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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.78 Uberlândia set./dez 2022  Epub 29-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n78a2022-66295 

Dossiê "Educação, produção de subjetividade e cuidado de si: a atualidade de 'A hermenêutica do sujeito'"

Recusando o momento cartesiano: como equipar-se em psicologia e educação?

Refusing the Cartesian model: How to equip oneself in psychology and education?

Rechazar el modelo cartesiano: ¿Cómo equiparse en psicología y educación?

Rosimeri de Oliveira Dias* 
lattes: 4701136188544538; http://orcid.org/0000-0001-9250-1010

Heliana de Barros Conde Rodrigues** 
lattes: 0551266336066458; http://orcid.org/0000-0002-4687-3646

*Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Associada e Procientista da Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo e do Programa de Pós-Graduação em Educação Processos Formativos e Desigualdades Socais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: rosimeri.dias@uol.com.br

**Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). É Professora Associada e Procientista do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: helianaconde@uol.com.br


Resumo

O artigo parte do problema apontado por Michel Foucault na primeira aula do curso A Hermenêutica do sujeito, datada de 6/01/1982, a saber: o que se passa com o ser do sujeito em sua relação com a verdade? Para desenvolver tal indagação, o filósofo analisa, entre outros aspectos, saberes e práticas característicos da espiritualidade no período de ouro do cuidado de si (séculos I e II). Além de acompanhá-lo em parte desse percurso, pretendemos, com nosso texto, pôr em cena as inflexões que ele implica tanto para o campo da psicologia como para o da formação de professores. Em ambos, é comum que emerjam polêmicas quanto às teorias a adotar como base para uma intervenção mais eficaz ou, preferencialmente, mais crítica. A diferenciação clássica entre ciências naturais e ciências humanas jamais se ausenta desse debate. O presente artigo adota caminho distinto, pois buscamos um modo de arrancar de nossas entranhas o momento cartesiano, arriscando-nos a adotar posturas antipsicologistas e eventualmente antiepistemológicas. Melhor dizendo, indagamos: como, na psicologia e na educação, a constituição de si por si mesmo pode se transformar em uma ética metodológica (ou metodologia ética) de trabalho?

Palavras-chave: Cuidado de si; Espiritualidade; Momento cartesiano; Psicologia; Educação

Abstract

The present article starts from the problem pointed out by Michel Foucault in the first class of the course The Hermeneutics of the subjetict, dated 6/01/1982, namely: what happens to the being of the subject in its relation to truth? In order to develop this question, the philosopher analyzes, among other aspects, knowledge and practices characteristic of spirituality in the golden period of the care of the self (1st and 2nd centuries). Besides accompanying him in part, we intend, with our text, to put into scene the inflections that implies both for the field of psychology and for the field of teacher’s training. In both fields, it is common for polemics to emerge regarding the theories to be adopted as a basis for a more effective or, preferably, more critical intervention. The differentiation classic between natural sciences and human sciences is never absent from this debate. The present article adopts a different path, for seek a way to pull the Cartesian moment out of our guts, risking to adopt anti-psychological and eventually anti-epistemological postures. Better saying, we inquire how, in psychology and education, the constitution of the self for its own sake can become a methodological ethics (or ethical methodology) of work?

Key-words: Self-care; Spirituality; Cartesian moment; Psychology; Education

Resúmen

El artículo parte del problema señalado por Michel Foucault en la primera clase do curso La Hermenéutica del sujeto, realizada el 6/01/1982, a saber: ¿qué sucede con el ser del sujeto en su relación con la verdad? Para desarrollar esta cuestión, el filósofo analiza, entre otros aspectos, los conocimientos y las prácticas propias de la espiritualidad en el período de oro del cuidado del yo (siglos I y II). Además de acompañarlo en parte em el camino, nuestro texto pretende destacar las inflexiones que él implica tanto para el campo de la psicología como para el de la formación de maestros. En ambos, es común que surjan controversias en cuanto a las teorías que deben adoptarse como base para una intervención más eficaz o, preferiblemente, más crítica. La diferenciación clásica entre ciencias naturales y ciencias humanas nunca está ausente de este debate. El presente artículo adopta un camino diferente, ya que buscamos una forma de arrancar de dentro, el momento cartesiano, arriesgándonos a adoptar posturas antipsicológicas y, eventualmente antiepistemológicas. Mejor dicho, indagamos ¿cómo, en psicología y educación, la constitución del yo por sí mismo puede convertirse en una ética metodológica (o metodología ética) del trabajo?

Palabras clave: Cuidado de Si; Espiritualidad; Momento Cartesiano; Psicología; Educación

Introdução: o sujeito e a verdade

Por ocasião dos 40 anos do curso A hermenêutica do sujeito, ministrado em 1982 no Collège de France, parece interessante seguir problematizando, continuar indagando: o que ainda há a dizer sobre/com esse curso/livro? Por que, nos dias de hoje, nos reunimos para debatê-lo, por mais que já lido, relido, comentado, discutido e analisado por inúmeros estudiosos do pensamento de Foucault? (ALLOUCH, 2014; FRANCISCO, 2010; GROS, 2003, 2004; MUCHAIL, 2011, entre outros). Para manter a problematização, em lugar de oferecer alguma solução final - sabemos bem o que tal expressão implica -, decidimos, no presente artigo, partir da indagação formulada na segunda aula, datada de 6 de janeiro de 1982, momento em que Foucault ressalta que não devemos esquecer que a psicanálise e o marxismo, de certa forma, dão continuidade a questões presentes em uma antiga tradição, que remonta à filosofia grega, por ele chamada de “espiritualidade”. Cuidadoso com as palavras, adverte que não se trata de relacionar a psicanálise e/ou o marxismo à religião, pois a noção de espiritualidade deve ser tomada em um sentido bastante específico:

O problema a respeito do que se passa com o ser do sujeito (do que deve ser o ser do sujeito para que ele tenha acesso à verdade) e a consequente questão acerca do que pode ser transformado no sujeito pelo fato de ter acesso à verdade, estas duas questões repito, absolutamente características da espiritualidade, serão por nós reencontrdas no cerne mesmo destes saberes ou, em todo caso, de ponta a ponta em ambos. De modo algum afirmo que são formas de espiritualidade. O que quero dizer é que nestas formas de saber reencontramos as questões, as interrogações, as exigências que, a meu ver [...], são as muito velhas e fundamentais questões da epiméleia heautoû e, portanto, da espiritualidade como condição de acesso à verdade. (FOUCAULT, 2004, p. 39-40)

Vale lembrar que Foucault logo adiciona ressalvas à sua própria hipótese - a de que psicanálise e marxismo teriam feito proliferar o ponto de vista de ser a epiméleia heautoû condição de acesso à verdade -, acrescentando:

[...] nem uma nem outra destas duas formas de saber levou muito explicitamente em consideração, de maneira clara e corajosa, este ponto de vista. Tentou-se mascarar estas condições de espiritualidade próprias a tais formas de saber no interior de certas formas sociais. A ideia de uma posição de classe, de efeito de partido, o pertencimento a um grupo, a uma escola, a iniciação, a formação do analista, etc., tudo nos remete às questões da condição de formação do sujeito para o acesso à verdade, pensadas porém em termos sociais, em termos de organização. Não são pensadas no recorte histórico da existência da espiritualidade e de suas exigências. (FOUCAULT, 2004, p. 40)

É muito frequente, em Michel Foucault, a referência a um “preço a pagar” por decisões, práticas e discursos - talvez isso constitua, inclusive, juntamente com a categoria intensificação, uma dimensão econômica de seu pensamento (NEALON, 2008). No caso em pauta, o manuscrito do curso de 1982, transcrito em parte na publicação de A hermenêutica do sujeito, frisa que o preço pago por prescindir de um pensamento teórico sobre a relação verdade-sujeito teria sido, no caso da psicanálise, “um positivismo, um psicologismo” (FOUCAULT, 2004, p. 40). E incluindo o marxismo na análise, embora de modo menos extenso do que a psicanálise, Foucault (2004) assevera:

