativamente, passam da capa para as páginas internas.

Pesquisar é um caminho ora planejado, ora inesperado. Uma das etapas do planejamento nesta investigação, que nasceu por meio do projeto LIDHIS (Leitura de imagens no ensino de História: um estudo sobre mudanças e permanências nas prescrições, livro didático e representações culturais), foi a de pesquisar, no Museu da Educação da Universidade de Padova, na Itália, por livros escolares com conteúdo de história que apresentassem indícios de circulação em comunidades de imigrantes italianos no Brasil, especialmente no Sul do país. O inesperado aconteceu após quatro dias de imersão entre cadernos escolares, manuais, legislações, fotografias de cenas escolares. Foi encontrada uma edição do livro Coração, com data de 1916, que trazia, junto ao ano de publicação, o número de cópias impressas até aquela edição – 765 mil. Para entender o que levou a uma tiragem tão alta e responder outras várias perguntas que suscitou o diálogo com o documento, buscaram-se informações sobre a circulação da obra nas escolas italianas.

Em conversa com a professora italiana Maria Angela Rela, que se aposentou em 2016 após 40 anos de atuação na educação básica ministrando as disciplinas de Italiano e História, obteve-se o primeiro relato da presença do livro Coração na escola. Maria Angela afirmou que conheceu a obra ainda pequena como aluna da escola primária (chamada escola elementar no sistema italiano) e, posteriormente, a utilizou também na sua prática docente:

Quando eu cursava a elementar, já não líamos – na escola – o livro completo. Era uma época mais moderna. Mas a professora nos falava do romance e ELA LIA para nós os contos mensais (“O pequeno vigia lombardo”; “Dos Apeninos aos Andes”, etc.). Liguei para o Fernando [irmão] e ele me disse com certeza que o professor dele também LIA ELE MESMO em aula os episódios mais importantes e alguns contos mensais, porque se lembra bem deles. Sabe, o papai me presenteou – acho que na terceira ou quarta série – com o livro, e eu li tudo sozinha, ainda pequena. Depois, Edmondo De Amicis e Cuore foram esquecidos e negligenciados: era muita coisa do século XIX, patriótico demais. Foi redescoberto só nos anos 2000, eu acho. Eu levei os meus alunos para ver uma peça de teatro ótima baseada no romance, em Thiene. Primeiro, preparei a turma, apresentando o romance, os personagens e lendo para eles em aula alguns trechos mais significativos. Quando se propõe aos alunos algo baseado na literatura ou em narrativas de certo nível, é indispensável que seja o professor a ler EM VOZ ALTA as partes mais bonitas: só assim os alunos entendem a beleza do texto.4

(Maria Angela Rela. Depoimento. 27 de maio de 2019, grifo do autor, tradução nossa).

É interessante perceber, no depoimento, a ênfase dada por Maria Angela à leitura da obra pelo professor em sala de aula, afirmando inclusive que esse é o modo pelo qual se permite aos alunos a apreciação da literatura. Essa prática interessa em particular neste estudo, devido à característica mesma da obra de De Amicis. A professora refere-se ao Cuore (título original em italiano, Coração na publicação traduzida para o português) como um romance, como de fato é entendido pela crítica. O romance escrito com cunho pedagógico foi considerado porta-voz de valores nacionais e de uma necessária união social, uma vez que surge logo após a unificação italiana.

Sabe-se, ainda, que De Amicis excluiu da narrativa os princípios católicos, que tradicionalmente orientavam sobremaneira a percepção moral no Ocidente, dando lugar a um novo modelo, mais pragmático e direcionado aos propósitos de uma italianidade em construção. A escolha foi bem vista pelos seus editores:

No fim do século XIX, esse editor [Treves] era um dos mais importantes e renomados de todo o país; judeus, laicos e particularmente sensíveis às mudanças da sociedade moderna, os irmãos Emilio e Giuseppe Treves se propunham a renovar a cultura italiana que, no seu entender, era retrógrada e excessivamente subordinada aos ditames da Igreja católica. Os irmãos Treves acolheram com entusiasmo a proposta de De Amicis, seja porque perceberam seu potencial de bom negócio no sentido comercial do termo (Coração, de fato, foi o primeiro verdadeiro best-seller italiano), seja pelo fato de o livro ir ao encontro de suas aspirações, isto é, promovia um modelo educacional novo, adequado à Itália unida pós-Ressurgimento, com seus valores laicos, ao mesmo tempo nacionais e liberais.5

(FELTRI, 2012, p. 6-7, grifos nossos, tradução nossa).

Com efeito, o caráter pedagógico da obra é muito voltado a essa necessidade de afirmação de uma nacionalidade, importante para a manutenção da nova estrutura política e cultural do país. Não seria exagerado dizer que Coração gira em torno da ideia de Pátria, reforçando-a como elemento a ser amado e defendido. Os contos mensais, exemplares dessa intenção, apresentam alunos, professores, professoras, famílias, trabalhadores, cujas histórias retratam o contexto da Itália recém-unificada; cada uma apresenta uma virtude, um comportamento desejável aos cidadãos do novo contexto italiano.

A presença de Coração no Brasil

Obra de circulação mundial, Coração ultrapassou as fronteiras nacionais, tornando-se objeto de leitura também no Brasil. Sobre tal movimento, há um importante estudo: “Cuore, de Edmondo De Amicis (1886): um sucesso editorial”,6 realizado pela pesquisadora Maria Helena de Camara Bastos (2004). Bastos examina as características de circulação do romance no Brasil também por meio de artigos críticos publicados à época.

