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Educação e Realidade

versão impressa ISSN 0100-3143versão On-line ISSN 2175-6236

Educ. Real. vol.48  Porto Alegre  2023

https://doi.org/10.1590/2175-6236125011vs01 

SEÇÃO TEMÁTICA: A FAUNA, A FLORA, OS OUTROS SERES VIVOS E OS AMBIENTES NO ENSINO DE CIÊNCIAS E DE BIOLOGIA

Alianças Vegetais: espécies companheiras de ensino diante do Antropoceno

IUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas/SP – Brasil


RESUMO

O que as alianças com as árvores podem ativar em experiências de ensino diante do Antropoceno? Partindo dessa pergunta, analisa-se encontros entre biologias e artes nas práticas da disciplina “Arte, ciência e tecnologia”. Mobilizado pelo conceito de “espécies companheiras” de Haraway (2021) e em diálogos com obras de artistas, autores da educação e filosofia, este texto se interessa por pensar no que acontece entre as relações materiais e os regimes de signos envolvidos em exercícios que resultaram em dois livros-objeto criados na disciplina: Floresta de Luz e Floresta². As árvores convocam as pessoas a pensarem o ensino como um laboratório-ateliê de perceber-fazer floresta e a darem atenção às fabulações que brotam pelas frestas, entre biologias e artes.

Palavras-chave Árvores; Ensino; Espécies Companheiras; Estudos Multiespécies; Arte e Ciência

ABSTRACT

What can alliances with trees bring about when it comes to teaching experiences in the face of the Anthropocene? This text analyzes the encounters between biological sciences and the arts as seen throughout the “Art, science and technology” course. Having been provoked by Haraway’s (2021) concept of “companion species” and established a connection with works by artists and with authors of education and philosophy, its interest in thinking about what happens between material relations and the systems of signs involved in those exercises which have resulted in two book-objects produced within the course: Floresta de luz and Floresta². The trees call upon people to think of teaching as a laboratory-atelier of perceiving-creating forests and to pay attention to the fabulations between biological sciences and the arts.

Keywords Trees; Teaching; Companion Species; Multispecies Studies; Art and Science

Ensino como Laboratório-Ateliê entre Biologias e Artes

Fonte: Dias e Wiedemann (2017).

Figura 1 Imagem do livro Floresta de Luz: Laboratório de Botânica Especulativa 

Aumento de desmatamentos, queimadas e invasões de terras, corpos e histórias indígenas. Investimento cada vez mais intenso em monoculturas de plantas, ideias e afetos. Consumo desenfreado de carne, madeira, minérios, fake news e significados já prontos. Empobrecimento de solos, pensamentos e tempos. Vivemos em um “mundo danificado” (Tsing, 2019), em que as narrativas não podem se contentar apenas em fazer “denuncias” (Latour, 2020a; Stengers, 2015; Haraway, 2021) das perigosas forças exterminadoras em jogo, das mudanças climáticas em curso e de tantas outras situações catastróficas que marcam o Antropoceno. Diante do Antropoceno é urgente investir em imagens, palavras e sons que sejam capazes de revitalizar planos devastados pelo capitalismo, de aumentar a confiança no futuro sem recair em narrativas distópicas ou salvacionistas. É preciso investir em um “currículo outro”, capaz de criar novas formas de relação com o outro, capaz de propor e experimentar alianças em prol de um mundo mais sustentável, em que possamos ter novas e afirmativas histórias para contar (Fonseca; Amorim, 2021, p. 12; grifo dos autores). É indispensável nos devotarmos a novas abordagens onto-epistemológicas que investiguem e se engajem em novos modos de ser e pensar, mais transversais, que favoreçam “[…] a inclusão, a flexibilidade, a mutabilidade e a multiplicidade, reconhecendo os emaranhados parentescos entre humanos e uma infinidade de outros não humanos” (Carstens, 2022, s.p.).

O Antropoceno (Haraway, 2016; Tsing, 2019; Chakrabarty, 2009; Danowski; Viveiros de Castro, 2014; Davis; Todd, 2017; Carstens, 2022) é um conceito que coloca desafios para as práticas de ensino porque convoca: uma problematização consistente do nosso tempo presente; uma percepção complexa da ideia de que os humanos se tornaram um agente geológico devido às destruições que promovem; uma crítica à centralidade, excepcionalidade e universalidade do humano; e a necessidade de exercícios que possam revigorar os planos de existência futuros a partir de práticas de viver junto, entre humanos e não-humanos, entre diferentes modos de conhecer e existir, que sejam afirmativos e potentes. Para Donna Haraway (2021; 2019), a geração de parentescos raros entre heterogêneos pode ajudar a suscitar respostas potentes aos acontecimentos devastadores que marcam o Antropoceno. Isso porque gerar parentes raros é conectar-se efetivamente com o presente, é perceber que a vida se dá em entrelaçamentos e enredamentos entre lugares, tempos, materiais e significados inacabados e em constante cocomposição.

Fazer parentescos raros diante do Antropoceno é o que tenho buscado com a disciplina “Arte, ciência e tecnologia” – que ofereço no Programa de Pós-graduação em Divulgação Científica e Cultural, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo e Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-IEL-Unicamp) –, e que tem se constituído como um laboratório-ateliê de experimentação coletiva, entre biologias e artes, da noção de “espécies companheiras” de Donna Haraway (2021). Tenho investigado esse conceito como uma abertura para uma sensibilidade vegetal, animal, mineral… Um dar atenção ao convívio vital com seres-coisas-forças-mundos de outras espécies, levando sempre em conta a profunda diferença, e não oposição, desses seres em relação aos humanos. Para essa zoóloga e filósofa, “espécies companheiras” é uma noção que sempre coloca em movimento o amor como um aspecto teórico-metodológico fundamental, o amor que atravessa as relações entre as espécies e que define vidas conjuntas vividas baseadas no respeito e responsabilidade.

Pensar com as “espécies companheiras” é engajar-se com as dimensões materiais e virtuais do mundo e viver sob o signo da “alteridade significativa” (Haraway, 2021). Um conceito que exige um interesse em escutar os não humanos, uma disposição para ganhar efetiva intimidade com eles, um desejo e comprometimento em desenvolver procedimentos, ferramentas, materiais para que essas escutas sejam possíveis, reais e múltiplas. Para que as vozes não humanas que ecoam em trabalhos e criações não sejam, mais uma vez, representações inventadas segundo interesses ocidentais e modernos condenáveis. E isso, ressalta Haraway, depende de um “[…] reconhecimento de que não se pode conhecer o outro ou a si mesmo, mas que é necessário perguntar a todo tempo quem e o que emerge dentro e partir do relacionamento” (2021, p. 60, grifo da própria autora).

