Introdução
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, neste sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manifestações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. (NORA, 1979, p. 119).
Em 2021, a professora e historiadora Maria Yedda Leite Linhares completaria um século de vida, tendo falecido em 2011, e continua a ser um exemplo na atuação de mulheres na área educacional. No artigo em tela buscamos desvelar os indícios de sua participação na história da educação fluminense.
Em nosso estudo analisamos aspectos da gestão1 da historiadora e professora enquanto secretária municipal de educação do Rio de Janeiro, indicada pelo vice-governador Darcy Ribeiro e nomeada no dia seguinte à posse do prefeito Jamil Haddad, em março de 1983. O estudo assinala quais as práticas pedagógicas desenvolvidas durante aquela administração que representou um processo de ruptura com a política educacional instalada pelos governos anteriores, marcados profundamente pela ditadura civil-militar. Assim, assinalamos algumas especificidades do período em que Maria Yedda Leite Linhares esteve à frente da pasta da educação.
Por outro lado, ressaltamos a formação de sua equipe e a reorganização das diretrizes da alfabetização, as demandas apresentadas pela Federação da Associação dos Moradores Estado do Rio de Janeiro (FAMERJ), assim como a conjuntura política herdada naquele momento e os sentidos que irão demarcar o pensamento educacional da administração brizolista.
Assim, ao desvelar os indícios da contribuição da educadora/historiadora Maria Yedda Leite Linhares, pretendemos destacar sua contribuição à “escola republicana” no Brasil.
Desse modo, no escopo deste trabalho, buscamos romper com esquecimentos, registrando memórias de uma década particularmente difícil em nossa história. Os caminhos percorridos enquanto secretária municipal e estadual de educação apontam para um cotidiano entrelaçado nas áreas da educação, da política e da história fluminense.
Portanto, a partir desse deslocamento da filiação da memória intentamos recuperar a consciência geracional de uma coletividade inserida naquela contingência temporal dos anos 1960 e, posteriormente, nos anos 1980, recuperando a visibilidade multifacetada daqueles acontecimentos ocorridos nos anos 1960/1980, imediatamente pré e pós-ditadura civil-militar.
Vale salientar também que as representações dos comportamentos das mulheres podem ser identificadas na espessa teia social da micropolítica cotidiana das relações de poder, sejam elas na família, no trabalho, nas escolas ou nos partidos políticos. E não parece ser possível compreender a história “de como as mulheres ocuparam as salas de aula sem notar que essa foi uma história que se deu também no terreno das representações do masculino e do feminino, os lugares sociais previstos para cada um deles são integrantes do processo histórico” (LOURO, 1997, p. 479).
Tal debate continua na ordem do dia, imposto pela consciência crescente do importante papel que o contingente feminino tem nas profundas transformações econômicas, sociais, políticas e culturais que marcam em todos os níveis a evolução da humanidade.
Segundo Scott (1992, p. 63):
[...] a história das mulheres apareceu como um campo definível principalmente nas duas últimas décadas. Apesar das enormes diferenças nos recursos para ela alocados, em sua representação e em seu lugar no currículo, na posição a ela concedida pelas universidades e pelas associações disciplinares, parece não haver mais dúvida de que a história das mulheres é uma prática estabelecida em muitas partes do mundo.
Logo, as categorias em função das quais pensamos a história são produtos reais do desenvolvimento histórico, podendo se transformar em forma de “conhecimento” da história uma vez encarnadas ou realizadas nas formas de vida social efetiva. Por outro lado, se observa “um desejo análogo de inverter as perspectivas historiográficas tradicionais, de mostrar a presença real das mulheres na história mais cotidiana, sustentado pelo esforço das historiadoras nos últimos anos” (PERROT, 1988, p. 171).
Diante de tal afirmação torna-se necessário investigar o papel social da mulher educadora, na medida em que a análise do discurso feminino no cotidiano assinala as contradições vividas pela sociedade brasileira, naquele momento histórico, e desta forma o processo cultural e histórico do qual a mulher foi vítima, compõe o inventário desta mulher-educadora. E nem sempre será fácil libertar-se deste passado (FARIA, 1997).