Uma equipe de pesquisadores da UERJ e da UFF (2007) fez um levantamento das edições brasileiras do livro Coração,7 indicando algumas datas de publicações: 1891 (1ª ed.), 1894 (4ª ed.), 1920 (31ª ed.), 1936 (36ª ed.), 1940 (42ª ed.), 1949 (44ª ed.), 1954 (46ª ed.), 1956 (47ª ed.) e 1968 (53ª ed.). A pesquisa Leitura de imagens no ensino de história: um estudo sobre mudanças e permanências nas prescrições, livro didático e representações culturais – LIDIHIS, da qual nasce este artigo, encontrou outras edições ainda e definiu como corpus de análise duas edições brasileiras da Livraria Francisco Alves (1916 – 28ª ed. e 1924 – 34ª ed.), que não são indicadas pelo levantamento da pesquisa de 2007 acima referida, e duas edições portuguesas, sem data.

Igualmente, a pesquisa revelou indícios de leitura dessa obra no Brasil também no estado do Pará, através da publicação de artigo sobre livros de leitura escolar,8 destacando a distribuição gratuita de Coração, dentre outros títulos, às escolas daquele estado. Foi localizado, ainda, em um comércio on-line de livros usados, um exemplar de 1934 em língua italiana, publicado pela Editora Treves, originário de São Paulo e também de distribuição gratuita. Na região de colonização italiana do Rio Grande do Sul, em que as buscas foram mais direcionadas, foram encontrados exemplares nas cidades de Caxias do Sul e São Marcos, ambos em português.9

Em busca realizada em periódicos da imprensa nacional, foram localizadas diversas informações com o termo “De Amicis”. Constatou-se desde a presença do título do livro Coração em quadro de licitações, passando pela nota de falecimento do autor, até um texto alusivo ao cinquentenário da famosa obra. O jornal A Opinião Pública, na edição de n. 67, em 21 de março de 1908, publicou nota sobre o falecimento de Edmondo de Amicis. Na página de capa, lê-se a biografia do escritor, que inclui a relação dos livros escritos por ele. Quando menciona Coração, informa que havia mais de 150 edições com tradução em diversas línguas. E acrescenta:

No Brazil, Edmundo de Amicis não era um desconhecido, como não o era também em todos os demais paizes de origem latina. Seus trabalhos literários, traduzidos para o portuguez, foram sempre muito lidos e apreciados. O seu belíssimo livro Coração alcançou extraordinário êxito entre nós, sendo até adotado como compendio didactico em vários de nossos collegios e escolas officiaes

(A OPINIÃO PÚBLICA, n. 67, 1908, s.p.).

Na edição 201, de 1934, página 4, A federação apresenta uma preciosa nota sobre a prática de leitura em Clubes de Leitura, que cita De Amicis como último autor lido:

Semanalmente, o “Club de Leitura”, do Collegio Souza Lobo, no arrabalde São João, realiza as suas reuniões, com alunos de 6º e alguns do 4º e do 5º anos. Nestas reuniões, são comentados os perfis intellectuaes dos prosadores e poetas brasileiros e lidas paginas interessantes. Na ultima reunião, procedeu-se a leitura e interpretação de duas paginas de Edmundo de Amicis, “Meu pai” e a “Poesia da Escola”.

(A FEDERAÇÃO, n. 201, 1934, p. 4)

Ainda no A Federação, há uma crítica a Coração, em ocasião da comemoração de 50 anos de leitura do livro. Em 29 de março de 1937, o jornal estampou a matéria “O Cincoentenário10 de Cuore”, escrita por Romulo Quintana. Junto ao título, o autor acrescenta: “um livro modesto que é uma grande obra da literatura italiana”. E continua:

Acaba de completar 50 anos de vida um dos pouquíssimos livros que penetrou instantaneamente no coração da humanidade. Sim, porque “Coração”, não só atrae as crianças que se dispõem a lê-lo, – os milhões de leitorzinhos espalhados por todos os cantos da terra – mas também aos adultos, seja em tempo de leitura, como reminiscência dos momentos felizes de sua infância, quando o liam nos bancos escolares; seja para saborear, depois de grandes, um livro que havia tido a virtude – e a terá sempre – de gravar, com caracteres indeléveis, no coração humano a bondade pelo próximo e pelo humilde, conduzindo-o ás vezes, pelo caminho da retidão

(A FEDERAÇÃO, 29 mar. 1937).

Luchese (2017, p. 137) buscou compreender a produção, a circulação e o consumo, no Brasil, de livros escolares italianos enviados para as chamadas escolas italianas no exterior. Ao utilizar como fonte a entrevista de Paulina Soldatelli Moretto, a pesquisadora identificou a presença do livro de De Amicis:

As lembranças de Paulina Soldatelli Moretto, nascida em 1913 em São Marcos, na época também distrito de Caxias do Sul/RS e que frequentou a Escola Paroquial Dom João Becker no início dos anos 1920, também são relevantes. Segundo ela uma das melhores recordações da escola foi quando ganhou como prêmio de final de ano um livro italiano: “Eu ainda tenho um livro, bem bonito, que ganhei no último ano que frequentei a escola paroquial [...] eu fui a melhor aluna, que estava adiantada, então ganhei um bonito livro. Foi o padre que deu o livro para prêmio. Um livro italiano, se chama Cuore

(MORETTO, 1984, s/p).

