Introdução
“Será obrigatória a Prática de Ensino das matérias que sejam objeto de habilitação profissional, sob forma de estágio supervisionado, a desenvolver-se em situação real, de preferência em escola da comunidade” (art. 2º.). Este trecho compõe a Resolução nº 9, de 6 de outubro 1969 (Conselho Federal de Educação). Reside no texto desta resolução o ato que inaugura o estágio na formação de professores. Este dispositivo legal produziria um efeito duplo e imediato. O primeiro é que a prática de ensino passa a se dar na “forma” de estágio supervisionado, o que corresponde ao entendimento de que a formação inicial deve prever uma etapa investida de ações diretamente relacionadas à atuação docente que se darão no lócus da respectiva atuação profissional. O segundo é que os colégios de aplicação (anexados aos cursos de licenciatura) deixam de ser o campo privilegiado da formação dos novos professores formados no ensino superior, já que as instituições escolares das redes de ensino (escolas da comunidade) passam a ser concebidas como espaços de desenvolvimento do estágio, que é prática curricular e obrigatória dos cursos de formação de professores. O texto da Resolução estabelece a correspondência entre estágio e “situação real”, o que pode ser entendido como uma alusão às práticas formativas até então desenvolvidas, que se davam nas escolas chamadas “modelo” ou “de aplicação”. Aquelas corresponderiam a instituições distintas das escolas que compunham as escolas “da comunidade”.
Sobre o contexto da criação do estágio
A Resolução nº 9 de 6 de outubro de 1969 é produto do contexto no qual se baseava a teoria do capital humano, ambiência da Reforma Universitária (1968). Aparece na Portaria nº 1.002, de 29 de setembro de 1967, assinada por Jarbas Passarinho, Ministro de Estado dos Negócios do Trabalho e Previdência Social, publicada no Diário Oficial em 6 de outubro de 1967, que estabelecia: “Fica instituída nas Empresas a categoria Estágio a ser integrada por alunos oriundos das Faculdades ou Escolas Técnicas” (art. 1º. Portaria nº 1.002, de 29 de setembro de 1967). Pode-se afirmar que compartilha a natureza aberta, em 1942, pelo Decreto-Lei nº 4.073, de 30 de janeiro de 1942, que instituiu a Lei Orgânica do Ensino Industrial, estabelecendo as bases de organização e de regime do ensino industrial (equivalente ao secundário). (COLOMBO, BALLÃO, 2014). É coetânea do Centro de Integração Empresa-Escola, versão assumida pela Secretaria Geral do Ministério da Educação, por meio do Plano Setorial de Educação e Cultura, 1972/1974 que dispunha sobre a “Integração Escola-Empesa-Governo” (BREJÓN, 1977, p. 111).
O argumento para a integração viabilizada pelo estágio era o de que “os universitários formados entre nós se apresentam aos locais onde pretendem emprego, sem a noção clara das realidades ambientais, defasados dos modernos equipamentos e das técnicas que estes exigem devendo realizar ‘em serviço’, um treinamento que deveria ser feito concomitantemente com os estudos de graduação” (BREJÓN, 1977, 111-112). Nota-se que o estágio surge numa conjuntura na qual se constata a escuta da queixa da empresa (ou outras instituições) acerca da qualidade dos profissionais que são preparados pelas universidades. Essa queixa pode ser interpretada como eco da chamada teoria do capital humano que grassa em diferentes contextos, dentre os quais o estágio, anos 1960. Não que a “economia da educação” tenha nascido ali, mas, como adverte Vanilda Paiva “[...] ganhou importância em conexão com o peso adquirido pela educação como fator de desenvolvimento” (PAIVA, 2001, p. 2).
A demanda mercadológica pela formação profissional constitui um lado da marca de nascença do estágio. No outro lado está a perspectiva franqueada pela relação entre a instituição formadora e a escola “real”, espaço privilegiado de atuação do futuro professor. Quando a escola “em situação real” alça à condição de ser credenciada como espaço da formação inicial, muitas possibilidades são abertas pela parceria entre universidade e escola, que é, diga-se de passagem, inaugurada pelo estágio.