Considero que “espécies companheiras” é um conceito com dimensões políticas, éticas e estéticas fundamental para pensar o ensino entre biologias e artes diante do Antropoceno. Tenho buscado experimentar essa perspectiva em processos de ensino nas últimas edições da disciplina, ministradas por mim entre os anos de 2021 e 2018, em que propus que pensássemos com os mais que humanos (árvores, rios, pedras, estrelas e animais…) o que pode a comunicação diante do Antropoceno. Neste artigo, irei debruçar-me especificamente sobre as alianças que buscamos estabelecer com as árvores e em pensar como essas alianças influenciaram os “modos de existir” (Souriau, 2017; Lapoujade, 2017) das relações entre biologias e artes no ensino.

Nas três edições da disciplina, propus uma parceria com a bióloga e amiga Alessandra Penha da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus Araras. O intuito era proporcionar aos participantes da disciplina o contato com uma pesquisadora apaixonada por árvores e experimentar aulas práticas de botânica tal como são oferecidas aos estudantes de biologia na graduação, bem como o contato com bibliografia relevante e atualizada da área. Também propus parcerias com vários artistas, como Marli Wunder, Fernanda Pestana, Sebastian Wiedemann, Marcelo Moscheta, Sara Melo, Tatiana Oliveira, Rodrigo Rodrigues, Mauro Tanaka, Silvia Figueroa e Paulo Teles, com o objetivo de conhecermos e vivenciarmos diferentes práticas e técnicas artísticas realizadas com os vegetais.

Estas pessoas, tanto cientistas quanto artistas, interessam porque, de diferentes modos, buscam levar em conta complexidades e particularidades das plantas como exigências para estabelecerem práticas relacionais consequentes. Nos encontros com elas, os estudantes eram convidados a adotar uma postura de coleta de materiais para experimentações posteriores, o que os envolvia (fosse isso planejado ou não pelo convidado) na criação de escritas, fotografias, desenhos, colagens etc., que seriam matéria-prima para novas criações.

Vale ressaltar que a disciplina sempre acolheu um público bastante diversificado de estudantes com formações (de graduação e pós-graduação) que vão desde o jornalismo, à educação, às artes, à literatura, à filosofia, à antropologia até à biologia e geologia. Era importante que os participantes tivessem acesso ao máximo de complexidade conceitual e procedimental de biologias e artes, ou seja, que as perspectivas escapassem às simplificações, normatizações, infantilizações e ideias de déficit público que, muitas vezes, se fazem presentes em ações de educação formal e não formal quando se lida com públicos diversificados.

Depois dos encontros com os convidados, iniciávamos na disciplina movimentos de adensamentos teóricos-metodológicos, com estudos de obras e processos de outros artistas, bem como de autores que se dedicam: aos estudos multiespécies, Donna Haraway e Anna Tsing; à filosofia da diferença, Gilles Deleuze e Félix Guattari; à filosofia da ciência, Isabelle Stengers e Bruno Latour; e à filosofia da arte, Étienne Souriau e David Lapoujade. Dávamos atenção aos materiais coletados nos encontros e nos dedicávamos a dar vida nova a esses materiais a partir de vários exercícios. Os novos materiais eram, finalmente, reunidos e recriados em livros-objeto, feitos por mim em parceria com estudantes e/ou com cientistas e/ou artistas convidados da disciplina.

A ideia de confecção de um livro-objeto estava presente desde o início da proposta. Todas as vezes as árvores nos chamaram para experimentar a pergunta: o que pode um livro diante do Antropoceno, diante de um tempo de catástrofes? A escolha do livro como objeto a ser criado e pensado diz respeito a uma compreensão, proposta na disciplina, de que um livro, sem exceção, pede um movimento de “perceber-fazer floresta” (Dias, 2020). Um livro é um exercício de colocar junto diferentes espécies materiais, ideias, conceitos e procedimentos e fazer com que convivam, coexistam, se afetem mutuamente, se hibridizem, se cocriem. Não é à toa que os livros sejam feitos a partir de árvores e que, mesmo os livros em formatos digitais, suscitem problemas que nos conectam ao reino vegetal. A nossa relação com árvores e livros passa, por exemplo, pelo enfrentamento de problemas relacionados aos sistemas monoculturais.

A proposta de fazermos livros-objeto também foi pensada na relação com as árvores, pois dizia respeito a uma necessidade de uma experimentação com as potências materiais e virtuais do papel (papel fotográfico, papel jornal, papel revista etc.). E, ao mesmo tempo, com a necessidade de dar a ver essa experimentação, de torná-la notável para os leitores. Fazendo com que os problemas relacionados às imagens, palavras e papéis fossem, simultaneamente, de árvores e humanos, de seiva, carne e signo, dissessem respeito, portanto, a “naturezas e culturas” (Haraway, 2021).

A produção dos livros-objetos era assumida como invenção de encontros entre heterogêneos e produção de simbioses desprogramadas entre biologias e artes. Para esses encontros se tornarem possíveis foi preciso interrogar e abandonar a grande narrativa da revolução científica que herdamos (Latour, 2016) e encontrar com uma biologia infinitamente mais complicada e múltipla. Também foi necessário mover-se para além de uma ideia das artes como mero recurso para tornar o ensino mais agradável, palatável e animado. O que significou responsabilizar-se por uma perspectiva especulativa e fabulatória (Haraway, 2021; 2020), acolhendo que o ensino não trabalha com biologias e artes que estão aí, prontas e acabadas, mas que inventa novas relações entre biologias e artes e…, exigindo pensarmos entre biologias e artes porvir e nos engajarmos na multiplicação dos mundos, tal como o fazem as plantas em uma floresta.

O ensino, pensado desse modo, é vivido como um laboratório-ateliê que não se restringe a repetir experimentos e práticas já feitos e que deram certo, reencontrando a potência do laboratório e do ateliê de irem além do que já estava dado e garantido. Abraçando o risco de gerar novos encontros entre materiais, de testar inovações em procedimentos, de produzir alterações nos campos perceptivos habituais e de instaurar novas zonas críticas e problemáticas. É Bruno Latour (2016) que conta como o desenho das crateras lunares feito por Galileu a partir de uma lente astronômica rudimentar deixou, simultaneamente, historiadores da arte e da ciência encantados. Isso porque ele só conseguiu perceber que as sombras que via na lua eram montanhas, por ser um exímio desenhista, acostumado a seguir as leis recém-descobertas da perspectiva (Latour, 2016).