[...] o preço para transportar, para remeter as questões “verdade e sujeito” a problemas de pertencimento (a um grupo, uma escola, um partido, uma classe, etc.) foi, bem entendido, o esquecimento da questão das relações entre verdade e sujeito. [...] Creio que Lacan foi o único depois de Freud a querer recentralizar a questão da psicanálise precisamente nesta questão da relação entre sujeito e verdade. [...] Em termos do próprio saber analítico, ele tentou colocar a questão que, historicamente, é propriamente espiritual: a questão do preço que o sujeito tem a pagar para dizer o verdadeiro e a questão do efeito que tem sobre o sujeito o fato de que ele disse, de que pode dizer e disse, a verdade sobre si próprio. (FOUCAULT, 2004, p. 40)

Em nossa perspectiva, trata-se de uma questão que percorre todo o curso A hermenêutica do sujeito e que, por essa razão, tomamos como foco do presente artigo - sem a pretensão de resolvê-la, como tampouco o pretendeu Foucault. Porém ele a formula de uma maneira que faculta entender por que motivo esse curso prossegue chamando nossa atenção no presente. E embora volte a fazer referência direta à psicanálise, avaliamos que sua interrogação possa ser generalizada a vários outros campos de saber e prática:

[...] é possível, nos próprios termos da psicanálise, isto é, dos efeitos de conhecimento portanto, colocar a questão das relações do sujeito com a verdade, que - do ponto de vista, pelo menos, da espiritualidade e da epiméleia heautoû - não pode por definição ser colocada nos próprios termos do conhecimento? (FOUCAULT, 2004, p. 41)

Essa pergunta será por nós reativada ao longo do artigo, embora dirigida não à psicanálise e/ou ao marxismo, ao menos em suas especificidades teórico-institucionais, mas aos campos da psicologia e da formação de professores.

Antes disso, no entanto, cumpre acompanhar Foucault ao longo da exposição realizada na primeira hora da aula de seis de janeiro de 1982, quando o filósofo ressalta que a noção de cuidado de si, epiméleia heautoû, constitui um fenômeno de conjunto na cultura helenística e romana - um “acontecimento no pensamento” (FOUCAULT, 2004, p. 13), em suma. A epiméleia heautoû é uma atitude geral (um modo de estar no mundo, de se relacionar com o outro), uma forma de atenção, de olhar (que é conduzido do exterior, dos outros, do mundo, a si, sem que isso implique necessariamente um “interior”) e, talvez principalmente, um conjunto de ações “exercidas de si para consigo”, pelas quais “nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos” (FOUCAULT, 2004, p. 15). Essas ações ocorrem por meio de exercícios, as práticas de si, cujo destino na espiritualidade ocidental, segundo Foucault, será bem longo: técnicas de meditação, de memorização do passado, de exame de consciência, de verificação das representações na medida em que se apresentam ao espírito etc. Com a noção de epiméleia heautoû, portanto, temos:

[...] todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das noções ou das teorias, mas na própria história da subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas da subjetividade (FOUCAULT, 2004, p. 15).

Dito isso, Foucault toma como hipótese de trabalho para ministrar o curso a evolução milenar (do século V a.C. ao século V d.C., aproximadamente) do cuidado de si, que se estende das primeiras formas de atitude filosófica surgidas entre os gregos até os primórdios do ascetismo cristão. Com isso, ele nos convida a uma forma outra de pensar a história da Filosofia, que, se hoje já não surpreende tanto, obteve tal aceitação em decorrência de seu próprio trabalho, apoiado parcialmente na obra de Pierre Hadot.

Vale lembrar, nesse sentido, a “franco-maçonaria da erudição inútil” (FOUCAULT, 2002, p. 7) citada no curso de 1976, Em defesa da sociedade. Por meio de tal expressão, Foucault se refere a textos desconsiderados, nunca efetivamente lidos, que, acoplados ao “saber das pessoas”, igualmente incapaz de unanimidade, constituiriam a genealogia conforme ele a concebe e pratica. Com efeito, no caso do cuidado de si, não é que inexistam menções à prática e a seus saberes. Trata-se, isso sim, de um privilegiamento quase exclusivo, por parte dos historiadores da filosofia, do gnôthi seautón, do conhece-te a ti mesmo.

As razões pelas quais o cuidado de si foi sendo progressivamente desconsiderado e lançado a uma espécie de penumbra são pouco a pouco trazidas à cena por Foucault. Em primeiro lugar, ele começou a ser visto como uma forma de egoísmo - concepção marcada pelo cristianismo e bem distinta do modo como era compreendido na Antiguidade. Nesse mesmo diapasão, ao reaparecer, tanto na moral cristã como na moderna, o cuidado de si emerge como uma forma de renúncia a si, novamente em evidente contraste com a visão antiga. Porém a principal razão para seu quase desaparecimento nas histórias da filosofia mais difundidas, que, por sinal, configuram o modo como se costuma entender o desenvolvimento histórico do pensamento, remete ao que Foucault denomina, com muitas aspas e cuidados, “momento cartesiano”.

A despeito de aspas e ressalvas, o momento cartesiano requalificou filosoficamente o gnôthi seautón, ao passo que, em contrapartida, desqualificou a epiméleia heautoû. A requalificação, como se vê nitidamente nas Meditações de Descartes, ocorre porque a evidência - “tal como aparece, [...] tal como efetivamente se dá à consciência, sem qualquer dúvida possível” (FOUCAULT, 2004, p. 18) - é instaurada no ponto de partida do procedimento filosófico, o que remete ao conhecimento de si como forma de consciência. A isso se soma a evidência da existência do sujeito no princípio do acesso ao ser; melhor dizendo, postula-se a indubitabilidade dessa existência como sujeito (Cogito), ou o “conhece-te a ti mesmo” como acesso fundamental à verdade.

Mais importante para Foucault do que essa requalificação, por Descartes, do gnôthi seautón socrático, em que pesem as diferenças entre os dois filósofos, é a correlata desqualificação do princípio do cuidado de si, a ponto de que este se veja praticamente excluído do pensamento moderno. Nesse momento do curso, Foucault decide “tomar alguma distância” do que é chamado de filosofia a fim de diferenciá-la da “espiritualidade”. Por filosofia, designa a forma de pensamento que procura determinar “o que permite ao sujeito ter acesso à verdade”, ou seja, “as condições e os limites” desse acesso (FOUCAULT, 2004, p. 19). Sendo assim, Foucault nos convida a denominar espiritualidade “o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência etc” que constituem, para o ser mesmo do sujeito (e não para o conhecimento), “o preço a pagar para ter acesso à verdade” (FOUCAULT, 2004, p. 19).

Ao menos na forma como aparece no Ocidente, a espiritualidade, para Foucault, tem três características. Em primeiro lugar, ela postula que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito, ou melhor, que a verdade não é dada ao sujeito por um simples ato de conhecimento: ao contrário, não pode haver verdade sem uma conversão ou uma transformação do sujeito. Em segundo lugar, essa conversão ou transformação pode se dar sob diferentes formas: em uma abordagem que Foucault reconhece como esquemática, pode assumir a forma de um movimento que arranca o sujeito de seu status e de sua situação atual (éros), ou ocorrer mediante um trabalho de si para consigo, em que “se é o próprio responsável por um longo labor que é o da ascese (áskesis)” (FOUCAULT, 2004, p. 20). Finalmente, a espiritualidade supõe que o acesso à verdade, quando aberto - via éros ou áskesis -, produz efeitos que, além de decorrerem do procedimento efetuado para atingi-la, são também efeitos “de retorno” sobre o sujeito. Não como recompensa atribuída a um ato de conhecimento, mas iluminando o sujeito, dando-lhe beatitude, conferindo-lhe tranquilidade de alma, completando o ser do sujeito. Vale frisar que não se trata de uma simples transformação do indivíduo, mas “do próprio sujeito no seu ser de sujeito” (FOUCAULT, 2004, p. 21).