Dessa maneira, delineia-se a ambiguidade como marca de nascença do estágio. Essa é flagrada na constatação de que a realização do estágio na escola também guarda a potencialidade de uma parceria que pode aproximar universidade e escola, articular teoria e prática, promover o diálogo entre a formação inicial e a formação continuada, ao mesmo tempo em que o estágio é, no seu nascedouro, mecanismo de intervenção do mercado (empresa) sobre a formação inicial do futuro profissional
Postas as questões que circundam o estágio e inscrevem a sua criação como ponto de intersecção entre a universidade (instituição formadora) e a escola “real”, há que se pensar sobre o modus operandi que perpassa a institucionalização desta parceria. De pronto, duas questões emergem. A primeira diz respeito à complexidade da escola (situação real) versus o modelo de prática de ensino até então desenvolvido nas escolas “modelo” ou de “aplicação”. Com esse fito vale a pena considerar Moysés Brejón quando, ao se deter sobre esse momento de transição, se pronuncia em tom de advertência: “[...] os problemas a serem resolvidos na realização de estágios em escolas tornam impraticável a oferta de “[...] um roteiro passível de ampla utilização em quaisquer situações” (BREJÓN, 1977, p. 16).
O autor em questão oferece pistas de que havia um formato estabelecido para prática de ensino desenvolvido nos cursos de formação inicial de professores e realizado em escolas de “modelo” ou de “aplicação” e que este formato encontraria dissonâncias com o estágio ora proposto nas escolas “em situação real”. É preciso entender a escola “em situação real” corresponde à escola, cuja fundação se associa diretamente à formação do aluno, que se difere da função instada pelo estágio que supõe que a escola seja partícipe da formação profissional do futuro professor, como já faziam as escolas de “aplicação” ou “modelo”. Essas escolas “de aplicação” e “modelo” surgem com a prerrogativa da colaboração na formação profissional de docentes.
A segunda questão é corolário da primeira, e corresponde à necessidade de convencimento da escola “em situação real” da sua nova função: “[...] é urgente que as escolas admitam que receber estagiários é prestar serviço à educação; é prestar um serviço ao qual nem mesmo as demais empresas, públicas ou particulares, se têm recusado” (FACÓ apud BREJÓN, 1977, p. 15). Vê-se, assim, que a novidade inaugurada pela prática de ensino no formato de estágio realizado na escola real se revela como condição para que a escola se manifeste, seja em sua dinâmica interna que impõe a reformulação da prática de ensino/estágio, seja porque, a considerar o conjunto das suas atribuições, é preciso se interrogar sobre as condições efetivas para assumir novas atribuições, como a “prestação de serviços” para a universidade, por meio do estágio, objeto em questão.
A resposta aos impasses derivados da nova função exigida da escola assumirá feições distintas, a exemplo do que se verá na Portaria nº 3, de 22 de janeiro de 1974 (Portaria que disciplina o Estágio Supervisionado nas Escolas Oficiais e Particulares - Coordenação do Ensino Básico e Normal - CEBN). Neste dispositivo legal, se prevê, no inciso XVII, a criação de uma coordenação administrativa do Estágio Supervisionado a nível sub-regional”, a quem caberia, dentre outras ações, credenciar escolas que “apresentem condições para ser campo de estágio” e “[...] facilitar a comunicação entre Supervisores dos Estágios e as escolas”. Também chama a atenção o teor da Resolução da Secretaria de Educação (SE) de 21 de outubro de 1971 reeditado pela Portaria da Coordenação do Ensino Básico e Normal, nº 3 de 22 de janeiro 1974(Inciso XXVI): “As atividades de Estágio Supervisionado serão remuneradas à base de aulas excedentes tanto para o coordenador como para todos os professores encarregados da supervisão.”