O ensino como um laboratório-ateliê é um chamado a se interessar pelas práticas científicas e artísticas para além dos julgamentos e opiniões já formulados sobre elas, para além do que práticas científicas e artísticas podem isoladas, e buscar experimentar o que pode a instauração de um solo comum. Um chão de floresta, em que práticas científicas e artísticas se liberam de formas previamente dadas, atingem uma potência elemental e passam a compor umas com as outras novos modos de viver junto. Esse solo comum não é um plano pronto de antemão, mas é instaurado a cada vez, com materiais, acontecimentos e questões que estão em jogo, por isso diz respeito a uma aposta “cosmopolítica”, em contraposição às apostas “cosmopolitas”, “[…] que não conseguem compreender a política do não humano, por meio da qual um mundo comum pode ser composto” (Dibley, 2015, s.p.).

O ensino como um laboratório-ateliê é um convite a lembrar como os laboratórios e ateliês amalgamam muitas tradições diferentes, certamente as de cientistas e artesãs, mas não só. “Não há dúvida de que as mesas abarrotadas de um laboratório contemporâneo conservam algo do ateliê do artesão, para não dizer do forno do cozinheiro”, como lembra Latour (2016, p. 120). O laboratório-ateliê convoca cozinheiras, samaumas, tecelãs, amoreiras, costureiras, figueiras, escritoras, aroeiras, yalorixás, amendoeiras, xamãs… Todas as envolvidas em práticas especializadas de mescla e transmutação dos materiais do mundo com as mãos, folhas e raízes. E se, diferente de Latour, prefiro falar aqui com as mulheres e árvores, é apenas para ressaltar que essa dimensão prática envolve devires femininos, segredos e lugares misteriosos, que pedem uma atenção ao que acontece nas passagens, quando os corpos e os mundos mudam de qualidade e de natureza, quando se engravidam novos possíveis. Não é sem motivos que o agrônomo Carlos Nobre define, em uma conversa com o líder indígena Ailton Krenak, uma floresta como um útero (Nobre; Krenak, 2021).

O ensino como laboratório-ateliê instiga a encontrar as aberturas em e entre biologias e artes que permitam gerar duplas capturas, núpcias e transmutações, impulsiona a encontrar os meios e procedimentos propícios para contágios e alianças. E esse encontrar é avaliar e criar, criar e avaliar, simultaneamente e permanentemente.

Das Fabulações que brotam pelas Frestas

Fonte: Dias e Wiedemann (2017).

Figura 2 Imagem do livro Floresta de Luz: Laboratório de Botânica Especulativa 

Percebo que, em cada um dos livros-objeto que criamos com as árvores, lidamos com procedimentos, materiais e signos colhidos das práticas biológicas como essas pontas ávidas por alianças, conexões e entrelaçamentos. Essa é uma questão importante, porque não foram apenas os conteúdos das biologias que nos interessaram. Há nessa aposta uma compreensão de que é preciso enfrentar no ensino os problemas da oposição entre forma e conteúdo que marcam muitas das escolhas. E que, inclusive, colocam para as artes a função, quase que exclusiva, de dar forma aos conteúdos que viriam das ciências.

Com Deleuze e Guattari (1995) podemos pensar diferente, em termos de “forma de conteúdo” e “forma de expressão”, assumindo uma outra distinção, que não mais opera por oposição, em que a forma está sempre em cena, sendo a forma de conteúdo ligada ao conjunto de relações materiais e a forma de expressão associada aos regimes de signos. Com essa possibilidade, o chamado não é mais o de atribuir uma das duas formas às ciências e outra às artes, mas o de dar atenção aos agenciamentos que acontecem entre elas. Tentarei fazer isso apresentando alguns exercícios feitos nas disciplinas, e em dois dos livros-objeto que produzimos, em termos dos procedimentos, materiais e signos das biologias que mobilizaram interseções criativas com as artes.

Fonte: Dias e Wiedemann (2017).

Figura 3 Imagem do livro Floresta de Luz: Laboratório de Botânica Especulativa 

Entre os vários exercícios que fizemos para o livro Floresta de Luz: Laboratório de Botânica Especulativa (Dias; Wiedemann, 2017), por exemplo, estão as exsicatas aberrantes com as plantas que coletamos e classificamos na aula dada pela convidada Alessandra Penha. As exsicatas são amostras de plantas (galhos, folhas e, quando possível, flores) que são guardadas em herbários, espécies de bibliotecas de plantas, durante muitos anos para fins de estudos de botânica. Para fazê-las, as plantas coletadas são prensadas em meio a folhas de jornal e papelão e secas em uma estufa. Posteriormente, as plantas são retiradas da prensa, feita de madeira e parafusos, são eliminados os jornais e os papelões, e as plantas são fixadas com fita adesiva ou costuradas em uma folha tamanho A3 e, finalmente, envoltas em um envelope de papel. Nessa mesma folha, coloca-se uma etiqueta contendo informações sobre o vegetal, data de coleta e local, o coletor, a identificação de gênero e espécie, o nome do pesquisador que identificou a planta e a instituição que valida essas informações, uma universidade, por exemplo.

Em nossa criação introduzimos uma alteração nesse processo. No momento de criarmos as exsicatas, convidei os estudantes a observarem a relação entre as plantas coletadas e os jornais, algo que fazia em meu curso de biologia e um gesto que tem relação com a minha aposta, desde o doutorado, de dar atenção aos materiais associados ao campo da comunicação, especialmente o papel (papel-jornal, papel-revista, papel-fotográfico, papel-tela-de-pintura, papel-tela-da-tv, papel-multimídia etc.) (Dias, 2008). Sugeri que não descartássemos totalmente os jornais e os trouxéssemos para as exsicatas, transformando-as em colagens que experimentariam a convivência entre esses materiais: plantas secas, papéis, palavras e imagens. Todas as exsicatas promoveram a convivência entre materiais heterogêneos, experimentando uma coexistência e cocriação entre linhas de naturezas e de culturas. As plantas não eram mais apresentadas como parte de uma natureza intocada e isolada dos mundos, sob os signos da neutralidade, objetividade e realidade-verdade, mas intimamente costurada aos mundos das culturas, mobilizando perspectivas reais, mas promíscuas e ficcionais.

Fonte: Dias e Wiedemann (2017).

Figura 4 Imagens do livro Floresta de Luz: Laboratório de Botânica Especulativa 

A junção de materiais ocorreu de modo singular em cada exsicata, como as folhas e galhos das plantas, não há interações que brotem iguais às outras. Uma das estudantes, da área de artes, retirou dos jornais desenhos (pouco comuns) de folhas de plantas e insetos e recriou com sua habilidade de desenho partes da planta perdidas no processo, como as folhas, bem como folhas de outras plantas. O resultando é uma exsicata que não apenas simula a planta coletada em meio ao seu suposto ecossistema natural, mas que inventa um ecossistema em que plantas, animais, papéis, desenhos, linhas e sombras interagem diferentemente mobilizando um delicado e incessante jogo entre realidade e ficção. Os desenhos do jornal nos conectam aos desenhos dos naturalistas, em contraposição aos traços da estudante que não têm vontade representacional e realista, mas desejo de intensificar “existências virtuais”, que suscitam ou exigem arte (Souriau, 2017; Lapoujade, 2017). São existências que não têm solidez e consistência, que aparecem apenas sugeridas e esboçadas, e que esperam pela arte para alcançarem uma existência maior e diferente e têm a força de abrir um leque de novas possibilidades nos materiais e gestos.