O importante, no entanto, é integrar de forma crítica cenas distantes ou perdidas no tempo, buscando incessantemente nos arquivos os restos da memória guardada, mesmo que seja fragmentada, e tentar reconstruir os elos e as conexões entre as diferentes dimensões do público e do privado. Ao mesmo tempo, as mulheres não podem apropriar-se de sua história a menos que comecem a coletivizar suas experiências, superando o isolamento estrutural que sofrem e compreendendo as causas sociais desta exclusão intelectual (SAMARA, 2003).
A existência de um grupo de mulheres, como Maria Yedda, que se constroem, tornando-se intelectuais e cidadãs lado a lado com a construção de um mundo novo, abrindo passagens, é fundamental para o avanço na tarefa de garantir às mulheres um espaço real de atuação política na sociedade, considerando que “a coincidência da mudança das circunstâncias com a mudança da atividade humana ou com a mudança dos próprios homens, só pode conceber-se e entender-se racionalmente como prática revolucionária” (MARX, 1985, p. 59).
Assim, entendemos que Maria Yedda se notabilizou por suas práticas diferenciadas, e é neste panorama que se insere o percurso da educadora Maria Yedda Linhares.
A construção de uma trajetória
Maria Yedda Leite Linhares nasceu em Fortaleza, Ceará, no ano de 1921.2 Os pais eram do Rio Grande do Norte e, embora não fossem de família ilustre, pertenciam à camada média da população. Os pais não frequentaram escolas, possuindo uma formação intelectual bastante simples, entretanto buscaram formas de saber e conhecer mais “as coisas do mundo letrado”. Tal atitude certamente influenciou Maria Yedda. Em particular, se observa uma grande influência materna, já destacada em outros estudos (ROCHA, 1992).
Quanto à formação escolar, iniciou-se no Ceará, em um grupo escolar público. Nesse mesmo período, sua família mudou-se para o Rio Grande do Sul e, mais tarde, em definitivo, para o Rio de Janeiro, no ano de 1933, onde Maria Yedda concluiu o ginásio, em 1938, prosseguindo os seus estudos até tornar-se a primeira e mais jovem mulher catedrática na história da universidade pública brasileira. Em 1939 ingressou na Universidade do Distrito Federal para cursar história e geografia. Em 1940 ganha uma bolsa de estudos do Institute of International Education, nos Estados Unidos da América do Norte, para onde se muda, lecionando português na Columbia University até 1941.
Dessa época rememora que:
Os dois anos que passei nos Estados Unidos foram decisivos para mim. Se houve um tournant na minha vida, se houve um momento em que a minha cabeça realmente mudou, foi nos Estados Unidos. Foi lá que aprendi como se organiza um curso, como deve ser uma universidade. Lá eu percebi que o que havia aqui não era uma universidade, era quase uma escola secundária, que não tinha a preocupação de formar, orientar ou conduzir ninguém. Era cada um por si e Deus por todos (ROCHA, 1992, p. 218).
A seguir, em 1944, conclui o curso de licenciatura em história, tornando-se, em 1946, assistente de Delgado de Carvalho na cadeira de História Moderna e Contemporânea da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFI). Em 1953 recebe o título de Livre Docente na cadeira de História Moderna e Contemporânea. Em 1957 é aprovada no concurso para titular de cátedra. Dando prosseguimento à sucessão de desafios, é nomeada diretora da Rádio MEC em 1963 e destituída, em 1964, em virtude do golpe civil-militar. Em 1968 é aposentada pelo Ato Institucional nº 5, instituído por aquele governo. Após ser presa algumas vezes e responder a Inquéritos Policiais Militares, vai para a França, onde é nomeada, pelo Ministério da Educação Nacional, Professeur Associé, inicialmente em Paris-Vincennes e, de 1970 a 1974, na Universidade de Toulouse, só retornando ao Brasil em 1974.
Ao retornar ao país, em 1976, começa a se dedicar à pesquisa em história agrária brasileira, no recém-criado Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola. Em 1977 organiza e dirige o Programa de História da Agricultura Brasileira, publicando então o livro História do Abastecimento, uma problemática em questão, 1530-1918 (LINHARES, 1979). Com a Anistia é convidada a lecionar no mestrado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e reingressa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), retomando a função de professor-titular.
A participação no governo de Leonel Brizola
Com a eleição de Leonel de Moura Brizola para governador do Rio de Janeiro, é convidada para assumir a secretaria de educação do município e, em 1986, a secretaria estadual de educação.