A realização de estágio nas escolas “em situação real” desencadeia um conjunto de ações e institutos, como a criação de um órgão mediador entre o professor da universidade e a escola, o ato de credenciar escolas que apresentassem condições de receber o estágio e, é claro, a remuneração prevista para os profissionais envolvidos no trabalho com o estágio. Esse aparato revela a complexidade de materializar a nova função da escola. A Portaria que indica a existência de critérios para credenciamento das escolas não os revela, mas tal silêncio talvez possa ser contrabalançado pela previsão explícita da remuneração aos profissionais envolvidos com o estágio, o que por si só, constitui evidência inequívoca de que o ato de remunerar é equivalente ao reconhecimento do trabalho suposto pelo estágio.
Institucionalização e naturalização do trabalho com o estágio
Seguindo o exercício que busca pistas da institucionalização do estágio no interregno anunciado, importa o destaque da Lei nº 6.494, de dezembro de 1977, somente suplantada pela Lei nº 11.788, 25 de setembro de 2008), considerando que aquela (1977) já previa no artigo 3º, a formalização do estágio “mediante termo de compromisso celebrado entre o estudante e a parte concedente, com interveniência obrigatória da instituição de ensino”. Importa destacar que o termo que celebra o convênio entre a instituição formadora e a escola tanto realça o papel da instituição formadora (interveniente) como relega a escola à condição de quem autoriza que outrem (alguém) faça uso (concedente) de si. A redução da escola à condição de concedente parece corresponder a um arranjo possível, já que assumir o trabalho da escola com o estágio, entendendo-o como trabalho, implicaria assumir as consequências resultantes de se somar ao trabalho da escola também o trabalho suposto pelo estágio. Isso correspo alterar a dinâmica da escola e a organização do trabalho pedagógico. Diante desta questão, postula-se pelo entendimento de que, residem aí elementos da gênese da naturalização ou da invisibilidade do trabalho suposto pelo estágio, na medida em que este (estágio), penetra na escola “real” e a ocupa. Esta, por sua vez, é mera concedente, ao passo que a “interveniência” é devida à instituição formadora.
A condição da escola de “concedente”, indicada na Lei nº 6.494, de 7 de dezembro de 1977, é reiterada pelo Decreto nº 87.497, de 18 de agosto de 1982, pela Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008 e sua longa vigência desponta como possibilidade vigorosa de compreender os meandros da institucionalização da parceria entre universidade e escola por meio do estágio, indicando que, no intervalo de três décadas, embora se verifique nuanças do redimensionamento do papel da escola/professor do campo frente ao estágio, o que é prevalente é a ideia de “concessão”.
A seguir se tratará de pontuar algumas evidências que apontam para processos de naturalização do estágio, com destaque para a invisibilidade do trabalho da escola junto ao estágio, como estratégia relevante do processo de naturalização do estágio nos processos que envolvem a dimensão prática da formação de professores.
Uma evidência está na Lei de Diretrizes e Bases nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que reconhece o aumento das funções docentes, assim como reconhece que os sistemas de ensino devem estabelecer normas para o estágio. Apesar disso, este dispositivo não reconhece estágio como trabalho da escola ou do professor da escola. O ato de lei que promove as distinções de funções da universidade e da escola, a primeira interveniente, a segunda concedente, incrementa a invisibilidade do trabalho da escola, assertiva que ganha reforço quando se está diante do texto da Lei de Diretrizes e Bases nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Senão, vejamos. Esse documento, que inscreve a educação no marco da redemocratização política, carrega uma contradição, no que diz respeito ao estágio e ao trabalho docente.
Na Lei de Diretrizes e Bases nº 9394, de 20 de dezembro de 1996, há o reconhecimento de que houve um aumento no repertório de ações associadas às funções dos professores, dentre as quais, a participação do professor na elaboração da proposta pedagógica, na elaboração e cumprimento plano de trabalho, na proposição de estratégias de recuperação dos alunos de menor rendimento, na colaboração com atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade (BRASIL, 1996, art. 13). O reconhecimento do aumento de funções atinentes ao trabalho docente não inclui o trabalho que se realiza com o estágio, apesar de investir os sistemas de ensino de atribuições afeitas ao estágio, como o estabelecimento de “normas de realização de estágio em sua jurisdição, observada a Lei Federal sobre a matéria. (Lei n. 11.788, de 25 de setembro de 2008, Título VIII. Das disposições gerais, Art. 82). Verifica-se que, ao mesmo tempo, que a referida lei orienta os sistemas de ensino no trato com o estágio, deixa de arrolar o trabalho da escola com o estágio entre as funções reconhecidamente docentes.