Essas referências indicam que Coração foi uma obra importante não apenas no contexto histórico e cultural italiano, mas marcou presença também no Brasil, seja do ponto de vista pedagógico, porque presente nas escolas, seja literário, haja vista as críticas e comentários sobre a obra e o autor em periódicos de circulação nacional. De fato, os livros escolares possuem história e, como aponta Chartier (2002a), são “objetos de circulação”, nem sempre concebidos como didáticos e portanto descartáveis, pois movimentam ideias e intencionalidades de época, além de servirem como manuais a professores e alunos. Algumas edições literárias, como contos de fadas ou romances, podem permanecer no tempo e ser adotadas como prática de leitura obrigatória em contextos de aprendizagem. Coração, de Edmondo De Amicis, é um exemplo dessa permanência. Na atualidade, é narrativa ainda reeditada, em diferentes países.

Leitura como prática social

A leitura em ambiente escolar pode ser analisada desde aspectos muito diversos, por exemplo, como exercício de domínio das habilidades de ler, de aprendizagem de conteúdos curriculares para inserção na cultura letrada, ou mesmo de apreensão de atitudes, dentre outros tantos possíveis. É, portanto, prática social, assim entendida porque integrada ao conjunto de aspectos e ações que constituem determinado grupo de leitores, incluindo seus diferentes textos, valores e crenças (KLEIMAN, 2013a).

Nesse contexto, a modalidade de leitura em voz alta pelo professor mediador, como era usual na época de maior circulação de Coração, gera repercussões importantes em seus alunos, inseridos em determinada época e em grupos específicos. A voz docente e a utilização da sua expressividade implicam comunicação e produzem um elo afetivo com e entre os ouvintes, que os envolve. Ler em voz alta vai além do som da palavra, na medida em que a intervenção leitora veicula-se à gestualidade, ao olhar, à emoção. E a escuta da narrativa constituída de tal modo aciona ideias, imaginação, associações, compartilhamentos de saberes e interpretações que potencializam a atribuição de significados.

A materialidade do livro de leitura escolar

O corpus de análise, neste registro de pesquisa, é constituído por quatro volumes da publicação de Cuore traduzida para a língua portuguesa. Essas edições circularam em espaços escolares do estado do Rio Grande do Sul, e foram comercializadas entre 1916 e provavelmente 1957, conforme achados da pesquisa.

A análise dos quatro volumes selecionados no estudo aqui descrito está focalizada nos elementos constituintes de seu projeto gráfico, esse conjunto que, de algum modo, organiza e produz efeitos na experiência de leitura de textos. Entende-se, portanto, que “os textos não estão fora dos materiais de que são veículos. [...] é preciso lembrar que as formas que permitem sua leitura, sua audição ou sua visão participam profundamente da construção de seus significados” (CHARTIER, 2002b, p. 61-62). Desses elementos, destacam-se, em geral: formato, capa, diagramação de páginas e ilustrações, quando presentes.

Os livros examinados são impressos em preto e branco e encadernados com capa dura. Apenas dois, os editados em 1916 e 1924, respectivamente, são idênticos em organização de edição, e contêm apenas uma ilustração, na capa (Figuras 1 e 2). Nesses, o conteúdo interno – miolo – é constituído exclusivamente de linguagem verbal, prática comum no período, pois os recursos tecnológicos ainda escassos definiam a economia nas edições. A produção de volumes escolares encadernados em capa dura e lombada flexível sinaliza, porém, o interesse editorial na sua durabilidade, o que pode ser justificado pelo seu destino à leitura escolar.

Fonte: acervo da pesquisa.

Figura 1 ed. 1916 (A) e 1924 (B). 

Fonte: acervo da pesquisa.

Figura 2 Imagem de capa (1916 e 1924) 

Nesse mesmo sentido, entendem-se as escolhas quanto ao formato, que é analisado tomando por base as dimensões do objeto físico. No caso dos quatro exemplares, é compartilhado o tamanho bolso, 12 cm X 18 cm, com orientação de página em retrato – altura maior que largura. Assim, trata-se de publicação pequena, adequada à portabilidade do leitor-destinatário, o aluno de escola primária/elementar. Jean-Marie Goulemot (2001) afirma a existência de uma fisiologia que orienta o ato da leitura e o relacionamento do leitor com o texto, entre corpo e objeto – a mão do leitor e o tamanho do livro. Além disso, o pequeno formato implica menor custo de produção, aspecto que deveria ser de interesse editorial na época, pela grande quantidade de cópias a serem produzidas e a ampla distribuição na Itália e nos diferentes países que receberam imigrantes italianos.

Os dois volumes, de 1916 e 1924, possuem 276 páginas e são compostos de capa dura, página de guarda, miolo e índice. O texto impresso apresenta uma padronização tipográfica e espaçamento adequados à legibilidade e à fruição de leitura. A diagramação das páginas obedece a uma organização em grade de alinhamento no modo retangular simétrico, bloco de texto, margens esquerda e direita de igual dimensão, número de página na parte superior, títulos e subtítulos. O conteúdo impresso ocupa a maior parte do espaço de página; a dimensão da mancha gráfica é de 9 cm X 14 cm, indicando tratar-se de edição econômica, conforme contribuições sobre projeto gráfico de Antônio Celso Collaro (2000).

A visibilidade material de um livro ocorre primeiramente no contato com a sua capa, o que desencadeia o processo de interação e antecipa, num processo interpretativo, a produção do sentido do texto em sua totalidade. Como se observa na Figura 1, o espaço superior das capas, que seguem o mesmo modelo, mostra a identificação do autor; o título segue mais abaixo, destacado em letras maiúsculas. Na área central, predomina a imagem de uma mulher beijando a boca de uma criança e, no segmento inferior, estão grafadas as informações sobre a editora e ano de publicação.

