Considerações Iniciais
O crescimento sistemático da relação dos atores internacionais e os Estados- nação na política global de educação tem gerado novas estruturas de governança da educação e ocupa os novos arranjos do Estado neoliberal (FREITAS, 2018; BALL; JUNEMANN, 2012; AVELAR, 2018; CARVALHO; VISEU, 2018) sob os rótulos e slogans (EVANGELISTA, 2014) de cooperação, que, para a educação infantil, buscam desenhar políticas públicas capazes de impulsionar o desenvolvimento econômico e promover a equidade.
Presencia-se na sociedade mundializada, e intensificadamente a partir da Declaração dos Direitos Humanos (ONU, 1948), a ativação das relações inter-relacionais entre países, sujeitos, instituições governamentais e não-governamentais, de direito público e privado, à organização da policy advocacy, ou, políticas e práticas de aconselhamento como um instrumento para a articulação para defesa de uma causa sob a perspectiva de objetivos e interesses diversos (LIBARDONI, 2000).
Nesse sentido, o estudo aqui apresentado trata do tema da educational global advocacy, que visa criar e disseminar práticas de aconselhamento e influência aos países inseridos na rede de governança global educacional. No caso da educação infantil, as práticas de advocacy e cooperação internacional inauguram-se, nos pactos e acordos multilaterais, com a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, de 1924; a Declaração sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1959; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966 (art. 10).
O debate universal sobre a infância se intensifica por meio da Convenção dos Direitos da Criança, realizada em 20 de novembro de 1989 pelas Nações Unidas, em Nova York, que consagrou um conjunto de direitos próprios e inalienáveis das crianças, oficializado no ano seguinte como lei internacional. A Convenção teve como meta incentivar os países membros a implementarem processos de desenvolvimento pleno e harmônico da personalidade de suas crianças, favorecendo o seu crescimento no ambiente familiar em clima de felicidade, amor e compreensão, preparando-as plenamente para viverem em sociedade e serem educadas no espírito dos ideais proclamados na Carta das Nações Unidas, em espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade (UNICEF, 1989).
Em 1990, quando países de todo o mundo se reuniram em Jomtien para referendar o compromisso global Educação para Todos, firmando o preceito de ‘educação ao longo da vida’, a educação das crianças pequenas tem sido foco de atenções (UNESCO, 1996).
A constância cada vez mais crescente e influente de atores como Organizações Transnacionais na coordenação de práticas comuns à educação e a educação infantil demonstra as mudanças ocorridas na maneira de atuar da sociedade, seja nas ações colaborativas, cooperativas ou de aconselhamento. Através da advocacy, organizações diversas engajam a sociedade civil, Estados, empresas, organizações com ou sem fins de lucro, em torno de uma causa e a mobilizam com o objetivo de influenciar aqueles que possuem poder para decidir acerca de políticas públicas de interesse amplo.
Desse modo, a fim de compreender tais fenômenos educativos e contribuir para as discussões relacionadas, o presente texto busca analisar as políticas de advocacy para a educação infantil latino-americana no âmbito dos organismos multilaterais, protagonizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a Organização dos Estados Americanos (OEA), que, nos últimos anos, vem incentivando países membros da região a criar e a replicar a exemplo das práticas exitosas.
Nesse sentido indagamos: quais são as ações de advocacy dos organismos internacionais, ligadas intimamente aos temas da educação e da infância, e quais suas proposições em incentivar a criação e replicação de práticas exitosas? Quais práticas exitosas para a educação infantil vêm sendo incentivadas nessas políticas de advocacy?
A pesquisa tem abordagem qualitativa e foi realizada a partir de um estudo bibliográfico e documental. A seleção das fontes baseou-se nos seguintes critérios: que o tema tratasse de documentos que enfatizassem práticas exitosas para a educação infantil; e, tendo sido publicados entre a última década do século XX e a primeira década do século XXI, o que favorece a comparação com as recomendações internacionais e políticas incorporadas pelos países.