Após essa breve exploração do tema da espiritualidade, regressemos ao momento cartesiano, armadas com um novo olhar. Sem a necessidade de ver em Descartes o inventor da concepção de que aquilo que dá acesso à verdade é tão somente o conhecimento - muitos outros o disseram antes dele e/ou próximos a ele -, podemos seguir Foucault na caracterização da idade moderna da história da verdade: ela começa no momento em que aquele que busca a verdade - filósofo, sábio, simples pensador -, “sem que mais nada lhe seja solicitado, sem que seu ser de sujeito deva ser modificado ou alterado, é capaz [...] unicamente por seus atos de conhecimento, de reconhecer a verdade e a ela ter acesso” (FOUCAULT, 2004, p. 22).

Isso não exclui, evidentemente, toda e qualquer condição para o acesso à verdade; mas as que permanecem necessárias não concernem à espiritualidade, pois provém do interior do próprio conhecimento. Há, nesse caso, as condições internas do ato de conhecimento e as regras a serem seguidas nesse ato; melhor dizendo, respectivamente, as regras formais do método e a estrutura do objeto a conhecer. Há ainda as condições extrínsecas, entre as quais, retomando um tema importante de História da Loucura, a de que “não se pode conhecer a verdade quando se é louco” (FOUCAULT, 2004, p. 23). Somam-se condições culturais: para ter acesso à verdade é preciso ter certa formação, realizar determinados estudos, partilhar um consenso científico. E, ainda, condições morais: conhecer a verdade demanda esforço, não tentar enganar os pares, ajustar de forma aceitável os interesses (financeiros ou de carreira) às normas da pesquisa dita desinteressada.

Todas essas condições, extrínsecas ao ser sujeito (logo, individuais), mas intrínsecas ao conhecimento, mostram que, como anteriormente aludido, o momento cartesiano marca o início de uma outra era da história das relações entre verdade e subjetividade. Nas palavras de Foucault (2004):

Aquele ponto de iluminação, aquele ponto de completude, aquele momento da transfiguração do sujeito pelo “efeito de retorno” da verdade que ele conhece sobre si mesmo, e que transita, atravessa, transfigura seu ser, nada disto pode mais existir. [...] O conhecimento se abrirá simplesmente para a dimensão indefinida de um progresso cujo fim não se conhece e cujo benefício só será convertido, no curso da história, em acúmulo instituído de conhecimento ou em benefícios psicológicos e sociais que, no fim das contas, é tudo o que se consegue da verdade, quando foi tão difícil buscá-la. Tal como doravante ela é, a verdade não será capaz de salvar o sujeito. (FOUCAULT, 2004, p. 23-24)

A conclusão da aula retoma, de forma perturbadora, as relações entre verdade e subjetividade, mediante uma comparação entre filosofia moderna e espiritualidade:

Se definirmos a espiritualidade como o gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é, não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar e salvar o sujeito, diremos então que a idade moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito (FOUCAULT, 2004, p. 24).

Com seu esforço genealógico, no curso A hermenêutica do sujeito, Foucault nos faz divisar a necessidade de ocupar-se consigo como uma urgência. Para tanto, explicita os múltiplos jogos entre conhecimento e cuidado, sujeito e poder, cuidado e saber, subjetividade e verdade. Na mesma linha, em uma conversa datada de abril de 1983, quando desenvolvia uma série de sessões de trabalho com Dreyfus e Rabinow, em Berkeley, o filósofo voltou a se referir ao momento cartesiano para abordar a distância entre o si clássico e o sujeito moderno:

O elo entre o acesso à verdade e o trabalho de elaboração de si por si é essencial no pensamento antigo e no pensamento estético. Penso que Descartes rompeu com isso, dizendo: “Para chegar à verdade, basta que eu seja qualquer sujeito capaz de ver o que é evidente”. A evidência substitui a ascese no ponto de junção entre a relação consigo e a relação com os outros, a relação com o mundo. [...], Mas é preciso observar que isso somente foi possível para o próprio Descartes ao custo de um comportamento que foi o das Meditações, durante o qual ele constituiu uma relação de si para consigo, qualificando-o como podendo ser sujeito de conhecimento verdadeiro sob a forma da evidência (sob reserva de que ele excluía a possibilidade de ser louco). Um acesso à verdade sem condição “ascética”, sem certo trabalho de si sobre si, é uma ideia que estava mais ou menos excluída das culturas precedentes (FOUCAULT, 2014a, p. 236).

Talvez resida igualmente no caráter de urgência diagnosticado por Foucault o nosso propósito com o presente artigo: não queremos naturalizar ou ser coniventes com o sombreamento do cuidado de si ao longo da história e pensamos, em especial, que tal cuidado possa fazer uma diferença tanto no que tange aos saberes e práticas psi quanto nas estratégias de formação de professores.

Os saberes da espiritualidade

Avancemos um pouco mais nas aulas de A hermenêutica do sujeito. Aquela ministrada em dez de fevereiro de 1982 começa pela ampliação do tema do cuidado de si, a ponto de este desembocar no que pode ser dito uma cultura de si, no período helenístico-romano. Abordada de forma mais precisa, a ampliação se manifesta por meio de duas desvinculações ocorridas com as práticas de si: desvinculação em relação à pedagogia e desvinculação em relação à atividade política.

No período helenístico-romano, o cuidado de si deixa de ser simplesmente um preceito complementar (ou substitutivo) da pedagogia preexistente, imposto somente no momento em que o jovem vai entrar na vida adulta e restrito àqueles que, por seu estatuto, têm a possibilidade de governar os demais, para tornar-se uma injunção válida para todos e para todo o desenrolar da existência. Agora coextensivo à vida, esse cuidado de si que se desvinculou da pedagogia se expressa, ademais, em um entrelaçamento com uma rede de relações sociais diversas - organizações escolares, ação de conselheiros privados, relações de proteção, amizade etc.

A desvinculação da atividade política, por sua vez, pode ser apreendida no afastamento do cuidado de si do caráter instrumental que, até certo momento - figurado pelo diálogo platônico Alcibíades -, o cercara. Estar atento a si tinha como objetivo, anteriormente, o ocupar-se bem da cidade; agora, no entanto, é preciso ocupar-se consigo “de maneira que a relação com os outros seja deduzida, implicada na relação que se estabelece de si para consigo” (FOUCAULT, 2004, p. 254).

Caso correlacionemos as duas desvinculações, emerge a seguinte imagem: “[...] é preciso, durante toda a vida, voltar a atenção, os olhos, o espírito, o ser por inteiro enfim, na direção de nós mesmos” (FOUCAULT, 2004, p. 254). Trata-se, portanto, de uma conversão a si. Mais do que uma noção estrita, precisa, bem definida, a conversão constitui uma espécie de “esquema prático” que, entre as “tecnologias do eu” (FOUCAULT, 2004, p. 256) conhecidas pelo Ocidente, foi (e é) uma das mais importantes.