Logo, pensar os impasses e as possibilidades da escola brasileira contemporânea é inscrever sua compreensão nas determinações internas e externas que a construíram e que vão possivelmente modificá-la. Ao confrontar a sua história e as suas memórias, também buscamos identificar qual a política educacional que materializa um determinado projeto de sociedade, tendo em vista que suas diretrizes e omissões expressam para além das relações de força existentes nos sistemas de ensino público, que se tornam a própria imagem do projeto político-social escolhido e implantado pelo governo em análise.
Maria Yedda Leite Linhares foi indicada como secretária municipal de educação no dia seguinte à posse do prefeito3 Jamil Haddad,4 em 1983. A pasta era ambicionada por diversos políticos, sendo o vereador Emir Amed, do PDT, um dos nomes mais fortes. Também foram cogitados para o cargo Yara Vargas5 e o deputado federal José Frejat. Entretanto, a escolhida, pela indicação de Darcy Ribeiro,6 naquele momento não pertencia a nenhum quadro partidário. Tinha sido aposentada pelo AI-5, e como Darcy desenvolvia desde os anos 1950 uma carreira destacada de professora e pesquisadora em universidades públicas (UFF e UFRJ), situação interrompida com o seu exilio e só retomada em 1976, com o seu retorno ao país.
Acerca da administração de Haddad, a pesquisa ressalta alguns aspectos. Naquele momento, ainda era o governador eleito quem escolhia o prefeito da cidade, cuja indicação deveria ser submetida à Assembleia Legislativa.7 Inicialmente, diversos nomes surgiram como possíveis candidatos, sendo três com mais chances, eram eles: Cibilis Viana, José Colagrossi e o próprio Jamil Haddad. Contudo, foi o nome de Haddad que atingiu maior consenso entre os integrantes do PDT, sendo o seu nome relativamente bem recebido pelos partidos de oposição ao regime militar (PMDB, PT e PTB).
Logo que seu nome foi anunciado, Haddad afirmou que acreditava que ainda naquele ano as escolas públicas municipais passariam a funcionar em horário integral, extinguindo o período escolar de apenas três horas das crianças na escola, como acontecia à época (naquelas que funcionavam em três turnos). O prefeito destacava o apoio e colaboração do vice-governador, Darcy Ribeiro, e afirmava que “[...] a escola será o centro comunitário, no qual a criança terá estudo, merenda, lazer, assistência médica e pedagógica” (ASSIS, 1983, p. 27).
Em relação à política educacional, assinalou o restabelecimento e a valorização do ensino público gratuito e a melhoria dos salários dos professores. Segundo Haddad, a desvalorização do ensino8 começou no governo de Carlos Lacerda9 quando “dividiram o bolo, cortaram em três” (HONSE, 1983c, p. 14), com o segundo e o terceiro turnos. Houve uma defasagem no salário dos professores, e os melhores foram atraídos pela rede privada. Portanto, “tem que se fazer uma revolução nesse campo, [...] revolução é mudança de estrutura. Então é uma revolução” (HONSE, 1983c, p. 14).
Nesse sentido, Haddad demonstrava que seu governo seria totalmente alinhado com os propósitos do governador Brizola, assinalando uma parceria que estava sendo construída entre município e estado a fim de “priorizar a população carente”, que iria à rua para “ouvir o povo, seus problemas e suas reclamações, [...] especialmente as associações de bairros e favelas” (HONSE, 1983c, p. 14). Por outro lado, ressaltava ainda que o PDT tinha uma proposta socialista de governo e que a transformaria em práticas cotidianas, tais como a criação de uma Central de Reclamações para a população. O discurso do prefeito apontava ainda para a criação de Centros Comunitários em bairros pobres e ocupados por populações “carentes”.
A educação era concebida por sua administração como um serviço público que impediria as crianças pobres de se transformarem em delinquentes, a escola assumiria esse papel social, oferecendo também alimentação e assistência médico-odontológica. Tal projeto, embora presente no discurso de Haddad, estava sendo formulado pelo vice-governador Darcy Ribeiro, idealizador do que mais tarde seria denominado Centro Integrado de Educação Pública (CIEP). A educação como uma política a ser ofertada aos pobres, não rompia, desse modo, com uma concepção compensatória tão arraigada em nossa história.