A imagem central foi criada pelo ilustrador Arnaldo Ferraguti11 e chama a atenção pela gestualidade e pelas personagens que representa, podendo ser vista em destaque na Figura 2. Aparentemente, trata-se de uma mãe, que segura vigorosamente o rosto do filho. Entende-se que a criança é do gênero masculino pelo corte de cabelo, predominante na época entre os meninos. Com a mão esquerda, ela envolve a face do filho e, com a direita, apoia o topo da cabeça da criança, inclinada para trás. Essa imagem fixa um aspecto primitivo da humanidade, relacionado à alimentação boca a boca.

Para ampliar a compreensão dessa imagem e da relação simbólica entre as duas personagens, é necessário buscar dados referentes aos registros do próprio autor, De Amicis, sobre suas motivações relativas à escrita desse livro. Uma carta de 1878 dirigida ao editor Treves, publicada no livro de Pino Boero e Giovanni Giovanese (2009),12 traz dados esclarecedores, nos quais o autor explica as ideias para o ainda futuro texto. Boero e Giovanese comentam o desejo expresso por De Amicis em comunicar o ideal de escola para todos, em qualquer lugar da Itália, que se concretiza na escrita. A obra de De Amicis encerra a utopia de uma educação que tem por base o afeto e cujos heróis são os agentes da escola: professores abnegados e família presente e afetuosa.

É notório, também, que o ilustrador mantinha laços de parentesco com os editores – era casado com a neta de um dos irmãos Treves, que conheciam bem as intencionalidades do autor. Ferraguti traduziu em imagem o beijo da afeição e do cuidado, como um alimento da mãe-escola-pátria simbólica, que ama, nutre, protege e faz seus filhos crescerem como bons italianos. O livro circulou por diferentes espaços do mundo ocidental, com o patrocínio do Estado, e tal beijo materno é simbólico a ponto de incluir mesmo aqueles italianos fora do território recém-unificado da Itália, para onde tantos emigraram à procura de uma vida melhor. Constata-se, portanto, que a ilustração dessa capa é coerente e articula não somente as intenções do Estado vigente, como os desejos manifestos pelo autor da obra, que de certa forma coincidem: apresentar um modelo de escola diferente daquela conhecida.

Edições ilustradas

O termo ilustração é interpretado, na linguagem comum, como a imagem que acompanha o texto verbal, com função13 de explicar ou ornamentar a escrita. Nesse sentido, considerando o significado etimológico de texto, pode-se dizer que o livro ilustrado é tecido por imagem e palavra. Interessa, no estudo das obras aqui examinadas, identificar a relação14 entre a ilustração e a escrita, sendo elas duas linguagens diferentes e constituidoras de significação nos livros selecionados.

A publicação de Coração tem sua longa trajetória nas práticas de leitura escolar e o encontro do seu leitor com as ilustrações pode ter gerado uma experiência diferenciada de contato com o texto. Cada imagem implica um modo único de visualizar a página, produz uma quebra na extensão do campo verbal escrito e promove uma diferenciação de estímulos visuais, alterando o ritmo de leitura e as associações interpretativas. Como é ususal acontecer, a introdução de imagens ao longo do texto, em Coração, tem potencial de gerar, além de tudo, maior interesse nos leitores, aproximando-os do conteúdo que se quer comunicar.

O terceiro exemplar analisado nesta investigação15 segue essa mesma organização, de texto e ilustrações intercalados, e serve para exemplificar essa relação. O livro mantém o mesmo formato padrão de bolso e diagramação dos dois anteriores; possui 264 páginas protegidas por capa dura, com indícios de restauração em papel estampado (Figura 3A).

Fonte: (A) Acervo da pesquisa; (B) Levy Leiloeiro, 2014.

Figura 3 Exemplar restaurado e capa original 

A edição é traduzida do italiano ao português e não apresenta data de publicação. Apesar das buscas, por enquanto conjectura-se que esse livro esteja inserido na primeira metade do século XX, de acordo com elementos obtidos em diferentes fontes de pesquisa on-line.16 Foram encontradas representações da capa original (Figura 3B) nesses espaços virtuais, sem informações de autoria da criação artística.

Para corroborar o provável período de tempo, incluímos indícios fornecidos nas imagens e na identificação de seus autores, já que o diferencial do volume, comparado aos anteriores, é o de apresentar ilustrações internas na técnica do desenho a bico de pena. No caso dessa edição, os desenhos foram realizados por dois reconhecidos artistas e ilustradores portugueses de seu tempo,17 António José Ramos Ribeiro (1888-19--), que assinava Ramos (Figura 4A), e Alfredo Januário de Moraes (1872-1971), identificado nas ilustrações como Alfredo Moraes (Figura 4B), conforme registros da Biblioteca Nacional de Portugal.

(A) António José Ramos Ribeiro. (B) Alfredo Januário de Moraes. Fonte: acervo da pesquisa.

Figura 4 Ilustradores: assinaturas 

Sobre Moraes, o “Almanaque Republicano” traz informações biográficas18 e da sua produção como artista. No catálogo do acervo digital da Biblioteca Nacional de Portugal estão disponibilizadas algumas obras de Ramos19 do início do século XX. Esses dados permitem articular a provável edição do livro examinado na primeira metade desse século, entre os anos 1920 e 1940.