O estudo é apresentado em dois momentos: a primeira apreende de forma conceitual a education global advocacy e as significações legais sobre advocacy; No segundo, analisa-se como tais práticas de advocacy vem influenciando países latino- americanos na disseminação de práticas exitosas e quais são as intencionalidades das mesmas. Por fim, tecemos as considerações e reflexões finais.
1. Práticas e políticas de advocacy: conceitos, atores e o seu lugar na política educacional global
Historicamente, as práticas de advocacy resultam do fortalecimento da ação política, visando à transformação social e ao avanço da democracia. Contudo, difere de princípios de participação cidadã. Na advocacy, o poder é um elemento essencial, e sabe- se que os níveis de poder e influência frente ao aconselhamento e tomadas de decisão variam nas relações sociais e políticas. Além disso, seu surgimento advém das novas formas de governança nas empresas, nas administrações e nas organizações internacionais ou transnacionais (BENAMOUZIG; BORRAZ, 2021).
A advocacy ou a policy advocacy compreendem a defesa de políticas públicas, as quais podem ser realizadas perante os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público, da mídia (tradicional e mídias sociais), dos formadores de opinião e a sociedade em geral (BRELÁZ, 2007; LIBARDONI, 2000).
De forma ampla, Libardoni (2000) conceitua que a advocacy pertence ao campo das políticas públicas, como um instrumento para articulação para defesa de uma causa sob a perspectiva dos objetivos e interesses coletivos.
[...] advocacy tem um significado mais amplo, denotando iniciativas de incidência ou pressão política, de promoção e defesa de uma causa e/ou interesse, e de articulações mobilizadas por organizações da sociedade civil com o objetivo de dar maior visibilidade a determinadas temáticas ou questões no debate público e influenciar políticas visando à transformação da sociedade (LIBARDONI, 2000, p. 02).
Constitui-se como um termo polissêmico, que reflete diferentes concepções sobre a política e o poder. Pode ser composto, por exemplo, por um lobby de especialistas em defesa do interesse público para colocar na agenda política as questões dos seus grupos de interesse, ou, ainda, por um processo participatório de alguns nas decisões tendo por resultado não apenas a capacidade de influenciar os tomadores de decisões, mas também de conseguir entrar na arena política. Para isso necessitam organizar-se, mobilizar-se e ter influência na entrada no lobby político para exercer o poder na formação da agenda política3 (CALMON, COSTA, 2007; SECCHI, 2013).
Uma ação de advocacy exige uma estratégia forte e dinâmica com definição precisa dos objetivos e resultados que se pretende alcançar com essa iniciativa. O planejamento e articulação política envolvem três partes: a definição dos objetivos e metas, determinando os resultados que deverão ser alcançados; o desenho de uma estratégia, traçando os tipos de ações que deverão ser realizadas; e a elaboração de um plano de ação, detalhando as atividades bem como quando e por quem essas serão realizadas (UNESCO, 1997). De forma muito semelhante a outros planejamentos estratégicos, a advocacy, nesse contexto, diferencia-se por agregar variados sujeitos, sejam eles ligados diretamente à administração pública ou não.
Nesse sentido, a education global advocacy muito se relaciona com uma agenda globalmente estruturada para a educação (AGEE) e uma Cultura Educacional Mundial Comum (CEMC), conceituada por Dale (2001;2004), influenciando ações, organizando redes de compartilhamento de opiniões, estudos e práticas, e criando uma rede voltada ao aconselhamento do que tornar prioridade em determinadas regiões do mundo. Para esse estudo, destacamos as ações globais de advocacy na área da educação, especificamente da educação infantil, pelas agências internacionais, que desempenham um papel fundamental de levar a mensagem da cultura mundial (BORTOT, 2018).
Os princípios, as normas, as regras e os procedimentos da cultura da política mundial global, em que os Estados-nação atribuem, desta forma, certa eficiência causal às organizações no que diz respeito às convergências de práticas nacionais. Consequentemente, os Organismos Multilaterais têm um papel de veiculação da CEMC. Compreende-se, a partir de Dale (2001), que a AGEE se traduz no como é que os Estado interpretam e respondem à agenda comum que a CEMC estabelece. A AGEE, assim, procura mostrar-se como uma força supranacional que afeta as políticas educativas nacionais.
