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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.70 Natal out./dez 2023  Epub 06-Mar-2024

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n70id33919 

Artigo

Em defesa do ensino: o comum e a abertura existencial em meio aos algoritmos digitais

En defensa de la enseñanza: la apertura común y existencial en medio de los algoritmos digitales

Luiz Antonio Callegari Coppi1 

Prof. Dr. Luiz Antonio Callegari Coppi, Pesquisador Associado ao Grupo de Estudos sobre Itinerários de Formação em Educação e Cultura, Universidade de São Paulo (Brasil), Faculdade de Educação, Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-7613-1355, E-mail: luizacc88@gmail.com


http://orcid.org/0000-0001-7613-1355

1Universidade de São Paulo (Brasil)


Resumo

Este artigo tem por intuito contrastar à subjetividade que emerge da lida cada vez mais prolongada com os algoritmos digitais características daquilo que Jan Masschelein e Maarten Simons atribuem à escola. Para tanto, opomos a possibilidade de sair de si – ou seja, a "suspensão" – e a de viver um mundo comum – a "profanação" – oferecida aos alunos pela skholé ao que a pesquisadora Fernanda Bruno enxerga como o "sequestro do futuro" e o "confisco do comum", efeitos quase inevitáveis do modelo de negócios das redes sociais. Além disso, ao fim do texto, recorremos à etimologia de "ensinar" a fim de inferir algumas possibilidades de ação docente em meio ao cenário contemporâneo. Ensinar, como queremos defender, é in-signare, é colocar signos, o que pressupõe, por um lado, o reconhecimento de que o mundo e a realidade (e, portanto, os conteúdos ensinados) não são autoevidentes e, por outro, uma disposição para a criação de algo comum, comunicável – essas duas dimensões, a nosso ver, são fundamentais para uma escola que faça frente à subjetividade algorítmica.

Palavras-chave: Ensino; Skholé; Algoritmos Digitais; Comum

Resumen

El objetivo de este artículo es contrastar la subjetividad que emerge de la interacción cada vez más prolongada con algoritmos digitales características atribuidas a la educación por Jan Masschelein y Maarten Simons. Para ello, oponemos la posibilidad de salir de uno mismo – es decir, la “suspensión” – y de vivir un mundo común – la “profanación” –, que ofrece a los estudiantes la skholé a lo que la investigadora Fernanda Bruno percibe como el “secuestro del futuro” y la “confiscación de lo común”, efectos casi inevitables del modelo de negocios de las redes sociales. Además, al final del texto, recurrimos a la etimología de “enseñar” para inferir posibilidades de acción docente en medio del escenario contemporáneo. Enseñar, como queremos argumentar, es in-signare, es colocar signos, lo que presupone, por un lado, el reconocimiento de que el mundo y la realidad (y, por lo tanto, el contenido enseñado) no son autoevidentes y, por otro, una disposición para crear algo común, comunicable – estas dos dimensiones, en nuestra opinión, son fundamentales para una escuela que haga frente a la subjetividad algorítmica.

Palabras clave: Enseñanza; Skholé; Algoritmos Digitales; Común

Abstract

The aim of this article is to contrast the subjectivity that emerges from the increasingly prolonged interaction with digital algorithms characteristics attributed to school by Jan Masschelein and Maarten Simons. To do so, we oppose the possibility of stepping out of oneself – in other words, “suspension” – and living in a common world – “profanation” –, offered to students by skholé, to what researcher Fernanda Bruno sees as the “seizure of the future” and the “confiscation of the common”, almost inevitable effects of the business model of social networks. In addition, at the end of the text, we turn to the etymology of “teaching” in order to infer some possibilities of teaching action in the contemporary scenario. Teaching, as we want to argue, is in-signare, it is to place signs, which presupposes, on the one hand, the recognition that the world and reality (and therefore the content taught) are not self-evident and, on the other, a willingness to create something common, communicable – these two dimensions, in our view, are fundamental for a school that confronts algorithmic subjectivity.

Keywords Teaching; Skholé; Digital Algorithms; Common

Introdução

As inquietações que disparam este artigo nascem de um encontro, de um choque.

De um lado, as questões com que Masschelein e Simons (2014b) caracterizam aquilo que teria a ver com o "escolar", sobretudo duas delas: a questão relativa à suspensão e a referente à profanação. A primeira libera o estudante, pelo tempo em que ele se encontra na escola, daquilo que se espera dele fora dali, ou seja, não é seu sobrenome, sua classe social, seu gênero, sua cor o que determina seus interesses, sua potencialidade, ao menos quando, segundo os autores, a escola é, de fato, escola. A segunda questão, a profanação, tem a ver com o movimento que desativa as funções corriqueiras das coisas do mundo e as torna disponíveis para o estudo compartilhado em sala de aula ou, em outras palavras, tem a ver com um esforço para tornar essas coisas – que, fora da escola, são privadas, pertencem a quem as pode acessar, a quem tem o saber, a quem tem o dinheiro a quem tem qual seja o poder em voga – comuns.

De outro lado, duas expressões cunhadas por Fernanda Bruno (2020) para descrever o funcionamento das plataformas digitais algoritmizadas da contemporaneidade: o "sequestro do futuro" e o "confisco do comum". A definição dos perfis dos usuários a partir de seus movimentos pregressos nas redes, por um lado, faz com que o que será sugerido a eles no futuro seja repetição mais ou menos idêntica do que já aconteceu; por outro lado, essa definição de perfil é personalizada, cria bolhas nas quais ninguém além do próprio usuário pode entrar, e, nesse processo, a dimensão compartilhada da existência é que, cada vez mais acentuadamente, padece.