Fonte: Dias e Wiedemann (2017).

Figura 5 Imagens do livro Floresta de Luz: Laboratório de Botânica Especulativa 

Fonte: Dias e Wiedemann (2017).

Figura 6 Imagens do livro Floresta de Luz: Laboratório de Botânica Especulativa 

Em outras exsicatas, as plantas convivem com as páginas do jornal e fazemos uma leitura entrefolhas de distintas naturezas. Os modos de existir vegetais dialogam com os modos de existir dos jornais: folíolos, limbos, pecíolos, estipulas, bainhas, nós e caules estabelecem estranhas conversações com manchetes, cadernos, títulos, subtítulos, narizes-de-cera, lides, linhas finas, olhos, destaques, quadrinhos, diagramas, desenhos, fotografias… Por vezes, temos a sensação de que os textos são sussurros das próprias plantas. Em outras, palavras soltas de diferentes manchetes formam algum texto que parece questionar a validade da própria exsicata. Em outras, ainda, o papel jornal é trabalhado como uma textura que brinca com as cores e fieiras das plantas ressecadas. As linhas que serviriam apenas para costurar as plantas no papel A3, também se tornaram elementos de experimentação pelos estudantes, potencializando um certo trabalho de bordado e costura envolvido, simultaneamente, nos fazeres das plantas e nos fazeres dos cientistas com as exsicatas, convidando também a perceber os cruzamentos impuros entre fios vegetais e animais, entre signos artísticos e científicos.

Com Donna Haraway (2021), penso que as exsicatas fabuladas abrangem fatos e ficções de diferentes modos. Fazendo com que as coisas feitas, findas, fixadas, performadas e realizadas (fatos) coevoluam com invenções, falsificações, tropeços, inversões e desvios (ficções). O que faz com que se abram a uma experiência do tempo que reúne, simultaneamente, passado, presente e futuro, como o corpo de uma planta, que apresenta essas temporalidades juntas em um só espécime.

O herbário criado por nós fabula lugares que visitamos e, ao mesmo tempo, que desconhecemos. Propõe experimentações que geram alguns movimentos de captura recíproca: o jornal se torna quase planta, se abre a um devir-vegetal, e as plantas, por sua vez, se abrem a devires animais; já os coletores e recriadores das exsicatas são tomados por devires criança, devires femininos, artísticos… Esses devires são detonadores de outros devires, sentimos como um devir nunca está só. O que faz pensar que as propostas entre biologias e artes nos fazem acessar uma experiência de ensino como ativação de uma “ecologia de devires” (Dias, 2019) entre biologias e artes e… Como diz Deleuze (1997, p. 11), em Crítica e clínica: os “[…] devires encadeiam-se uns aos outros segundo uma linhagem particular, como no romance de Le Clézio, ou então coexistem em todos os níveis, segundo portas, limiares e zonas que compõem o universo inteiro, como na pujante obra de Lovecraft”.

Muitas das inspirações para o que temos criado advêm das experimentações e obras do artista Walmor Corrêa (Ramos, 2015). Esse artista se interessa particularmente por processos e materiais das biologias em seus trabalhos. É um artista bastante conhecido pela criação de seres monstruosos, mutantes, híbridos de humano e não humano, de orgânico e inorgânico, que são apresentados sob uma estética das ciências biológicas, mas que acolhem desde dentro muitas perturbações e equívocos provocados pelas artes e culturas.

Estudando suas diferentes obras podemos perceber que seus procedimentos não seguem um único padrão, repetem-se sempre com diferenças. Há um trabalho atento e minucioso com os materiais e regimes de signos para perceber tanto o que eles podem, como o que eles pedem. Interessam para ele tanto as propriedades e estados de coisas, quanto as “nuvens de virtuais” que constituem também os materiais dos mundos e que são brechas para eles se tornarem outra coisa, para entrarem em devires inéditos (Souriau, 2017; Lapoujade, 2017).

Particularmente com as plantas, há um trabalho de Walmor que gosto muito, que se chama Sementeira, uma espécie de vitrine ou gôndola, como as encontradas em lojas de produtos agrícolas, com 100 saquinhos de 10 espécies de árvores. Os saquinhos têm, de um lado, desenhos ilustrativos das plantas, nome científico e informações sobre o peso da embalagem e, do outro, as informações sobre origem e caracterizações biológicas das plantas e, ainda, dicas sobre os modos de cultivo e mapas com a localização das espécies e recomendação de melhores épocas de plantio. É na leitura das orientações que surge o primeiro contato com algo que perturba o funcionamento das ciências: em meio aos textos, são oferecidas instruções absurdas, ilógicas, ridículas, acompanhadas de argumentos igualmente insensatos. Ao pegar nos saquinhos, também se percebe que as sementes não correspondem às catalogadas. No pacote do caju, as castanhas não são percebidas pelo tato dentro do saquinho. Sementeira é um modo lúdico que o artista teve de nos fazer acessar a relevância da classificação e a catalogação biológica das plantas para um eficaz plantio e uma eficaz colheita. E, ao mesmo tempo, nos faz lembrar e imaginar um conjunto de instruções de plantio e cuidados com as plantas, aparentemente absurdas, mas igualmente eficazes, que as pessoas desenvolvem no cultivo das plantas e que são desprezados das instruções científicas como, por exemplo, conversar com elas para que cresçam mais. Traz, também, uma dimensão de percepção tátil que é convocada de modo tão intenso no reino vegetal.

Do Ensino como Proliferação de Florestas

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 7 Imagem do livro Floresta² 

Já no segundo livro que gostaria de apresentar, Floresta² (Dias; Penha, 2019) a artista que nos inspirou foi a cineasta Agnès Varda. A proposta da disciplina era experimentar a ideia de que comunicar é “perceber-fazer floresta” (Dias, 2020). A aliança com as florestas, para pensar os sistemas comunicantes, me convocou a dar atenção e cuidar da ideia de uma “ecologia de devires” a ser instaurada nas práticas de ensino e, por isso, propus a disciplina em torno de blocos de devires: devir-criança-animal-elemental-traidor, devir-planta-casa-cosmos, devir-linha-ar-luz, devir-máquina-número-matéria-viva, devir-negro-música-festa-cura, devir-rio-mulher-mar, devir-indígena-intenso-molecular, devir-poesia-multiTÃO-anônima, devir-floresta-papel. Isso porque uma das questões que uma floresta suscita de interessante para pensar é o fato de reunir uma abundância de seres-coisas-forças-mundos e propiciar condições para assemblages entre heterogêneos; e o reunir sempre envolve devires.