Percebendo a dinâmica posta pelos organismos supranacionais, Dale (2004) nos alerta, acerca da AGEE, para a necessidade de observarmos como é que os Estados “interpretam e respondem a uma agenda comum”. Segundo ele, tal análise deverá levar em conta que “a forma, a substância e o estatuto dos guiões se alteram qualitativamente”. Nesse sentido, a educação das crianças pequenas tem sido objeto de orientações de diferentes organismos internacionais atuantes na América Latina, que extrapolam muitas vezes o âmbito da assistência técnica, dedicando-se também à execução direta ou ao apoio financeiro a programas implementados por agências governamentais ou não-governamentais.
Nesse sentido, a atuação dos Organismos e Agências Internacionais na advocacy compõe o movimento da transnacionalização da sociedade civil acerca da influência da sociedade civil vis-à-vis o Estado contemporâneo em uma era de globalização. Logo, a education global advocacy integra redes transnacionais, coalizões e campanhas de defesa e movimentos sociais, que envolvem, respectivamente, contatos transnacionais formais e informais, táticas coordenadas e a mobilização de um grande número de pessoas em protesto (KHAGRAM; RIKER; SIKKINK, 2002).
As políticas de advocacy para a educação nesse cenário, portanto, envolvem a construção e disseminação da Política Educacional Global (PEG) (VERGER, 2019). Concentram-se no estabelecimento das agendas de educação global e na mobilização, na tradução e na recontextualização dessas agendas em múltiplas escalas de governança, com ênfase em práticas consideradas exitosas (BALL, 2012; VERGER, 2019; DALE, 2004; ROBERTSON, 2012).
Keck e Sikkink (1998) resumem os objetivos que os atores internacionais buscam nas suas ações de aconselhamento: colocar um assunto na agenda internacional, internacionalizar atores para mudar suas posições discursivas e procedimentos institucionais, e para influenciar a mudança de política e o comportamento. Souza Junior (2016) enfatiza cinco conjecturas acerca da atuação do multilateralismo:
1) são um importante palco de contato e negociação entre Estados e com cada vez mais espaço para a pressão de atores não estatais; 2) são origem de produção de conhecimento e de dados utilizados por diversos atores para o desenho de políticas, pesquisas e posicionamentos políticos; 3) são arenas de “fricção” entre Estados (principalmente os fortes) e posições contramajoritárias de outros atores; 4) são chance de representação de Estados mais fracos e emergentes; 5) são atores decisivos no contexto de “sociedade global”, uma vez que possuem atuação em diversos temas, ganhando relevância, assim como uma série de atores privados (SOUZA JÚNIOR, 2016, p. 254).
Para tanto, no cenário globalizado, os sujeitos internacionais tem contínua convivência global, se relacionando e compartilhando interesses comuns e recíprocos por meio da cooperação com regulamentação, a exemplo dos tratados e acordos internacionais dos países signatários da ONU. Os Governos, denominados de receptores, podem não desejar o conteúdo dos acordos, mas se sentem obrigados a aceitar para que possam receber outros benefícios (SHIROMA, 2020) pois são signatários da agenda de decisões político-educativas transnacionais (KRAWCZYK, 2019). Tais mediações e materialização de práticas demonstram, dentro da correlação de forças e consensos possíveis, uma arena que avança dentro de uma perspectiva da governança, que impulsiona a constituição de redes de influências (COSSIO, 2015; SHIROMA, 2020), permitindo enquadramentos, interesses e objetivos múltiplos e, logo, incorporação da pauta internacional para governos locais.
Após conceituar e compreender o papel dos atores globais, personificados pelos Organismos Multilaterais, parte-se do pressuposto de que, por um lado, é importante analisar as concepções que alicerçam os documentos de política; por outro, também, é essencial o desvelamento de importantes espaços técnico-políticos cujas influências nem sempre estão claramente explicitadas. Nesse sentido, na próxima unidade do texto, investigaremos a influência das agências internacionais em práticas de advocacy.