Nesse ponto, a aula convida a que nos voltemos para o presente. Porque Foucault (2004), sem deixar de mencionar a importância religiosa da conversão, nos adverte de seu relevo filosófico, moral e político:

Parece-me [...] que não se pode compreender o que foi, ao longo do século XIX, a prática revolucionária, o que foi o indivíduo revolucionário e o que foi para ele a experiência da revolução, se não se levar em conta a noção, o esquema fundamental da conversão à revolução. (FOUCAULT, 2004, p. 256)

Hoje quando tanto se fala em decepções com a política revolucionária e nas reativações de políticas fascistas, a proposta do filósofo soa provocadora, porque nos adverte do caráter inesgotável, e com frequência inesperado, das transformações nos modos de subjetivação. Mas Foucault também se aproxima, conquanto de forma matizada, de nossos receios atuais, ao acrescentar:

Seria preciso examinar também de que modo esta noção de conversão foi pouco a pouco sendo validada - depois absorvida, depois enxugada e enfim anulada - pela própria existência de um partido revolucionário. E de que modo passamos do pertencimento à revolução pelo esquema de conversão ao pertencimento à revolução pela adesão a um partido. (FOUCAULT, 2004, p. 257)

Com tal afirmação, o filósofo retorna, de certo modo, às considerações sobre o marxismo que mencionamos na seção anterior, quando lamentava que ideias como posição de classe, partido, pertencimento a um grupo etc., remetessem questões de subjetivação a condições meramente organizacionais, desvinculando-as da espiritualidade e de suas exigências. “Haveria aí toda uma história a ser feita”, diz ainda Foucault (2004, p. 257), com sutil ambiguidade: a história proposta não é somente, decerto, a da reconstrução erudita de sequências de acontecimentos pretéritos; aponta também para a importância da conversão na elaboração, no presente, de práticas de resistência ou contracondutas. Reaviva, ainda, toda uma genealogia do cuidado de si que se encontra hegemonicamente obscurecida.

A seguir, Foucault distingue a conversão helenístico-romana da epistrophé platônica, sendo esta última comandada por uma oposição entre este mundo - o das aparências - e o outro mundo - o das essências. No modo de conversão presente nas práticas de si helenístico-romanas, contudo, o retorno a si deve fazer-se na imanência do mundo: a única oposição que subsiste é a que contrapõe o que “não depende de nós” ao que “depende de nós” (FOUCAULT, 2004, p. 258). Nesse caso, a liberação a ser obtida remete a tudo aquilo que não dominamos, a fim de alcançar aquilo que podemos dominar. Em contraste nítido com a epistrophé platônica, não se trata de uma liberação da alma em relação ao corpo, mas de uma adequação de si para consigo. Outra diferença reside no papel menos importante desempenhado pelo conhecimento: “será o exercício, a prática, o treinamento, a áskesis, que constituirá o elemento essencial” (FOUCAULT, 2004, p. 259).

Encerrando a primeira hora da aula de dez de fevereiro de 1982, Foucault contrapõe a conversão helenístico-romana àquela que encontramos na cultura monástica dos séculos III e IV d.C. No primeiro caso, a conversão não implica ruptura, ao passo que, na cultura cristã, “o eu que se converte é um eu que renunciou a si mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 260). Se pudermos falar de alguma ruptura no caso da conversão helenístico-romana, será quanto a tudo aquilo que cerca o eu, pois, como afirma Foucault (2004, p. 261), citando Sêneca, “a filosofia faz com que o sujeito gire em torno de si mesmo, isto é, faz com que ele execute o gesto pelo qual, tradicional e juridicamente, o mestre liberta seu escravo”.

Como se percebe, começa a ter lugar de destaque, no curso de 1982, não somente a comparação entre a conversão helenística/romana (séc. I e II) e a conversão platônica - epistrophê - como também o contraste e/ou eventual aproximação entre cada uma delas e a conversão/metanóia cristã. Nessa linha argumentativa, estratégia comum em Foucault e mediante a qual são estabelecidas finas distinções entre formas de experiência, a conversão característica da epistrophê plantônica “implica um retorno da alma em direção à sua fonte, movimento pelo qual ela retorna à perfeição do ser” (FOUCAULT, 2004, p. 265), tendo o despertar como modelo e a anamnenesis como modo fundamental desse despertar. Na conversão cristã, por sua vez, trata-se de “uma reversão do espírito, de uma renovação radical e de uma espécie de re-procriação do sujeito por ele mesmo, tendo ao centro a morte e a ressurreição como experiência de si mesmo e de renúncia a si” (FOUCAULT, 2004, p. 261-262).

Já no epicurismo, no cinismo e no estoicismo dos séculos I e II, nenhum dos dois modelos ou esquemas parece adequado, o que leva Foucault a dar início ao detalhamento do que apelidará, ao longo do curso, “caminho do meio” - via divergente quanto à polaridade epistrophé/metánoia. Foucault a caracteriza inicialmente por meio da conversão do olhar. Mas embora a expressão “volver o olhar para si mesmo” possa imediatamente sugerir, a um desavisado, o imperativo “conhece-te a ti mesmo”, não é esse tipo de apelo socrático-platônico que está em pauta em Plutarco, Sêneca, Epicteto ou Marco Aurélio. Tampouco se trata de uma vigilância conforme a preconizada pela literatura monástica, que recomenda examinar todas as imagens e representações, a fim de decifrar eventuais vestígios de concupiscência, inclusive nas ideias aparentemente mais puras. Em suma, no “caminho do meio”, o eu a que se deve voltar o olhar nem é objeto de conhecimento (de estirpe platônica) nem foco de decifração de segredos da consciência (de tonalidade monástico-cristã). Consequentemente Foucault busca a pergunta pertinente: “de que deve o olhar desviar-se quando recebe a recomendação de volver-se para si?” E assim responde: “Volver o olhar para si, antes do mais, significa: desviá-lo dos outros. E, em seguida, desviá-lo das coisas do mundo” (FOUCAULT, 2004, p. 268).

Segue-se detalhada exposição que apela primordialmente a Plutarco para mostrar que o deslocamento do olhar dos outros para si jamais consiste em uma mudança de objeto de conhecimento, e, sim, em um “deslocamento da curiosidade”, que se afasta dos males e infortúnios dos outros e se aproxima dos segredos da natureza, dos relatos dos historiadores e do otium - termo latino para o espetáculo tranquilo e reconfortante experimentado na vida campestre (FOUCAULT, 2004, p. 270). Essa não será a última vez em que Foucault, ao longo do curso, procurará fazer com que nos afastemos de ideias preconcebidas sobre a espiritualidade helenístico-romana, ideias essas produzidas exatamente pela hegemonia filosófica dos caminhos platônico e cristão. Não nos estenderemos mais sobre o problema no momento, pois a ele retornaremos em breve. Mas sumariamos as conclusões parciais de Foucault recorrendo a suas palavras sobre os exercícios indispensáveis ao deslocamento do olhar e seus eventuais efeitos de subjetivação:

O que ele [Plutarco] opõe à curiosidade não seria um movimento do espírito ou da atenção pelo qual tentaríamos decifrar o que pode haver de mal em nós mesmos. Não se trata de decifrar as fraquezas, os defeitos, as faltas passadas. Se é necessário desvencilhar-se do olhar maldoso, malicioso, malevolente, sobre o outro, é para poder concentrar-se no caminho reto que se há de observar, que se há de manter, na direção da meta. É preciso concentrar-se em si mesmo. Não se trata de decifrar-se (FOUCAULT, 2004, p. 271).

Novamente emerge, nas palavras do filósofo, a inadequação que existe em considerar que o deslocamento do olhar - dos outros, do mundo, para si - redunde na constituição desse si como objeto, seja de análise seja de interpretação. Convoca-se, melhor dizendo, a uma “concentração teleológica” para a qual a melhor imagem seria a de tipo atlético: “preparação para a corrida, [...] preparação para a luta, no gesto com o qual o arqueiro lançará a flecha em direção ao alvo” - assevera Foucault (2004, p. 272), evocando os exercícios de arco e flecha tão importantes para os japoneses e focalizados com beleza e acuidade no livro de Eugen Herrigel A arte cavalheiresca do arqueiro zen (1983).