Assim, o então prefeito definia sua filosofia de governo como um mutirão, no qual buscava solucionar os problemas do município com a participação de representantes da comunidade (HONSE, 1983c, p. 14). Contudo, havia divergências entre o que o prefeito considerava a inserção da população nas decisões e o que as organizações realmente consideravam uma possibilidade de ter suas demandas ouvidas (e talvez até atendidas).
Um exemplo concreto dessa prática era a reivindicação da FAMERJ de eleição dos administradores regionais, o que para Haddad não era uma alternativa viável, pois preferia empossar pessoas comprometidas com o partido e suas decisões, evitando assim possíveis problemas (ou ter que ajustar os interesses do partido aos da comunidade local). Todavia, no tocante à Federação das Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ), aprovou a participação de um representante na direção da secretaria municipal de desenvolvimento social. O que, em certa medida, demonstra que a participação dos membros da sociedade era aprovada e até bem-vinda, desde que não significasse poder de decisão sobre as demandas e reivindicações há tempo reprimidas e sufocadas pelo regime ditatorial. Ainda assim, o presidente da FAMERJ, Jô Rezende,10 afirmou que Haddad era mais acessível que o seu antecessor e que a entidade mantinha contato frequente com o prefeito.
Outras demandas se apresentavam e as reivindicações relacionadas à educação foram trazidas também pelo Conselho de Moradores da Cidade de Deus, que solicitava mais escolas e a implementação do 2º grau noturno. Assim como pela Associação de Moradores da Vila do Vidigal, que pretendia continuar vendendo bônus para a construção de uma creche, além da luta pela ampliação do número de vagas na Escola Municipal do Vidigal. Em um documento da FAMERJ, específico para a Zona Sul, preparado para ser entregue no encontro da entidade com o governador - com redação final de representantes da Associação de Moradores de Laranjeiras, de Botafogo e do Bairro Peixoto -, os moradores apontavam que não bastava construir novas escolas de 1º e 2º graus, aumentar o número de vagas e de professores, destacavam também a importância de promover eventos e ações culturais.
A Associação de Moradores Amigos da Gávea solicitou o aproveitamento da Escola Oscar Tenório para atividades dos moradores. Assim como a Amofonte sugeriu uma melhor utilização para as escolas públicas da Fonte da Saudade. A Zona Leopoldina da FAMERJ, no mesmo documento, reivindicava: escolas públicas de 1º e 2º graus, supletivos noturnos, reformas em diversas escolas; cursos e centros profissionalizantes; participação dos professores, pais e comunidade na escolha dos diretores da escola (REZENDE, 1983; TENÓRIO, 1983).
Nesse cenário, Maria Yedda toma posse, encontrando uma malha escolar em péssimas condições estruturais. Naquele ano a verba total para a educação era de Cr$ 1,15 bilhões, o que não seria suficiente para reformar as 548 escolas que estavam em condições mais precárias, e ainda era necessário respeitar o orçamento aprovado no ano anterior, que previa Cr$ 600 milhões para obras de conservação, o que efetivamente só custearia a reforma de 12 escolas. Em 1983, o número oficial de escolas em funcionamento na rede municipal era de 816 unidades; em um levantamento inicial, 450 necessitavam de obras e, posteriormente, constatou-se que esse número era maior, chegando a 558, sendo que 12 escolas haviam praticamente desabado, existindo somente no papel (RIO DE JANEIRO, 1985).
Tal análise da situação estrutural convergiu em uma reprogramação imediata do orçamento, na tentativa de, em meados daquele ano, iniciar um grande movimento de reestruturação física de todas as unidades da rede municipal. O objetivo era contar com o apoio da Secretaria Municipal de Obra, com a colaboração das associações de bairros e pais de alunos e, também, com doações. A última possibilidade foi aberta com a Resolução SME n° 15, de 17 de agosto de 1983 (RIO DE JANEIRO, 1983b), que autorizava servidores que ocupassem determinados cargos (como diretores de escolas) a receberem doações destinadas a reformas e ampliações de prédios escolares. Tais doações seriam recebidas como colaboração da comunidade local para incremento da Campanha “Mãos à Obra nas Escolas”, permitindo que as firmas doadoras deduzissem até o limite de 5% do lucro operacional no imposto de renda. No entanto, esta resolução foi amplamente criticada, mas não encontramos informações que nos permitam aprofundar esta discussão.