No levantamento das 39 ilustrações distribuídas no texto, identificamos que, do total das cem histórias, entre registros de diário e contos, trinta são compostas de palavra e imagem. Os “contos mensais”, de outubro a julho, estão todos destacados com ilustrações no meio do texto. Há intervalos variáveis de páginas não ilustradas; no início são menores, e tornam-se maiores à medida que o texto avança em direção ao final, pressupondo a expansão de competências do leitor da escrita.

O exame geral das ilustrações evidencia a sua função descritiva: são cenas que espelham o narrado em gestualidade, e as personagens são traduções visuais do evento contado pela palavra. Alguns detalhes são importantes, como o estilo das roupas e acessórios dos personagens ilustrados, que mostram usos de época e auxiliam na exploração de possibilidades para estabelecer um período de tempo para a publicação, apesar das indicações de data da narrativa em si. Por exemplo, na página 22, em que há o conto mensal do mês de novembro, “O pequeno patriota de Pádua” (Figura 5), a ilustração, feita por Moraes, representa um casal com vestimentas que denotam aspectos relacionados à moda vigente no início dos anos 1920.

Fonte: acervo da pesquisa.

Figura 5 Conto mensal de novembro: ilustração 

Percebe-se, pela figura, que a mulher usa um vestido reto e simples, na altura do tornozelo, deixando aparecer o sapato e sem marcação da cintura; traz um chapéu na cabeça, como acessório praticamente imprescindível, de acordo com a época. O homem traja uma roupa esportiva, casaco curto, calça presa abaixo do joelho, meias à mostra e boné,20 comum nos anos 1920. As roupas são um indício de que o casal seja passageiro do “vapor francês”, relatado no conto, e portanto de nível social mais elevado que o menino. A criança é representada de calças mais curtas, barras esgarçadas, paletó bem folgado, chapéu e chinelos. A vestimenta desajustada ao seu tamanho remete à pobreza, pois os meninos dependiam da doação de roupas pela caridade. No texto escrito, o personagem é considerado “mal vestido” e “roto”, e sua história é a de que fora vendido pelos pais e volta para Gênova, com a ajuda do “cônsul de Itália”. Em relação aos ensinamentos pedagógicos e à moral, o conto, como a obra na sua totalidade, enaltece o orgulho de ser italiano.

Outros indícios de época são identificáveis nos detalhes da representação da personagem feminina da página 197, do conto “As crianças raquíticas” (Figura 6A). A roupa da professora, que auxilia no exame médico dos pequenos, no “Instituto dos meninos raquíticos”, segue o modelo militar inglês do Corpo Auxiliar do Exército Feminino da Primeira Guerra Mundial:21 jaqueta de bolsos grandes, cinto e saia ampla (por comparação, Figura 6B). O diferencial são os cabelos curtos frisados. O desenho que ilustra o conto, portanto, contém elementos que remetem ao período específico do início do século XX, reforçando a provável data de edição do volume analisado, pelas escolhas do ilustrador.

Fonte: (A) Acervo da pesquisa. (B) Memory-prints, 2020.

Figura 6 Vestimenta feminina em “As crianças raquíticas” 

As ilustrações usadas como exemplo até aqui e as demais que integram o corpo do livro apontam para o uso das imagens, na obra, como recurso de função predominantemente descritiva, que “espelha” a narração escrita, auxiliando no ritmo de leitura. Essa é uma estratégia comum em produções didáticas ou literárias para crianças, e objetiva, para além da demonstração do texto, um tempo de arejamento, de descanso, além de auxiliar na distribuição do espaço escrito (Figura 7).

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 7 “Dos Apeninos aos Andes”: diagramação 

Ao mesmo tempo, os detalhes de representação visual aqui apontados assumem um caráter informativo, indicam épocas e contextos culturais. Também as informações biográficas dos ilustradores constituem um conjunto de rastros a serem acompanhados no processo analítico; como neste caso, evidenciam dados aproximados de publicação da edição estudada, pertencente à primeira metade do século XX.

O quarto exemplar a ser analisado segue o padrão de formato de bolso e apresenta capa original na cor vermelha (Figura 8A), que identifica apenas a coleção a que a obra pertence, “Coleção Juvenil – Moças”. O título da obra aparece na lombada, sobre detalhes dourados. Trata-se da 1ª edição do Editorial Ibis – Livraria Bertrand / Portugal-Brasil, traduzida da língua espanhola. A folha de rosto é ilustrada e traz o título, autor e editor sobrepostos em uma imitação de pergaminho (Figura 8B).

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 8 Coração, 1 ed. Ibis: capa e folha de rosto 

Examinando a ilustração, percebe-se que os dois meninos são caracterizados pela gestualidade e pelas vestimentas de época. O que está acima, à esquerda, carrega livros embaixo do braço, e usa uma roupa de marinheiro que, segundo Alisson Lurie (1997, p. 55), é o traje padrão para meninos e meninas no começo do século XX. Esse estilo de roupa infantil remonta ao fim do século XVIII.22 Abaixo, à direita, outro menino empunha uma pena de escrita sobre uma página; é também um estudante, com paletó, camisa de colarinho redondo e laço arrematando. Seu modo de vestir igualmente remete aos usos do início dos anos 1900.

Essa edição apresenta noventa contos, tendo omitido dez das edições anteriores, e não possui índice. Além disso, diferencia-se substancialmente dos volumes até então analisados por apresentar 64 ilustrações em quadrinhos, que ocupam páginas inteiras, sempre colocadas à direita do leitor. Essa estratégia oferece uma dinâmica de leitura que privilegia a presença da imagem sobre o texto, já que a leitura é movimento da esquerda para a direita, ancorando o olhar do leitor sobre os quadrinhos preto e branco, em traçados lineares.