2. As práticas de advocacy para a educação infantil latino-americana: a ênfase em práticas exitosas pelas organizações multilaterais
Objetiva-se nesta unidade do estudo analisar a influência das agências internacionais, pela mediação via documentos de advocacy, ou seja, de aconselhamento aos processos de definição e de implementação de políticas educacionais para a educação infantil de êxito para a América Latina.
A agenda internacional de ações para a educação e a infância ganhou notoriedade a partir da Convenção dos Direitos das Crianças (1989) e da Cúpula Mundial em Favor da Infância (1990), que são marcos para os acordos com os países para a criação de políticas e programas destinados à educação infantil, inclusive para aqueles centrados na veiculação de estratégias para o alívio da pobreza. O desencadeamento de várias reuniões e desenvolvimento de diversas ações e programas foram baseadas nas evidências das condições impróprias de vida de grande parte das crianças na atualidade. Variados acordos e convenções foram divulgados e acordados com os países membros. O quadro 1 demonstra tal afirmação e assinalamos o protagonismo da Unesco.
Ano | Autor | Documento |
---|---|---|
1959 | ONU | Declaração Universal dos Direitos das Crianças |
1989 | Unicef | Convenção sobre os Direitos das Crianças |
1990 | UNESCO | Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem |
2000 | UNESCO | The Dakar Framework for Action |
2002 | UNESCO; OCDE | Educação e Cuidado na Primeira Infância: grandes desafios |
2002 | ONU | Um mundo para as crianças: Relatório do Comitê Ad Hoc Pleno da vigésima sétima sessão especial da Assembleia Geral (ONU) |
2004a | UNESCO;OREALC | Participación de las familias en la Educación Infantil Latinoamericana |
2004b | UNESCO;OREALC | Síntesis regional de indicadores de la primera infancia |
2007 | UNESCO | Bases sólidas: educação e cuidados na primeira infância – Relatório Conciso |
2010 | UNESCO | Conferência Mundial sobre Educação e Cuidado na Primeira Infância: Marco de Ação e de Cooperação de Moscou; aproveitar a riqueza das Nações |
2013 | UNESCO | Projeto de aceleração do quadro EPT para o “salto decisivo”: iniciativa para a EPT: 2013-2015 |
2014a | UNESCO | BRICS Construir a educação para o futuro |
2014b | UNESCO | Prioridades para o desenvolvimento nacional e a cooperação internacional |
2014c | UNESCO | Ensinar e Aprender: alcançar a qualidade para todos –Relatório Conciso |
2014d | UNESCO | 2014-2021 Medium-Term Strategy |
2015a | UNESCO | Declaração de Incheon - Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade, inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos |
Fonte: Bortot e Lara (2019).
Tal agenda envolve recomendações aos países signatários da Organizações das Nações Unidas (ONU), cercados pelas disputas econômicas e políticas da geopolítica internacional e dos processos multilaterais. Percebe-se que, de um lado, há um discurso social e político sobre a infância de direitos, ao passo que, de outro, percebem-se práticas sociais relacionadas com as crianças que não garantem seus direitos fundamentais.
Bortot e Lara (2019) analisam os discursos presentes nos documentos e acordos internacionais e assinalam que, para a educação infantil, seu conteúdo se direciona no seguinte sentido:
Tendencialmente, os documentos que discutem o direito, a educação e o cuidado para a primeira infância no início do século XXI, apresentam a articulação entre os termos educação e cuidado para consolidar para esta etapa os compromissos de uma Educação para Todos (EPT), firmada em 1990. Ainda, observamos que há um ponto de convergência [...]: a sua suposta capacidade em reduzir as diferenças, trazendo retornos econômicos futuros às crianças e investir na infância ao entendê-la como investimento em capital humano (BORTOT; LARA, 2019, p. 1772).
Além dos acordos e conferências presentes na figura 1, as agências internacionais vinculadas a ONU, protagonizadas pela própria ONU, Unesco e Unicef, produziram alguns documentos de estudo que incentivam o compartilhamento de boas práticas e práticas exitosas. Dois especialmente enfatizam tal conceito para a educação infantil latino-americana, atuando como sujeitos de advocacy internacional e, portanto, agentes de aconselhamento aos países.