Em cada bloco entraríamos em relação com práticas de pessoas (cientistas e artistas) que estão aliadas a vários outros seres, materiais, espaços e práticas, pessoas que “fazem floresta” em diferentes regiões de Campinas, São Paulo. O perceber-fazer floresta tornou as árvores parceiras de toda a disciplina, e não somente de um bloco, como no outro ano. Pensar com as árvores fez-nos dar uma particular atenção às dimensões interescalares e multidimensionais dos territórios, porque as árvores são seres que sabem o que é estar intimamente conectados à terra/Terra. A disciplina foi pensada como uma residência artística. As residências são espaços-tempos de extrema relevância para pensar e experimentar as alianças entre artes e ciências (Fonseca; Amorim, 2021). É onde podemos ver como se criam “[…] conexões, entradas e saídas e, por entre elas, passam linhas que se entrelaçam e se arrebentam, rizomam-se” (Fonseca; Amorim, 2021, p.15), onde nos distanciamos das perspectivas e parâmetros utilitaristas e nos lançamos na criação de novas relações. Como as residências artísticas sempre envolvem experimentações relacionadas ao deslocamento, e ao espaço privilegiado, coloca em jogo “[…] as experiências, as convivências, as trocas, a condição ‘em trânsito’, a vida em comum, a participação, as colaborações, os processos de articulação e negociação” (Moraes, 2014, p. 42).

A escolha pela residência artística, como parte da metodologia de trabalho, também potencializa um importante pressuposto da noção de espécies companheiras e dos estudos multiespécies: a não oposição entre organismos e meios (van Dooren; Kirksey; Münster, 2016). Visitar a Mata Santa Genebra, a Casa de Cultura Fazenda Roseira, o laboratório da Embrapa na Unicamp, participar de atividades na Praça da Paz e mesmo na sala de aula do Labjor-Unicamp se tornaram modos de experimentar, radicalmente, uma conexão com os meios. Na Fazenda Roseira, a Comunidade Jongo Dito Ribeiro nos apresentou um espaço todo vivo, das pequenas flores às árvores seculares, dos alimentos aos tambores, graças às práticas sensíveis ligadas à matriz africana, aos orixás, aos ancestrais, que dão a ver a potência de um lugar em que todas as dimensões estão interconectadas, sejam espirituais, culturais, ambientais, arquitetônicas, históricas ou políticas.

Na Praça da Paz fizemos coletas de folhas, galhos, sementes, trabalhamos com os convidados criando novos alinhavos, bordados, costuras, amarrações e teias entre esses materiais coletados; fizemos herbários poéticos e experimentos com fitotipia; através de ecoperformance fizemos corpo com os elementos – ar, água, lama e fogo; aprendemos a escutar os sons de pedras, árvores, folhas, despertando emoções nunca antes sentidas diante das diferentes sonoridades que tem cada ser, cada parte do seu corpo, atingindo uma espécie de infância, ao mesmo tempo, dos materiais e de nossos corpos; e, também, conhecemos a história de algumas das árvores da praça, desde o modo como chegaram à Unicamp, até as famílias e as espécies biológicas a que pertencem, e fomos convidados a sentir como suas histórias são entrelaçadas às nossas, mesmo sem sabermos.

Na Embrapa, acessamos o modo como os cientistas têm buscado se relacionar com os complexos fenômenos climáticos e a produção agrícola por meio de supercomputadores, softwares, gráficos e mapas. Todo um universo que nos desafiou a sair das percepções de hábito e sentir a vida que pulsa desde as máquinas e números. Na Mata Santa Genebra, a maior mata urbana da região, fizemos uma caminhada e aula de campo com biólogos, conhecemos as ferramentas, materiais e práticas que envolvem o “método dos quadrados” usados pelos ecólogos para fazer amostragens da serrapilheira. Terminamos a visita com pinturas com as folhas coletadas e leituras do poetas e filósofos como Manoel de Barros e Emanuelle Coccia. Em sala de aula conhecemos trabalhos de artistas e pesquisadores que inventam conexões entre plantas, pedras e corpos, que colocam em relação luzes, linhas, agroflorestas, nuvens e fotografias, entre outras abordagens.

Com esses movimentos, sentimos que os lugares deixaram de ser um mero pano de fundo inerte em que as aulas aconteciam, em que os seres vivem, para se tornarem espaços-tempos todos vivos, plenos de múltiplas conexões entre mundos orgânicos e inorgânicos, humanos e não humanos, entre naturezas e culturas. As visitas a esses espaços nos trouxeram o desafio de tornarmos sensíveis a esses meios de extrema riqueza e abundância de vidas em relação, vidas tanto visíveis, quanto invisíveis. Nos colocaram o problema de escrever, fotografar, desenhar, performar, pintar como quem busca honrar a floresta.

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 8 Imagem do livro Floresta² 

O filme Les glaneurs et la glaneuse (2000) de Varda, passado na primeira aula para os estudantes, foi uma espécie de guia para nossas experimentações. Partindo de catadores que recolhem batatas que restam após a passagem das máquinas de colher, em plantações na França, Varda coloca em variação incessante tanto o gesto de coletar, como coletores e coletados. Ela nos faz pensar sobre plantas, restos, abandono, desperdício, catadores, pobreza, exclusão, reaproveitamento… Sentimos como os catadores estão mais próximos do que Donna Haraway (2016) definiu como “humanos-como-húmus”, aqueles que não têm vergonha de sujar suas mãos – “lavam-se”, como diz o caminhoneiro no filme –, ao invés da postura ereta e arrogante moderna, que tem drenado, exaurido, envenenado e exterminado as reservas da Terra.

Varda volta nosso olhar para as mãos que farejam, escavam, encontram, recolhem, guardam, distribuem, transformam… Nos faz acompanhar com uma concentração inusitada a vida de diferentes máquinas de colher: sacolas, caixas, baldes, aventais, tesouras, facas, potes, cestos, carros, caminhões, câmeras, livros, pinturas, cérebros… Nos faz interrogar inúmeros aspectos envolvidos nos gestos de colher: a complexidade das relações entre humanos, batatas e outros vegetais, as disputas de poder, o entusiasmo incomparável de existir das plantas, os direitos de propriedade, os problemas de transporte, os diferentes modos de narrar histórias, a potência das artes diante das ruínas do capitalismo…

Os inúmeros catadores que Varda coloca em cena, inclusive ela mesma, sabem que “não há mais como escapar da Terra”, como provoca Bruno Latour (2020b, p. 12) ao pensar diante do Antropoceno. Contra aqueles que defendem que a saída estaria em outro lugar, em outro planeta, em outra vida, Latour insiste que a única rota de fuga é a volta à Terra, a essa Terra.