De um lado, então, uma instituição que guarda sua potência na possibilidade de desencaminhar, de convidar a sair de si e de desprivatizar, de tornar algo cumum; de outro, uma lógica ensimesmante e fixadora. E, entre esses dois mundos, habitam as crianças e os adolescentes. De acordo com a Constituição Federal do Brasil (Brasil, 2020), a educação é dever do Estado e da Família e é obrigatória dos quatro aos dezessete anos, o que implica que, idealmente, os jovens nessa faixa etária frequentam a escola. Ao mesmo tempo, segundo a pesquisa TIC Kids Online (2022), em 2022, 92% da população entre nove e dezessete anos era usuária da internet, e 86% dela tinha um perfil em ao menos uma rede social, com destaque para o Instagram e o TikTok, além de usar a web para ver filmes, séries e vídeos em geral, em plataformas como Youtube e Netflix, e escutar músicas. Será que os efeitos da imersão nas lógicas dessas redes e plataformas se limitam ao tempo passado nelas? Em outras palavras, é possível que o modo de ser condicionado por esse ambiente digital implique mudanças na subjetividade dos estudantes a ponto de isso se tornar uma questão escolar?

Nesse sentido, fazemos coro a uma percepção de Philippe Meirieu (2021, p. 296) que, em seu "Dictionnaire inattendu de pédagogie", num curioso comentário sobre os impactos pedagógicos das fotocopiadoras, escreve que "[...] a aparição de certos objetos pode mudar radicalmente as mentalidades, as visões de mundo, e, igualmente, os comportamentos de um grupo humano e suas instituições". No plano educacional, aliás, essas não são transformações recentes. Ariès (2014), por exemplo, lembra que a escola é reabilitada no Renascimento depois da invenção da prensa de tipos móveis de Gutenberg: as crianças, que, até ali, começavam a participar do mundo adulto tão-logo dominassem de forma relativamente consistente os códigos orais da sociedade, passam a ter suas especificidades levadas em consideração. A partir da prensa e da transformação da sociedade europeia numa sociedade da escrita, saber ler e escrever tornou-se importante, espichando o período destinado à infância e fazendo necessárias as escolas. A própria forma escolar, como a definem Vincent, Lahire e Thin (2001), ao pautar-se na palavra escrita e nas abstrações da razão derivadas dessa forma, depende da propagação de livros oriunda da criação de Gutenberg.

É justamente essa vinculação entre o mundo educativo e o tecnológico, por outro lado, que leva Neil Postman (1999) a recear pelo fim da infância e pelo consequente fim da escola: a partir do momento em que a palavra impressa perde espaço para a imagem televisiva, pondera o autor, surge um cenário em que se reduz o período de maturação para o acesso à principal linguagem que organiza a esfera pública, tornando-o desnecessário.

Numa linha argumentativa parecida, Corea (2004) e Sibilia (2021), investigam como uma certa subjetividade pedagógica tradicionalmente exigida pelas escolas se choca com a "subjetividade midiática" decorrente da imersão no mundo televisivo e, mais recentemente, na esfera virtual, sobretudo no que concerne aos regimes de atenção típicos de cada um desses ambientes. Pensando nos impactos do Google na educação, numa perspectiva menos interessada nos alunos e mais voltada aos professores, Charlot (2012 e 2019), por sua vez, vem defendendo que será necessário aos docentes abandonarem suas pretensões de serem "professores de informação", já que jamais serão capazes de armazenar tantos conteúdos quanto o buscador eletrônico – doravante, argumenta, será preciso que se tornem "professores de saber", preocupados em auxiliar os alunos a lidarem, de forma crítica e autônoma, com aquilo que encontram na rede.

Nós mesmos, por fim, mais recentemente, tivemos oportunidades de desenvolver trabalhos acerca desses espraiamentos tecnológicos no universo escolar: em uma delas (Coppi, 2023b), investigamos a didática a partir do excesso de informações e de opiniões que, por meio das redes, circulam no mundo contemporâneo; em outra (Coppi, 2023b), ocupamo-nos dos desafios à escola oriundos das características estruturais das plataformas utilizadas para o ensino remoto durante a pandemia de Covid-19.

Por tudo isso, não nos parece despropositado supor que a lógica algorítmica, que é a própria arquitetura das redes sociais, provoque efeitos na subjetividade discente – ou ao menos os tornem mais possíveis. Esses efeitos, nos parece, chocam-se com aquilo que define uma certa noção de escola que leve a sério a "suspensão" e a "profanação" de que tratam Masschelein e Simons (2014b).

Nesse sentido, o objetivo central deste artigo é investigar a dissonância entre as pretensões a essa suspensão e a essa profanação operadas, ao menos idealmente, pela escola e o "sequestro do futuro" e o "confisco do comum" derivados da lógica algorítmica, tal qual os entendem Fernanda Bruno (2020). Além disso, interessa-nos também recuperar, em sua potência, o sentido de um gesto escolar banal, mas que, a nosso ver, traz em suas raízes traços importantes para o fazer escolar num mundo algoritmizado: o gesto de "ensinar".

Para tanto, organizamos o texto da seguinte maneira: num primeiro momento, sintetizaremos as noções de "suspensão" e de "profanação" à luz do que Masschelein e Simons escrevem a respeito do que é a "skholé", ideia grega pautada, sobretudo, na criação de um tempo e de um espaço liberados das lógicas que regem o mundo fora dali. Num segundo momento, nosso foco é o funcionamento dos algoritmos: para chegarmos ao "sequestro do futuro" e ao "confisco do comum", elaboraremos uma breve revisão bibliográfica a fim de descrever e explicar o modo de operar desses filtros digitais e, ainda aqui, pretendemos evidenciar as tensões entre a subjetividade proposta pelas redes de comunicação contemporâneas e aquela a que convidam a suspensão e a profanação. A partir daí, nosso trabalho será o de reabilitar a etimologia de "ensinar" e inferir dela algumas linhas de ação que, do âmago de uma das atividades mais típicas da escola, podem fazer frente aos desafios ligados às interdições do porvir e à fragmentação do que é comum. Metodologicamente, como este trabalho assenta-se, sobretudo, em leitura e formulação de hipóteses, nos valeremos da hermenêutica conforme Paul Ricoeur (2013) a compreende. Para este autor, o sentido de um texto nunca está pronto no próprio texto, mas deriva, isso sim, do encontro entre o leitor e aquilo que é lido. Desse encontro, surgem "horizontes potenciais de sentido", os quais devem ser perseguidos com rigor argumentativo – e é isto o que buscamos aqui: do encontro tenso do que é tipicamente escolar com o que parece definir a experiência algorítmica, formulamos nossas hipóteses, antevemos alguns horizontes e, com atenção, buscamos descrevê-los e problematizá-los.