Vale notar que, apesar de a narrativa por quadrinhos ser um gênero literário conhecido desde o século XIX, é no século XX que ganha popularidade, principalmente em meio aos jovens em idade escolar. Nesse exemplar de Coração, fica evidente que o quadrinista procurou ser fiel às vestimentas do tempo da criação das narrativas do livro original (1886). O primeiro quadrinho, na página 3, mostra a chegada à escola, após o período de férias. Aqui, mantém-se a correspondência entre a escrita e a visualidade: as figurações criam cenário de época (século XIX), identificável pela representação da moda feminina: vestidos com saias longas, bustle ou anquinha, casaquete sobreposto, mangas rentes, luvas e chapéu (Figura 9A, e B por comparação).

Fonte: (A) Acervo da pesquisa. (B) KISNER, 2019.

Figura 9 Vestimenta feminina: quadrinhos 1 ed. Ibis 

O traje masculino também está de acordo com as características de vestimenta do período da história (Figura 10); entretanto, chama a atenção sua composição, principalmente na representação dos homens e meninos, de modo familiar às produções de história em quadrinhos da segunda metade do século XX (Figura 11). Esses personagens são criados com ombros largos, tronco e membros inferiores esguios, calças afuniladas e sapato à mostra.

Fonte: acervo da pesquisa.

Figura 10 Representação masculina; quadrinhos de Alfredo Ibarra 

Fonte: Mandrake, 2015, p. 112-113.

Figura 11 Quadrinhos “Mandrake”, produzidos de 1934 a 1994 

A ausência de data de edição no exemplar de Coração analisado é uma lacuna que procuramos sanar utilizando as referências do ilustrador Alfredo Ibarra,23 citado no verso da folha de rosto. Esse artista é mencionado por Jesús Cuadrado (2000, p. 649) como responsável pela ilustração da edição em língua espanhola do livro Corazón, em 1957. O estudioso faz menção, igualmente, à encarregada pela adaptação, Pilar Gavín, também presente nos registros e nos dados editoriais do volume. Na página 147 da edição, Ibarra assina a ilustração, e coloca a data (1957). Em vista desse detalhe, pode-se confirmar a referida informação de correspondência de datas com a provável edição desse volume (Figura 12).

Fonte: acervo da pesquisa.

Figura 12 Ilustração com ampliação da assinatura de Ibarra, 1957. 

A escolha por uma narrativa híbrida, unindo texto literário e ilustração em quadrinhos, no final dos anos 1950, pode ser compreendida como uma estratégia de sedução aos jovens leitores na escola, conforme as tendências de leitura mais procuradas por eles. Além disso, percebe-se que os contos mensais recebem o acréscimo de mais de uma página ilustrada entre os escritos mais longos, reforçando a importância dos conteúdos, como no conto “Dos Apeninos aos Andes”, o mais longo de todos, que, com oito páginas em quadrinhos, descreve a aventura do menino genovês que vai à Argentina procurar a sua mãe. Em “O tambor sardo”, que enaltece o herói ferido a serviço da pátria, a imagem é o primeiro elemento visível do conto, que se inicia pela página da ilustração.

Identifica-se também na edição Ibis a predominância da função descritiva das ilustrações que acompanham a escrita, marca dos outros volumes analisados. A título de exemplo, na página 7, há dois quadros que descrevem o resgate de um menino atropelado e o choro da mãe assustada. Já o terceiro e último quadro anuncia o conto seguinte, “O rapaz calabrês” (p. 8), provocando a curiosidade do leitor à continuidade da leitura. Nesse caso, há um movimento implícito da parte do leitor, que executa, na sequência de imagens, um ir e voltar alternado. Essa estratégia repete-se em muitos outros espaços do livro, criando um dinamismo envolvente de leitura entre palavras e imagens.

Considerações finais

A proposta deste recorte de investigação do projeto LIDHIS (Leitura de imagens no ensino de História: um estudo sobre mudanças e permanências nas prescrições, livro didático e representações culturais) identificou, na materialidade do livro de leitura escolar Coração, escrito por Edmondo de Amicis, a permanência do padrão original do formato bolso, que funciona como facilitador da leitura, da mesma forma que o acréscimo das ilustrações, no decorrer do tempo, contribuiu para a dinamização de processos de leitura e sedução do leitor. As intervenções da leitura em voz alta, nas práticas docentes, prática comum à época de maior difusão da obra, parecem ter deixado impressões permanentes nos estudantes, além de criar o desejo de posse do objeto lido.

O conteúdo de Coração, que foi um sucesso editorial, se apresenta, inicialmente, somente com texto escrito, cujo objetivo era educar as novas gerações italianas nacionais e transnacionais, como foi o caso dos filhos de imigrantes. Era fundamental, no período, um novo conceito de cidadão, necessário à unificação nacional, e um novo comportamento social, o qual a pedagogia denominou de “gentil homem”. Nesse processo, foi igualmente importante apoiar o trabalho docente com a leitura.

À medida que a obra aqui apresentada se transnacionalizou, imagens foram incorporadas a ela. Ilustradores se associaram na autoria, registrando de forma imagética as representações de vestimentas que identificaram categorias sociais, mas também registrando representações da cultura escolar, como o ambiente de sala de aula e a imagem desejada do professor. Outra representação frequente, ainda, diz respeito à figura materna, que ilustra um padrão ideal de maternidade, defendido e vinculado ao contexto cultural vigente. Assim, conclui-se que as imagens contribuíram para a leitura fundamental da obra para além das questões necessárias a uma nova ordem social local, incorporando preceitos da italianidade por onde circulasse, mesmo que na ausência de uma tradução.