Existem sistemas de ensino que responderam à LDB nº 9394/96. Este é o caso de uma das redes de ensino abarcadas pela pesquisa Recortes da relação entre formação e atuação no estágio curricular obrigatório do curso de Pedagogia, desenvolvida no âmbito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG). Em 2014, foi criado o documento intitulado: Orientações para a realização de estágio curricular e pesquisa nas instituições educacionais da Rede Municipal de Educação (RME), da cidade de Goiânia (GO). O título revela que a tônica do documento é estabelecer critérios para a admissão nas escolas, seja para a pesquisa, seja para o estágio, a exemplo da definição de número de estagiários por turma, envio de lista nominal de estagiários para a secretaria etc. Em princípio, o documento da RME atende à LDB, mas entende-se que trata de questões associadas ao estágio com uma legalidade que se revela insuficiente, carecendo de alguma concepção que atrele o estágio à formação ou ao papel da escola e o trabalho do professor da escola na formação do futuro professor.
Em contraposição ao sistema de ensino (RME), vale verificar o modo como literatura especializada se pronuncia sobre o estágio, considerando especialmente o trabalho que o estágio implica. Há um tom qualificador do estágio e do papel do professor da escola que, em alguma medida, será assumido pelo texto da Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008, embora possa ser capturado em produções bibliográficas que antecedem a mencionada Lei. Dentre as quais, se destaca a compreensão de que o estágio deve ser trabalhado na perspectiva da “formação compartilhada do professor” da escola (MOURA, 1999). Já Vani Kenski sugere que “[...] seja elaborado um projeto − de preferência em conjunto, inclusive com o professor da escola de estágio” (apud PICONEZ, 20012, p.40).
Nos dois excertos acima (MOURA, 1999; KENSKI, 2001), há duas formas de compreensão do papel que o estágio cumpre em relação ao professor da escola. A primeira sinaliza para o reconhecimento de que o estágio potencializa a formação “continuada” do professor da escola (MOURA, 1999). A segunda subverte o preceito legal dado pela condição “concedente” quando admite que o professor da escola é o sujeito a quem compete, juntamente com a instituição formadora, as ações afeitas ao planejamento do trabalho suposto pelo desenvolvimento do estágio. O trabalho aparece ora como ação de qualificação, ora como ação associada à docência (planejamento).
Há, nessas duas proposições, ambos produzidas no início dos anos 1990, marcas de um movimento de renovação do sentido atribuído à escola e ao professor que recebe o estágio, e que será captado pela Lei Geral de Estágios (2008). Essa lei indica certa equiparação entre o trabalho com o estágio desenvolvido pelos professores da universidade e da escola: “O estágio, como ato educativo escolar supervisionado, deverá ter acompanhamento efetivo pelo professor orientador da instituição de ensino e por supervisor da parte concedente” (Lei n º 11.788, de 25 de setembro de 2008, Cap. I, § 1o), devendo ter o profissional da escola “formação ou experiência” na área de conhecimento desenvolvida no curso do estagiário, já que terá como atribuições “orientar e supervisionar” (Art. 9º. Incisos I, II, III). É de se pensar que, quando a Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008 define que o professor da escola deve acompanhar, orientar e supervisionar o estagiário, está fundado o precedente oficial para a desnaturalização e desvelamento do trabalho que o estágio impõe para o professor e para a escola concedente.
Acontece que, outro trecho do mesmo texto da referida Lei dirá textualmente: “O estágio, como ato educativo escolar supervisionado, deverá ter acompanhamento efetivo pelo professor orientador da instituição de ensino e por supervisor da parte concedente, comprovado por vistos nos relatórios”. (Artigo 3º, §1º, Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008. Entende-se que há aí um estratagema que, ao mesmo tempo que produz o efeito de visibilizar o trabalho realizado pelo professor da escola, também promove a sua negação já que, para tal, basta que apresente “vistos dos relatórios”.