Skholé

No início do segundo capítulo de "Em defesa da escola: uma questão pública", Jan Masschelein e Maarten Simons elencam algumas aparentes obviedades relativas à escola: no senso comum, é ponto pacífico que se trata da instituição à qual são dirigidas as crianças com a finalidade de prepará-las para a vida adulta. É ali, segundo as ideias mais correntes, que "[...] os jovens (de acordo com um método específico) são abastecidos com tudo o que eles devem aprender para encontrar o seu lugar na sociedade [...]; é ali que se [...] equipam as crianças com o conhecimento e a habilidade peculiar a uma ocupação [...]" – e é também a escola o método economicamente mais barato para isso tudo (Masschelein; Simons, 2014b, p. 25).

Nessas percepções, a escola é sempre um meio. Em algumas ocasiões, o é para que se alcance a sociedade desejada; noutras, para a própria manutenção de uma dada vida social; há ainda, e talvez seja esta a ideia mais frequente, a percepção de que aquilo a que a escola serve é o mercado de trabalho, é a ele que os alunos devem ser capacitados em seus anos escolares e, portanto, a instituição, neste caso, será avaliada na exata medida em que é eficaz para este fim. Essas percepções, todavia, acabam deixando abertas diversas questões: se a função da escola é, por exemplo, possibilitar a adaptação a uma dada sociedade, mas essa sociedade é racista e misógina, o que significa adequar a ela as novas gerações? É preciso calar em relação às mudanças e transformações sociais para que se aposte numa escola voltada a esse fim. Por outro lado, se o que cabe à escola é preparar para uma sociedade ideal futura, talvez nos caiba questionar quem é que pode sonhar com esse futuro, afinal, os imaginários da extrema direita, por exemplo, delineariam a instituição escolar a partir de valores em larga medida opostos àqueles com que o fariam os ideários democráticos e humanistas: se se alteram os grupos no poder, a instituição escolar como um todo, então, deveria também se reconfigurar do zero já que outros devires passam a ser desejados? Algo similar ocorre com a submissão da escola ao mercado de trabalho. Uma criança, no Brasil, se cumpre todo o ciclo básico da educação, passa mais de uma década no interior da instituição, tempo suficiente para que as diretrizes laborais se alterem. Algumas profissões surgem, outras desaparecem, são substituídas por novas tecnologias e, nessa fluidez cada vez mais acentuada, sobre o que se embasaria, ao fim e ao cabo, a escola?

Masschelein e Simons propõem, então, um desvio em relação ao senso comum a propósito do tema e decidem recuperar a origem da palavra "escola". Esse retorno às raízes vocabulares, explicam eles numa outra obra (Masschelein; Simons, 2014a, p. 159), não tem por intenção "[...] realizar uma reconstrução histórica [...] nem envolver-se numa análise essencialista". Alinhando-se a Hannah Arendt, os autores afirmam que tal interesse pelos inícios tem a intenção de "[...] destilar delas [das palavras] seu espírito original" e pensar a partir daí no que essas palavras dão a pensar, quase como se se tratasse de "exercícios de pensamento", de "experimentos, tentativas de esclarecer algumas questões e de ganhar alguma garantia para enfrentar questões específicas". Em outros termos, é como se, diante das significações primeiras ligadas a um ou a outro vocábulo, nos propuséssemos a pensar: "e se?". E se admitirmos essa definição? O que se desdobra daí? O que isso dá a pensar?

Voltemos, então, com esse espírito, ao modo como reconstroem a palavra "escola".

Logo na primeira página da introdução do livro que dedicam à defesa dessa instituição, Masschelein e Simons (2014b) afirmam que a tradução mais usual do termo vem do grego "skholé", que significava, em suas origens, algo como "tempo livre". Nesse sentido, a escola ofereceria "[...] tempo livre para o estudo e a prática [...] às pessoas que não tinham nenhum direito a ele de acordo com a ordem arcaica vigente na época" (Masschelein e Simons, 2014b, p. 9). Um pouco mais adiante, escrevem ainda o seguinte:

[...] a escola é uma invenção (política) específica da polis grega e [...] surgiu como uma usurpação do privilégio das elites aristocráticas e militares na Grécia antiga. Na escola grega, não mais era a origem de alguém, sua raça ou ‘natureza’ que justificava seu pertencimento à classe do bom e do sábio. [...] A escola grega tornou inoperante a conexão arcaica que liga os marcadores pessoais (raça, natureza, origem, etc.) à lista de ocupações correspondentes aceitáveis (trabalhar a terra, engajar-se no negócio e no comércio, estudar, praticar). [...] Em outras palavras, a escola fornecia tempo livre, isto é, tempo não produtivo, para aqueles que por seu nascimento e seu lugar na sociedade (sua ‘posição’) não tinham direito legítimo de reivindicá-lo. Ou, dito ainda de outra forma, o que a escola fez foi estabelecer um tempo e espaço que estava, em certo sentido, separado do tempo e espaço tanto da sociedade (em grego: polis) quanto da família (em grego: oikos). (Masschelein; Simons, 2014b, p. 26).