As práticas de aconselhamento imbricam-se, em sua maioria, com estudos de avaliação de programas de atenção integral à infância (ALVARADO, 1996; UNESCO, 2002; 2004a; 2004b).
No final do século XX, Alvarado (1996), em Conferência ao V Simpósio Latino- Americano de Atenção à Criança de 0 a 6 anos, promovido pela Organização dos Estados Americanos (OEA)4, em 1996, salientou a importância de ações sistematizadas de compartilhamento de experiências e projetos na região:
Sistematização de Experiências e Estados da Prática: são estudos dirigidos, fundamentalmente, por um lado, à identificação de processos de ação, treinamento, monitoramento, administração, etc., de metodologias de intervenção, de determinados componentes de um projeto, etc.; e, por outro, à construção de modelos de intervenção, a partir de experiências bem-sucedidas realizadas em diversos países latino-americanos. Metodologicamente, na sistematização, o conceitual é articulado ao prático pelos atores de uma experiência, por meio de processos de reflexão. No estado de prática, o conhecimento útil derivado da experiência cotidiana é extraído a fim de torná-lo comunicável a outras pessoas que trabalham naquele campo específico (ALVARADO, 1996, p. 46, tradução livre. Grifo nosso).
Destes, alguns critérios de seleção foram indicados para que pudessem ser categorizados como exitosos para ampla divulgação:
Experiências que atenderam população menor de 6 anos; programas de ampla cobertura; programas de âmbito nacional ou regional e programas bem- sucedidos e relevantes em nível local com possibilidade de replicação em contexto macro; programas que atendem à população de alto risco (extrema pobreza, abandono, crianças trabalhadoras e de rua, deficientes, minorias comunitárias etc.); o problema que deu origem ao programa é uma resposta ao próprio contexto; representatividade da experiência formal e não formal; programas nos quais já houve avaliação; com o envolvimento dos pais e da comunidade; com áreas de ênfase em educação, saúde, nutrição e desenvolvimento integral (ALVARADO, 1996, p. 47, tradução livre. Grifo nosso).
Ainda, segundo Alvarado (1996), interessava que os países realizassem uma ampla atuação estadual por meio de Planos Nacionais, programas presidenciais e/ou dos Ministérios da Saúde, Educação, Família, Assistência Social e Trabalho. Ainda, como forma de provimento e execução desses programas formais e não-formais de base intersetorial, necessitava-se da “coparticipação de ONGs [o que] representa não só a oportunidade de apoio financeiro para os programas, mas também a possibilidade de troca de experiências e materiais e assessoria técnica” (ALVARADO, 1996, p. 47). As ONGs surgem no discurso dos documentos como expressão inegável da nova realidade institucional que orientava e orienta os Organismos Multilaterais na América Latina a partir da globalização, caracterizada pela autora supracitada como alternativa às políticas do Estado e das instituições formais da sociedade (ALVARADO, 1996).
No intuito de divulgar as experiências de êxito, a Unesco/Orealc divulgou dois relatórios na direção das práticas aconselhadas pela OEA e seus consultores, enfatizando dois eixos: o não-formal, com a coparticipação de sujeitos públicos e privados, e o intersetorial, com base parental.
O documento Partipación de las Famílias em la Educación Infantil Latinoamericana foi publicado pela Unesco/Orealc em 2004 (UNESCO/OREALC, 2004a). O documento se coloca como um projeto orientador de práticas com vistas a identificar os ministérios e organizações que trabalham na educação e no apoio para os pais responsáveis, analisar e sistematizar políticas e programas educacionais na participação, educação familiar e apoio para os pais e divulgar informações e experiências sobre a participação, educação e apoio aos pais.
Já o documento Síntesis Regional de indicadores de la primera infancia, também da Unesco/Orealc, em 2004 divulgou práticas a partir de estudos de caso na Bolívia, Chile, Colômbia e México (OREALC/UNESCO, 2004b), a fim de produzir um documento sobre tendências e casos bem-sucedidos com base em diferentes fontes de informação regional. Não se visou analisar os números e o método de cálculo dos indicadores existentes, mas sim tomá-los como exemplos da criação de orientações comuns aos países latino-americanos para a educação infantil.