Ainda em dez de fevereiro de 1982, a segunda hora da aula dá seguimento ao debate sobre o tema da conversão por meio de novas indagações: “como se estabelece, como se fixa e se define a relação entre o dizer-verdadeiro (a veridição) e a prática do sujeito? [...] Como o dizer verdadeiro e o governar (a si mesmo e aos outros) se vinculam e se articulam um ao outro?” (FOUCAULT, 2004, p. 281). São questões - o próprio Foucault o diz - que ele procurara abordar em suas genealogias da loucura (e da doença mental), da delinquência (e das prisões), e mais recentemente da sexualidade. Porém, agora, o ponto de vista adotado é ligeiramente distinto dos anteriores, além de convocar períodos historicamente mais antigos. Foucault assim sumariza sua atual problematização:

É a questão do vínculo entre o saber das coisas e o retorno a si que vemos aparecer em certos textos da época helenística e romana dos quais gostaria de tratar, questão em torno daquele antigo tema que Sócrates já evocava no Fedro, ao perguntar se devemos escolher o conhecimento das árvores ou o conhecimento dos homens. E ele escolhia o conhecimento dos homens. (FOUCAULT, 2004, p. 282)

Aproximando-se da posição de Pierre Hadot (2014, p. 214), para quem a filosofia antiga é “transformação da maneira de ser e da maneira de viver”, Foucault (2004) interroga: poderíamos considerar o caráter assumido pelas escolas filosóficas do período helenístico-romano como um prenúncio da importância maior assumida pelos saberes sobre o homem quando comparados aos saberes sobre o mundo e a natureza? - pergunta relevante, decerto, para o debate contemporâneo relativo aos saberes necessários, ou mesmo imprescindíveis, para uma formação de caráter analítico-crítico tanto de psicólogos quanto de professores.

Para explorar esse problema, Foucault (2004) se volta inicialmente para a maneira como ele é colocado em um texto de Demetrius. Nesse escrito, o filósofo cínico põe em cena a imagem do atleta e efetua uma triagem relativa ao que seria necessário conhecer para sair-se bem em tal atividade - poucos movimentos, por sinal. Com isso, parece emergir um “critério de utilidade” para os conhecimentos imprescindíveis aos combates reais da vida, já que se tem a impressão de haver uma divisão nítida “entre conhecimentos inúteis, que poderiam ser os do mundo exterior, [...] e conhecimentos úteis, que tangenciam diretamente a existência humana” (FOUCAULT, 2004, p. 284).

Apreciemos mais de perto, contudo, o texto de Demetrius. Ele é composto por duas listas que remetem, respectivamente, ao que é inútil e ao que é útil conhecer. No primeiro caso,

temos a causa dos maremotos, a causa do ritmo dos sete anos que cadenciariam a vida humana, a causa das ilusões de ótica, o motivo de haver gêmeos e o paradoxo de duas existências diferentes e nascidas sob o mesmo signo, etc. (FOUCAULT, 2004, p. 285)

Foucault (2004) não percebe os conhecimentos incluídos nessa lista como relativos a coisas afastadas da existência humana. Modifica, então, sua hipótese inicial quanto ao que constituiria o caráter comum dos conhecimentos ditos inúteis por Demetrius:

O traço comum e que as tornará inúteis é que se trata [...] de conhecimentos pelas causas. [...]. Estão ocultas porque é inútil conhecê-las [...] não porque proibido, mas porque [...], ao conhecê-las não obteremos mais do que algo suplementar, [...], a título de distração e para sentir um prazer que reside, precisa e unicamente, na própria descoberta [...]. Prazer de cultura, por consequência, prazer suplementar, prazer inútil e ornamental [...]. (FOUCAULT, 2004, p. 286-287)

Para Demetrius, o ornamento, por mais que possa ser verdadeiro, não modifica o modo de ser do sujeito. O que seria efetivamente útil conhecer, então, segundo o filósofo cínico? Assim o resume Foucault (2004, p. 287): “Que há pouco a temer dos homens, nada a temer dos deuses, que a morte não produz nenhum mal, que é fácil achar o caminho da virtude, que é preciso considerar-se como um ser social nascido para a comunidade”.

Tal série em nada se assemelha ao que a espiritualidade cristã virá a chamar de “segredos da consciência” (arcana conscientiae). Não há inventário de um mundo de desejos e paixões, tampouco existe teoria da alma ou da natureza humana. Trata-se, “somente e sempre, do mundo, [...], dos outros, [...] do que nos cerca” (FOUCAULT, 2004, p. 287-288). Mas enquanto os conhecimentos inúteis seriam uma modalidade de saber “pelas causas”, os úteis seguiriam um modo de saber que Foucault propõe chamar de “relacional”: neles, o que se há de ter em conta “é a relação entre, por um lado, os deuses, os homens, o mundo, as coisas do mundo, e, por outro, nós” (FOUCAULT, 2004, p. 288).

Esse saber relacional tem a propriedade de ser imediatamente transcriptível em prescrições, daí seguir-se a afirmação foucaultiana de que tais conhecimentos constituem “constatações prescritivas”, em que “a maneira como se há de conhecer é tal que o que é dado como verdade seja lido, de saída e imediatamente, como preceito” (FOUCAULT, 2004, p. 288-289).

A hipótese inicial de que o conteúdo - saberes sobre o mundo ou saberes sobre o homem - seria o elemento definidor da inutilidade/utilidade dos conhecimentos é, assim, inteiramente descartada.

Os conhecimentos [...] inúteis [...] não se definem pelo conteúdo. Definem-se por um modo de conhecimento causal, com dupla propriedade, ou melhor, com dupla falta [...]: são conhecimentos que não podem transformar-se em prescrições, que não têm pertinência prescritiva; em segundo lugar, que, quando os possuímos, não têm efeito sobre o modo de ser do sujeito. Em contrapartida, será validado um modo de conhecimento que, considerando todas as coisas do mundo [...] relativamente a nós, de pronto poderemos transcrever em prescrições, e elas modificarão o que somos, modificarão o estado do sujeito que as conhece (FOUCAULT, 2004, p. 289).

Uma vez mais com apoio em Plutarco, Foucault (2004, p. 290) afirma ser determinante o caráter “etopoético”, ou não, do saber e, sem demora, passa à leitura de Epicuro, que, nas Sentenças Vaticanas, privilegia a noção de physiología (fisiologia):

O estudo da natureza (physiologia) não forma fanfarrões nem artistas do verbo, nem pessoas que ostentam uma cultura julgada inviável para as massas, mas homens altivos e independentes, que se orgulham de seus próprios bens, não dos que advêm das circunstâncias. (FOUCAULT, 2004, p. 291)

Tudo aquilo que a physiologia não é caracteriza a paideía (JAEGER, 2001), extremamente criticada por Epicuro: ela é mero saber de jactância, cuja única meta é “fazer-se admirar pelas massas” (FOUCAULT, 2004, p. 292). A physiologia, ao contrário, equipa (paraskeuázei) homens altivos que se dotam da coragem que lhes permite afrontar as crenças, os perigos da vida e as autoridades. Esses homens independentes (autarkeîs), ao reconhecerem a partilha entre o que depende e o que não depende de nós, estabelecem domínio absoluto no que tange ao primeiro aspecto.