É desse universo semântico que os autores derivarão oito traços que caracterizariam o "escolar": a suspensão e a profanação – que nos interessam especialmente neste trabalho – e, além delas, a atenção ao mundo e o interesse por ele; as tecnologias que dão a forma para as práticas escolares, para o estudo, para a formação da disciplina; a igualdade, que parte da afirmação de uma certa não-diferenciação; o amor, que remete ao cuidado com o mundo e a fazer-se presença; a preparação, que visa menos ao que virá e mais a um estar em forma, ciente dos limites; e, por fim, a responsabilidade pedagógica, que tem a ver com um exercício específico de autoridade. Foquemo-nos, no entanto, nos dois primeiros desses traços.

A partir da noção de "espaço e tempo livres", ou seja, um espaço e um tempo liberados do que ordena a vida para além dos muros da escola, Masschelein e Simons afirmam que se trata de uma característica da skholé a inativação temporária do que rege o mundo fora dali: em outros termos, uma "suspensão" temporária e localizada das lógicas que regram a realidade exterior. Nesse sentido, ao se transformarem em "alunos", as crianças e os adolescentes poderiam vivenciar, no intervalo em que se encontram nesse lugar que não é nem a casa familiar e nem o espaço público, uma emancipação que tem menos a ver com tornar-se maior e mais com experienciar-se outro. Uma menina negra, filha mais velha de um casal de uma classe média com aspirações relativas à ascensão social de seus filhos por meio do ingresso em universidades que lhes destaquem os currículos no mercado de trabalho, por exemplo, fora da escola, é cercada por expectativas sobre o que lhe cabe, sobre o que seria seu lugar: sua cor e seu gênero, numa sociedade racista e machista, implicam interdições, preocupações e receios que um garoto branco heterossexual, por exemplo, jamais experimentaria; sua condição de filha mais velha, talvez, em algumas ocasiões, demande dela uma responsabilidade pelos irmãos mais novos; as aspirações econômicas da família em relação às crianças podem definir aquilo que é importante ou não na formação, ou seja, os saberes úteis ao vestibular, por exemplo, podem ter preponderância em relação ao interesse pela música, pelas artes, por ciências menos aplicáveis. Quando a escola, de fato, funciona como skholé, o período passado ali dentro barraria essas definições: o gênero, a cor, as obrigações familiares, as pretensões de futuro não delimitariam aquilo a que essa garota poderia ser exposta.

Cria-se, assim, argumentam os autores, "uma brecha no tempo linear". Esse tempo, que é o da causalidade, atrela o que se pode fazer, o que se pode sonhar a quem se é. A experiência da skholé, por sua vez, suspende essa relação, e abre-se uma fresta para uma certa possibilidade de metamorfose: "[...] ela chama os jovens para o tempo presente e os libera tanto da carga potencial de seu passado quanto da pressão potencial de um futuro pretendido planejado [...]” (Masschelein; Simons, 2014b, p. 36) – não é porque se vem de uma família operária que só cabe estudar o que interessa ao ingresso no mundo do trabalho; não é porque se tem um sobrenome francês que não se estudará a literatura produzida em Angola ou Moçambique, por exemplo. Dessa suspensão, o futuro volta a se abrir como possibilidade, como indefinição. Num outro texto, Masschelein (2021, p. 31) defende que, quando opera, de fato, como escola, essa instituição dá a todos "[...] a possibilidade de bifurcar, de encontrar seu próprio destino (de não estar encerrado em [...] em uma natureza ou em uma identidade natural ou predefinida, em um projeto de uma 'família') [...]"; ela oferece a quem a frequenta "a possibilidade de [...] se determinar a si mesmo [...] e, portanto, também, de renovar (e questionar) o mundo".

Os estudantes, então, continuam Masschelein e Simons, ao poderem suspender ao menos temporariamente aquilo que seriam seus devidos lugares, são conduzidos a um mundo novo para eles – e é aí que surge uma outra característica do escolar: a profanação. A respeito dela, antes de continuarmos com o que a vincula à educação, cabe recuperar a maneira como Agamben (2007) a define. Para o autor, o "sagrado" é o que pertence aos deuses, são as coisas que "[...] eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens" (Agamben, 2007, p. 65). Consagrar algo, nesse sentido, tinha a ver com retirar isso da realidade mundana e torná-lo indisponível. Por oposição, "profanar" é o que restitui aos usos humanos isso que ficara interditado. A skholé, então, não suspende apenas os destinos e os lugares fixos de seus frequentadores, ela também suspende os usos consagrados das coisas do mundo – profana-as, portanto. Um motor, por exemplo, dentro da escola, não está mais submetido à função de fazer um carro se mover, ele será posto sobre a mesa, desmontado e suas peças serão estudadas. O mesmo ocorre com outros artefatos, com outros saberes. A língua portuguesa, nessa instituição, não é mais apenas aquilo que pertence aos escritores, aos poetas, aos professores e aos jornalistas; a escrita não é aquilo que tem a ver apenas com os que foram agraciados por um dom; a matemática não é objeto sagrado restrito aos gênios – tudo isso, na escola, quando ela se mantém skholé, é profanado, é posto em circulação, é disponibilizado a alunos que talvez, fora dali, não pudessem manusear essas produções humanas, não notassem que elas poderiam estar a seu alcance também, que eles as poderiam pegar, poderiam pensar sobre elas e, não raro, poderiam também as reinterpretar, dar a elas novos sentidos. Mas isso só ocorre quando essas coisas são, em alguma medida, desapropriadas de seus usos ordinários, desprivatizadas, quando são postas em jogo.

É por isso que a experiência oferecida pela escola não pode consistir num encerramento do sujeito em si mesmo. As coisas profanadas pela instituição são colocadas ao alcance de todos, e os sentidos que emergem daí emergem justamente desse comum, dos encontros e dos confrontos que caracterizam esse comum. "A escola", escrevem Masschelein e Simons (2014b, p. 40), "[...] não consiste em atender às necessidades individuais [...], pelo contrário, consiste em acompanhar durante a aula, lidar com alguma coisa, estar presente para alguma coisa".