Para os propósitos deste texto, também interessa tratar alguns dados da pesquisa intitulada Recortes da relação entre formação e atuação no estágio curricular obrigatório do curso de Pedagogia, como forma capturar, no plano empírico, a ideia de naturalização e invisibilidade do trabalho da escola com o estágio. A pesquisa envolveu 61 professores supervisores de estágio, modulados em escolas das redes federal, estadual e municipal.3 Tais professores responderam um questionário que indagava, entre outros temas, o tempo de experiência nesta função. As respostas a essa questão foram cruzadas com o estudo documental dos Projeto Político Pedagógicos (PPP) das escolas onde trabalhavam os professores respondentes da pesquisa. Cabe esclarecer que as escolas abrangidas pela pesquisa, foram selecionadas, considerando alguns critérios. A rede federal trabalha com futuros professores desde a sua fundação, em 1968, quando era investida das características de Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Goiás. A rede estadual possui apenas cinco escolas de anos iniciais do ensino fundamental (EF) na cidade de Goiânia (Goiás, sendo que uma delas recebeu o estágio de Pedagogia nos anos de 2015 e 2016). Avaliou-se que seria importante a amostra estadual para a pesquisa. A rede municipal de Goiânia (GO) é a rede mais recebe estagiários de Pedagogia e, para tal, o critério era o de ter recebido estagiários a partir do ano 2010. Entretanto, sabe-se que entre as escolas municipais da pesquisa há aquelas que recebem estagiários há três décadas ou mais.
Dos números do quadro 1, deve se destacar que recebem e acompanham estagiários de Pedagogia no intervalo de 16 a 20 anos (ou mais), cerca de 5% dos professores da rede municipal, 50% da rede estadual e 20% da rede federal. A rede municipal corresponde à rede com maior concessão de campos de estágio para a licenciatura em Pedagogia, e revela que, entre os respondentes, mais da metade dos professores é de ingresso recente na carreira, isto é, até 5 anos.
Quadro 1 Tempo de atuação de professores na supervisão de estágio (redes federal, estadual e municipal)
Jurisdição | Tempo em os professores recebem estagiários (supervisores de estágio) |
---|---|
Municipal | 2,27% (1) há mais de 20 anos; 2,27% (1) de 16 a 20 anos; 25% (11) de 6 a 10 anos; 56,8% (25) de 1 a 5 anos; o restante há menos de 1 ano. |
Estadual | 50% dos respondentes informaram 1 a 5 anos, enquanto a outra metade declarou atuar como supervisor de estágio há mais de 20 anos. |
Federal | 20% afirmou receber estagiários de 16 e 20 anos, 30% de 1 a 10 anos e o restante há menos de um ano. |
Fonte: Pesquisa Recortes da relação entre formação e atuação no estágio curricular obrigatório do curso de Pedagogia.
Os PPPs estudados envolveram 3 redes (1 escola federal, 1 escola estadual e 9 instituições municipais). Para o caso da rede municipal, foram selecionadas, de forma aleatória, os PPPs de três instituições municipais, aqui denominadas A, B e C. Sabe-se que o PPP é um documento da escola, tornado uma exigência a partir da Lei de Diretrizes e Bases nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Emerge no contexto da afirmação democrática, da gestão colegiada e autônoma da escola, considerado documento de relevo no qual a escola demonstra a “capacidade de delinear sua própria identidade”. (VEIGA, 1995, p. 14). Sendo assim, em que medida a escola se percebe com alguma responsabilidade no processo de formação dos futuros professores, por meio do estágio? Qual é o tipo de tratamento conferido às ações da escola e respectivos professores, no que diz respeito ao estágio?