Por outro lado, apontamos ainda que a recuperação das escolas, segundo a própria administração Brizola, foi conseguida em grande medida através da Campanha “Mão à Obra nas Escolas”. Campanha essa que foi lançada pelo governo estadual em um suplemento incluído no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro de 5 de outubro de 1983 (RIO DE JANEIRO, 1983c), em que se apresentava um resumo da administração daquele governo. Com o título “O que é possível fazer quando Governo e Povo trabalham juntos”, o texto destacava que a prioridade do governo era escolarizar, alimentar e assistir todas as crianças do estado. E que uma das medidas urgentes seria a reforma de escolas em condições precárias. Ao mesmo tempo, informam ainda que a campanha tinha sido iniciada em 4 de julho daquele ano e já havia atendido a mais de 3.258 escolas (2.485 estaduais e 771 municipais), tendo encerrado a sua primeira fase. Assim, aos seis primeiros meses de governo, a primeira etapa fora concluída em 63 municípios e na cidade do Rio de Janeiro, através de reparos urgentes e do levantamento de todas as necessidades, faltando apenas as escolas municipais do interior (RIO DE JANEIRO, 1983c). Nessa fase “realizou-se a mobilização das comunidades e foram feitos cadastramentos, limpeza e pequenos reparos” (RIO DE JANEIRO, 1983c, p. 19). Com base no cadastramento realizado, na segunda fase seriam privilegiados os “grandes reparos, reformas e ampliações” (RIO DE JANEIRO, 1983c, p. 19). Ressalta-se, ao mesmo tempo, que em toda parte houve participação comunitária de pais, professores e da comunidade em geral.11
Nesse sentido, no ano de 1983, uma das prioridades era a recuperação material da rede. Contudo, outras ações também estavam sendo gestadas, a exemplo da extinção do terceiro turno (em vigor em 317 escolas), promessa de campanha do prefeito Haddad. Outros projetos que visavam à melhoria da qualidade de ensino, como o aprimoramento e a diversificação do material didático, também começaram a ser elaborados pelos grupos de trabalho organizados pela secretaria. Almejavam ainda rever os métodos pedagógicos empregados até aquele momento e repensar a capacitação que vinha sendo oferecida ao corpo docente.
Em agosto de 1983 foram criados seis grupos-tarefa com o intuito de identificar as necessidades mais urgentes e iniciar a implantação das ações da nova administração, assim organizados: Reorganização da 5º série; Educação alternativa para adolescentes de 14 a 20 anos; Eliminação do 3º turno; Alfabetização; Proposições de alternativas de ação para a minimização dos problemas de evasão e repetência; Implantação da Escola comunitária integrada (RIO DE JANEIRO, 1983a). Nesse mesmo período ocorreu um seminário interno para a capacitação dos profissionais responsáveis pelos grupos-tarefa, havendo ainda a contribuição de professores universitários e profissionais da própria secretaria que haviam participado de programas de capacitação anteriores, como no caso do Laboratório de Currículos. As discussões foram publicadas posteriormente no informativo “Alfabetização”, no final do ano de 1983.
Durante o processo de identificação da situação da rede pública municipal, a professora Maria Yedda Linhares levantou as condições do cotidiano das escolas, se deparando com um “superfaturamento de alunos”. Tal situação se relaciona à merenda escolar, que era distribuída de acordo com o número de alunos declarados. Algumas escolas aumentavam esse número tentando receber mais recursos/itens. Assim, inquéritos administrativos foram abertos e a correção do número de matrículas passou a ser mais um desafio, eliminar a distorção advinda de números inflacionados torna-se uma das necessidades prioritárias.
Ao mesmo tempo, o fornecimento da merenda também tinha outros pontos a serem sanados com extrema urgência. A distribuição dos alimentos era feita pela Companhia Central de Abastecimento (COCEA), que revelava que tinha dificuldades em entregar todos os itens constantes no cardápio, elaborado pelas nutricionistas do Instituto Annes Dias. Algumas denúncias davam contam que os valores dos alimentos estavam sendo superfaturados pelo COCEA. Além dos problemas com a aquisição dos alimentos, as escolas não possuíam condições de estocar os gêneros alimentícios. Poucas unidades, por exemplo, possuíam geladeiras e/ou armários adequados. Frente a tais obstáculos, o município e o estado buscaram outra forma de aquisição dos gêneros da merenda escolar. Inicialmente, uma verba foi repassada às escolas, ficando as direções encarregadas de comprar os gêneros de acordo com as necessidades e as condições de armazenamento de cada unidade.