Para todos aqueles que se voltam para o problema da relação entre sujeito e verdade na contemporaneidade, como não ver na distinção entre physiologia e paideía um equipamento (paraskeué) extremamente potente para avaliar o que efetivamente importa? Pois a paraskeué, enfatiza Foucault (2004), é

a equipagem, a preparação do sujeito e da alma pela qual o sujeito e a alma estarão armados como convém, de maneira necessária e suficiente, para todas as circunstâncias possíveis da vida com que viermos a nos deparar, [...] o que permitirá resistir a todos os movimentos que poderão advir do mundo exterior. (FOUCAULT, 2004, p. 293)

No momento em que a aula de dez de fevereiro de 1982 chega ao fim, Foucault de novo se refere a Epicuro, quando este, em outra Sentença Vaticana, usa a expressão “liberdade de palavra” (FOUCAULT, 2004, p. 294). A palavra grega correspondente é parresía, que, nesse enfoque por parte de Foucault - um dos primeiros - consiste em um termo técnico: essa técnica

permite ao mestre utilizar como convém, nas coisas verdadeiras que ele conhece, o que é útil, o que é eficaz para o trabalho de transformação de seu discípulo. [...] É aquela liberdade de jogo, se quisermos, que faz com que, no campo dos conhecimentos verdadeiros, possamos utilizar aquele que é pertinente para a transformação, a modificação, a melhora do sujeito (FOUCAULT, 2004, p. 295).

Para concluir esta seção do artigo, queremos nos deter um pouco mais nos saberes etopoéticos, haja vista que Foucault, como já assinalamos, privilegia, no curso em pauta, a relação entre os saberes - saberes sobre o mundo, saberes sobre o homem - e o retorno a si, forjando, assim, uma genealogia da ética. Os saberes etopoéticos se constituem tanto por meio do discurso filosófico (logos) como mediante as experiências dos sujeitos nos diferentes vínculos que estabelecem com os outros e com o mundo. As experiências da vida cotidiana são extremamente relevantes, por conseguinte, para a aquisição das verdades concernentes ao mundo, aos homens e ao divino. Decerto os saberes etopoéticos estão igualmente arraigados a argumentações teóricas que podem ser desenvolvidas por professores e registradas pelos estudantes, quando engajados, estes últimos, em compilar os diálogos entre os mestres. Todavia o ambiente institucional das escolas e o recurso aos movimentos puramente racionais da alma não bastam para a produção e incorporação das regras de conduta. Em outras palavras, a erudição e/ou a teorização não passam, como antecipamos, de ornamentos intelectuais quando destituídas da experiência imanente que relaciona circunstancialmente o tempo, o espaço e os outros.

Para os cínicos, estoicos e epicuristas, a filosofia, concebida como espiritualidade, seria imanente às práticas de vida, de tal maneira que resultaria desaconselhável tentar estabelecer uma linha que separasse a teorização acerca do mundo da existência ética. As análises de Foucault nos mostram que os objetivos dessas filosofias não consistiam em forjar uma pedagogização ideal, e, sim, em procurar dotar a alma de um equipamento de combate, de um equipamento crítico no que tange a si mesma e ao mundo. E é justamente essa paraskeué - equipagem ou equipamento - que produz sujeitos altivos e livres, difíceis de dominar, quiçá ingovernáveis, dotados de coragem para, insubmissos, enfrentar as crenças, os perigos da vida e as autoridades. Nessa direção, ressaltamos o que Foucault nos diz ao final da aula de dez de fevereiro de 1982:

O que é requisitado e em que deve consistir o saber validado e aceitável, para o sábio como para o discípulo, não é um saber que se reportasse a eles mesmos, não é um saber que capturasse a alma, que fizesse do eu o próprio objeto do conhecimento. É um saber que se reporta às coisas, ao mundo, aos deuses e aos homens, mas cujo efeito e função é modificar o ser do sujeito. É preciso que esta verdade afete o sujeito, e não que o sujeito se torne objeto de um discurso verdadeiro. É isto o que temos a compreender e é por isto que, nestas práticas de si [...] nada pode apresentar-se como preliminar ou como esboço do que será mais tarde a decifração da consciência por ela mesma e a auto-exegese do sujeito (FOUCAULT, 2004, p. 297).

Formação em psicologia, formação de professores

Na aula de 17 de fevereiro de 1982 do curso que vínhamos acompanhando, Foucault (2004, p. 306) se refere à intensidade e frequência com que temos nos referido à necessidade de construir uma “ética do eu”, sem, contudo, dar-lhe um conteúdo preciso. Ao menos em parte, essa impossibilidade aparenta decorrer, como chegamos a esboçar acima, do fato de o Ocidente ter conservado somente dois modelos para tal ética: o da epistrophé platônica - saída nihilista para nossas decepções, apontando para outro mundo, de perfeições - e o da exegese cristã - ininterrupta decifração, voltada a vasculhar a profundidade de uma alma invariavelmente sujeita a tentações, à qual se deverá renunciar (neste mundo) para alcançar a salvação (no outro).

Como vimos no início do presente artigo, além desses caminhos, resta-nos uma objetivação científico-tecnocrático-profissionalizada, cujos começos remetem a um “momento cartesiano” fundador de nossa modernidade, que cinde o plano epistemológico do plano ético: a partir desse acontecimento decisivo, o sujeito pode conhecer sem que, para tanto, seu próprio ser de sujeito precise ser transformado, haja vista que bastam, para atingir o conhecimento, as regras formais do método e determinadas qualificações pedagógico-culturais. “Tal como é, o sujeito é capaz de verdade” (FOUCAULT, 2004, p. 22-23) - máxima a arrancar de nossas entranhas, avaliamos, se aspiramos a modos de vida outros.

Quanto ao problema contemporâneo da formação, em que nós, que subscrevemos estas linhas, estamos há muito envolvidas - no campo da psicologia e da pedagogia -, quer os modelos hegemônicos de conversão a si (platônico e/ou cristão), quer a ausência de aspiração ética associada ao momento cartesiano, veiculam unicamente impasses. Não é difícil perceber que os dois esquemas que foram privilegiados ao longo da história das relações entre sujeito e verdade apontam a transcendências, correlacionáveis a guias, leis, mentores. Por outro lado, prescindir do cuidado de si implica, sem dúvida, aguardar pelo tecnocrata do momento, pronto a tudo solucionar à base das técnicas mais modernas ou de algum grau suplementar de “certificação” na hierarquia formativa.

Já aquele esquema que, como antecipamos, Foucault (2004, p. 314) apelida “modelo do meio”, ou melhor, o cuidado de si helenístico-romano, poderia associar-se a modos de formação que gostamos de dizer “inventiva” (DIAS, 2012; DIAS; RODRIGUES, 2020). Esses modos de formar apostam na construção de um equipamento (paraskeué) que, nas palavras do filósofo, nos faculte seja retornar a nós mesmos como porto seguro, seja - o que soa mais interessante - construir a nós mesmos durante toda a vida. A respeito dessa alternância entre retorno e construção, vale reler Foucault, que, sabiamente, prefere preservar o paradoxo a solucioná-lo: “O que significa retornar a si? Que círculo é esse, que circuito, que dobra é esta que devemos operar relativamente a algo que, contudo, não nos é dado, senão apenas prometido ao termo de nossa vida?” (FOUCAULT, 2004, p. 302).

Em meio às práticas e exercícios que compõem o “modelo do meio”, desaparecem os lamentos: há sempre algo a fazer, algo alegre, facultativo, porém sempre voltado a engendrar um modo de vida libertário. E o que seria esse modo de vida? Arriscamo-nos a dizer que seria aquele modo que vê, na artesania de constituir, hoje, uma ética do eu, “uma tarefa urgente, fundamental, politicamente indispensável, se for verdade que, afinal, não há outro ponto [...] de resistência ao poder político senão na relação de si para consigo” (FOUCAULT, 2004, p. 306).