Na rede pública federal, o PPP do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE/UFG) informa que a instituição surgiu como Colégio de Aplicação, criado pelo Decreto-Lei n.º 9.053, de 12 de março de 1966, suas atividades tiveram início em março de 1968, no prédio da Faculdade de Educação (UFG), constituindo-se como seu órgão suplementar, seus objetivos eram:
[...] constituir-se em laboratório experimental de técnicas e processos didáticos, visando ao aprimoramento da metodologia de ensino; constituir-se em escola experimental para novos cursos previstos na legislação vigente e servir como campo de estágio supervisionado para a Licenciatura e para as habilitações do curso de Pedagogia (DECRETO-LEI. Nº 9.053, DE 12 DE MARÇO DE 1966 CITADO NO PPP DO CEPAE-UFG).4
O documento informa que, a partir de 2006, a instituição passa a se constituir por uma infraestrutura composta por 58 salas, uma delas denominada “sala de estágio”. A organização administrativa do CEPAE-UFG possui órgãos diretivos aos quais subordinam-se comissões permanentes, dentre estas a comissão de estágio, cujo papel é articular os projetos de estágio (art.19, regimento). O CEPAE-UFG possui três secretarias (executiva, administrativa, de pesquisa e pós-graduação). A primeira tem, entre suas responsabilidades, a documentação relacionada ao estágio. Dentre as atividades do quadro docente do CEPAE-UFG está a “supervisão a alunos de graduação e pós-graduação”. Um tópico específico do referido PPP é denominado Estágio e sobre esta matéria se discorre 20 linhas de texto que tomam praticamente uma página.
O PPP da rede pública estadual objeto dessa pesquisa nada menciona sobre o estágio.
Foram selecionados, de forma aleatória, três PPPs da rede pública municipal, cujos dados sobre estágio apresentam-se no quadro 2.
Quadro 2 O estágio no texto dos PPPs de escolas da rede municipal
Instituição | Período PPP | Referência ao estágio no PPP. |
---|---|---|
A | 2013, 2014 | Não há nenhum tipo de menção ao estágio. |
B | 2011 | Histórico: informa-se que a fundação da instituição em 1953 é definida pelo Instituto de Educação de Goiás (IEG) "com o com o objetivo de ser escola-campo de estágio e formação para o curso de magistério do IEG". Informe sobre o estágio: existência de "parceria" com a UFG, por meio do "estágio supervisionado do curso de Pedagogia" |
C | 2015 | Menção indireta ao estágio: "Planejamento poderá acontecer em horário de aula, desde que o coletivo se organize de forma que os alunos não sejam dispensados (estágios)" |
Fonte: Pesquisa Recortes da relação entre formação e atuação no estágio curricular obrigatório do curso de Pedagogia.
Verifica-se um conjunto diversificado de situações e menções ao estágio na rede municipal. Enquanto a escola A não faz nenhuma menção ao estágio no PPP, a escola C aproveita o estágio como momento de organizar o coletivo da escola para planejamento sem a dispensa dos alunos. Dentre as três escolas municipais, a B relata o histórico de sua criação associado à formação de professores e ao estágio (Instituo de Educação). Por conta deste matiz de origem, nota-se que o estágio, no texto do PPP desta instituição, recebe um tratamento que mescla ora curiosidade histórica, ora o registro de tipo protocolar de parceria com a universidade.
Dentre os professores supervisores de estágio, 5% (rede municipal), 50% (rede estadual) e 20% (rede federal) recebem estagiários (futuros professores), num período que se estende entre 16 e 20 anos. Especificamente na rede municipal, que é responsável por mais de 80% dos campos de estágio que anualmente recebem os estudantes de Pedagogia da GG, quase 60% dos professores envolvidos na pesquisa, contam com 5 a 10 anos de experiência na recepção de estagiários. A quantidade expressiva de tempo de trabalho do professor da escola básica com o estágio, isto é, com os futuros professores, pouco impacta a qualidade destinada ao tratamento do estágio na redação do PPP, salvo o caso da escola da rede federal.