4Trecho original: Quando ero alle elementari, non leggevamo – a scuola – tutto il “Cuore”. Eravamo già in un’epoca più moderna. Però la maestra ci parlava del romanzo e ci LEGGEVA LEI i racconti mensili (La piccola vedetta lombarda; Dagli Appenini alle Ande; ecc.) Ho telefonato anche a Fernando e pure lui disse che il maestro aveva sicuramente letto LUI in classe gli episodi più importanti e qualche racconto mensile, perché se li ricorda. Sai che papà mi aveva regalato – penso in terza/quarta – il libro e io l’ho letto tutto da sola, ancora piccola. Poi Edmondo De Amicis e Cuore sono stati dimenticati e trascurati: tropo ottocentesco, tropo patriottico. È stato poi riscoperto penso proprio agli inizi 2000. Ho portato i miei ragazzi delle medie a teatro (a Thiene) a vedere una bellissima trasposizione del romanzo. Prima ho preparato i ragazzi, presentando il romanzo, i personaggi e leggendo io in classe gli episodi più significativi. Quando si deve proporre ai ragazzi qualcosa tratta dalla letteratura o qualcosa di narrativa di un certo livello, è indispensabile che sia l’insegnante a LEGGERE A VOCE ALTA le parti più belle: solo così i ragazzi capiscono la bellezza del testo.

5A fine Ottocento, questo editore era uno dei più importanti e rinomati di tutto il Paese; ebrei, laici e particolarmente sensibili ai cambiamenti della società moderna, i due fratelli Emilio e Giuseppe Treves si proponevano di rinnovare la cultura italiana, che ai loro occhi peccava di arretratezza e di eccessiva subordinazione ai dettami della Chiesa cattolica. I Treves accolsero con entusiasmo la proposta di De Amicis, sia perché intuirono che poteva diventare un ottimo affare sotto il profilo commerciale (Cuore, in effetti, fu il primo vero best seller italiano), sia perché andava nella direzione culturale da loro auspicata, cioè proponeva un modello educativo nuovo, idoneo all’Italia unita post-risorgimentale, coi suoi valori laici, a un tempo nazionali e liberali.

6Trabalho apresentado no NP04 – Produção Editorial, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da INTERCOM (2004).

7Contribuições de Rebeca Gontijo, no artigo “Coração: um diário, vários tempos e algumas histórias”, publicado em ROCHA, H.A.B; REZNIK, L.; MAGALHÃES, M. S. (Org.) A historia na escola: autores, livros e leituras. Rio de janeiro: Editora FGV, 2009.

9Em Caxias do Sul, o livro está localizado no Museu dos Capuchinhos, e foi restaurado antes da doação ao museu. O procedimento de restauro eliminou a capa original, que continha informações como data de impressão e número da edição. O exemplar de São Marcos está aos cuidados da biblioteca da igreja matriz, e reporta o registro do proprietário, um religioso transferido de São Paulo para a cidade.

10“O livro alcança um sucesso editorial, econômico e público imediato, na Itália e no exterior:quarenta ediçõesno ano de publicação, ummilhão de cópiasem1923, com versões em vários idiomas, incluindo ojaponês. Em 1986, por ocasião do centenário da primeira publicação, foi inserido e publicado na série daUNESCO, entre os livros mais representativos da cultura europeia”. (BIT Culturale, grifos do autor, tradução nossa). Disponível em: <https://www.bitculturali.it/2016/10/mostre-eventi/cuore-de-amicis-mostra-torino/>. Acesso em: 17 out. 2020.

11Arnaldo Ferraguti (1862-1925) foi um pintor realista italiano, formado na Academia de Belas Artes de Nápoles. Trabalhou como ilustrador de livros da Editora Treves, tendo sido responsável pela publicação do título original Cuore. Cf.: https://www.museodelpaesaggio.it/artista/arnaldo-ferraguti/.

12Na obra citada, De Amicis delineia ao editor as suas ideias para o livro e já o intitula Cuore, defendendo um novo modelo de educação e escola italiana voltada ao desenvolvimento humano e social.

13 Luis Camargo (1995) aponta oito funções para a ilustração: 1) pontuação; 2) função descritiva; 3) função narrativa; 4) função simbólica; 5) função expressiva; 6) função estética; 7) função lúdica; 8) função metalinguística. Essas funções são inspiradas naquelas da linguagem, apontadas por Jakobson. O autor ressalta, porém, que entre elas não há uma correspondência perfeita, mas pontos de contato.

14A presença do visual e do verbal pode estabelecer uma relação de coerência, de convergência, contradição ou não contradição na articulação e produção de significados do texto.

15DE AMICIS, Edmundo. Coração. Tradução de V. de Magalhães. Emprêsa Literária Universal. Nova edição revista. Lisboa, s/a.

16Cf.: Arpose. Em geminação e complemento. 12 de dezembro de 2011. Disponível em: <http://arpose.blogspot.com/2011/12/em-geminacao-e-complemento.html>. Acesso em: 17 out. 2020.

17A Biblioteca Nacional de Portugal disponibiliza duas imagens produzidas pelo artista e algumas informações reduzidas sobre o ilustrador, apenas data de nascimento. Disponível em: <http://www.bnportugal.gov.pt/>. Acesso em: 17 out. 2020.

18Arpose. Op. Cit.

19Catálogo digital da Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em: <http://purl.pt/26357>. Acesso em: 17 out. 2020.