Diferentemente da formação psi e da formação de professores que começamos a inventar no parágrafo anterior - via um programa vazio, como deveriam ser todos os programas -, é frequente que se tente solucionar impasses formativos por guinadas conteudísticas. Segundo Fréderic Gros (2004), o segundo e terceiro volumes da série História da sexualidade teriam tardado oito anos após a publicação do primeiro não exatamente, como tanto se alega, por uma “crise” de Foucault, cuja criação estaria bloqueada, e, sim, pela descoberta, na Antiguidade, da experiência do cuidado de si - nova problematização que mobiliza o filósofo e à qual ele não pode se dedicar com total liberdade em função de obrigações contratuais que o ligam à Gallimard e à série sobre sexualidade. Por esse motivo, os cursos dos anos 1980 são imprescindíveis para acompanhar as inflexões do pensamento foucaultiano; muito antes de seu aparecimento em livros, a genealogia da ética e a relevância contemporânea das práticas de si para a resistência ao poder obtêm, nesses cursos, lugar de realce.

Por que motivo a relação de si para consigo teria ganho, no pensamento foucaultiano, esse privilégio? A resposta a tal indagação pode ser encontrada, ao menos em parte, em um curso ministrado no Darmouth College, nos Estados Unidos, em 1980. Na primeira aula, Foucault reconstitui sua trajetória intelectual desde o pós-guerra, momento em que predominava, na Europa continental, a filosofia do sujeito. Depois de breve fascinação, devida sobretudo ao magistério de Merleau-Ponty, Foucault passa a atribuir a essa forma de filosofia duas insuficiências: a incapacidade para fundar uma filosofia relativa ao saber, sobretudo o científico; e a dificuldade em dar conta dos mecanismos formadores de significação. Tampouco o marxismo, outra tendência dominante na França do pós-guerra, teria alcançado sucesso nessas duas empreitadas e, entre as outras saídas possíveis - positivismo lógico, estruturalismo linguístico, antropológico e/ou psicanalítico -, Foucault renuncia a fazer uma escolha, digamos, pelo menos ruim. Tenta, outrossim, escapar à filosofia do sujeito por meio do estudo histórico da constituição do próprio sujeito. Nesse intuito, utiliza materiais idênticos aos dos historiadores (das ciências, das ideias, do pensamento), além de reconhecer sua dívida com Nietzsche, que, ao contrário da maioria dos filósofos - adeptos de um sujeito em recuo, de um sujeito sem história -, pôs em cena modos históricos de subjetivação.

Embora inegavelmente acurado, todo esse trabalho está exposto a riscos de incompreensão e/ou de apropriação, entre os quais o próprio Foucault acentua aqueles devidos à ênfase excessiva por ele colocada nas ações de alguns sobre os outros - as chamadas relações de poder -, pois estas seriam apenas um dos aspectos das artes de governar em nossas sociedades. O outro aspecto, também imprescindível, concerne às ações de si sobre si - as ditas relações éticas ou modos de subjetivação -, sempre correlacionadas com as anteriores. Para apreendê-las, enfatiza Foucault, devemos nos livrar do referencial freudiano “de interiorização da lei pelo sujeito”, porque: “Felizmente, de um ponto de vista teórico, e talvez infelizmente de um ponto de vista prático, as coisas são muito mais complicadas do que isso” (FOUCAULT, 2011, p. 156). Consequentemente, ele assim conclui: “Nos próximos anos eu gostaria de estudar o governo [...] a partir das técnicas de si” (FOUCAULT, 2011, p. 156).

Essas considerações foucaultianas nos encaminham a memórias relativas aos debates com os(as) alunos(as) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), universidade pública em que atuamos. Muitas vezes eles(as) nos disseram, em aulas de Psicologia Social ou de disciplinas voltadas às ciências sociais, que o lado exageradamente tolerante ou “bem comportado” das pessoas se deveria à “interiorização das normas pelos sujeitos”. Embora sem agressividade, por vezes perdemos a paciência e retrucamos que, sendo esse invariavelmente o caso, tornava-se inútil dedicar-se ao estudo dos modos (históricos) de subjetivação. Hoje, contando com as contribuições do chamado “último Foucault”, avaliamos que talvez não tenhamos sabido, à época desses desentendimentos amistosos, mobilizar o problema das relações a si e de sua necessária imbricação com certas tecnologias.

Inabilidade análoga talvez tenha ocorrido em situações outras, quando os(as) alunos(as) se queixavam das insuficiências da formação universitária, atribuindo-as a um corpus doutrinal frágil e/ou restrito, e portanto passíveis de ser sanadas por intermédio de conteúdos e/ou teorias outros. Atualmente presumimos que a apresentação de Foucault, no curso A hermenêutica do sujeito, relativa à utilidade dos saberes, com apoio em cínicos e epicuristas, poderia ter constituído um importante auxílio nesse momento. As considerações de Demetrius e Epicuro, que trouxemos à cena no presente artigo, favorecem descartar certos contrastes valorativos, bastante comuns nos cursos de Psicologia e de Pedagogia, entre ciências da natureza e do espírito (Dilthey), ciências explicativas e compreensivas (Droysen), ciências naturais e culturais (Rickert), ciências nomológicas e idiográficas (Windelbandt) etc. Para os filósofos do período helenístico-romano, como vimos, um conhecimento é útil menos por seu conteúdo - objeto a que ele se volta, seja o mundo, seja a natureza, seja o homem - do que por sua possibilidade, ou não, de transformar-se em prescrição; melhor dizendo, por sua possibilidade, ou não, de produzir um equipamento (paraskeué) para enfrentar as provas da existência; de dotar-nos, ou não, da coragem que permite afrontar as crenças, os perigos da vida e as autoridades com independência, exercendo domínio sobre o que depende de nós.

É a ética da verdade que se destaca nesses momentos do curso de 1982, levando a que os saberes sejam avaliados não como ornamentos cognitivos ou certificações pedagógico-culturais, mas na qualidade de armaduras, quiçá “metodológicas”, se entendermos método não como “conduta conduzida”, mas como possibilidade de insurgência, de desobediência, de enfrentamento - como anarqueologia, em suma, para usar o termo cunhado por Foucault (2014b) ao longo do curso Do governo dos vivos, em 1980. Como vimos, paraskeuázein significa “preparar para”, portanto “formar”, e pode sempre distanciar-se de nihilismos, crenças obedientes e tecnocracias, integrando-se, alternativamente, às artes libertárias de viver, pensar, agir e ser... neste mundo.

Adotando tal perspectiva, estamos propondo uma ética metodológica (ou seria uma metodologia ética?) para as práticas de formação - em nosso caso, de psicólogos e professores. Debater, no contemporâneo, governo e resistência, conduta e contraconduta, obediência e insurgência, implica que formemos e nos formemos menos via um corpo doutrinal específico do que por meio daquele(s) que se mostrem capaz(es) de nos equipar com a coragem da verdade (parresía); menos pela adesão a um modo de vida saudável e tranquilo, despreocupadamente imerso nos dispositivos hegemônicos, do que pela invenção coletiva de tecnologias de si aptas - por mais que sem garantias - a nos libertar - ao menos em parte - do que tem sido feito de nós por tantas e tantas paideías, empreendedoristicamente instaladas em um mercado neoliberal de bens de salvação.