As similitudes e diferenças são importantes no conjunto de referências feitas ao estágio nos textos dos PPPs das escolas nas três redes. Enquanto no texto do PPP da rede estadual não há nenhuma menção ao estágio, o texto do PPP da escola da rede federal declara sua história associada à formação de professores. E essa história, cujo nascimento se associa à formação de professores, se atualiza, no texto do PPP, em sentidos que se traduzem na concepção sobre o estágio, aspectos de infraestrutura, organização do trabalho, identidade da profissão associada ao trabalho de supervisionar o estágio da rede federal etc. Já no caso observado na rede municipal (escola B), apesar da origem histórica também se voltar para a formação de professores, não há menção a temas como concepção de estágio, associação com a formação de professores, espaço físico destinado ao estágio ou congêneres. Enfim, não há sinal que evidencie a percepção da escola sobre o seu próprio lugar no trabalho que implica a formação de futuros professores. Tal constatação sustenta a compreensão de que, no caso da escola B da rede municipal, o estágio aparece ora como curiosidade histórica, ora como o registro protocolar de parceria existente com a universidade. O conjunto de tais evidências, pode parecer à primeira vista, de pouco relevo, mas se torna fulcral quando se pretende entender como as condições de inserção e atuação da “escola real” contribuem para naturalizar a relação com o trabalho de “supervisão” do estágio. O estudo dos PPPs das instituições mostra que a invisibilidade ou a menção que se reduz ao protocolo informativo do estágio, corrobora a compreensão de que o trabalho com estágio acontece na escola de forma “naturalizada” sendo, portanto, uma ação que, apesar de compor a dinâmica da escola há décadas, não constitui a sua identidade, salvo o caso da rede federal.
Em escala nacional, a Lei Geral de Estágio (Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008) corresponde a um marco legal de relevo e vale a pena verificar como a literatura especializada se pronuncia sobre o estágio após a sua sanção. Não raro, há uma crítica contundente, alegando-se desde a inexistência de “especificação clara sobre como são realizados, supervisionados e acompanhados” até a ausência de referências quanto à “[...] validade ou validação desses estágios”, passando pela observação de que “não estão claros os objetivos, as exigências, formas de validação e documentação, acompanhamento, convênios com escolas das redes etc.” (GATTI, TARTUCE, UNBEHAUM, 2010, p. 106).
Podia-se ler a seguinte crítica em matéria publicada no Jornal Folha de S. Paulo, em agosto de 2013: “Os estágios são mal acompanhados pelos professores dos cursos superiores e nem sempre são realizados em escolas com bom desempenho pedagógico” (VALLE, 2013, s/p.)
As críticas à implementação do estágio carregam no tom de suspeição sobre os processos de realização e acompanhamento do estágio (GATTI, 2010; VALLE, 2013). Entende-se que é neste contexto, no qual se vislumbram as possibilidades e as mazelas do estágio, que também germinam e crescem no período recente os programas da política nacional de formação de professores. (PIBID, Residência Pedagógica).
O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), apresentado à sociedade por meio do Decreto nº 7.219, de 24 de junho de 2010, resulta de parceria entre o Ministério da Educação e Cultura e a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Constituem-se seus objetivos a promoção de parceria ente universidade e escola nos processos de formação do futuro professor, a possibilidade de que o estudante de curso de licenciatura se aproxime do cotidiano das escolas públicas desde o início do curso. O PIBID tem como pressupostos o acompanhamento dos discentes por um professor da escola e por um docente de uma das instituições de educação superior participantes do programa e concessão de bolsas a alunos de licenciatura participantes de projetos de iniciação à docência.
Por sua vez, o programa Residência Pedagógica emergiu em 2012. Neste ano, o deputado Blairo Maggi, do Partido da República (PR), do estado do Mato Grosso (MT), apresenta um projeto que determinava a obrigatoriedade da residência pedagógica para obtenção do título de professor. O governo federal lançou, em 18 de outubro de 2017, a Política Nacional de formação de Professores. Esta tem a BNCC como norteadora do currículo da formação de professores e o Programa Residência Pedagógica como linha de ação na formação inicial. O programa Residência Pedagógica defende “a imersão do licenciando na escola de educação básica, a partir da segunda metade de seu curso”. Essa imersão deve abranger atividades como “regência de sala de aula e intervenção pedagógica, acompanhadas por um professor da escola com experiência na área de ensino do licenciando e orientada por um docente da sua Instituição Formadora”. Além disso, o programa Residência Pedagógica supõe a oferta de bolsas para os sujeitos envolvidos (residente, preceptor, coordenador e docente orientador). Dentre os objetivos do programa Residência Pedagógica, estão a indução de reformulação da formação prática nos cursos de licenciatura, o fortalecimento, ampliação e a consolidação da relação entre a universidade e a escola.