Essas duas características – a suspensão e a profanação – nos dão fôlego para pensar uma escola estruturada em torno de dois valores ou duas ambições fundamentais: de um lado, uma abertura a processos de "desidentificação", ou seja, de confrontos do sujeito consigo mesmo, com aquilo com que se acostumou a crer que é o que lhe cabe, com o que o fixa numa definitiva versão de si; de outro lado, a experiência do comum, de nos depararmos com um mundo que nem sempre corresponde a nossas próprias expectativas, que tampouco é inequívoco e que, portanto, só pode ser habitado a partir da construção do comum, do compartilhado. Evidentemente, esses dois traços não são dados já postos e definitivamente conquistados nas escolas – Masschelein e Simons, a esse respeito, afirmam que a escola como skholé talvez jamais tenha sido alcançada justamente por conta da potência desestruturante que seus sentidos originais carregam. Nos interessa, no entanto, que essas duas características do que diz respeito à skholé, independentemente do que as tenha interditado noutros momentos, deparam-se, na contemporaneidade, com algo que parece diametralmente oposto ao que as delineia: a arquitetura algorítmica das redes de comunicação contemporâneas.

Os algoritmos, o confisco e o sequestro

Ainda que o termo "algoritmo" tenha se banalizado nos últimos anos no contexto digital, convém lembrar que ele não indica algo recente nem se restringe a essa esfera. Conta-nos Meirieu (2021) que se trata de uma palavra derivada do nome de um matemático persa do século IX, Al-Khwâzizmi, e diz respeito a um conjunto de operações determinadas organizado visando à resolução de um problema específico. Nesse sentido, continua Meirieu, os algoritmos estão em todas as áreas da vida humana: se é necessário organizar uma rotina de estudos, por exemplo, e se dispõe de informações como a quantidade de páginas para ler, o tempo disponível em cada dia e o nível de dificuldade específico de cada assunto, é possível programar uma espécie de receita com o que deverá ser feito em cada momento para dar conta de todo o conteúdo; se é uma viagem o que se quer organizar e, para tanto, conta-se com informações como o número de dias em que se estará fora, os monumentos que se quer visitar, a distância entre eles, os dias de gratuidade, as estimativas de filas e afins, é viável também um algoritmo que calcule um roteiro bastante adequado – os exemplos, enfim, seriam vários.

No plano digital, os algoritmos surgem originalmente como filtros para lidar com a torrente informacional produzida nesse meio. No contexto contemporâneo, escrevem Karwahi e Ramos (2023, p. 9), "[...] atravessamos uma sobrecarga informativa proveniente das possibilidades de produção e distribuição de conteúdo nas redes por todos [...], a qual, continuam as autoras, "[...] ampliou não apenas o acesso ao conhecimento, mas suas fontes". Pariser (2012), a respeito dessa profusão de dados, afirma haver o risco de um "colapso da atenção", uma vez que a quantidade de conteúdos a circularem nas redes tornaria impossível ao cérebro humano dar conta de tudo ou mesmo saber escolher aquilo que merece ou não atenção. Os algoritmos das plataformas digitais, dessa maneira, passam a ser desenvolvidos para filtrar o que tem relevância.

No entanto, o que é relevante para um certo sujeito não o é, necessariamente, para outro. Para que possam atuar de maneira certeira e eficaz, então, é preciso que sejam formulados a partir de informações precisas sobre cada um dos usuários e, nesse sentido, tudo passa a ser coletado: numa mineração informacional total, as páginas curtidas e compartilhadas, o tempo de tela num site ou em outro, os perfis seguidos e aqueles seguidos por amigos, os downloads, enfim, qualquer rastro deixado nas teias da rede torna-se dado potencialmente valioso para a definição de um perfil certeiro do usuário e, a partir desse perfil, para a seleção do que deve ou não emergir em sua tela digital.

Entram em cena aí os "microdirecionamentos" (O'Neil, 2020) que endereçam a cada um um mundo confortavelmente personalizado. Quanto mais confortável, é importante não perder de vista, mais tempo o usuário fica na plataforma e, portanto, mais tempo passa exposto às publicidades a ele apresentadas ali. Além disso, e é o que, de fato, nos interessa aqui, esses microdirecionamentos constroem uma espécie de "determinismo informativo" (Pariser, 2012), em que dados como aquilo em que se clicou, o que se curtiu, aquilo em que se gastou algum tempo começam a ser contabilizados e traduzidos na indicação seguinte a aparecer para o internauta. Trata-se de um modo de curadoria (Saad Correa; Bartocchi, 2012) pautado em experiências pregressas e organizado para a produção de uma repetição infindável do que é sempre igual. O futuro aí produzido, escreve Fernanda Bruno (2013, p. 170), tem um caráter imediato, "[...] pois atua no presente [...] e tem [...] uma efetividade performativa e proativa [...]"; os perfis construídos por esses algoritmos, continua a autora "[...] visam assim agir sobre o campo de ações e escolhas possíveis de indivíduos e grupos, ofertando a eles projeções que devem incitar ou inibir comportamentos". Citando Berns e Rouvroy, Bruno (2013) afirma ainda que o perfil age como um filtro que aumenta a pertinência do que é proposto em relação às expectativas atuais e estreita as chances de transformações de ponto de vista, de alargamento do campo de interesses.