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 9 Imagem do livro Floresta² 

Profundamente tocada pelos modos de existir dos vegetais, volta a essa terra/Terra, é o movimento que Varda convoca no filme. Uma volta que nada tem a ver com uma nostalgia em relação aos tempos antigos, não é uma defesa de um abandono das cidades e uma volta ao campo, tampouco uma narrativa tecnofóbica, que denuncia uma dominação pelas máquinas e algoritmos. Antes é um chamado a um corpo a corpo ativo com um mundo todo vivo, em que todos os materiais disponíveis precisam ser honrados em seus devires, em suas potências criativas de se tornarem toda uma outra coisa.

Sentimos que Varda não busca fazer funcionar a ideia do humano como um criador entre “suas” criaturas, tornadas objetificadas e consideradas inertes. Antes, faz funcionar uma imagem terrana, em que os humanos, sabendo de sua pequenez, dispõem-se em meio aos outros mais que humanos em um movimento de decomposição e transmutação constante para estar mais junto à Terra. O próprio humano surge como um material entre materiais e os materiais, por sua vez, se metamorfoseiam de mãos em mãos.

O filme é pleno de imagens terranas. Trago este termo – “terrano” – de Bruno Latour (2020b) para pensar que imagens terranas são as que não separam artes e ciências de política, que buscam habitar o Antropoceno e se interrogam sobre o tempo e o espaço que estamos vivendo, que pensam com as guerras de poder e catástrofes que marcam a nossa era e que buscam traçar caminhos que vão além da mera denúncia da violenta apropriação das terras/da Terra. Abraçando, assim, efetivamente, o problema e as práticas daqueles que não têm terra, dos que não querem ter terra, daqueles que lutam pela demarcação de terras, ou daqueles que percebem que não há mais terra/Terra para todo mundo, sejam eles humanos ou batatas.

Inspirada por Varda, dei a cada estudante no primeiro dia de aula uma sacola de tecido (dessas de congressos que passei muitos anos juntando) e propus que durante todo o semestre catássemos materiais nessa sacola e em cadernos, celulares, máquinas fotográficas, filmadoras etc., e que, em cada encontro, tornássemos os gestos de catar e os materiais um problema a ser experimentado. Propus, ainda, que ao final da disciplina, individualmente ou em duplas, teríamos que produzir materiais comunicantes (ensaios fotográficos, desenhos, performances, podcast, livro…) que criassem interseções entre os materiais coletados nos encontros com os convidados e que dessem a perceber as florestas que acessamos e, ao mesmo tempo, que fizessem floresta em suas experimentações.

Experimentar o catar não como extração ou exploração, antes como doação, como disponibilidade incomensurável para fazer existir coaprendizagens mútuas, para ganhar intimidade com os encontros, a matéria viva da disciplina. Cada encontro exigiu uma atenção aos gestos, aos materiais e aos afetos envolvidos que mobilizavam uma lucidez alegre, que não nos relegavam à impotência, afirmando uma vitalidade de floresta diante destes tempos em que somos desafiados a pensar as separações e divisões e o que pode um estar junto. Com a floresta aprendemos que comunicar é um problema de estar junto é inventar modos brilhantes de compor, reunir, conectar que afetem afirmativamente todo o cosmos. Viver junto é problema formulado pela floresta, que ganha existência em seu corpo coletivo e aberrante, em que estar junto não é guerra, nem homogeneidade, mas antes invenção de modos não usuais e extremamente complexos de multicolaborações pluridimensionais.

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 10 Imagem do livro Floresta² 

Entre os vários encontros que tivemos na disciplina, interessa-me detalhar aqui a aula de campo com a bióloga Alessandra Penha na Mata Santa Genebra. Propus a ela que ensinasse aos estudantes o método dos quadrados, ou método das parcelas, que os ecólogos utilizam para estudar a floresta a partir de coletas de amostras do chão da floresta, a serrapilheira. O nome – método dos quadrados – se deve ao uso de uma moldura quadrada de madeira que é lançada pelos pesquisadores no chão da floresta, aleatória ou sistematicamente, em diferentes lugares, para definir as áreas em que as amostras serão coletadas. O tamanho dos quadrados e o número de quadrados lançados devem ser coerentes com a comunidade estudada e serem representativos da diversidade local (Freitas; Magalhães, 2012). Todas as folhas, galhos e sementes que estão dentro do quadrado são depositadas em sacos e levados para o laboratório. A existência de plantas pequenas e animais nesse quadrante também é registrada.

Em laboratório, folhas, galhos e sementes coletados são usados para contagem e identificação das espécies existentes no local e são aplicados métodos estatísticos para calcular a densidade e frequência das espécies e a área de cobertura. A bióloga convidou o grupo para realizar todo o processo de coleta com os quadrados. Ao terminarmos a aula de campo na Mata Santa Genebra, propus para ela criarmos, dessa vez, um “livro quadrado”, um livro que experimentasse a proposta da disciplina de perceber-fazer floresta a partir do método dos quadrados. O livro, eu ainda não sabia nesse momento, reuniria as diferentes criações dos estudantes (individuais e em dupla).

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 11 Imagem do livro Floresta² 

Das combinações, mixagens e composições entre os materiais catados nasceram: a série fotográfica Ao mesmo Tempo, em que Gláucia Pérez retira a opacidade das fotografias e investiga sobreposições delicadas entre plantas, pessoas e lugares, entre tempos e espaços, abrindo a percepção para as cores e texturas que ganham vida nas coexistências de corpos e práticas, povoando a experiência sensorial com visagens de um estar junto cósmico. A série de desenhos Carbono, em que Rafael Guiraldelli extrai com papel carbono linhas de diferentes fotografias tiradas nos vários espaços visitados e atividades desenvolvidas e as reúne numa alquimia de traços feitos sobre as sacolas de tecido que usamos para as coletas. Seus desenhos intensificam encontros entre mães de santo e árvores, entre plantas e mulheres, entre laboratórios e ateliês, nos cenários especulativos e espaços-tempos ficcionais que cria com as experiências vividas. A série de nove peças de lambes, SintropizAR o Olhar, em que Marília Costa dá uma potência imagética às palavras na relação com a agricultura sintrópica, invadindo a arte urbana e a comunicação com a potência fractal e com uma espécie de entusiasmo vegetal, que a cineasta Agnès Varda (2000) percebia nas plantas, e que desmorona as apostas recorrentes da denúncia e informação e dá aos conhecimentos ancestrais uma força de futuro e de alta tecnologia.