Paralelamente, em 1983, foram realizados dois encontros de professores, um organizado pelo estado, o Encontro de Mendes, e outro pelo município, o I Encontro de Professores de 1º Série da Rede Oficial do Município. Este último ocorreu nos dias 29 e 30 de setembro de 1983, na UERJ, visando identificar as expectativas do professorado e ainda divulgar as diretrizes da própria secretaria. As propostas teórico-metodológicas foram abordadas com menos intensidade que as questões de cunho mais administrativo. O foco acabou direcionado aos aspectos associados ao cotidiano da alfabetização, como a construção de novas escolas,12 o controle de matrículas já existente, a diminuição do tamanho das turmas,13 a melhoria do material pedagógico e a ampliação da capacitação de professores.
Ainda no início de dezembro, o prefeito Jamil Haddad foi substituído. Naquele momento a secretaria de educação estava concentrada nos reparos dos prédios escolares, reorganização do fornecimento da merenda escolar, nas reuniões dos grupos-tarefa e na melhoria das condições da alfabetização dos alunos da 1º série. A eliminação do terceiro turno ainda continuava sendo uma das metas a alcançar nos anos seguintes. Esse período põe fim à primeira fase da atuação de Maria Yedda Linhares na secretaria municipal de educação. Permanecendo no grupo político de afinidade, segue para a Secretaria Estadual de Educação, tomando posse no dia 12 de junho de 1986.
A professora Maria Yedda Linhares não possuía experiência anterior na atuação ou gestão do ensino de 1º grau, por isso havia certo desconforto dos professores das redes municipal e estadual pela sua escolha.
A professora e pesquisadora Libania Xavier aponta que “sempre me perguntei como uma historiadora, com perfil super acadêmico, de pesquisadora, abraçou o cargo de secretária de educação. Acredito que ela tenha abraçado esse cargo pensando no potencial democratizante que ela poderia desempenhar” (MATOS, 2016, p. 234).
Hildezia Medeiros,14 em entrevista realizada por Matos (2017, p. 126), assinala que:
[...] enquanto CEP, sempre tivemos uma relação de respeito com ela. Conhecíamos Maria Yedda como uma professora, antes de ser secretária, emérita no campo da educação. No campo da educação à esquerda, não podemos esquecer disso. Tínhamos maior respeito, nenhuma questão maior. Ela foi um marco extremamente interessante, importante. Houve um investimento, uma incidência do governo Brizola na questão da educação, embora eles tenham sacralizado algumas coisas. As coisas mudam e as pessoas, as estratégias podem mudar. Yedda, dentro desse campo, ela era uma pessoa à esquerda, como Darcy, e sempre tivemos uma relação. Agora, claro, sabemos que se uma pessoa se submete a ser secretária de Estado, em nome da tal governabilidade, as vezes há algumas dificuldades mais sérias. Do ponto de vista pedagógico, de visão de mundo, a Maria Yedda era uma pessoa com quem podíamos conversar.
Por outro lado, Faria (2011, p. 37) esclarece que, mesmo sem um amplo conhecimento no segmento do 1° Grau, havia uma relação positiva que justificava sua escolha para o cargo:
[...] embora nem Maria Yedda, nem o Darcy tenham sido de educação básica, eles possuem esse olhar de sensibilidade, de preocupação com a alfabetização, com as alfabetizadoras, principalmente Darcy. Essa sempre foi a prioridade de Darcy no programa dos CIEPs. Maria Yedda ainda estava mais distante que Darcy dessa realidade. Darcy era e se colocava o discípulo de Anísio Teixeira. Ele bebeu muito nessa fonte de Anísio no que se refere à educação básica. Maria Yedda, apesar de ter uma relação muito próxima ao Anísio, como catedrática e intelectual, era mais voltada ao meio acadêmico.
Cabe destacar também que Maria Yedda Linhares vivenciou vários embates com críticos à sua gestão e às políticas implementadas pelo governo Brizola. Um deles foi após o término de sua administração, quando o jornal O Globo, em 1989, publicou matéria de Cesar Benjamin (1989) afirmando que em sua gestão o número de matrículas havia sido reduzido.