Os filtros virtuais, explica Pariser (2012) a esse respeito, reforçam a sensação de unidimensionalidade tanto do mundo quanto de nós mesmos a partir de dois procedimentos: por um lado, cercando-nos “[...] de ideias com as quais já estamos familiarizados (e com as quais já concordamos) dando-nos confiança excessiva em nossa estrutura mental [...]"; por outro, "removendo [...] de nosso ambiente alguns dos principais fatores que nos incentivam a querer aprender” (Pariser, 2012, p. 78 e 79). O primeiro desses procedimentos, detalha o autor um pouco mais adiante, é o que se convencionou chamar de “viés de confirmação”, ou seja, uma tendência à crença apenas no que reforça nossas noções preexistentes, o que nos leva a enxergar tão-somente o que queremos ver, afinal, “[...] o consumo de informações que se ajustam às nossas ideias sobre o mundo é fácil e prazeroso [...]", e "[...] o consumo de informações que nos desafiam a pensar de novas maneiras ou a questionar nossos conceitos é frustrante e difícil” (Pariser, 2012, p. 82 e 83). Esse fenômeno, segue o autor, leva ao segundo procedimento: a bolha construída pelos filtros bloqueia "[…] ‘ameaças ao significado’, os eventos inquietantes e confusos que alimentam o nosso desejo de entender e adquirir novas ideias”.

Sintetizando essas ideias, Bruno (2020, p. 258 e 259) escreve que a estrutura algorítmica nos priva de visões em comum ao nos oferecerem "[...] uma paisagem personalizada que projeta o que supostamente desejamos ver, consumir, ouvir, ler, conhecer etc.". "O mundo visível personalizado das plataformas digitais", continua ela, "[...] é, assim, uma antecipação do que seria do gosto e do interesse de cada um especificamente". Emergem dessa reflexão as condições necessárias para Bruno forjar as duas expressões que, a nosso ver, chocam-se frontalmente com a suspensão e a profanação. Escreve a autora um pouco mais adiante:

A arquitetura das plataformas digitais e seus algoritmos favorecem, assim, conexões baseadas na homofilia/similaridade, traçando uma inquietante linha de afinidade entre as cidades segregadas e as redes digitais polarizadas. O confisco do comum nas plataformas digitais não é, portanto, natural nem necessário, mas, sim, um efeito de arquiteturas algorítmicas que tornam menos provável a construção e emergência de relações e grupos heterogêneos. Isso envolve um segundo efeito da mediação algorítmica que desejo explorar, que é o sequestro do futuro nas plataformas digitais. Sequestro do futuro porque as paisagens por onde trafegamos no ecossistema digital são também oportunidades de interação, de descobertas, de travessia para outros ambientes e encontros. Entretanto, o modelo de negócios que hoje predomina nessas plataformas e na web em geral envolve processos algorítmicos com a promessa e a capacidade de agir sobre os comportamentos enquanto eles acontecem, de modo a intervir sobre o próximo passo – cliques, curtidas, visualizações e interações com este ou aquele conteúdo, compartilhamentos etc. Nossas condutas online são assim constantemente antecipadas, implicando um sequestro, no nível cotidiano, do nosso campo de ação possível, colocado a serviço da produção de mais e mais engajamento (Bruno, 2020, p. 262).

Assim como para a autora, também nos parece que o confisco do comum e o sequestro do futuro andam juntos na rede. Imerso em uma realidade filtrada a partir de si próprio, o usuário perde de vista um mundo polissêmico, diverso; sem isso, ou seja, sem contrapontos à realidade personalizada com que se habitua, encerra-se numa única e inercial versão de si mesmo – a metamorfose existencial e identitária tende a ser interditada. Nesse sentido, quase que ponto por ponto, essas decorrências digitais se opõem à suspensão e à profanação.

Quanto à suspensão, é necessário não perder de vista que ela depende de uma desativação daquilo que se é. O estudante, ao adentrar a skholé, interrompe por um certo período aquilo que o define fora da escola e, nesse intervalo fomentador da indeterminação, pode experienciar-se outro, pode fazer aquilo que não lhe seria próprio, pode "sair de seu lugar", experiência esta completamente distinta ao sequestro do futuro. Por outro lado, tampouco é possível pensar em profanação quando o comum é confiscado: profanar, afinal, tem a ver com tornar algo disponível, aberto aos sentidos construídos em grupo, coletivamente. Num mundo personalizado, no entanto, não há "desprivatização", não há a desapropriação de algo em relação, neste caso, aos sentidos com que o próprio "eu" o define. Novamente, é importante lembrar que não pensamos que a profanação e a suspensão tenham começado a enfrentar ataques agora – os próprios autores dos termos argumentam que é justamente pelo que implicam que a escola vem sendo atacada desde sua criação. Parece-nos incontornável, no entanto, notar que as condições do mundo virtual contemporâneo talvez acentuem uma certa "subjetividade algorítmica" – retomando aqui a linha de reflexões de Corea (2004) e de Sibilia (2014) – que, a seu modo, representa desafios específicos ao fazer escolar. E é a respeito de linhas de enfrentamento desses desafios que trataremos a seguir.

Em defesa do ensino

Inspirados pelos procedimentos reflexivos de Masschelein e Simons, pretendemos sugerir respostas a esses desafios as quais também sejam capazes de radicalizar, de ir às raízes, não para prescrever o que uma suposta essência teria a impor, mas para fazer ver o que talvez tenha se banalizado ao longo do tempo mas que vale a pena recuperar. Esses autores recorreram ao retorno às palavras, aos sentidos primeiros, para lidar com problemas que eram os que eles diagnosticavam, o que eles viam como tentativas de "domar" a escola. O que nos inquieta é diferente, mas, como temos tentado demonstrar, também lança questões ao fazer escolar que não nos parecem negligenciáveis.

Nesse sentido, apesar do que talvez seja sugerido pelo título do artigo e, especificamente, desta seção, o interesse que nos anima aqui não é marcar uma posição na disputa entre didáticas mais centradas nos processos singulares de cada aluno e outras mais preocupadas com a transmissão de certos saberes consolidados ao longo da História. Diversos trabalhos já contribuíram e ainda contribuem para essa discussão, aliás: Cordeiro (2002), por exemplo, elabora o debate de maneira bastante consistente e indica seus pontos cegos; numa linha argumentativa parecida, há também os esforços de Georges Snyders (1974) para pensar uma "pedagogia progressiva" que supere essa aparente oposição entre as pedagogias vistas como novas e focadas na "aprendizagem" e aquelas chamadas de tradicionais e focadas no "ensino". De nossa parte, então, o que está em jogo é refletir sobre o ensino a partir de sua etimologia e, disso, pensar sobre o que esse ato traz de potente para a escola contemporânea.