Os textos oficiais expõem os dois programas (PIBID e Residência Pedagógica). Neles, não há menção nominal ao estágio. Mas as concepções, os objetivos e as ações previstas pelos dois programas, não se distinguem daquilo que, substancial e genuinamente, está associado ao ato fundacional do estágio. Exasperando ainda mais a questão, em 15 de dezembro de 2018, o MEC, em coletiva técnica, apresentou proposta para a nova Base Nacional Comum (BNC) da Formação de Professores de Educação Básica, com o propósito de orientar os currículos dos cursos de licenciatura e pedagogia de todo o país. Nesse documento, o estágio aparece para ser negado. Isto é, o estágio aparece no texto da BNC (2018) para ser substituído pelo Programa de Residência Pedagógica, sob o argumento de que “[...] na formação de professores, temos estágios protocolares, pouco efetivos e com quase nenhum vínculo com a escola” (SMOLE, 2018).
Afora os meios reprováveis de formulação e apresentação da BNC (2018), que, dentre outras, ignora a Resolução nº 1, de 7 de janeiro de 2015 (CNE), a imposição da chamada residência pedagógica se dá num imbróglio discursivo que pretende convencer de que o problema da formação inicial de professores está no fato de que “[...] os cursos de formação dos professores são extremamente teóricos [...]” e que, diante disso, a residência pedagógica garantirá ao graduando “condições de entender como funciona a prática de sala de aula”. A cisão entre teoria e prática é reapresentada sob um argumento que se funda numa falsa questão, já que assume, cinicamente, uma clivagem epistemológica com forma artificiosa no tratamento do conteúdo da experiência prática na formação inicial.
É preciso recuperar o fio histórico, demarcando o surgimento do estágio em 1969, posto como o momento da formação inicial que insere o estudante no campo de atuação profissional, ação que inaugura a mediação entre a instituição formadora e a escola. E ação que envolve o acompanhamento do futuro professor tanto pelo professor da instituição formadora como pelo professor da escola.
Considerações finais
A institucionalização do estágio curricular obrigatório nos processos de formação de professores corresponde a uma trajetória histórica que mostra que, em sua origem (Resolução nº 9, de 6 de outubro de 1969), houve um curto período no qual se identifica indícios correspondentes do reconhecimento do trabalho realizado pela escola e respectivo professor. Entretanto, muito antes de se efetivarem como estratégia de reconhecimento e remuneração deste tipo de trabalho, o que se viu foi uma escalada de ações pautadas pela falta reconhecimento do trabalho da escola com o estágio, traduzindo-se numa ausência política notável em um conjunto significativo de evidências que demonstram a naturalização do estágio como fórmula que resulta na sua invisibilidade.
O estágio, apesar de ser um espaço-tempo privilegiado da formação inicial docente, em diferentes escalas - legislação nacional, normativas locais (estadual, municipal), PPP escolar, dentre outras -foi alvo de depreciação. Paradoxalmente, no limiar dos seus cinquenta anos, recebe o maior golpe, é ameaçado pelos programas afeitos à recente política nacional de formação de professores, embora seja o corpus que inspira sua maior parte, podendo ser suplantado pela chamada residência pedagógica. Tudo isso acontece em meio a uma panaceia discursiva que produz um enredo falsamente epistemológico, atacando o papel da universidade na formação inicial, obscurecendo a articulação teórica e prática, como forma de negar a real questão política que é o reconhecimento da atuação da escola com o estágio como trabalho.