Em carta aberta intitulada “PT: a quem servem as estatísticas”, respondeu às críticas apontando, por exemplo, que:
[...] como condição previa para a implantação do Programa Especial de Educação, tivemos um árduo trabalho de democratização das estruturas educacionais, depois de longos anos de repressão e clientelismo. Assim, foram criados os Conselhos Escola-comunidade, recriados os grêmios estudantis, foi feito o chamamento à participação dos professores [...] na elaboração dos programas de atividades (alfabetização, treinamento, conteúdo programático e na própria administração do sistema). Ao mesmo tempo, nossa relação com os professores foi marcada pelo respeito mútuo e o diálogo permanente, travado através do CEP, que, aliás, foi restaurado em sua plena legalidade pelo governo Brizola. (LINHARES, 1985, p. 12).
Neste mesmo documento apresenta informações sobre os índices de matrícula do período compreendido entre 1983 e 1986, que indicam um crescimento em tais matrículas. A pesquisa assinala ainda que a secretária, por vezes, destacou a dificuldade de se ofertar educação pública de qualidade e universal. A discussão e implementação de legislação mais abrangente referente ao financiamento da educação só virá a partir da década seguinte. Naquele momento a ideia de oferecer o ensino fundamental completo, ainda que deficitário, se assemelhava a uma ficção. Ela afirma que “a obrigatoriedade de o município dar oito anos de escolaridade às crianças não passa de uma fantasia, uma quixotada, mais uma ficção da lei brasileira” (LINHARES, 1985, p. 12).
Em seu período como secretária municipal no Rio de Janeiro, entre março de 1983 e julho de 1986, atuou ao lado de três prefeitos: Jamil Hadadd, Marcelo Alencar15 e Saturnino Braga. Sobre esta experiência como gestora, a historiadora destacou como pontos significativos: a criação do CEC (Conselho Escola Comunidade); a recriação dos grêmios estudantis (com eleições diretas); a participação dos professores nas discussões e elaboração de programas referentes à alfabetização, treinamento, conteúdos programáticos, gestão escolar e avaliação.
Ao mesmo tempo, assinalou a importância das parcerias da SME com a FAMERJ, com a Federação de Associações de Favelas e com o Centro Estadual de Professores/RJ (CEP).
Por ocasião das primeiras eleições presidenciais pós-ditadura civil-militar, em 1989, Maria Yedda sinalizou em entrevistas à impressa que, embora o governo Brizola estivesse naquele momento sendo veementemente combatido, foi durante a administração do PDT que, após debates com a categoria, foi aprovado o primeiro plano de carreira dos professores públicos municipais do Rio de Janeiro.
Considerações finais
Hobsbawm (1998) afirma que existem três formas de desfrutar do passado: buscar nele o modelo ideal, as glórias para o orgulho da nacionalidade ou para buscar elementos para problematizar o presente. Está última se insere em nossa reflexão, na medida em que a recuperação das memórias, falas e discursos nos ajudam a melhor compreender e debater concepções presentes no percurso histórico, no caso em tela, a História das mulheres e a História da Educação Fluminense.
Cabe ainda ressaltar que pesquisar a política educacional dos anos 1980 e o campo de forças atuantes naquele período representou também a tomada de consciência de que para entendermos a atual situação da educação fluminense é necessário pesquisarmos cada vez mais o processo histórico vivenciado ao longo da implantação dos sistemas públicos de educação. Portanto, futuros estudos sobre a formação histórica da escola pública no município do Rio de Janeiro, antiga capital federal, podem contribuir na luta em defesa do direito à educação em nosso município e também no estado do Rio de Janeiro.
Nessa perspectiva, o percurso de Maria Yedda Linhares merece, além de reconhecimento, uma análise atenta e aprofundada, sendo necessário considerar que sua atuação, sobretudo nos quadros de gestão, vai ao encontro dos principais debates educacionais postos na História da Educação fluminense e brasileira. Portanto, a visão desta profissional, mulher, primeira catedrática e também a mais jovem na Universidade Brasileira, que há tantas décadas trabalhou e projetou a visão de uma escola enquanto um local universal, democrático e igualitário, demarca a oportunidade e importância deste estudo, pois a sua história contribui para a reflexão acerca da trajetória das mulheres e da educação no Brasil.