Cabe salientar que o atendimento da educação infantil na América Latina é diverso. O quadro 2 apresenta um detalhamento de sua organização.
País | IDADE | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
0 | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | ||
Argentina | NOME ORIGINAL | Jardín Maternal | Jardín de Infantes | |||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Bolívia | NOME ORIGINAL | Comunitaria no escolarizada | Escola comunitaria | |||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Brasil | NOME ORIGINAL | Creche | Pré-escola | |||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Chile | NOME ORIGINAL | Parvularia | Transición 1 | Transición 2 | ||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Colômbia | NOME ORIGINAL | Educação pré- escolar | ||||||
Pre- jardín | Jardín | Transición | ||||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Costa Rica | NOME ORIGINAL | Educação pré-escolar | ||||||
OBRIGATÓRIO | Não | Obrigatório | ||||||
Cuba | NOME ORIGINAL | Educação pré-escolar | ||||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | |||||||
Equador | NOME ORIGINAL | Infantes 1 | Infantes 2 | Preparatoria | ||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
El Salvador | NOME ORIGINAL | Inicial | Parvularia | |||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Guatemala | NOME ORIGINAL | Inicial | Prebásica | |||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Honduras | NOME ORIGINAL | Inicial | Prébásica | |||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
México | NOME ORIGINAL | Inicial | Pré-escolar | |||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Nicarágua | NOME ORIGINAL | Inicial | ||||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Panamá | NOME ORIGINAL | Inicial | Pré-escolar | |||||
Paraguai | NOME ORIGINAL | Inicial | Pré-escolar | |||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Peru | NOME ORIGINAL | Inicial no escolarizada | Inicial escolarizada | |||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Rep. Dominicana | NOME ORIGINAL | Prekinder | Kinder | Preprimaria | ||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Uruguai | NOME ORIGINAL | Ed. na primeira infância | Pré-escolar | |||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório | ||||||
Venezuela | NOME ORIGINAL | Maternal | Pré-escolar | |||||
OBRIGATÓRIO | Não obrigatório | Obrigatório |
Fonte: Bortot (2020).
Em síntese, a modalidade de atendimento não obrigatória, frequentemente anterior a 3 ou 4 anos, possui base comunitária e, como anteriormente citado, não tem compromisso constitucional com o atendimento formal desde o seu nascimento. Nesse sentido, a advocacy promovida pelos Organismos Multilaterais se configura em alternativas práticas e viáveis no atendimento da infância de 0 a 5/6 anos, e não propriamente da educação infantil formal, combinando variadas modalidades de atendimento, com o compartilhamento de responsabilidades daqueles mais pobres.
Destaca-se o debate sobre saúde, nutrição e primeira infância, enfatizando aqueles mais vulnerabilizados, em programas como no México e Chile como modelo a ser seguido. A educação, na primeira infância, é tida como importante oportunidade para se assegurar melhores resultados na educação posterior, tendo em vista que uma experiência educativa bem-sucedida nos primeiros anos ocasiona importantes benefícios sociais, educativos e econômicos no futuro (OREALC/UNESCO, 2004b).
A Unesco/Orealc (2004a; 2004b) aconselha aos ministérios de educação e aos especialistas que atuam em cada país incluir componentes de participação, articulação, educação familiar, ou ambos, nos programas de Educação Infantil e Educação Básica, dados os benefícios fornecidos para os adultos, meninos e meninas; avançar na geração de estratégias, metodologias, atividades e recursos didáticos apropriados para o trabalho com pais e mães, e com as famílias como ator social; avançar na geração de materiais educativos específicos para a participação de mães e pais e da educação familiar, considerando o ciclo de vida e não somente a primeira infância.
Orienta como experiências exitosas e boas práticas a serem seguidas para a região, enfatizadas como experiências inovadoras aquelas que envolvem: a formação de pais; os programas para docentes sobre o trabalho com os pais; a formação de mães da comunidade para que executem programas de atenção às crianças; programas que envolvam saúde, nutrição e educação, mas que tenham ênfase na nutrição e que sejam oferecidos com a coparticipação de instituições não-governamentais.