Decepções hiperativas

Para finalizar este artigo-ensaio, retornamos ao momento cartesiano, acontecimento que ainda nos habita e que, equipadas com cursos e livros de Foucault, procuramos extirpar de nossas práticas formativas e de pesquisa. Ao definir essa inflexão no âmbito das relações entre sujeito e verdade - o sujeito, tal qual é, torna-se então capaz de verdade, afirmação cuja obviedade precisa ser cotidianamente recusada -, Foucault uma vez mais nos surpreende. Há pouco falávamos de debates com os(as) alunos(as) da universidade, o que nos leva a evocar uma nova circunstância: no curso de psicologia da UERJ, a perspectiva fenomenológico-existencial goza de certo prestígio e seus embates com paradigmas positivistas e/ou visões materialistas dialéticas costumam produzir animadas polêmicas. Em aulas sobre o pensamento de Foucault, contudo, quando se discute o livro As palavras e as coisas, torna-se nítida a inquietação estudantil: a episteme moderna, com seus novos objetos - vida, trabalho e linguagem -, aliados à figura epistêmica do Homem, que a eles está submetido, mas é igualmente o seu criador ѿ duplo empírico-transcendental -, costuma decepcionar muitos daqueles(as) que, por exemplo, contrapunham radicalmente as perspectivas biológico-positivista, marxista-humanista e fenomenológico-existencial. O livro de Foucault faz com que as vejamos como simples variantes de uma mesma episteme, de um mesmo a priori histórico.

Por vezes, embora nem sempre, as explicações acadêmicas sobre a morte do homem conseguem que as lágrimas sejam poupadas. Ver a figura Homem ser levada pelas ondas, como um rosto de areia na orla do mar, só eventualmente conduz aos apaixonamentos que, como formadoras, desejaríamos - apaixonamentos pelo próprio trabalho de Foucault, pela genealogia nietzschiana, pelos estudos literários, pela filosofia da diferença etc., dado que a psicanálise lacaniana jamais nos entusiasmou.

Falamos dessa decepção, hoje estudantil e também nossa, no passado, porque, ao nos aproximarmos de um Foucault ligado à genealogia da ética e extremamente próximo do estoicismo - Sêneca, principalmente, ocupa muitas páginas de seus livros e cursos -, deparamo-nos com um paradoxo. Em um pequeno artigo, Potte-Bonneville (2017) assim o formula:

Essa súbita paixão do filósofo do poder pela herança romana do Pórtico poderia surpreender; lembremo-nos que, na aula inaugural no Collège de France, Foucault se propusera a introduzir “na raiz mesma do pensamento, o acaso, a descontinuidade e a materialidade”, nas antípodas, portanto, da universalidade que os estoicos conferiam ao reino da razão. Arrependimento tardio de um irracionalista? (POTTE-BONNEVILLE, 2017, p. 388)

Potte-Bonneville não subscreve a hipótese formulada, pelo contrário. Suas considerações subsequentes nos fazem ver que esse “Foucault decepcionante” é, provavelmente, aquele discurso-prática que pode nos incitar, hoje, a novos modos de ação ético-política:

[...] malgrado a invocação repetida da Providência, o racionalismo dos estoicos estabelece uma indiferença primordial do curso das coisas em relação às motivações sensíveis do sujeito, assim como Foucault, por seu lado, contesta que a história faça espontaneamente nascer uma sociedade apaziguada e conforme a nossos votos; nos dois casos, o papel do filósofo é o de abrir os olhos daquele que confunde seus desejos com a ordem do mundo, acredita que o universo natural ou humano está aí para lhe dar prazer. Quanto a isso, tanto Foucault como Sêneca mostram, ao contrário (por vias decerto opostas), a instabilidade fundamental daquilo que temos tendência a considerar nossos bens mais duráveis. (POTTE-BONNEVILLE, 2017, p. 388)

Dando continuidade a esse parágrafo, Potte-Boneville, de modo provocador, retorna a As palavras e as coisas e, mediante tal estratégia, nos faz perceber ressonâncias entre arqueologia do saber e genealogia da ética:

Deste ponto de vista, anunciar, em As palavras e as coisas, o fim próximo do homem era talvez consagrar-se a uma forma rigorosa do que os estoicos denominavam praemeditatio malorum, a antecipação do pior, exigindo dos contemporâneos que visualizassem o desaparecimento daquilo a que mais estavam ligados: não, como nas Cartas a Lucílio, sua fortuna, seu poder ou seus filhos, mas uma versão do humanismo preguiçosamente sedimentada há dois séculos. (POTTE-BONNEVILLE, 2017, p. 388)

Uma produção análoga de decepção hiperativa pode ser encontrada na tese de doutorado de Alessandro de Lima Francisco (2017), Calçando os tamancos de Paul-Michel: um estudo sobre a Psicologia na problematização filosófica de Michel Foucault com base nos manuscritos inéditos dos anos 1950. O trabalho segue fielmente o roteiro definido pelo título, porém, ao final, salta produtivamente para a passagem dos anos 1970 aos anos 1980. Enfatiza então o nexo possível entre “calçar tamancos” para refazer percursos, caminhar e “fabricar tamancos” (sabots) para sabotar, criando, desse modo, um saboroso “duplo” foucaultiano. Trata-se, nesse momento, de singularizar o antipsicologismo de Foucault, que Francisco (2017) condensa em três aspectos principais: (1) a crítica da Filosofia como Filosofia do Conhecimento, sintetizável por intermédio do “momento cartesiano”. Isso não conduz a substituir a Filosofia pela Psicologia (tentação foucaultiana dos anos 1950), mas a uma nova indagação: que efeitos tem sobre o sujeito a existência de um discurso que diz a verdade sobre ele?; (2) a psicologia concebida como forma cultural, como descriptografia, exigindo hermenêutica ou exegese, características das ciências do espírito; (3) a crítica da subjetividade entendida como sujeito do conhecimento, como sujeito “em recuo” quanto ao mundo, como sujeito transcendental. O que inevitavelmente nos perpassa é a história e, como Foucault afirmou em um debate com historiadores ao final dos anos 1970, sempre que uma constante antropológica ou histórica parece estabelecer-se, é preciso “acontecimentalizar” (FOUCAULT, 2003), ou seja, mostrar que não era assim tão necessário - o que, por sinal, confere um sentido extremamente preciso à frase “O homem é uma invenção recente”, contida em As palavras e as coisas.

Ao término do percurso, Francisco (2017) afirma: um pensamento não melhora, ele se diferencia; na Antiguidade não há propriamente sujeito, nem relação sujeito-objeto; o germe das ciências do espírito não está no período helenístico, pois, nesse momento, há psykhagogía - condução das almas -, e não hermenêutica, a despeito da armadilha presente no título do curso de 1982. Finalmente, parafraseando Foucault, apela aos “direitos lúdicos da etimologia” para propor, em lugar de personalidade (personalité), o termo pessoidade (personité) - de personare, ressoar, resistir à identidade.

Há, portanto, que deixar de ser egoísta... e cuidar de si - sem saudosismos e com os recursos do presente. A esse respeito, cumpre finalizar com o Foucault estoico de Potte-Bonneville (2017):

O estoicismo é, diz Foucault, uma “visão do alto de si sobre si, que engloba o mundo do qual se faz parte e que assegura assim a liberdade do sujeito nesse próprio mundo”. Mas o que é a arqueologia da loucura ou da prisão, senão uma tentativa de esclarecer as dificuldades experimentadas o mais próximo possível de si revertendo-as no discurso histórico mais impessoal, numavel de si de si sobre si o desse todo, espécie de história natural onde não somos mais que um ponto [...]? E o que é a “subjetivação” [...], senão uma estranha tentativa de tornar-se quem se é, desprendendo-se, simultaneamente, de si mesmo e ousando “pensar de outro modo”? Quando Foucault define seus livros, não obstante voltados ao anonimato do saber, como “fragmentos de autobiografia”; ou quando confessa, em sua última obra, encontrar-se “na vertical de si”, é para si mesmo que reivindica a visão do alto, o olhar sagital do estoico. (POTTE-BONNEVILLE, 2017, p. 391)

Referências

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Recebido: 11 de Julho de 2022; Aceito: 26 de Outubro de 2022

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