A música experimental, Os Sons à Margem: como ouvir?, em que Maria Cortez reúne fragmentos sonoros e dá vida a um arquipélago acústico feito de piscadelas, vaga-lumes em meio à floresta, um querer uma divulgação pulsante, que prefere não a linearidade, a métrica e a regularidade das narrativas de uma comunicação que se detém demais, quando não apenas, nos argumentos e convencimentos. O podcast A Diversidade na Narrativa do Devir Floresta, em que Luciana Martins relata sua experiência com a disciplina e propõe que a escuta aconteça em meio a manipulação de água e argila, como se pedisse para que a criação continuasse com esse pensar com as mãos, nessa desatenção atenta que envolve fazer algo enquanto se escuta.

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 12 Imagem do livro Floresta² 

A série Quadrados, em que eu e Alessandra Penha usamos a moldura de madeira usada pelos ecólogos, bem como as tesouras de poda, sacos plásticos, etiquetas, jornais, balanças, béqueres e peneira, na relação com os materiais gerados na disciplina: folhas, galhos, fotografias, palavras, desenhos, escritas, livros etc. Redobrando a ideia de que fizemos floresta na disciplina, transformando esses materiais em uma serrapilheira e potencializando a sensação de que a comunicação passa pela libertação da potência elemental de imagens, palavras e sons através da (de)composição das significações já dadas.

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 13 Imagem do livro Floresta² 

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 14 Imagem do livro Floresta² 

E, por fim, a performance DevirAÇÕES Floresta, em que Mariana Vilela e Alice Copetti dão vida a um corpo-entidade-manto-rio-floresta que se move lentamente pelo gramado da Unicamp, levando consigo a moldura quadrada de madeira, as sacolas, os desenhos, os sonhos, os bordados, as pinturas, os cadernos, as perguntas, os esquecimentos, as plantas, as gentes, as crianças, os bichos, os orixás… Um corpo que segue catando, buscando alguma vida, guiado pela intuição. Um ser que encontra tanta vida na árvore, como no poste de eletricidade. Que por onde passa esvazia a percepção, faz deserto, um deserto que não se opõe à floresta, antes que afirma sua proliferação por todo canto. O deserto é uma floresta de areias, de cores, ventos, vegetações nômades e animais menores, muito diferente da desertificação humana demais que têm resultado da destruição das florestas. Para detectar vida por onde passa, o personagem emprega os quadrados, fitas métricas, lupas, ferramentas usadas por ecólogos, mas também por fotógrafos, costureiras, médicos nos fazendo pensar nas (im)potências dos gestos de medir…

E com a proposta de reunir todas essas experiências, nasce o livro objeto Floresta². O livro busca experimentar a potência do “quadrado” – do “método dos quadrados” – entre biologias e artes. Para isso propõe habitar a forma “quadrado” como “um tropo” (Haraway, 2021), ou seja, desviar e torcer os sentidos já fixados na cultura, desdobrar os signos emitidos pelo quadrado na superfície de um acontecimento: a floresta. Quando dizemos que alguém é quadrado associamos a algo antiquado, tradicional, sem graça, sem ideias novas. Algo quadrado também pode ser considerado demasiado branco e ocidental. O círculo, a roda, são formas consideradas muito potentes para pensar e viver integrações e cooperações efetivas, já o quadrado é comumente associado à limitação, exclusão e aprisionamento. Quando dizemos que as ciências esquadrinham os mundos, trazemos sua força de estudar minuciosamente, detalhadamente e exaustivamente os eventos, mas também criticamos, com esse termo, sua aposta demasiado moderna e cientificista.

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 15 Imagem do livro Floresta² 

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 16 Imagem do livro Floresta² 

A ideia do livro era explorar materialmente esses signos da cultura emitidos pelo quadrado e colocá-los em conexão com outros regimes sígnicos, de biologias e artes. Os quadrados, no “método dos quadrados”, aparecem como formas eficazes das biologias entrarem em comunicação com florestas vivas, em constante formação e ativas, sem repor uma separação e hierarquia entre cientistas e naturezas. Embora o método se chame “método dos quadrados”, as parcelas podem ser retangulares e circulares, a escolha de uma ou outra forma depende de uma avaliação do que for mais operativo em cada situação. Sejam quadrados, círculos ou retângulos, essas formas são modos de gerar possibilidades de amostragens e de produzir cálculos estimativos. Os quadrados são, portanto, um modo de medir os mundos, mas esse medir, quando eficiente nas ciências, está mais perto do devir do que do determinar (Stengers, 2012). Pensando desse modo, o medir com os quadrados não é uma fixação, mas uma invenção de relações cuja eficácia não se pode desprezar. E medir, ressalta Stengers (2012, p. 197) não é uma prática exclusiva humana, podemos dizer “[…] que o sol é ‘medido’ pelas plantas”, algo “confirmado quando medimos os comprimentos de onda bem definidos da luz solar absorvida pelos vegetais, ou quando caracterizamos a relação entre germinação e período diurno”.

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 17 Imagem do livro Floresta² 

O quadrado, assim como círculos e retângulos e outras formas, é também um modo de recortar os mundos. Esse gesto de recortar mundos é associado fortemente ao fotográfico, que tinha o retângulo como sua forma mais tradicional. Recentemente tivemos uma revolução dessa questão da forma do fotográfico com o Instagram que, em sua fase inicial, impôs um formato quadrado em uma rede social que promove a circulação de imagens fotográficas. O enquadramento fotográfico coloca em jogo o problema do fragmento, acionando importantes reflexões em torno das relações entre fragmento e todo (fechado e aberto) e das possibilidades políticas do fotográfico escapar às perspectivas antropocêntricas. Essas relações – de recorte da realidade e potência do fragmento – também estão presentes nos trabalhos dos ecólogos, que experimentam o fragmento como possibilidade de compreensões interescalares.

Buscamos no livro convidar os leitores a perceber-fazer floresta desde dentro dos quadrados, criando conexões entre diferentes materiais e regimes de signos de artes, biologias e culturas e… O livro reúne 100 cartões com imagens de um lado e textos do outro. As imagens são amostras das relações entre as vidas que fulguraram nos encontros com uma mata urbana, uma casa de cultura de matriz africana, um laboratório, uma praça e uma sala de aula e que reluziram das combinações entre esses encontros. Os textos foram extraídos dos autores estudados, dos encontros, e também criados a partir das investigações feitas em sua própria produção e estão colocados sob papel milimetrado e dialogam com círculos brancos. O uso do papel milimetrado no verso, com quadrados de 0,5 cm, intensificou a relação de todas as páginas com os quadrados e serviu de orientação e guia para a diagramação de textos, algo que acontece quando esse papel é usado para desenho. Diferente de outros livros em que as autorias de imagens e textos não foram atribuídas a cada produção (mais próximo de livros de arte), nesse livro estão discriminados em legendas de imagens cada autor e lugar envolvidos em fotografias, escritas, desenhos, falas, pinturas, colagens digitais etc., o que confere a cada cartão uma relação com as ciências.