Nos relatórios de aconselhamento anteriormente citados constatou-se o quão se faz necessário ampliar os cuidados e atenção à primeira infância, concluindo que esse nível educacional constitui oportunidade para se assegurar melhores resultados em escolaridade posterior, de forma que a experiência educativa nos primeiros anos de vida possibilite importantes benefícios sociais, educativos e econômicos.
Outra prática exitosa destacada é a dos programas não-formais intersetoriais, com a flexibilização na divisão de tarefas entre o público e privado na gestão dos sistemas educativos. Dividem em duas categorias a oferta da educação infantil: aos níveis considerados formais, obrigatórios, ficam sob a responsabilidade público-estatal, o que se expressa nos elevados indicadores de matrículas das crianças de 4 a 5 anos nas unidades públicas; já, ao contrário, a modalidade não-formal, dirigida na maioria dos países às crianças de 0 a 3 anos, tem-se uma formação compósita, dependendo majoritariamente de convênios ou parcerias entre a esfera pública e a privada, notadamente com as chamadas organizações sociais e conveniamentos.
Por meio dos documentos ora analisados ao aconselhamento, enfatizam eles as práticas de êxito na América Latina para a educação infantil, que reproduzem uma dinâmica de alívio da pobreza e de compartilhamento de tarefas, distante de modalidades educacionais formais de ampliação do direito a essa etapa educacional, sobretudo de zero a três anos. Apreendemos, no caso da Unesco em ação, operando como laboratório de ideias, de geração de consenso e fixação de padrões, agindo como um fórum central disseminador para a região latino-americana e de princípios e orientações gerais para a educação.
Considerações Finais
O estudo aqui apresentado evidencia a intensa influência das agências internacionais ligadas à ONU, com protagonismo da Unesco e também da OEA, no ditame de tendências de práticas de aconselhamento influenciando nos processos de definição e de implementação de políticas educacionais para a educação infantil de êxito para a América Latina, tendencialmente, o não-formal com a coparticipação de sujeitos públicos e privados e o intersetorial com base parental, ligadas à gestão da pobreza na região por meio da infância e suas famílias, em contraste com a expansão da educação emancipatória para a etapa analisada.
As agências internacionais buscaram desenvolver, por meio dos acordos e relatórios de advocacy aos países da América Latina: (1) definição da agenda - identificando um problema de interesse internacional e produção de informação; (2) soluções de desenvolvimento da agenda - criando normas ou recomendando mudanças de políticas; (3) construir redes e coalizões de aliados; e (4) implementação de soluções - empregando táticas de persuasão e pressão para mudar a prática de serviços e/ou incentivar o cumprimento das normas.
Os Organismos Multilaterais gozam de autoridade moral, fator primordial na influência de práticas de advocacy transnacionais. Na educação em geral e na educação infantil, a agenda global vem orientando a inspiração em programas legitimados como bem-sucedidos. Para além das recomendações, asseveramos o papel central dos Organismos enquanto agentes que desempenham ação fundamental de levar a mensagem da cultura econômica hegemônica via práticas de advocacy. Os princípios, as normas, as regras e os procedimentos da cultura da política mundial global fazem com que os Estados-nação atribuam, desta forma, certa eficiência causal às organizações no que diz respeito à convergência de práticas nacionais.
Observa-se uma pauta de orientações e recomendações para a educação infantil nos países da América Latina com vistas a promover ‘boas práticas’, por meio de ações intersetoriais, bem como o intercâmbio em políticas e programas de participação, educação familiar e apoio para os pais àquelas crianças que se encontram em áreas mais vulneráveis e extremamente pobres entre os países.
Exercer o aconselhamento faz dos Organismos Multilaterais comunidades epistêmicas para influenciar decisões políticas com a reciprocidade difusa5, além de legitimar autoridade racional-legal e controle sobre conhecimento técnico e informativo, que são duas fontes de poder.
Dessa forma, busca-se criar relativos consensos e/ou consensos possíveis entre os países, no sentido de uma integração de práticas para a infância, que, na verdade, almejam disseminar critérios e procedimentos de regulação e análises simbólicas que as justifiquem.