A respeito das raízes etimológicas de "ensinar", Luis Castello e Claudia Mársico escrevem o seguinte:

‘Ensinar’ vem de insignare, literalmente ‘colocar um signo’, ‘colocar um exemplo’. A base do termo é a raiz indo-europeia *sekw, cujo significado é ‘seguir’, de modo que signum, o principal formador de insignare, remete ao sentido de ‘sinal’, ‘signo’, ‘marca’ que é preciso seguir para alcançar algo. O ‘signo’ é, então, ‘o que se segue’, e ‘ensinar’ é colocar sinais para que os outros possam orientar-se. (Castello; Mársico, 2007, p. 39).

A primeira inferência que nos parece inevitável da definição acima é a de que, se ensinar é "colocar signos", ele não é um fazer que tem a ver com a mera apresentação de um mundo inequívoco, definido de uma vez por todas e autoevidente para qualquer um que o encontre. O mundo de que trata o ensino é o mundo humano, construído a partir dos símbolos humanos. Seu sentido, assim, não é um dado inapelável, mas uma convenção.

Nem sempre, é verdade, o percebemos: habituados a uma única versão da realidade – seja pelo costume, seja pelas assimetrias de poder, seja pelo ensimesmamento algorítmico – talvez esqueçamos de que ela é tão-somente uma possibilidade dentre outras, uma contingência. Em outras palavras, o mundo como o vemos e como o apresentamos em nossas salas de aula a nossos alunos poderia ser outro se fossem outros os atravessamentos que caracterizassem nossa maneira de apreendê-lo.

Decorre também daí, em segundo lugar, que perceber o mundo simbólico é algo que só ocorre em meio a uma comunidade. A um hipotético ser-humano que jamais tivesse tido contato com outros seres-humanos, afinal, não seria necessário criar símbolos para comunicar, ou seja, para tornar comum, aquilo que experienciasse. Os símbolos, assim, sugerem sempre uma disposição, uma abertura, um movimento de retirada daquilo que está privado em um único sujeito e de compartilhamento. Algo é suprimido dessa indisponibilidade ensimesmada e é colocado em jogo, é aberto para outras perspectivas, para outros sentidos.

Nesse processo, parece-nos, não são só as coisas do mundo que voltam a se abrir. O próprio sujeito, ao lidar com elas nesses termos, talvez se desencerre. O mundo é vasto, afinal, e plural, múltiplo, dissonante. Assim também é o "eu". Experimentar um mundo como devir, como vir a ser, é, em alguma medida, também perceber-se não fixado, é perceber-se distinto de uma identidade plenamente administrada. A suspensão dos sentidos do real, então, torna-se convite para a bifurcação, para um destino a se abrir não como a realização de ideais externos, mas como construção. O futuro, enquanto invenção decorrente do experienciar-se outro, é resgatado.

Essas três inferências que realizamos aqui a partir da etimologia de "ensinar" não visam à constituição de uma metodologia para o enfrentamento da subjetividade algorítmica de nossos alunos e alunas. Elas funcionam, imaginamos, mais como uma lembrança a partir da qual nos parece possível construir uma postura docente, uma decisão acerca daquilo que importa em sala de aula. Imersos na correria e na burocracia do dia a dia, talvez, ao longo dos anos, também percamos de vista que aquilo que colocamos sobre nossas lousas são signos, são símbolos, são modos de construir o real, e não o próprio real. Sem percebê-lo, no entanto, talvez pouco tenhamos a oferecer a estudantes habituados justamente a essa unidimensionalidade fora da escola: os algoritmos, afinal, ao entregarem na tela dos celulares um mundo personalizado e encerrado em si mesmo, são, a seu modo, a experiência da dimensão única, da interdição das metamorfoses, da repetição aparentemente inelutável. Mas a escola não precisa ser também assim. Aliás, se o é, não é skholé. Não sendo, porém, talvez já não possa ser coisa alguma.

Nesse sentido, ainda que trabalhoso, o movimento de voltarmo-nos aos saberes e a como sabemos os saberes de que tratamos é fundamental. Levar algo para a sala de aula sob a justificativa de que "o currículo pede", de que "cai no vestibular", de que "será útil no futuro", de que "era assim que os meus professores faziam", de que "todos fazem assim", de que é preciso aprender "porque é assim que as coisas são" é algo que, acreditamos, não funciona mais – não que, aliás, algum dia tenha funcionado. Sobretudo hoje, no entanto, essas justificativas buscadas em algum absoluto implicam desvincular aquilo que se faz da história, do processo múltiplo e errático que nos constitui a nós, docentes, e aos próprios conteúdos. Sem esse tipo de lastro, não é possível oferecer aos estudantes uma experiência diferente daquela que eles já encontram nas redes. Se o intuito é que os alunos possam não ser aquilo que se lhes apresenta como inevitável, é importante que nós mesmos, enquanto docentes, sejamos capazes de nos exercitarmos contra nós mesmos: por que fazemos da forma como fazemos? Por que cuidamos de determinados conteúdos e os levamos a nossas salas de aula e não fazemos o mesmo com outros? O que eles dizem, não em abstrato, a qualquer um, mas a nós, enquanto indivíduos singulares?

Responder continuamente a questões como essas, parece-nos, é fundamental para não perdermos de vista que aquilo que ensinamos e os modos como o fazemos poderiam ser outros — e isso não tem como intuito mudar o que fazemos, mas sim não nos deixar esquecer de que é com signos que lidamos, e não com o inequívoco.