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 18 Imagem do livro Floresta² 

No livro, fotografar, escrever, desenhar, pintar, pensar etc. se tornam gestos de lançar quadrados numa floresta que não está dada, uma floresta que nasce ao mesmo tempo em que é percorrida. Adentrar a floresta é inventar-se floresta junto com ela. Lançar quadrados é lidar com os limites, abrir novas janelas nas coisas, criar conexões infinitas no finito. O título, Floresta², vai além da forma quadrado e diz de um desejo de redobrar as forças do livro e da floresta. O livro lembra que toda floresta elevada ao quadrado se torna positiva. Também provoca a pensar no que o número dois coloca quando funciona como simultaneidade, dobra e coexistência e não como oposição. É como se o livro mobilizasse o dois – quadrado e círculo, imagem e palavra, frente e verso, real e ficção, regular e irregular, humano e não-humano, biologias e artes – para experimentar multiplicá-lo. Dois juntos se tornam no mínimo três: imagem, palavra e imagempalavra, real, ficção e realficcionado…

Seguindo ainda essa experimentação do “dois”, o livro tem uma versão em pdf e uma versão física. É um livro em papel e em tela. A versão em papel é o mesmo livro, mas também é um outro livro. É composto de uma caixa de madeira quadrada, de 20 x 20 x 20 cm, um tapete-manto feito em tecido com tintura e impressão vegetal e bordados, dez faixas de tecido com perguntas e 100 cartões quadrados com imagens e textos em cada face, um caderno com textos das organizadoras e um quadrado de madeira em miniatura.

Fonte: Dias e Penha (2019).

Figura 19 Imagem do livro Floresta² 

Com a caixa, ler Floresta² se torna um ritual. Abrir a caixa, estender e demorar-se no manto, espalhar e contemplar as cartas, lançar os quadrados sobre imagens e textos, lidar com as combinações e interseções… É um livro, mas também um jogo, um tapete voador, um chão de floresta, uma oferenda à floresta. Parece conter muito do que queríamos fazer na disciplina e não pudemos. As páginas soltas dão a sentir o movimento intenso de leitura que uma floresta convoca: a atenção a abundância de espécies de relações possíveis. Não apenas relações que o livro faz, mas relações que ele pede para seguirmos fazendo, florestas porvir…

Ensino e companhias mais que Humanas

O estatuto de plantas companheiras de ensino enfatiza a importância das plantas nos processos de ensino e aprendizagem para além de perspectivas utilitaristas que as colocariam vulneráveis aos caprichos humanos. As plantas, nessa perspectiva, não são meros conteúdos de ensino, nem meros recursos didáticos, elas são coconspiradoras em processos de pensamento e criação que fazem florescer de modos inusitados relações materiais e regimes de signos entre biologias e artes em constantes devires. As plantas nos mobilizam e nos envolvem em novos “conjuntos onto-epistemológicos”, para usar uma expressão de Carstens (2022), fazendo com que o ensino universitário seja convocado a abranger diferentes modos de percepção e ação, a cultivar possibilidades infindáveis de polinizações cruzadas entre biologias e… e… e… As alianças vegetais convocam a pensar o ensino como um laboratório-ateliê de perceber-fazer floresta e a dar atenção às fabulações que brotam pelas frestas, entre biologias e artes.

Fabulações que buscam dar passagem para modos de existir nunca antes vistos, reais, mas anômalos e especulativos, que exigem do ensino também um movimento de aprender a ver as potências de emaranhamentos fluidos entre biologias, artes e culturas. É o filósofo Étienne Souriau que se pergunta: “como ver?” (Lapoujade, 2017), fazendo-nos pensar que há artes e ciências ligadas à percepção das aberturas à criação desenhadas pelos virtuais nos materiais. São as plantas que nos chamaram a aprender a ver, seres que veem com o corpo todo e que cujo modo de ver é povoado pela constante geração de parentescos raros com o Sol, a terra, as águas, os animais, as outras plantas e os humanos. Aprender a ver é também uma possibilidade de combater a xenofobia comunicante que impede que modos de existência entre biologias, artes e culturas, estrangeiros e aberrantes ganhem vida e tenham direito à existência e experimentação nas salas de aula. Questionando, assim, a atribuição de “científicos” que, por vezes, é exclusivamente atribuída aos laboratórios, academias de ciências e universidades, assumindo uma perspectiva de biologias que se inventam em um entrelaçar e entremear com as culturas (Guimarães; Silva, 2010).

Pensar no ensino assumindo como companhias as plantas é reinscrever os problemas do Antropoceno em termos de atenção, escuta e respeito aos devires, é fabular outros passados-presentes-futuros possíveis, em que escapamos dos reducionismos biológicos, das oposições entre artes e ciências e das perspectivas que pensam o ensino como mera repetição e reprodução do mesmo. Com as plantas somos convocados a perceber que ensinar tem relação com cuidar do acontecimento político “floresta”, onde assumimos que não pensamos sozinhos, mas através de pontes, conexões e sinapses, não pensamos sobre as plantas, mas com elas, em relações com suas realidades e modos de existir imponentes, afirmativos e enigmáticos.

Projetos

Este artigo é um produto dos projetos de pesquisa: Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia-Mudanças Climáticas (INCT-Mudanças Climáticas) Fase 2, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), projeto 465501/2014-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) projeto 2014/50848-9 e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) projeto 16/2014; projeto de pós-doutorado “Perceber-fazer floresta – do chamado a pensar o que pode a matéria papel diante do Antropoceno”, desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Pará (UFPA) sob supervisão de Maria dos Remédios de Brito; e projeto “Perceber-fazer floresta: alianças entre artes, ciências e comunicações diante do Antropoceno” (Fapesp 2022/05981-9).

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Recebido: 02 de Junho de 2022; Aceito: 20 de Setembro de 2022

Susana Oliveira Dias é Pesquisadora PqB do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora no Mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Instituto de Estudos da Linguagem (Labjor-IEL-Unicamp).

E-mail: susana@unicamp.br

Editor a cargo: Luís Henrique Sacchi dos Santos; Leandro Belinaso Guimarães; Daniela Ripoll

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