20Essa roupa esportiva masculina era usual dos jogadores de golfe e as calças mais curtas são atribuídas à escassez de tecidos, consequência da Primeira Guerra. Disponível em: <http://www.fashionencyclopedia.com/fashion_costume_culture/Modern-World-1919-1929/Plus-Fours.html>. Acesso em 20 out. 2020.

21Em 1917 é formalizado o WAAC – o Corpo do Exército Auxiliar Feminino Britânico, no qual as mulheres eram pagas para prestar serviços em diferentes espaços onde fossem necessários, em virtude da guerra. Cf.: HISTORY. British Women's Auxiliary Army Corps is officially established. Jun. 2007. Disponível em: <https://www.history.com/this-day-in-history/british-womens-auxiliary-army-corps-is-officially-established>. Acesso em: 20 out. 2020.

22Esse é um dos exemplos de estilo de roupa para crianças, que as diferenciava dos adultos. No fim do século XVIII, os trajes de marinheiro entraram em uso, permanecendo em voga no tempo. Inicialmente, eram usados como uniforme por rapazes que estudavam em escolas que treinavam para a Marinha, mas logo foi difundida e vista em crianças de todas as idades e de ambos os sexos. No caso das meninas, a calça era substituída por saia.

23Cf.: Museo del Cid. IBARRA MONTILLA, Alfredo. 2020. Disponível em: <http://www.museodelcid.es/autor/7U1K5R/IBARRA-MONTILLA-Alfredo>. Acesso em: 29 set. 2020.

Referências

BASTOS, Maria Helena Câmara. Cuore, de Edmundo De Amicis (1886). Um sucesso editorial. Trabalho apresentado no NP04 – Produção Editorial, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. Disponível em http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/69860478521258430832067372732759813984.pdf Acesso em 8 de março 2022 [ Links ]

BOERO, Pino; GENOVESI, Giovanni. Cuore. De Amicis tra critica e utopia. Milão: Franco Angeli, 2009. [ Links ]

CAMARGO, Luis. Ilustração do livro infantil. 2. ed. Belo Horizonte: Lê, 1995. [ Links ]

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002a. [ Links ]

CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: Unesp, 2002b. [ Links ]

COLLARO, Antonio Celso. Projeto gráfico: teoria e prática da diagramação. São Paulo: Summus, 2000. [ Links ]

CUADRADO, Jesús. Atlas español de la cultura popular: de la historieta y su uso, 2. ed. Madrid: Ediciones Sinsentido/Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 2000. [ Links ]

DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. [ Links ]

DE AMICIS, Edmundo. Coração. 28. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1916. 276 p. [ Links ]

DE AMICIS, Edmundo. Coração. 34. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1924. 276 p. [ Links ]

DE AMICIS, Edmundo. Coração. Nova edição revista. Lisboa: Emprêsa Literária Universal, s.d., 263 p. [ Links ]

DE AMICIS, Edmundo. Coração. 1. ed. [Coleção Juvenil – Moças]. Lisboa, Portugal-Brasil: Editorial Ibis, Livraria Bertrand, s.d. 255 p. [ Links ]

FELTRI, F.M., La torre e il pedone © SEI, 2012. p. 6-7. Disponível em: https://sito01.seieditrice.com/la-torre-e-il-pedone/files/2012/04/U8_approfondimento-C1.pdf Acesso em 8 de março de 2022. [ Links ]

GOULEMOT, Jean Marie. Da leitura como produção de sentidos. In: CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 107-116. [ Links ]

KISNER, Pauline. Primeira era bustle e anquinhas vitorianas (1869-1876). A modista do desterro. Dicionário de moda histórica. 11 fev. 2019. Disponível em: <http://amodistadodesterro.com/primeira-era-bustle-1869-1876/>. Acesso em: 29 set. 2020. [ Links ]

KLEIMAN, Ângela. Oficina da leitura: teoria e prática. 15. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013a. [ Links ]

KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 15. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013b. [ Links ]

LUCHESE, Terciane Ângela. Da Itália ao Brasil: indícios da produção, circulação e consumo de livros de leitura (1875-1945). Revista História da Educação, v. 21, n. 51 Jan./abr. Porto Alegre, 2017. [ Links ]

LURIE, Alison. A linguagem das roupas. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. [ Links ]

MANDRAKE. O mundo do espelho. Rio de Janeiro: Coquetel, 2015. [ Links ]

A OPINIÃO PÚBLICA, n. 67, 1908, s.p. In: HEMEROTECA DA BIBLIOTECA NACIONAL. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=123340&pasta=ano%20190&pesq=%22No%20Brazil,%20Edmundo%20de%20Amicis%20n%C3%A3o%20era%20um%20desconhecido%22&pagfis=123. Acesso em: 8 de março de 2022. [ Links ]

MORETTO, Paulina Soldatelli. Entrevista a Liane Beatriz Moretto Ribeiro. Caxias do Sul, 8 abr. 1984. Disponível no Arquivo Histórico Municipal Jpão Spadari Adami – Caxias do Sul. [ Links ]

REVISTA IBEROAMERICANA PATRIMÔNIO HISTÓRICO-EDUCATIVO, Campinas (SP), v. 1, n. 1, p. 48-67, jul./dez. 2015. [ Links ]

ROCHA, Helenice Aparecida Bastos; REZNIK, Luis; MAGALHÃES, Marcelo de Souza (Orgs.). A historia na escola: autores, livros e leituras. Rio de janeiro: Editora FGV, 2009. [ Links ]

Recebido: 22 de Novembro de 2020; Aceito: 09 de Setembro de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.