Por outro lado, parece necessário também – se realmente quisermos fazer frente à identificação quase inapelável produzida algoritmicamente – abrirmos mão de controles pretensamente totais sobre os fazeres discentes. É preciso, em alguma medida, abrir nossas aulas a uma experiência do "comum". Devido aos prazos e às metas, àquilo que sabemos que será cobrado nas avaliações (muitas vezes elaboradas em contextos completamente alheios à nossa própria sala de aula), não é raro que busquemos formas de eliminar o acaso, o imprevisível. Não fazemos perguntas para não perder tempo; se as fazemos, antecipamos respostas, às vezes até imitando a voz de um aluno imaginário; mutilamos os textos, os vídeos e, além disso, fixamos seus sentidos. O saber, nesses casos, está privatizado, está num lugar sacro no qual as mãos dos alunos não podem tocá-los – e, portanto, no qual tampouco as mentes e os corações desses alunos podem ser por esses saberes tocados. Se o mundo não se abre, o eu se fecha, encerra-se em si, permanece aquilo que já é fora da escola.

É por isso que insistimos aqui na importância do "ensinar" – não numa perspectiva metodológica específica, mas num sentido, de certa maneira, epistemológico. Colocar signos sobre o mundo, marcá-lo de uma maneira e não de outra, disputar essas marcações e não perder de vista de onde elas vêm, de onde elas nos vêm, é o que caracteriza um modo humano de habitar o real, e, porque humano, aberto, inconcluso, errático. Porque ainda humano, ainda convidativo a desvios em relação ao trajeto inercial de um "eu" detectado e capturado algoritmicamente; convidativo, talvez, à percepção de um mundo comum, múltiplo. Porque humano, profano, já que não se trata mais daquilo restrito aos deuses – sejam eles os tradicionais, sejam eles as Big Techs contemporâneas – e a suas decisões sobre o que cabe a cada um de nós. E, porque profano, enfim, capaz de acolher a suspensão e a bifurcação.

Considerações Finais

Este artigo procurou especular sobre um possível choque: o da subjetividade condicionada pelo funcionamento algorítmico das redes comunicacionais contemporâneas com a possibilidade relativa à Escola de acolher o inacabamento subjetivo e o comum. Além disso, ocupamo-nos também, num exercício reflexivo, do que a etimologia do verbo "ensinar" nos oferece de potente para, de dentro das salas de aula, fazermos frente à unidimensio-nalidade digital.

Nesse sentido, o artigo se organizou em três momentos diferentes. Começamos recorrendo às noções de "suspensão" e de "profanação" apresentadas por Masschelein e Simons (2014b) como características do que é o "escolar". Nossa intenção, com isso, era pensar a escola como um espaço possivelmente organizável em torno do acolhimento e do incentivo a que crianças e jovens possam experimentar-se em papéis distintos daqueles que, social e domesticamente, costumam ser deles esperados. Ademais, essas noções propostas pelos autores nos permitiram também pensar a instituição escolar como um lugar do "comum": saberes, objetos e reflexões que, fora dela, talvez fiquem restritos, sacralizados, podem ser explorados com segurança e liberdade em seu interior.

Essas características, por contraste, nos levaram, num segundo momento, a duas expressões forjadas pela comunicóloga Fernanda Bruno para caracterizar efeitos dos algoritmos digitais: o "sequestro do futuro" e o "confisco do comum". A partir de um não exaustivo trabalho de revisão bibliográfica, desenvolvemos os modos de operação dos filtros virtuais, os quais se organizam, por um lado, pela personalização do mundo experimentado pelo usuário e, por outro, pela formação de perfis que, a fim de atender ao sistema de negócios em que se baseiam as plataformas digitais, buscam prever e condicionar as performances individuais.

Desse choque, chegamos, enfim, à defesa do ensinar. A partir da etimologia do termo, a qual remete a in-signare, a "colocar signos", realizamos um esforço de pensamento buscando nas inferências que fizemos dessa etimologia encontrar linhas de ação para professores interessados em fazer frente à subjetividade algorítmica produzida nas redes. Tomá-las a sério, parece-nos, não é de pouca importância no contexto em que vivemos: não são raras, afinal, as ameaças que a Democracia vem enfrentando com a circulação de fake-news e com os acirramentos das bolhas ideológicas, por exemplo – fenômenos bastante ligados aos regimes de funcionamento na esfera virtual. O desafio, no entanto, tampouco nos parece impossível, mas, para enfrentá-lo, parece-nos incontornável que nós, como professores, de dentro de nossas salas de aula, ousemos fazer uso de uma tecnologia revolucionária: o ensino.

É no que carrega em seu próprio bojo o gesto de ensinar que nos parece residir a possibilidade de inferir uma educação capaz de fazer frente ao funcionamento algorítmico. Ensinar é colocar signos, símbolos, sobre o mundo; o mundo que se ensina, portanto, não é um mundo inequívoco, mas um mundo humanamente significado, humanamente construído. Um símbolo, todavia, só emerge como necessário quando há uma disposição ao outro — alguém que vivesse completamente e desde sempre apartado do mundo humano não precisaria comunicar coisa alguma a ninguém, afinal. Ensinar, então, é reconhecer a capacidade inventiva e dispor-se ao outro, ao inventar junto. É reconhecer a polissemia daquilo que existe e, de alguma forma, ser capaz de escolher e de se responsabilizar por aquilo que se leva para dentro de sala de aula. É reivindicar o partilhado, porque é só nele que pode haver signos e símbolos; é apostar que o que está dado — e que quem está dado — não é definitivo, mas está aberto a questionamentos e problematizações. É recuperar o futuro enquanto invenção; é recuperar o comum enquanto condição.

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Recebido: 16 de Setembro de 2023; Aceito: 13 de Novembro de 2023

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